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Brasil rupestre: arte pré-histórica brasileira. JORGE, Marcos; PROUS, André; RIBEIRO, Loredana. Curitiba, Zencrane Livros, 2006. 272 páginas ilustradas; ISBN 978-85-60475-00-1

2007, Revista De Arqueologia

Resenha Brasil rupestre: arte pré-histórica brasileira. JORGE, Marcos; PROUS, André; RIBEIRO, Loredana. Curitiba, Zencrane Livros, 2006. 272 páginas ilustradas; ISBN 978-85-60475-00-1. Resenhado por Tania Andrade Lima Departamento de Antropologia Museu Nacional, UFRJ Pesquisadora do CNPq Pegando seus leitores pela mão e conseguindo capturá-los sem resistência pelo viés da emoção, Marcos Jorge, André Prous e Loredana Ribeiro os transportam ao enigmático mundo dos grafismos pré-históricos. Em seu livro Brasil rupestre: arte pré-histórica brasileira, publicado com recursos da Petrobras e apoio da Lei de Incentivo à Cultura, os autores apresentam pinturas e gravuras feitas em afloramentos rochosos de várias partes do país, por diferentes culturas que aqui viveram antes da conquista européia. Como resultado de sete expedições que percorreram 32 municípios de 15 estados brasileiros, realizadas entre janeiro de 2005 e março de 2006, foi produzido um impressionante acervo de 7.000 fotos por Marcos Jorge, cineasta e artista plástico que utiliza a imagem como forma primordial de expressão. Junto com ele, dois competentes especialistas em arte rupestre e conhecedores em profundidade do assunto, André Prous e Loredana Ribeiro, asseguram e respondem pela qualidade científica da seleção, descrição, avaliação e interpretação desses grafismos. Foi precisamente a partir dessa idéia de viagem, na sua acepção mais ampla, que o livro foi concebido e estruturado. Trata-se, objetivamente, não só de uma viagem por algumas das regiões do território brasileiro onde esses vestígios são mais expressivos e exuberantes, mas também, subjetivamente, de viagem no sentido de experiência interior, sensorial e intensamente vivida pelos que se deixam levar pelos caminhos que os autores apontam. Não por outra razão, o livro apresenta em suas páginas iniciais, como um sedutor convite a sua leitura, uma composição de 16 magníficas paisagens de diferentes pontos do país condensadas em duas páginas. Oferecendo-se aos olhos do leitor, na pujança de sua beleza esplendorosa, elas o incitam a percorrê-las. Logo em seguida, uma nova composição também em duas páginas aponta os meios para chegar até elas. Nove imagens de caminhos - cada qual se estendendo, em perspectiva, ao infinito - sinalizam que importa menos o destino do que a caminhada para alcançá-lo. E é precisamente aí que parece residir a chave para a fruição do volume: importa menos o significado desses grafismos que as infinitas possibilidades que eles oferecem à emoção e à imaginação humanas, o que faz deles obras de arte no sentido mais cabal do termo. Construído a partir do contraponto entre arte e ciência, entre sensibilidade e razão, bem marcado pela sua divisão em duas partes, o livro equilibra-se nessa tensão. A primeira, intitulada Imaginário, é apresentada por Marcos Jorge, e nela ele exibe uma seqüência de imagens que tiram o fôlego do leitor, obedecendo a um roteiro que começa no norte do país e termina na região sul. Embora sejam as pinturas e gravuras seu escopo maior, suas lentes sensíveis captaram todo tempo a força e o magnetismo daquela que em geral é deixada em último plano, esquecida, ao fundo da cena: a rocha. Enamoradas, elas põem em destaque suas formas, texturas e tonalidades, tentando acompanhar seus caprichos e desvendar seus segredos. Mas, sobretudo, fazendo justiça àquela que, longe de ser um mero suporte neutro, sem dúvida foi revestida de fortes significados simbólicos no passado, tal como se observa hoje entre grupos nativos da atualidade. Intuitivamente, Jorge fez com sua arte o que os estudos Revista de Arqueologia, 20: 169-172, 2007 169 Resenha mais recentes de arte rupestre vêm promovendo: a sua valorização como um elemento de mesma relevância e magnitude – se não até maior - que os grafismos que lhes foram postos e com os quais ela compõe uma totalidade indivisível e indissociável. Sem legendas, essas imagens têm no entanto como fio condutor um pequeno texto de Pedro Ignácio Schmitz, decomposto em frases curtas, dispostas página a página. Com esse arranjo elas ganharam uma nova dimensão, profundamente poética, que expande seu sentido. Habitualmente portador de um discurso seco e contido, Schmitz extravasa sua emoção ao relatar o que sentiu ao visitar pela primeira vez um sítio com pinturas e se permite soltar a fantasia para imaginá-lo em vida, envolvendo o leitor com seu encantamento. A segunda parte, domínio da racionalidade científica, foi intitulada Vocabulário. Apresentada por Schmitz e a cargo de André Prous e Loredana Ribeiro, esta é a parte textual do volume, de conteúdo denso. É composta por uma linha do tempo, que situa cronologicamente as diferentes manifestações culturais da pré-história brasileira, e a ela se seguem uma introdução, quatro capítulos, uma conclusão e um apêndice. Na linha do tempo, a adoção de múltiplos e diferentes critérios para caracterizar as manifestações culturais da préhistória brasileira – privilegiando ora o tipo de economia, tipo de sítio, e traços culturais, ora migrações, populações, e até dotes artísticos – resultou em um quadro pouco claro, sobretudo para o público leigo. Um mesmo critério como fio condutor – tivesse sido ele econômico, tecnológico, cultural, social ou qualquer outro – com certeza teria possibilitado uma leitura mais harmoniosa e um melhor entendimento dessas manifestações. Tampouco ficou clara a diferença que os autores estabelecem entre os “artistas da pedra”, situados na linha do tem170 Revista de Arqueologia, 20: 169-172, 2007 po entre 8000 e 3500 AP, e os “pintores dos abrigos”, que podem recuar a 10.000 anos e se estender até o contato com o europeu. Não é exposto ao leitor o critério que diferencia uma categoria da outra, o que o deixa aturdido. Também surpreende o posicionamento cronológico dos sambaquis marinhos somente em torno de 4.000 anos antes do presente, quando existem cerca de duas dezenas de datações radiocarbônicas entre 5.000 e 6.000 anos para esses sítios, e, até o momento, quatro delas com mais de 7.000 anos. Essas poucas observações, contudo, restritas exclusivamente à linha do tempo, em nada diminuem a excelência do texto, nem tampouco empanam seu brilho. Na introdução, intitulada Arte rupestre pré-histórica: imagens fixas, significados mutáveis, Prous & Ribeiro expandem com propriedade o conceito de arte rupestre para além da fruição estética. Chamam a atenção para a universalidade dessa forma de expressão e comunicação, já que o ímpeto de apor grafismos em suportes duradouros aparece em diferentes culturas no espaço e no tempo, até a atualidade, na forma das pichações tão freqüentes em áreas urbanas. Os autores apresentam as diferentes modalidades de expressão gráfica na pré-história, esplendidamente ilustradas: pinturas, gravuras e desenhos, suas técnicas e materiais de confecção, as formas de datá-las, a diversidade de estilos, e as tentativas feitas para explanálas, desde o século XVI até a atualidade. O primeiro capítulo, Sobre os temas e as composições, é dedicado à temática dos grafismos e aos modos peculiares de produzi-los, ou seja, aos estilos, demarcadores de fronteiras sociais e culturais. Com isto, é somente a partir do segundo capítulo, As gravuras rupestres dos planaltos e das praias do Brasil meridional, que começa a grande viagem, tendo como ponto de partida os estados do sul, domínio das gravações e onde não há ocorrência de pinturas. Só Resenha que agora em percurso inverso ao feito na Primeira Parte. A viagem se prolonga ainda por mais dois capítulos, dedicados respectivamente à Arte rupestre do centro e nordeste brasileiros: antiguidade e diversidade, e à Arte rupestre amazônica: a figura humana, do coletivo ao individual, onde se encerra. Em todas essas áreas, suas pinturas e gravuras são detalhadamente apresentadas, contextualizadas nos ambientes em que se encontram inseridas, descritas, analisadas e comentadas. Na conclusão, Prous & Ribeiro tentam responder às clássicas questões colocadas pela arqueologia, no caso, direcionando-as para a arte rupestre: por que, para que e por quem foram produzidos esses grafismos. Apresentando as teorias construídas para explaná-los, desde o século XIX até as mais atuais, recusam uma explicação única para esses fenômenos. À luz de exemplos etnográficos, deixam claros o particularismo e a variabilidade de situações, mundo afora, que inviabilizam generalizações. Por fim, apresentam e discutem as classificações em tradições e estilos definidos para a arte rupestre no Brasil, chamando a atenção para a velocidade da destruição desses vestígios. À guisa de apêndice, é abordado o problema da sua preservação, um ponto de importância capital em um livro destinado a um público não-especializado. São expostos os tipos freqüentes de danos infligidos aos grafismos rupestres e aos sítios onde eles estão situados, bem como apontadas possíveis saídas para assegurar sua conservação para gerações futuras. Na bibliografia, desnecessáriamente restrita em vista de se tratar de autores que têm absoluto domínio sobre a literatura especializada, são cometidas algumas omissões injustas de trabalhos que com certeza alimentaram, ao longo da trajetória profissional de ambos, muitas das idéias por eles construídas e apresentadas no volume. Todo o tempo, ao longo da Segunda Parte, eles levantam questões e cons- troem hipóteses explanatórias - algumas bem fundamentadas, outras nem tanto - atestando o quanto eles permitem o avanço da imaginação sobre a sua racionalidade. Esse cruzamento entre razão e emoção foi esplendidamente representado no sumário, onde a Segunda Parte é ilustrada por uma bela imagem de uma encruzilhada. Intelecto e fantasia se encontram nessas hipóteses imaginosas, aqui entendidas como pontos de interseção entre esses dois eixos. Essa hibridação é necessária e fecunda, mas logo em seguida as duas linhas precisam prosseguir independentemente suas trajetórias distintas. Ou seja, se a imaginação é necessária à ciência em algum momento, no domínio da razão científica, propriamente, ela precisa ser contida pelo rigor da comprovação. O que nem sempre é possível no caso das hipóteses levantadas, condenadas perpetuamente ao domínio da suposição. De certa forma elas contrastam com o discurso extremamente cauteloso dos autores, que todo tempo relativizam assertivas e posições que podem soar peremptórias ao leitor. Um contraste que mostra que a emoção tem razões que a própria razão desconhece. Uma feliz combinação de excelência de texto e imagem, raras vezes conseguida, somada ao emprego de uma linguagem direta, sem os jargões dos especialistas, resultou em um livro acessível e de fácil compreensão para o público em geral. Esplendidamente diagramado e apresentando interesse tanto para leigos quanto para os que estudam o assunto, Brasil rupestre se soma a duas outras importantes obras de divulgação dos grafismos pré-históricos, ambas publicadas em 2003: Imagens da Pré-História, de Anne Marie Pessis, e Arte rupestre na Amazônia, de Edithe Pereira. Se a primeira nos traz o esplendor da arte rupestre do Piauí e a segunda cataloga as intrigantes expressões gráficas amazônicas, a obra apresentada agora por Marcos Jorge, André Prous e Revista de Arqueologia, 20: 169-172, 2007 171 Resenha Loredana Ribeiro alcança todo o território nacional, oferecendo uma visão abrangente da variedade de discursos gráficos produzidos pelas múltiplas culturas que aqui viveram antes da conquista européia. Trata-se de obra imperdível, pela fruição em diferentes níveis que proporciona: acadêmico, intelectual e estético, entre muitos outros. 172 Revista de Arqueologia, 20: 169-172, 2007