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TV News Archive como construto e lugar de memória na web

2017, Anais Intercom

O presente artigo propõe discutir o TV News Archive, projeto online de arquivamento de programas de notícia de emissoras norte-americanas, vinculado ao Internet Archive (www.archive.org). Ao dissecar (Kilpp, 2010) e escavar (Huhtamo, 1997) algumas de suas interfaces e lógicas operativas, identificamos devires da tecnocultura televisiva (mais “editoriais” e da própria web (mais “formais”) produzindo tensões dialéticas que nos permitem avançar sobre a compreensão deste fenômeno como um construto de memória, ao qual associamos os debates de Kilpp (2005) sobre televisão e memória e Pierre Nora (1993) sobre os lugares de memória.

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 TV News Archive como construto e lugar de memória na web1 Gustavo Daudt Fischer2 Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS Resumo O presente artigo propõe discutir o TV News Archive, projeto online de arquivamento de programas de notícia de emissoras norte-americanas, vinculado ao Internet Archive (www.archive.org). Ao dissecar (Kilpp, 2010) e escavar (Huhtamo, 1997) algumas de suas interfaces e lógicas operativas, identificamos devires da tecnocultura televisiva (mais “editoriais” e da própria web (mais “formais”) produzindo tensões dialéticas que nos permitem avançar sobre a compreensão deste fenômeno como um construto de memória, ao qual associamos os debates de Kilpp (2005) sobre televisão e memória e Pierre Nora (1993) sobre os lugares de memória. Palavras-chave: web, TV News Archive, memória, televisão. Introdução Ao longo dos últimos anos, temos cartografado e discutido as características de diversas iniciativas presentes no ambiente online que temos chamado de “construtos de memória” de materiais midiáticos (da própria web ou de outros meios, como a televisão) e de softwares. Neste mapa de ocorrências, encontramos desde ideias que se posicionam com ambições de amplo arquivamento de produtos culturais diversos, como o Internet Archive (que será mencionado novamente neste texto) até iniciativas mais experimentais como The Restart Page e do projeto One Terabyte of Kilobyte Age, ambos debatidos anteriormente (Fischer, 2015 e 2016, respectivamente)3. A observação destes fenômenos passa por três questões norteadoras. A primeira é de ordem tecnocultural, nos perguntando o que estas iniciativas dizem sobre o nosso tempo, na medida em que entendemos que estes construtos operam como resposta ao devir da obsolescência programada que se estende não apenas para produtos no sentido estrito do termo, mas também para a própria produção midiática. A segunda diz respeito a problematizar essas iniciativas como imagens dialéticas - aqui inscreve-se a proposta Benjaminiana neste 1 Trabalho apresentado no GP Estudos de Televisão e Televisualidade do XVII Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS, email: [email protected] 3 Estas e outras produções compõe o projeto de pesquisa “Memória das/nas interfaces: do audiovisual às audiovisualidades soterradas” e pode ser localizado em www.memorianasinterfaces.com.br 1 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 sentido, tal qual Didi-Huberman (1998) retoma e atualiza – dentre as quais as de lembrança e do esquecimento brilham fortemente, em um movimento que nos leva para a terceira angulação da qual nos deteremos de forma um pouco mais enfática neste trabalho através do contato com um dos observáveis de nossa pesquisa, o TV News Archive: que construto de memória é esse, dadas as especificidades de suas lógicas operativas4 e da própria discussão específica da relação entre televisão e memória? Para tanto, a ideia de construto recebe contribuições a partir da proposta de Pierre Nora sobre lugares de memória, e a relação entre televisão e memória traz alguns apontamentos provocativos de Kilpp (2005). O TV News Archive, por sua vez, tem algumas de suas interfaces dissecadas e escavadas, aproximando nos de duas operações metodológicas que entendemos complementares, conforme propõe Kilpp (2010) e Huhtamo (1997), respectivamente. Ao fina, tecemos algumas reflexões, considerado o quadro aqui montado. Aproximações teórico-metodológicas para refletir sobre os construtos de memória na web Já mencionamos em trabalhos anteriores (Fischer, 2015) a perspectiva de entendermos a web como solo, terreno e portanto potente de ser escavada para dar a ver aspectos usualmente menos recorrentes nas pesquisas em Comunicação, que costuma interessar-se – sem demérito a isso - por fenômenos que se estabelecem no campo do online muitas vezes voltadas para a discussão da atualização dos ofícios ou dos produtos midiáticos (os “novos” jornalismos, a publicidade “2.0”, etc.) e da presença ubíqua das redes sociais em diferentes práticas de afirmação identitária, mobilizações sociais, etc. Já os aspectos que nos interessam dizem respeito a reflexões que advém continuamente do desejo por observar “as tendências comunicacionais, memoriais, projetuais e experimentais do audiovisual, inscrevendo-o em um campo heterogêneo de formatos, suportes e tecnologias que atravessam e transcendem as mídias, por convergência e dispersão”5, conforme nossa filiação através do grupo de pesquisa Audiovisualidades e Tecnocultura: comunicação, memória e design (TCAv). Do ponto de vista metodológico, faremos movimentos escavatórios, inspiradas por reflexões em amadurecimento a partir 4 Por lógicas operativas entendemos o conjunto de procedimentos identificáveis nas interfaces que fazem com que um website oferte suas características específicas para um usuário. 5 Fonte: http://tecnoculturaaudiovisual.com.br/?p=151 (Acesso julho de 2015) 2 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 de convocações dos estudos de arqueologia da mídia (Huhtamo, 1997) e em combinação com as ideias de Kilpp (2010) em relação aos processos de dissecação das imagens que temos buscado realizar no âmbito da web. O que articula a perspectiva das audiovisualidades e da tecnocultura com estes acionamentos metodológicos passa por algumas considerações sobre a ideia de memória que nos interessa aqui, na medida em que ela opera dialeticamente, tal qual Deleuze (1999) sintetiza a proposta de Henri Bergson sobre o misto enquanto constituído por duas tendências6. De um lado, temos a memória como uma virtualidade, uma duração que permite que pensemos as coisas mais em função do tempo do que do espaço. A outra tendência, coalescente a essa é da ordem dos atuais, das materialidades que especializam o tempo. Essa é uma noção importante para pensarmos que qualquer meio, imagem técnica, produto midiático, etc. É nesse sentido que podemos problematizar “um campo heterogêneo de formatos”, como é o caso do TV News Archive, e perceber nas suas interfaces e lógicas operativas, diferentes camadas de memórias dos meios televisivo e da web em tensionamento. A ideia de um construto de memória na web para abrigar, organizar, indexar, catalogar, exibir materiais midiáticos tem permitido diversas reflexões sobre devires preservacionistas, nostálgicos e efêmeros da web. No caso do TV News Archive, poderíamos acrescentar de forma específica, os debates a respeito da memória da televisão, conforme afirma Kilpp (2005) ao pensar estas relações com ênfase no Brasil: “[c]onhecer os modos como a televisão produz memória e os modos mais ou menos discretos que ela usa para sabotar memória é uma questão estratégica para a pesquisa (...). A autora avança para propor três questões decorrentes desta afirmação, na perspectiva de pensar “as associações mais ou menos fortes entre memória e televisão” no imaginário: a necessidade de uma retomada crítica sobre as relações emblemáticas entre televisão e história, a tensão entre a noção de memória nacional e memória televisiva, constantemente replicada pelas possibilidades de remakes e reprises (possíveis desde a chegada do videoteipe) e, finalmente, a necessidade de reivindicar o direito a acessar as imagens produzidas pela televisão, na perspectiva de Derrida (1998) quando trata do “direito de mirada”: “[o] fato de ter acesso a estes arquivos, poder analisar seu conteúdo, 6 As reflexões de Henri Bergson vem, em especial, do livro Matéria e Memória (1999). 3 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 as modalidades de seleção, interpretação, manipulação que presidiram sua produção e circulação, tudo isto é portanto um direito do cidadão” (p.51)7. Além da articulação com o televisivo, queremos convocar algumas considerações a partir do historiador francês Pierre Nora (1993) com relação as dimensões de história e memória, com ênfase na sua proposta sobre “lugares de memória. ” A visão do autor sobre a memória como “aberta a permanente evolução” e “vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações” (p. 9) vai tanto ao encontro da ideia de virtual-atual em Bergson como das observações de Kilpp sobre a tensa relação entre a televisão e memória nacional. Para compreender melhor esta questão, avançamos para a síntese de Vieira (2015) sobre a ideia de lugares de memória em Nora: Pierre Nora observa que vivemos a aceleração da história, que produz, cada vez mais rapidamente, um passado morto, a percepção geral de algo desaparecido (1993, p. 7). Para o autor, a mundialização, a democratização, a massificação, a midiatização causaram o desmoronamento da memória: o fim das sociedadesmemória, que asseguravam a conservação e transmissão de valores; o fim das ideologias-memória, que garantiam a passagem regular do passado para o futuro ou indicavam o que se deveria reter do passado para preparar este futuro (idem, p. 8). Os lugares de memória nascem e vivem, portanto, do sentimento de que não há memória espontânea, de que é preciso criar arquivos (...) (p.1, online). Avançando para a nossa tecnocultura, a ideia de lugar de memória viria para Nora “na contramão do excesso de arquivo” (Pinto, 2013). Este frenesi por arquivamento também é mencionado por Manovich (2000) quando fala da tendência digitalizadora que chegava com o surgimento das chamadas novas mídias computacionais e por Beigelmann (2014) quando se preocupa sobre as obras de “net art” cuja existência é altamente contextual: [N]unca se falou tanto de memória como hoje em dia, e nunca foi tão difícil ter acesso ao nosso passado recente. Difícil negar. Poucas palavras tornaram-se tão corriqueiras no século XXI como “memória”. (...) [A] memória converteu-se um aspecto elementar do cotidiano. Tornou-se um dado quantificável, uma medida e até um indicador de status social” (p.2). Suely Pinto (2013), outra leitora de Nora, esclarece a especificidade do lugar de memória: 7 El hecho de tener acceso a esos archivos, poder analizar su contenido,las modalidades de selección, interpretación, manipulación que presidieron su producción y circulación, todo eso es por lo tanto um derecho dei ciudadano. 4 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 Não seriam ações de comemoração, como bem lembrou Nora (1993), mas de subjetivação do espaço. Deixar vir os fantasmas de tempos diante de um nãotempo, de um não-dito, de um não-lugar. Memórias de um grupo singular e não de um sujeito institucionalizado, eleito como detentor de poder corroborado pelos vestígios documentais institucionais (p. 91). Seria possível – e, em última instância – necessário, avançar mais nesta reflexão sobre os lugares de memória, mas o faremos, de forma parcial, durante e após um percurso escavatório inicial sobre o TV News Archive. A ideia de escavação é entendida por nós como uma proposta que tem no procedimento de dissecação um de seus acionamentos. Segundo Kilpp (2010), se trata de um procedimento técnico para retirar as imagens de seu fluxo habitual (no nosso caso, o da web e da autora, a televisão) e permitir que se façam intervenções sobre elas (não necessariamente plasticamente identificadas como tal, mas também), autenticando determinadas lógicas, operações, características, estratégias que costumam se dar uma zona de maior opacidade, considerando que nossos acionamentos como espectadores ou usuários vai em direção a objetivos mais brilhantes (fruir a novela, curtir uma publicação em uma rede social, etc). Ao dissecar determinadas imagens, poderemos realizar escavações de determinados tempos, durações, memórias que ali se inscrevem, ou ainda diríamos, produziremos camadas. Camadas são estratificáveis e arqueologizáveis (dissecáveis, rastreáveis, autenticáveis) e nos permitem ver que tempos – profundos e mais à tona coalescem, que elementos são memoriais, enfim, o que nelas dura de midiático, audiovisual, tecnológico, gráfico. Ou, em uma aproximação com a reflexão de Erkki Huhtamo (1997) a respeito da arqueologia da mídia, a escavação objetiva “estudar elementos e motivos cíclicos que subjazem e guiam o desenvolvimento da cultura da mídia. ”8 É nessa perspectiva que ingressamos no TV News Archive, problematizando memória e lugar de memória, entre a web e a televisão e produzindo movimentos dissecatórios e de escavação. Conhecendo o TV News Archive Criado em setembro de 2012, o TV News Archive compõe um dos diferentes serviços de acesso a materiais originários de diferentes suportes, linguagens e tempos que 8 Há outros desdobramentos para o debate sobre as escavações em Huhtamo e a relação com as culturas midiáticas do passado que pode ser buscada em Simone Natale (2015). 5 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 estrutura uma iniciativa macro chamada Internet Archive (www.archive.org), que se autodenomina como “uma biblioteca sem fins lucrativos e gratuita de milhões de livros, filmes, softwares, música, websites e mais. ” Dentre as diferentes sessões desta macrobiblioteca, encontram-se serviços de busca pelo “passado” da web através do serviço “Wayback Machine” que além de também constituir-se como um construto de memória, tornou-se um importante recurso mídio-arqueológico na execução das escavações em trabalhos anteriores (ver Fischer, 2015), além de emuladores de games (Classic PC Games9), repositórios de áudio, etc10. Em relação ao TV News Archive, encontramos ainda as seguintes afirmações sobre o serviço: Lançada em setembro de 2012, este serviço de biblioteca de pesquisa tem como objetivo aprimorar as capacidades de jornalistas, acadêmicos, professores, bibliotecários, organizações civis e outros cidadãos engajados. Ele redireciona o close caption para permitir aos usuários a busca, citação e empréstimo de programas de notícias televisivos norte-americanos. Disponível sem custo, o público pode usar o índice de texto rastreável e clips de streaming curto para explorar as notícias televisivas, descobrir importantes recursos, compreender contextos, avaliar assertividade dos fatos, engajar com outros e compartilhar percepções. (...) A biblioteca de pesquisa contém mais de 1.396.000 programas de notícias coletados ao longo de mais de 4 anos de redes e estações nacionais dos Estados Unidos em San Francisco e Washington D.C. O arquivo é atualizado com novas transmissões 24 horas depois de serem exibidos. Materiais mais antigos também estão sendo adicionados. (TV NEWS ARCHIVE, online, acesso julho/2017)11. Acrescentamos, também, na Figura 1, a captura da interface inicial do serviço (Figura 1), da qual queremos destacar, em nossa dissecação, quatro elementos, indicados graficamente e com letras de “a” até “d”. 9 https://archive.org/details/classicpcgamesb De certa forma, esta gigantesca biblioteca que abriga múltiplas mídias reflete uma das tensões/dialéticas mais fortes da web que poderíamos chamar de seus processos de centralização-descentralização, na medida em que convivem projetos mais “fechados” (como será o caso do TV News Archive) com espaços abertos e destinados ao público em geral colocar seus próprios conteúdos (como se fossem doações a biblioteca). 10 11 Launched in September 2012, this research library service is intended to enhance the capabilities of journalists, scholars, teachers, librarians, civic organizations and other engaged citizens. It repurposes closed captioning to enable users to search, quote and borrow U.S. TV news programs. Available at no charge, the public can use the index of searchable text and short streamed clips to explore TV news, discover important resources, understand context, evaluate assertions of fact, engage with others and share insights. (...) The research library contains more than 1,396,000 news programs collected over 4+ years from national U.S. networks and stations in San Francisco and Washington D.C. The archive is updated with new broadcasts 24 hours after they are aired. Older materials are also being added. 6 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 a b c d a Figura 1: Captura da interface inicial do TV News Archive – Fonte: https://archive.org/details/tv (acesso em julho/2017). Na região marcada “a”, percebemos inicialmente a inscrição do TV News Archive dentro do Internet Archive (nos termos de Kilpp) através da presença das barras pretas superior e inferior que funcionam como organizadoras da navegação por outros serviços da macro biblioteca. Apesar de imageticamente menos protagonista que o restante da interface do serviço, esta presença das barras enfatiza ao usuário que ele pode transitar para outros construtos de memória e, simultaneamente, encontra-se permanentemente na camada “Internet Archive” da experiência. É também na barra inferior que encontramos o link “about” no qual foi possível, ao clicá-lo, chegar a textos que descrevem o serviço. 7 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 Além do que expusemos anteriormente, ali também é colocado que a proposta é inspirada em outra iniciativa de memorialização da televisão norte-americana, a Vanderbilt University’s Television News Archive Project12 que, embora informe que vem gravando e arquivando programas televisivos de notícias desde 1968 (muito mais abrangente nesse caso que o TV News Archive, não disponibiliza o material online, trabalhando com acesso para membros-patrocinadores. O destaque que damos a esta informação nos auxilia em duas especulações. Primeiro, se podemos considerar que em nossa sociedade perdura um devir preservacionista, nos parece que nos EUA a televisão é entendida como um de seus produtos culturais mais relevantes e, adicionalmente, as “news” ocupam um espaço privilegiado nessa perspectiva, a televisão “séria”, que informa, reporta fatos. Segundo, o TV News Archive, ainda que não deixe de citar sua inspiração em um outro arquivo, o faz discretamente e assim acaba por incorporar uma característica forte das produções da web (independente de suas intenções arquivadoras ou não): enunciar-se inaugural, inédita, ainda que suas especificidades sejam relevantes a ponto de seguirmos avançando em nossas escavações. A região designada como “b” abriga uma importante parte da experiência pelo TV News Archive e que esteticamente replica a recorrente proposta de diversos mecanismos de busca da web em que o nome do serviço é justaposto a “search box” na qual o usuário digita o (s) termo (s) que deseja pesquisar. É preciso, no entanto, atentar para o texto préinserido na caixa de busca que avisa “busque pelas legendas ocultas (closed captions) de 2009 até ontem”, pois ao seu lado, encontra-se um asterisco que, ao ser clicado abre uma janela sobre a interface inicial permitindo que o usuário configura novos filtros, lembrando outra vez uma prática canônica das interfaces web, a chamada busca avançada. Figura 2: Excerto da página inicial do TV News com destaque para a busca avançada. Fonte: https://archive.org/details/tv (acesso em julho/2017). 12 https://tvnews.vanderbilt.edu/ Acesso julho/2017 8 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 Ainda temos nesta região, logo abaixo, de quatro informações complementares que “vendem” as principais características do serviço, a saber: “BUSQUE pelo sistema de legendas ocultas de programas de notícias norte-americanos”, “COMPARTILHE trechos de programas customizáveis e rastreie sua popularidade”, “VEJA trechos de 1.400.000 programas desde 2009”, “PEGUE POR EMPRÉSTIMO um DVD de qualquer programa completo”. Nesta região “b” novamente a camada da web impõe-se fortemente através do design que convoca nossa imagens-lembrança (Bergson, 1999) de outros mecanismos de busca (o fundo branco googliano, a caixa de busca centralizada) e da possibilidade de encontrar trechos dentre mais de 1,4 milhão catalogados com ênfase na quantidade, justificando a ideia de um banco de dados, uma característica durante dos ambientes online. A região “C” apresenta, aparentemente, escolhas editoriais por parte do TV News Archive, dando ênfase na página principal do serviço diferentes critérios de curadoria dos programas ou trechos. Estes conjuntos não são iguais entre si: o primeiro, Special Collections, é constituído por diferentes “coleções” (10 coleções separadas em conjuntos de 5 por navegação “lateral”) uma das práticas mais facilmente reconhecíveis em diversas iniciativas molduradas pelo Internet Archive. Ao clicar em uma destas coleções, por exemplo, “Trump Archive”, o usuário passa para uma nova página, na qual vai encontrar mais modos de organização dos trechos de vídeo, descrição da coleção, etc, conforme figura a seguir: Figura 3 Excerto da coleção "Trump Archive". Fonte: https://archive.org/details/trumparchive (acesso em julho/2017) As outras formas de reunir partem da unidade trechos (e não coleções, como no caso anterior) de programas presentes na interface inicial e organizam-se em três 9 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 conjuntos: “Recent Factchecks” (Recentes Comprovações de Fatos) com 30 trechos de vídeos, “Recent Quotes” (Citações Recentes) com 25 trechos de vídeos e “Trending Yesterday” (aqui, em uma tradução mais livre, o que estava em evidência ontem), novamente com 30 trechos de vídeos13 . Não gratuitamente falamos em escolhas editoriais em relação a disponibilização de determinadas coleções neste espaço. Nos parece que o TV News Archive se preocupa em fazer a televisão contemporânea norte-americana coalescer como memória com o arquivo de notícias além de, também, inserir o dna da web nas suas lógicas operativas. Por um lado, as coleções “Trump Archive” e “Recent Factchecks” remetem ao estado atual dos programas de “News” norte-americanos na sua relação com o atual presidente Donald Trump, construída desde a campanha eleitoral de 2016 em torno de acusações mútuas entre Trump e imprensa a respeito do caráter falso seja do que era noticiado (fake news) seja da verificação de afirmações de Trump sobre diversos temas (checagem – fact check). Já a coleção “Trending Yesterday” nos remete a ideia de “trending topics” (assuntos do momento) que se apresenta em redes sociais como Twitter e também se atualiza em portais de notícias em menus de notícias “mais lidas”, “mais comentadas”, entre outros. Estamos longe, portanto, da ideia de um antiquário de programas de televisão voltados para notícias (aspecto já estimulado pela perspectiva de um arquivo de que inicia em 2009). Para comentar a coleção “Recent Quotes”, vamos para a região “d” de nossa dissecação. O que estamos chamando de “trecho de vídeo” na verdade, apresenta-se como uma espécie de “ficha catalográfica” (região “d” de nossa dissecação) relativa a presença daquele trecho dentro das lógicas operativas do TV News Archive, conforme figura a seguir: 13 . Os trechos são organizados em conjuntos de 5 aparecendo por vez na interface, com navegação lateral que convoca mais 5 e assim por diante. 10 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 Figura 4 - excerto da interface incial do TV News Archive. Fonte: https://archive.org/details/tv (acesso em julho/2017). É facilmente identificável a presença de uma imagem referente ao trecho, o título do programa e emissora (Newsmakers, CSPAN, respectivamente) e nos ícones logo abaixo as menções ao número de visualizações do trecho (33) e citação do texto do trecho (ícone com aspas) e número de vezes que o trecho foi destacado (ícone estrela). O ícone laranja com aspas designa que esta ficha pertence ao conjunto “Recent Quotes”. Ao clicarmos sobre esta ficha, somo direcionados a uma outra página, na qual este trecho (conforme o Tv News Archive, os trechos são sempre de 60 segundos) finalmente poderá ser assistido enquanto vídeo, mas dentro de um conjunto de elementos na interface que novamente colocam o devir “biblioteca” ou a memória “colecionadora” em ação com o usuário, quase na perspectiva de Galloway (2006) quando usa a expressão para pensar na natureza dos jogos digitais (nos termos do autor, o software roda e o jogador joga). A proposta da função “quotes” (citações) possibilita, justamente pela apropriação do closed caption como elemento central da organização do TV News Archive, a possibilidade de o usuário selecionar partes do texto e realizar uma “citação” através de uma das alternativas de compartilhamento do trecho. Este é o caso exemplificado na Figura 5, na qual está centralizada e em tamanho maior perante os demais trechos, aquele que teve uma parte do texto (closed caption) “citada” por um usuário pela possibilidade de compartilhamento na rede social Twitter14. A interface ali presente ainda oferta a possibilidade de navegarmos nos trechos adjacentes (antes e depois do trecho incialmente selecionado), apresenta uma linha de tempo com a minutagem do programa, os textos referentes aos 14 A citação replica o trecho em vídeo e o texto citado até a postagem de determinadas redes sociais do usuário (Facebook, Tumblr, Google Plus são algumas das possíveis). 11 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 trechos sob cada vídeo, número de vezes que o trecho foi executado, além de outros elementos descritivos na parte não capturada desta página. Figura 5 excerto da página de visualização de programas, disponível https://archive.org/details/CSPAN_20140413_220000_Newsmakers/start/1258.6/end/1268.6, acesso julho/2017 em Queremos propor que esta interface retratada na Figura 5 além de, mais uma vez, demonstrar a tensão na convivência das camadas tevê e web, nos oferece outras características para problematiza-la. Anunciado desde a descrição do funcionamento do serviço na página inicial, a ideia do uso do closed caption atualiza a presença de outra camada nesta relação, a softwarização dos diversos processos de produção. As legendas ocultas tornam-se dados que podem ser apropriados para novos fins, na infraestrutura do digital, tornam-se maleáveis e adaptáveis a novos contextos/usos. Os textos destinados a garantir acessibilidade do telespectador com deficiência auditiva saem da condição de ocultos (closed) para uma condição protagonista na experiência de conhecer os arquivos de notícias. De certa forma, esta característica nos instiga a uma insinuação em relação à memória da programação de televisão do tipo “News”: notícia ainda é como texto por excelência (por aqueles que a arquivam e organizam suas coleções, pelo menos, ainda que diríamos que redações e laboratórios de ensino seguem pregando também nessa perspectiva). Já a interface inicial do TV News Archive nos explicitava que o caminho para encontrar trechos, programas e coleções passa pela busca por palavras, expressões que estão presentes via legendas ocultas. Aqui, na figura 5, a interface que dissecamos deixa isso ainda mais evidente ao justapor os previews de vídeo com o textos respectivos. Por outro lado, é esta mesma interface que, ao fatiar programas em trechos, trazer o áudio off para a superfície (ainda que limitado a ideia de “texto”), dar condições de seleção de textos, compartilhamento para outros espaços da web e até mesmo encomenda do 12 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 programa inteiro em formato DVD, parece tentar responder a solicitação de Kilpp (2005) por relações mais “amigáveis entre os que fazem televisão, pesquisam ou a assistem, e para que possamos todos nos apropriar mais rapidamente do televisivo e das éticas originais que a tv instaura tecnicamente” e, para tanto, “todos nós deveríamos poder desconstruir panoramas televisivos, desmontar as molduras e analisar os quadros de experiência e significação (p. 146)”. Teríamos então, no construto de memória do TV News Archive uma potência dissecadora a ser exercida pelo usuário? Que tipo de direito de mirada (ainda que a partir de 2009, limitado a determinadas emissoras, captadas em determinadas cidades, dentre outras circunstâncias específicas) seria esse? Considerações finais Se a memória é viva (Nora) e é vida (Bergson), em nossa atual tecnocultura instauram-se diversas espacializações desta memória por diferentes iniciativas que tentamos perceber como construtos, talvez mais especificamente construtos na web que “imagicizam” por determinadas lógicas operativas o arquivamento, a coleção, as mídias e - como a ocorrência específica do TV News Archive que examinamos aqui, através da dissecação de imagens das interfaces e da escavação de camadas durantes - a própria TV, a notícia e, em última instância, relações entre memória e televisão, memória e web, TV e web. Estas relações puderam ser apontadas dentro das regiões dissecadas e nos levam a retomar a ideia do TV News Archive como construto de memória a partir das reflexões sobre lugares de memória nos termos de Pierre Nora. Como sintoma de uma sociedade que tudo quer arquivar, nos parece que a ideia de Nora é potente, mas será o TV News Archive livre da presença da institucionalização em prol de “falar ao subjetivo” (Pinto, 2013)? De um lado afirmaríamos que sim, pois aparentemente não se filia às emissoras das quais arquiva seu conteúdo e oferta ao usuário (ou ao “coletivo”) alternativas para “adentrar” as “News”, atualizando o direito a mirada de Derrida conforme lembrado por Kilpp, permitindo uma espécie de subjetivação do espaço. No entanto, como também percebemos, o TV News Archive se constrói tentando sincronizar-se com o “ao vivo” televisivo e das redes sociais (coleções sobre Trump e sobre o que está “em evidência” dão a entender isso) e está sempre sob a guarda do Internet Archive, que pode fazer o papel de “instituição” aqui. 13 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 É o próprio “arquivo de TV” que parece, ao final, produzir sua própria recusa em ser obsoleto, tal qual “o jornal de ontem” que ele arquiva. Essa recusa é tanto por tentar se mostrar contemporâneo através de lógicas da web (formais) e da TV (editoriais), como por apresentar maneiras de colocar o arquivo-notícia (trecho) em circulação para além das “paredes” do próprio TV News Archive. Caso efetivamente esses usos possibilitados pelo TV News Archive tornem-se frequentes, poderíamos especular uma disputa (dificilmente igualitária) entre a produção de arquivos-tevê entre espectadores e redes de tevê que seria sediada, atualmente, nas chamadas redes sociais. Isso, no entanto, não retiraria uma adaptação a pergunta caetana: quem lê [assiste, cita, compartilha e vê] tanta notícia? Referências bibliográficas BEIGUELMAN, Giselle. Reinventar a memória é preciso. In: Magalhaes, Ana Gonçalves e Beiguelman, Gisele (orgs.): Futuros possíveis: arte, museus e arquivos digitais. São Paulo: Petrópolis, 2014. Livro eletrônico. BERGSON, Henri. Matéria e memória. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,1999. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Editora 34, 1999. DERRIDA, Jacques. Ecografías de la televisión: entrevistas filmadas a Bernard Stiegler. Eudeba, 1998. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. FISCHER, Gustavo D. 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