Experiências Religiosas
no Mundo Antigo
Volume II
Experiências Religiosas
no Mundo Antigo
Volume II
Carolina Kesser Barcellos Dias
Semíramis Corsi Silva
Carlos Eduardo da Costa Campos
(organizadores)
Experiências religiosas no Mundo Antigo - Volume 2
Carolina Kesser Barcellos Dias | Semíramis Corsi Silva | Carlos Eduardo da Costa Campos
(organizadores)
1ª Edição - Copyright© 2017 Editora Prismas
Todos os Direitos Reservados.
Editor Chefe: Vanderlei Cruz
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Agente Editorial: Sueli Salles
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Capa, Diagramação e Projeto Gráfico: Conrado Dittrich
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz
Bibliotecária CRB 9-626
E96
Experiências religiosas no mundo antigo / organização
de Carolina Kesser Barcellos Dias, Semíramis Corsi Silva, Carlos Eduardo da Costa Campos 1.ed. - Curitiba: Editora Prismas, 2017.
v.2: il.; 23cm
ISBN: 978-85-5507-532-2
1. Religião – História antiga. 2. História das religiões. I. Dias, Carolina Kesser Barcellos (org.).
II. Silva, Semíramis Corsi (org.). III. Campos, Carlos Eduardo da Costa (org.).
CDD 200.9(22.ed)
CDU 291
Coleção Estudos sobre o Mundo Antigo e Medieval
Direção Científica:
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Carolina Kesser Barcellos Dias - UFPel
Conselho Consultivo:
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Ian Wood - University of Leeds
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Revisão:
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Braulio Costa Pereira - UFRJ
Apresentação
As sociedades que integram o vasto Mundo Antigo fascinam
e encantam muitas pessoas ao longo dos tempos. Como exemplo, podemos citar o interesse dos copistas medievais em transmitir os textos
do passado, a paixão dos artistas renascentistas e iluministas pelo período grego e romano, as aventuras expostas no cinema como os filmes
com temática ambientada em cidades antigas ou tratando de histórias
da mitologia. Ademais, não podemos deixar de mencionar, o aumento
considerável de estudos historiográficos sobre as sociedades antigas,
inclusive no Brasil. Em meio a tais vivências, poucos são indiferentes às
experiências religiosas dessas Antiguidades, principalmente, ao entrarem em contato com as múmias egípcias, a magnificência dos templos
e das estátuas assírias, chinesas, hindus, gregas e romanas. Além disso,
em várias sociedades modernas, os jovens crescem envolvidos pelas
cosmogonias e práticas religiosas antigas através da mídia, dos livros e
por essas práticas ressignificadas.
As religiões antigas são constantemente revisitadas, relidas e
representadas pelo mundo atual. Todavia, esses mundos e suas cosmovisões não são importantes simplesmente porque são interessantes e
distantes: tais estudos também nos ajudam a compreender e ampliar
nossos horizontes mentais sobre os períodos posteriores da história.
Não podemos esquecer que antigas crenças e práticas muitas vezes foram absorvidas pelas culturas posteriores, assim como certas imagens
e locais de culto foram apropriados por cultos que se tornaram hegemônicos, como no caso do cristianismo com as religiões politeístas. Se
buscarmos compreender o espaço das religiões em nossa modernidade, em suas várias interfaces com a política, os monumentos e o uso
da violência, o conhecimento da historicidade religiosa em suas várias
práticas na trajetória humana é de vital importância para os pesquisadores contemporâneos.
Vale ressaltar que essas experiências voltadas ao sagrado
também apresentam inquietações particulares de interpretação às
quais nos levam a problematizar os seus mitos, suas ações religiosas,
construções e legitimações do poder. Dessa forma, elaboramos um livro em dois volumes que reuniu múltiplas leituras sobre as religiões
e as suas práticas antigas. Cada capítulo é escrito por um autor especialista em seu objeto de estudo, integrando nestes livros, em nível
nacional e internacional, estudiosos da Argentina, do Brasil, da França,
de Portugal e da Espanha.
O segundo volume do livro “Experiências Religiosas no Mundo Antigo” é composto por treze capítulos. Optamos por organizar os
capítulos dividindo-os contextualmente, apresentando primeiramente
os textos sobre aspectos mágicos e religiosos em contextos mesopotâmico, egípcio, fenício e indo-nepalês, seguidos pelos contextos grego e
romano. Embora muitas vezes haja intersecções e comunicações entre
os contextos e as cronologias, não conformamos a ordem dos textos
em uma linha temporal propriamente delimitada e precisa.
No capítulo 1, Simone Silva da Silva analisa as representações de ornamentos e cenas com aspectos religiosos em relevos de
pedra, do esquema artístico e decorativo da sala do trono do palácio
de Aššurnazirpal II (883-859 a. C). Em suas análises, a autora realiza
um mapeamento das divindades cultuadas no âmbito bélico e que
estavam evidentemente relacionadas no discurso do poder real, para
estabelecer as funções dessas divindades na concepção do panteão
Assírio do período estudado. O capítulo 2, de Liliane Cristina Coelho,
objetiva discutir alguns aspectos geográficos e sobretudo simbólicos
relacionados à escolha do local para a instalação de uma nova cidade
egípcia. A opção pela localização, segundo a autora, é parte de um
projeto político-religioso levado a cabo por Akhenaton, que incluirá
também a adoção do Aton como divindade dinástica, e a mudança na
titulatura do faraó.
No capítulo 3, Francisco B. Gomes analisa o papel desempenhado pelas estruturas religiosas no estabelecimento da extensa e
complexa rede de colônias e entrepostos comerciais que ligou o Mediterrâneo Central e Ocidental ao Próximo Oriente, observando como
espaços religiosos – templos e santuários fenícios – parecem ter atuado como representantes do poder central, possuindo uma autêntica
missão diplomática com papel ativo no estabelecimento de relações
sócio-políticas com as comunidades indígenas das múltiplas áreas de
incidência da colonização fenícia. O capítulo 4, de Cibele E. V. Aldrovandi, apresenta as tradições tântricas, e como na Índia e mais tarde
no Nepal, a paisagem urbana, a arquitetura sagrada e secular, as escul-
turas, os relevos, as pinturas e a estrutura narrativa de algumas fontes textuais budistas foram permeados por uma concepção espácio-temporal recorrente que replica a cosmografia budista – o maṇḍala.
Em suas reflexões, a autora demonstra como essas esferas culturais
distintas apresentam dimensões formais semelhantes que estruturam,
de modo subjacente, as experiências com o sagrado a partir desse elemento cosmográfico comum e onipresente no contexto do budismo
tântrico indo-nepalês.
No capítulo 5, Camila Diogo de Souza discute a especialização
dos espaços na conformação das sociedades no período geométrico
na Grécia antiga, espaços esses engendrados por duas práticas cultuais distintas, uma em homenagem aos mortos e a outra em homenagem às divindades, o que contribuirá de forma efetiva na constituição
de uma nova configuração social e política das comunidades gregas.
Por meio de estudos de caso em que analisa contextos de natureza
funerária, a autora reflete sobre exemplos radicalmente distintos de
especialização do espaço de culto enquanto elemento fundamental no
processo de formação da polis. No capítulo 6, Arturo Sánchez Sanz elabora um estudo sobre o mito das amazonas na Grécia Arcaica e Clássica. Para Arturo Sanz, o contexto histórico e as funções moralizantes
dos textos clássicos foram responsáveis pela caracterização de diversos modelos de mulheres, entre os quais as Amazonas, que se destacam por uma variedade de representações. Desse modo, Sanz debate
as construções discursivas sobre essas figuras mitológicas através dos
autores clássicos, focando em suas relações com a esfera do sagrado.
No capítulo 7, de Priscilla Gontijo, os discursos de Antifonte,
em particular as Tetralogias, são abordados para demonstrar possíveis
relações entre as esferas jurídicas e religiosas na pólis, onde, segundo Vernant, “todo sacerdócio é uma magistratura e toda magistratura
comporta um aspecto religioso”. Em seu texto, a autora discute que
atos da vida cotidiana possuíam elementos que reportavam a uma dimensão religiosa, e que todo o poder político antes de ser efetivado,
ou toda discussão para ser legitimada, exigia uma validade no plano
do sagrado, atingida após a prática de um ritual religioso, o sacrifício.
No capítulo 8, Carolina Kesser Barcellos Dias analisa a iconografia de
um conjunto específico de vasos áticos de figuras negras produzidos
entre finais do século VI e meados do V a. C. para compreender como
os artistas-artesãos do período representavam o ritual de sacrifício de
animais, e a quais contextos ritualísticos e religiosos essas imagens poderiam estar relacionadas.
O capítulo 9, de Fernando Cândido da Sila e Marcelo Neris
Hoffmann, propõe um exercício de reflexão metodológica sobre a historiografia bíblica, a partir de uma leitura formal dos livros bíblicos de
Deuteronômio até 2 Reis. Os autores procuram contribuir com uma
interpretação em favor de uma escrita da história no presente que não
esteja subordinada às normas e sua performatividade, procurando assim esclarecer que toda essa agenda interpretativa em torno da norma
e do abjeto antecede os meros conteúdos, uma vez que a forma articula, em si, relações sócio-históricas.
No capítulo 10, Carlos Eduardo da Costa Campos analisa as
descrições de Augusto formuladas pelo biógrafo latino Suetônio (69 –
122 E.C.), em sua obra Vida do Divino Augusto, sobretudo no discurso
mítico que atrela o nascimento de Augusto ao deus Apolo. Tomando
como base as concepções teóricas de Georges Balandier, o autor propõe analisar esses discursos como fontes essenciais para o processo
de legitimação do poder do princeps, apresentando as possibilidades
interpretativas das representações míticas do nascimento augustano.
No capítulo 11, Natan Henrique Tavares Baptista procura compreender a manipulação mágica do corpo atlético do auriga no contexto
das relações de poder que se estabeleceram no cotidiano de duas das
maiores cidades norte-africanas: Cartago e Hadrumeto. Em seu texto,
o autor procura analisar as questões lúdicas corporais por intermédio
dos conflitos entre aurigas, também chamados de agitatores, e torcedores das factiones através dos discursos mágicos religiosos presentes
em quatro defixiones de um conjunto total de dez tábuas execratórias.
O capítulo 12, de Roberta Alexandrina da Silva, trata dos discursos de feminilidades e masculinidades presentes tanto no corpus
paulinum - textos canônicos de Paulo de Tarso que definem uma teologia e uma identidade cristã, quanto nos gnósticos de Nag Hammadi, não canônicos, com o intuito de abordar as definições de gêneros
existentes nesses dois tipos de cristianismos, o ortodoxo e heterodoxo
no período pré-Nicênico. Assim, pretende compreender acerca dos
processos e mecanismos que possibilitaram a delimitação e hierarquização dos papéis sexuais dentro do espaço eclesial.
Finalmente, no capítulo 13, Daniel de Figueiredo trata da
construção da divindade cristã ortodoxa na perspectiva de Nestório de
Constantinopla, de maneira a compreender em que medida as formulações doutrinais defendidas pelo referido bispo em sua obra O Livro
de Heraclides estavam associadas às suas pretensões político-administrativas como bispo da Sé episcopal de Constantinopla e, em que sentido, tais pretensões levaram o imperador Teodósio II a decretar a sua
exoneração e exílio.
Gostaríamos de agradecer a todos que trilharam este árduo
e produtivo caminho conosco. Em especial, legamos uma homenagem
póstuma ao colega e autor de um dos capítulos, Danilo Andrade Tabone:
A cada chamado da vida o coração deve estar
pronto para a despedida e para novo começo, com
ânimo e sem lamúrias, aberto sempre para novos
compromissos. Dentro de cada começar mora um
encanto que nos dá forças e nos ajuda a viver.
Hermann Hesse
Boa Leitura!
Carolina Barcellos Kesser Dias – UFPel
Semíramis Corsi Silva – UFSM
Carlos Eduardo da Costa Campos – PPGH/UERJ
Prefácio
O estudo da História Antiga passa, necessariamente, pela
compreensão do papel da religião na vida quotidiana dos indivíduos
e de suas comunidades. A relação com o sagrado e com as práticas e
instituições religiosas impregnam as relações sociais, políticas e econômicas desses períodos.
Buscando um significado para sua existência num cosmo permeado por forças naturais que procura dominar, e que reverberam em
seus mitos, ritos, cultos, festividades e em suas instituições políticas,
religiosas e jurídicas, o homem antigo expressa em sua literatura e em
sua cultura material a marca e o dinamismo de suas crenças.
Assiste-se no Mediterrâneo e no Oriente a um processo permanente de mobilidade social e política que se torna responsável pela troca
não apenas de produtos e serviços, mas também de valores religiosos e
simbólicos que deixam sua geografia original para espalhar-se por outras
regiões, levando complementações e mesmo substituições na forma de
compreender o universo e de se relacionar com suas forças.
Há uma frequente imbricação entre poder religioso e poder
político, numa perspectiva polifuncional e polissêmica da religião; a
religião é usada para legitimar diferentes formas de poder, com movimentos de questionamento de hegemonias religiosas e suas consequentes legitimações de poder, ainda que haja setores da religião
antiga, como o da magia, que permanecem à margem da oficialidade.
Se já encontramos desde a Antiguidade o uso de métodos
comparativos na descrição e análise das religiões, com destaque para
as obras de Heródoto, Plutarco e, a partir do século II d.C., nas discussões dos Padres da Igreja, preocupados em distinguir e relevar o
cristianismo frente às outras religiões, deve-se dizer que a religião
ganha status de ciência apenas em meados do século XIX, impulsionada pelo iluminismo.
O turn point da ciência da religião se dá quando ela se distancia da teologia e do confessionalismo, para se tornar uma peça
fundamental na definição dos componentes essenciais das culturas e
das relações que elas mantêm entre si. São decisivas as contribuições
de pesquisadores como Max Müller (1823-1900), Frazer (1854-1941),
Freud (1856-1039), Durkheim (1858-1917), Mauss (1872-1950), Jung
(1875-1961), Eliade (1907-1986), Lévi-Strauss (1908-2009), Burkert
(1931-2015), dentre outros, que alargam o horizonte e o foco da pesquisa. Eliade, por exemplo, além do judaísmo e cristianismo, discute
aspectos do taoísmo, confucionismo, ioga, bramanismo, hinduísmo,
budismo e outros grupos religiosos, com forte inspiração para os estudos atuais sobre religião na perspectiva da globalização e dos crescentes movimentos migratórios.
A importância dos estudos de história das religiões manifesta-se na fundação, em 1950, da Associação Internacional de História
das Religiões (IAHR), em Amsterdã, que reúne um amplo grupo de
filiados que se dedicam ao estudo científico da religião ao redor do
mundo. Em 1999, foi criada, na UNESP de Assis/SP, a Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) que a cada ano congrega um
número cada vez maior de pesquisas sobre religião no Brasil em seus
congressos e publicações.
Este crescente interesse pelos estudos sobre religião se manifesta também em relação à Antiguidade como se verifica nesta obra
Experiências Religiosos no Mundo Antigo, a qual foi organizada por
Carolina Kesser Barcellos Dias, Semíramis Corsi Silva e Carlos Eduardo
da Costa Campos, que reúne 26 importantes pesquisas que proporcionam uma discussão temática e metodológica sobre sociedade e religião no âmbito mediterrânico e oriental, com uma cronologia que vai
do III milênio a.C. a meados do I milênio d.C. e que coloca em destaque
a importância das pesquisas nessa área no âmbito nacional, ao lado de
pesquisas da França, Espanha, Portugal e Argentina. Se há nelas elementos muito característicos de um tempo e espaço muito específicos,
outros denotam presenças e influências de longa duração e expressas,
por vezes, de forma contundente e fora do âmbito privado, como nos
episódios recentes de extremismos religiosos.
As análises aqui apresentadas e que não partem de pressupostos religiosos dão uma forte ênfase à base documental literária,
mas não deixam de destacar que elas podem e devem ser complementadas pela cultura material, pela iconografia, pela epigrafia, pela
estatuária votiva e cultual presentes na arquitetura antiga e reveladas
principalmente pela arqueologia. Destaca-se no mundo greco-romano
a iconografia presente em monumentos, vasos, moedas e tábuas exe-
cratórias. Descobertas mais recentes como a de Nag Hammadi trazem
novas luzes para a compreensão do mundo antigo e medieval.
Os textos indicam que nos deparamos não apenas com conflitos políticos, mas também religiosos e simbólicos. A força das lideranças religiosas deixaram marcas profundas nas relações internas e
externas de uma comunidade. Temos frequentemente a presença de
facções em litígio com fortes componentes religiosos. A definição de
uma cultura grega, romana, oriental homogênea tem sido abandonada pelos historiadores e antropólogos. Tem sido dada uma crescente
atenção para a relação entre identidade e alteridade no âmbito das
sociedades antigas. Chega-se cada vez mais à conclusão de que não
se pode pensar em uma homogeneidade religiosa e simbólica de um
determinado grupo humano, mas sim em heterogeneidades, hibridizações e até mesmo em conflitos internos.
O leitor tem nos textos aqui apresentados uma oportunidade
ímpar de ampliar sua visão sobre religião e cultura no Período Antigo.
Auguramos que este livro organizado por Carolina, Semíramis
e Carlos Eduardo contribua para uma compreensão mais densa da religião, não apenas como uma filigrana da História Antiga, mas como um
dos componentes centrais de sua trama sociopolítica e mental e para a
fundamentação do arcabouço da forte reemergência do componente
religioso numa contemporaneidade pretensamente secularizada.
Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha
Professor de História Antiga da UNESP/Assis
Sumário
A RELIGIÃO NA ASSÍRIA: ESTUDO DOS RELEVOS DO PALÁCIO DE
ASSURNAZIRPAL II .........................................................................17
Simone Silva da Silva
A FUNDAÇÃO DE UMA NOVA CIDADE: AKHETATON, O HORIZONTE
DO ATON .......................................................................................39
Liliane Cristina Coelho
O PAPEL DA RELIGIÃO NA COLONIZAÇÃO FENÍCIA: CONSIDERAÇÕES
A PARTIR DO CASO PORTUGUÊS ....................................................63
Francisco B. Gomes
A UBIQUIDADE DO MAṆḌALA NO BUDISMO TÂNTRICO INDONEPALÊS ........................................................................................91
Cibele E. V. Aldrovandi
CULTUANDO OS MORTOS E AS DIVINDADES: EXPRESSÕES DA
RELIGIOSIDADE E A FORMAÇÃO DA POLIS GREGA NO PERÍODO
GEOMÉTRICO (900 A 700 A.C.). .................................................... 121
Camila Diogo de Souza
MUJERES GUERRERAS: EL MITO AMAZÓNICO EN LA GRECIA
ARCAICA Y CLÁSICA ..................................................................... 145
Arturo Sánchez Sanz
RELIGIÃO E JUSTIÇA: O USO DE ARGUMENTOS RELIGIOSOS NAS
TETRALOGIAS DE ANTIFONTE ...................................................... 169
Priscilla Gontijo Leite
‘KILLING IN THE NAME OF’. CENAS SACRIFICIAIS DE ANIMAIS NOS
VASOS ÁTICOS DE FIGURAS NEGRAS ............................................ 193
Carolina Kesser Barcellos Dias
O ABJETO NA HISTORIOGRAFIA BÍBLICA: UMA AVALIAÇÃO
LINGUÍSTICO-ANTROPOLÓGICA DA “FÓRMULADO MAL”................. 207
Fernando Candido da Silva - Marcelo Neris Hoffmann
SUETÔNIO E A REPRESENTAÇÃO DO NASCIMENTO APOLÍNEO DO
PRINCEPS AUGUSTO .................................................................... 229
Carlos Eduardo da Costa Campos
ASPECTOS RELIGIOSOS E CORPORAIS NAS DEFIXIONES NORTEAFRICANAS (SÉC. III-IV) ................................................................ 253
Natan Henrique Taveira Baptista
DAS COMUNIDADES À ROMA: O FEMININO NAS COMUNIDADES
GNÓSTICAS E O PROCESSO DE SEGREGAÇÃO SEXUAL ENTRE OS
PROTO-ORTODOXOS (SÉCULOS I-IV) ............................................ 269
Roberta Alexandrina da Silva
A CONSTRUÇÃO DA DIVINDADE CRISTÃ ORTODOXA NA PERSPECTIVA
DE NESTÓRIO DE CONSTANTINOPLA E O CONFLITO COM O PODER
IMPERIAL (SÉC. V D.C.) ................................................................. 293
Daniel de Figueiredo
A RELIGIÃO NA ASSÍRIA: ESTUDO
DOS RELEVOS DO PALÁCIO DE
ASSURNAZIRPAL II
Simone Silva da Silva1
Este trabalho busca analisar as representações de ornamentos e cenas com aspectos religiosos nos relevos de pedra, do esquema
artístico e decorativo da sala do trono do palácio de Aššurnazirpal II
(883-859 a. C) e as relações desses símbolos em rituais religiosos que
justificavam, orientavam e conduziam a guerra. Realizamos um mapeamento das divindades cultuadas no âmbito bélico e que estavam
evidentemente relacionadas no discurso do poder real, procurando
estabelecer as funções desses deuses na concepção do panteão assírio
desse período.
Zainab Bahrani2, em seu livro “Rituals of War”, define a guerra como uma violência organizada. Formula essa definição baseada na
obra “Da Guerra”, de Carl Von Clausewitz, um tratado militar que descreve a guerra como: “Um ato de violência racional e instrumento político de uma nação para fazer impor sua vontade sobre outras nações”.
Para os mesopotâmicos, a guerra fazia parte do comportamento conveniente ao mundo civilizado; assim como o domínio da escrita e da arte, o pilhar, saquear, carregar espólios e fazer prisioneiros
faziam parte da arte da guerra. Os assírios foram aqueles que mais se
relacionaram com a guerra, dentre todas as culturas da Mesopotâmia,
a ponto de desenvolverem narrativas artísticas cujo principal motivo
era a guerra: para estes, a guerra era ritualizada.
As mudanças nas concepções históricas no Brasil são frutos da
influência da Nova História Cultural na historiografia, alguns historiadores dessas vertentes fazem uso de diferentes fontes para comporem
um novo olhar sobre a história de determinados períodos, o uso de
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade UFRGS.
orientada pelo Prof. Dr. Francisco Marshall. E-mail:
[email protected]
2 BAHRANI, Zainab. Rituals of War: the body and violence in Mesopotamia. New
York: Zone Books, 2008.
Volume 2
17
imagens como fonte e documentação tem sido cada vez mais utilizado para essa nova concepção de História, que tem crescido abundantemente na historiografia brasileira, embora ainda percebamos uma
grande lacuna que deve ser preenchida e a necessidade de aceitação
desse tipo de investigação no âmbito acadêmico.
Para a historiadora Sandra Pesavento3 as imagens pictóricas,
os discursos poéticos e as lendas são representações do mundo que
podem ser utilizadas pelo historiador como meios de acesso ao mundo
das sensibilidades presentes na época em que foram criados.
Na Assíria do I milênio a.C., civilização e arte caminharam juntas neste processo de constituição de impérios e de ideologias religiosas. Para compreendermos a civilização e a arte assíria é preciso perceber este processo histórico. Se os assírios conheceram uma fecundidade artística, foi para afirmar, iconograficamente, sua supremacia4.
Antigos impérios aderiram a ideologias político-religiosas,
como é o caso de várias outras culturas do Oriente Próximo, como as
tradições: cristã, judaica e islâmica. Nos dias atuais os conflitos religiosos ainda dividem Oriente e Ocidente e servem como justificação
de diferentes regimes políticos. Não foi somente a ideologia imperial
assíria que se utilizou de um aparato expressivo de poder para manter
o controle e hegemonia, essas práticas perpassam a história e chegam
até os dias contemporâneos ainda de forma muito semelhante da realizada no I milênio a.C.
Na cultura do Antigo Oriente Próximo, as imagens foram longamente utilizadas como elementos artísticos religiosos com significados simples ou diretos. No I milênio a.C essa prática não é diferente.
É por esse motivo que nosso objeto de estudo é tão rico. De
acordo com Pesavento:
“A arte é fonte privilegiada para o historiador interessado em
resgatar não as verdades do acontecido, e sim a verdade do
simbólico, expressa no imaginário de uma época, sobre as
quais o historiador se debruça com suas indagações. Essas
perguntas fazem dialogar arte e história, numa tentativa de
aproximação das representações construídas sobre o real”5.
3 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a
arte e a história. Rev. Estudos Históricos, Arte e História, n. 30, 2002/2, p.2.
4 PARROT, André. Assur. Paris: Gallimard, 2007
5 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a
18 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Nesse diálogo entre arte e história, os estudos do historiador
da arte, o alemão Erwin Panofsky, em sua obra “O Significado nas artes
visuais” são utilizados como aporte teórico e metodológico na análise
de documentos iconográficos.
Para Panofsky, a análise e interpretação de imagens consistem
na elaboração de uma iconografia do conjunto de imagens utilizadas
como fontes e num estudo dos significados existentes nas imagens, a
iconologia. Para a elaboração desses dois processos principais, o historiador precisa desdobrar a sua investigação em três etapas distintas que, no momento da realização da análise iconográfica, acabam se
fundindo. São estas as três etapas:
Na primeira etapa, é necessário que o historiador conheça o
seu objeto, tenha familiaridade com ele. Para a elaboração de uma
descrição pré-iconográfica, o historiador precisa compreender as diferentes condições históricas que materializam as imagens.
A segunda etapa se dá através do conhecimento das fontes
literárias e o historiador deve estabelecer temas ou conceitos a fim
de constituir o mundo das histórias e alegorias, fundando assim uma
análise iconográfica.
A terceira etapa consiste em uma globalização das duas anteriores, visando estabelecer uma interpretação simbólica mais aprofundada das imagens. É nesse momento que o historiador necessita ter
uma visão ampla do momento histórico em que seu tema está delimitado e da cultura produzida dentro dele, sendo capaz de entender as
percepções artísticas como produtos culturais que dizem muito sobre
o mundo de quem as produziram, daqueles que as visualizavam e dos
aspectos ideológicos que as imagens verbalizam.
Neste trabalho, através do proposto por Panofsky6 em seu ensaio sobre iconografia e os estudos iconológicos, buscamos estabelecer uma compreensão sobre como condições históricas diferentes, temas e conceitos foram expressos por objetos e ações que nada tinham
a ver com esses temas e conceitos, buscando entender os sintomas
culturais ou os símbolos da humanidade.
Ao analisarmos os símbolos existentes nos relevos assírios,
executamos dois métodos: identificamos símbolos existentes nas nararte e a história. Rev. Estudos Históricos, Arte e História, n. 30, 2002/2.
6 Idem
Volume 2
19
rativas e também nos ornamentos com características simbólicas que
remetem às divindades maiores do panteão assírio.
I. Contexto geográfico e histórico do período
Neoassírio
Na região da Alta Mesopotâmia, entre as margens do rio Eufrates e ao leste do rio Tigre, é que se desenvolverá a Assíria, que separa a Mesopotâmia do Planalto Iraniano. A formação do império assírio
foi fruto de um projeto longo que visava unir diversos territórios, sob
sua língua, sua religião, suas tradições e sua história. Para esse resultado final os soberanos assírios empregaram uma série de guerras que
se iniciaram durante o segundo milênio a.C e se estenderam em sua
máxima expansão durante o I milênio a.C.
Mapa I - Mapa com as principais cidades da Assíria e a demarcação da cidade de Kalah
(Moderna Nimrud) fonte Instituto Oriental da Universidade de Chicago7.
7 Fonte: http://oi.uchicago.edu/research/lab/map/maps/iraq.html. Acessado em:
30/05/2015.
20 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Essas guerras poderiam assumir um caráter defensivo ou preventivo e eram destinadas a proteger o território ao longo do rio Tigre,
que constituía o território da cidade de Aššur e de seu principal deus,
contra os inimigos do rei e daqueles que tentavam manter fechadas as
rotas de comércio indispensáveis à sobrevivência da pequena nação8.
I.1. Sobre Aššurnazirpal II
O nome Aššur-nâṣir-apli significa: “Aššur é a proteção de seu
filho predileto”. De sua família conhece-se seu sucessor Salmanasser
III e o nome de uma de suas esposas, Mullissu-mukannišat-Ninua, cuja
tumba foi descoberta em Kalah9.
Este rei realizou campanhas na província de Zamua, 881 e 880
a.C., permitindo aos assírios o controle de Babitu (Bazian), que era a
via de acesso ao Planalto Iraniano. Ao norte e nordeste ele conquistou as regiões altas do rio Tigre, Habhu, Kadmuhi, Nairi e os montes
Kashiari (Tur Abdin). Mais tarde, uma das maiores expedições assírias
ocorreu nos montes Orontes, no Líbano, e nas cidades fenícias, que
passaram a enviar tributo a esse soberano.
Aššurnazirpal II foi o primeiro soberano a conquistar o Mediterrâneo, depois de Tiglatphilesser, aproximadamente nos anos de
1115-1077 a.C. A última campanha de Aššurnazirpal II está documentada sob a forma de anais e aconteceu em 866 a.C, sendo levada ao
norte de Harãn, Amedu (moderna Diyarbakir). Nos primeiros anos de
seu reinado, Aššurnazirpal II residiu em Nínive, mas logo mudou a capital para Kalah, cidade que se torna o principal centro político e administrativo, fortificada em toda a sua extensão. Foi a capital do império
até o reinado de Sargão II.
Kalah foi construída com mão de obra deportada e escrava.
A sala do trono do palácio noroeste foi decorada com baixos-relevos
que narram algumas das campanhas de Aššurnazirpal. Na cidade havia
santuários e templos que foram encontrados nas escavações arqueológicas realizadas pela escola britânica de arqueologia, entre eles um
8 ROUX, George. La Mésopotamie. Madri: Éditions du Seuil, 1995, p. 329-331.
9 JOANNÈS, Francis. Dictionaire de la Civilisation Mesopotamienne. Paris : Robert
Laffont, 2001
Volume 2
21
zigurate dedicado ao deus Ninurta, com uma variedade de esculturas e
inscrições que relatavam as campanhas militares do soberano10.
Outros deuses receberam novos templos em Kalah: Adad
(deus das tempestades) Šala (deusa esposa de Dagan ou Adad, não
tendo origem mesopotâmica, talvez seja hurrita e se relaciona com
a vegetação), Šarrat –nipha (uma das versões para o nome de Ištar),
Ea (deus das águas doces subterrâneas, associado à purificação e à
magia), Damkina (esposa de Ea, associada ao leão e na astrologia sua
constelação é Ursa Menor), Gula (deusa protetora dos médicos, seu
animal sagrado é o cachorro), Kidmuru, Nabû (deus ligado às escritas,
aos escribas e ao conhecimento), Sibitti (sete pontos ou sete planetas),
e Sîn (deus da Lua). Nos centros urbanos da Assíria, esse rei realizou
a construção de um templo dedicado à Ištar em Nínive (deusa guerreira); um templo a Adad e, na antiga cidade de Aššur, o templo de
Šamaš e Sîn foram reformados. Já os portões de Imgur-Enlil (moderna
Ballawat) narram os trabalhos de um templo dedicado ao deus Mamu
(divindade suméria que é associada aos sonhos). (Antigo Makhir)11.
10 READE, Julian. Nimrud. In: CURTIS, John (ed.). Fifty Years of Mesopotamian Discovery: The Work of the British School of Archaeology in Iraq 1932-1982. London: The
British School of Archaeology in Iraq (London), 1982.
11 GRAYSON, Albert Kirk. Records of The Ancient Near East : Assyrian Royal Inscriptions. Wiesbaden : Otto Harrassowitz, 1976. v.2.
22 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Fig. 1 - Fachada (E) do palácio de Aššurnazirpal II em Kalah12.
Fig. 2 - Plano palácio de Aššurnazirpal II e a demarcação da sala do trono13.
12 RUSSEL, John Malcolm. The Writing on the Wall: Studies in the Architectural Context of late Assyrian Palace Inscriptions. Winona Lake: Eisenbraus, 1999, p.14.
13 Ibidem, p.12.
Volume 2
23
A sala do trono (sala B) do palácio de Aššurnazirpal II possui
9,8 metros de largura por 45,7 metros de comprimento e está decorada com baixos-relevos em toda a sua extensão.
24 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Fig. 3 - Plano da sala do trono do palácio de Aššurnazirpal II e a localização dos diversos relevos encontrados na sala.14
A análise dessa planta nos dá uma ideia precisa de como eram
essas decorações interiores. Os baixos-relevos eram esculpidos sobre
lajes de calcário que mediam aproximadamente 2,70 metros de altura
e 2,50 metros de largura, acoplados uns aos outros e formando assim
um friso contínuo. Cada uma delas estava dividida em dois por uma
linha horizontal composta de 18 a 26 linhas de um texto gravado em
escritura cuneiforme, que ficou habitualmente chamado pelos arqueólogos e historiadores de inscrição padrão.15
14 BACHELOT, L. Fonction politique des reliefs néo-assyriens. In: CHARPIN, D.; JOANNÈS, F. Marchands, Diplomates et Empereus. Paris: Recherche sur les Civilisations,
1991, p. 123.
15 Idem.
Volume 2
25
Fig.4 - Reconstrução da Sala do Trono do Palácio realizada por
Henry Austen Layard16.
A sala do trono era o local onde o rei recebia seus visitantes,
por isso a importância dos relevos localizados nesta sala, os quais estavam dispostos estrategicamente. Alguns historiadores, como Irene
Winter17, acreditam que as cenas narradas nos relevos obedecem a
uma ordem cronológica e narram as expedições bélicas realizadas no
Mediterrâneo e norte da Assíria, as quais foram descritas nos anais
reais de Aššurnazirpal II, informando a expansão de seu território aos
visitantes de outros reinos.
II. A Religião Assíria
A religião assíria segue o modelo sumério-acádico, porém, segundo vários estudiosos, podemos perceber algumas particularidades
e especificidades na concepção religiosa da Assíria. A primeira dessas
particularidades é a existência de um “deus nacional” centralizado no
16 Fonte: LAYARD. H. A. The Monuments the Nineveh. London: John Murray, 1853,
prancha 2, p. 17.
17 WINTER, Irene J. Royal Rhetoric and Development of Historical Narrative in
Neo-Assyrian Reliefs. In: Studies in Visual Comunication, v.7, n. 2, p. 2-38. 1981
26 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
deus Aššur, que de certa forma é um reflexo da centralização do poder
e das práticas hegemônicas que constituíram esse império.
A utilização de conceitos religiosos para legitimar o exercício
do poder, realizar invasões territoriais e o extermínio de populações
subjugadas foi e continua sendo uma prática humana, da Antiguidade ao mundo contemporâneo. Assim, é de fundamental importância
compreender suas relações, causas e consequências18. Os reis assírios
inovaram na representação de suas imagens quando passaram a associar símbolos religiosos e devoção aos deuses nos relevos e na estatuária deste período. Essas representações correspondem a uma modificação nas concepções teológicas de sua elite política19.
II.1 Os símbolos religiosos nas cenas de guerra
Pela complexidade da análise e por motivos recorrentes ao
espaço, neste artigo, tratarei apenas de um exemplo das análises realizadas na pesquisa em que trabalhei com um total de 10 imagens provenientes da sala do trono de Aššurnazirpal II, as quais tivessem como
assunto principal a guerra e que trouxessem em seu contexto símbolos
de caráter religioso.
O relevo em questão está denominado nesta pesquisa como:
Laje 3 a, O rei em seu carro na frente de uma cidade sitiada. Procurei
identificar, com o auxílio de bibliografia especializada no tratamento
de símbolos de caráter religioso, os símbolos existentes na laje que
compõe este relevo.
Análise Iconográfica
Identificamos que a narrativa marcial apresentada enfatiza o
ataque do exército assírio a uma cidade adversária que se encontra
18 POZZER, Katia Maria Paim. Magia na Mesopotâmia. In: FUNARI, Pedro Paulo;
MARTINS, Adilton Luís; SILVA, Glaydson José da (org.). História Antiga: contribuições
brasileiras. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008.
19 POZZER, Katia Maria Paim. A Deusa Ištar: Uma Representação do Feminino na
Mesopotâmia. Liber Intellectus, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, v. 2, n. 2, p.
11, dezembro de 2007.
Volume 2
27
sitiada, o que observamos pelo fato de as portas da cidade estarem
fechadas e de seus habitantes estarem na parte superior da muralha.
O foco da narrativa se encontra na presença do rei assírio e também na
do deus Aššur e dos inimigos que são derrotados. A característica do
rei legitimado e os aspectos religiosos estão representados nos seguintes símbolos que encontramos na imagem:
- Aššur
Conforme Jeremy Black e Antony Green20, Aššur foi a principal
divindade do panteão Assírio. Acredita-se que a origem do nome desta
divindade é motivada pelo nome da mais antiga capital da Assíria, cidade que leva este mesmo nome, uma espécie de personificação da cidade em uma divindade. É identificado como uma divindade guerreira,
que estendeu o seu poder pela Assíria, tornando-se o deus supremo
de um império em expansão.
Inicialmente, Aššur estava ligado a um deus local da vegetação e não possuía uma genealogia divina explicada pelos mitos, como
as outras principais divindades de tradição babilônica. Entretanto, Sargão II, rei da Assíria (722-705 a.C.), incluiu-o no épico da Criação juntamente com o deus babilônico Marduk. Na iconografia dos relevos
assírios, Aššur geralmente aparece em um disco alado, sobre cenas de
batalhas, rituais e caças, característica esta que pode ter sido emprestada de divindades como Šamaš (Utu) deus Sol.
Alguns textos do período de Aššurnazirpal II (884-859 a.C)
e Senaqueribe (705-681 a.C) descrevem que o “esplendor de Aššur
cegava os inimigos”, característica do deus sol Šamaš, ou até mesmo
que “o estrondoso som de Aššur confundiu os inimigos”, adquirindo
características dos sons dos relâmpagos produzidos por Adad (deus
das tempestades).
O grande número de nomes próprios com o prefixo Aššur demonstra a totalidade da divindade neste império o rei assírio era o
grande sacerdote de Aššur na terra, dentre suas obrigações devia pres20 GREEN, Anthony; BLACK, Jeremy. Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia: An Illustrated Dictionary. London: The British Museum, 2011
28 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
tar culto, construir e reformar templos e aumentar a audiência perante
os deuses. Como exemplifica Bedford21 :
Assyrian texts expound a imperial ideology claiming that
aššur was the pre-eminent deity who ruled over all the gods,
and, as a corollary, the political reality on earth should therefore be that all peoples acknowledged the sovereignty of
Aššur’s representative, the Assyrian king.22
Dessa forma, percebemos uma utilização ideológica da religião em benefício da autoridade real, interligada a uma supervalorização de Aššur, que passa de uma simples divindade local para o meio de
um panteão de tradição sumério-acádica, fazendo parte dos mitos e
recebendo aspectos de diversas divindades da Mesopotâmia.
- Ištar, a Roseta e a Estrela
Ištar, a roseta e a estrela de 6 ou 8 pontas; Ištar é associada à
deusa do amor e da guerra, Ištar (Inanna para os sumérios) é a mais importante divindade feminina da antiga Mesopotâmia. O nome sumério
provavelmente deriva de Nin-ana, “Senhora do céu”. O nome acádico
Ištar (antigo Eštar), está relacionado com uma divindade árabe chamada “Athtar” e com a deusa síria Astarte, conhecida na Bíblia como
Ashatoreth. A personalidade de Ištar, segundo Black e Green pode ser
dividida em três aspectos: O primeiro e mais conhecido é o aspecto de
uma deusa ligada ao amor e com um comportamento sexual relacionado com o sexo extraconjugal. O segundo aspecto é sua característica
guerreira, o campo de batalha era descrito como a “recreação de Ištar”. Ištar de Arbela foi venerada pelos assírios justamente pelo aspecto guerreiro; o terceiro aspecto está relacionado ao planeta Vênus, ou
a estrela da manhã.
21 BEDFORD, Peter. Empire and exploitation: In the Neo Assyrian Empire In: SOCIAL
SCIENCE HISTORY INSTITUTE, STANFORD UNIVERSITY, May 21-22, EUA, 21 p
22 Os textos assírios expõem uma ideologia imperial alegando que Aššur era a divindade preeminente que governava acima de todos os deuses e, consequentemente, a realidade política da terra deveria ser de maneira que todos os povos reconhecessem a soberania representada por Aššur, o rei assírio.
Volume 2
29
Iconograficamente, Ištar é representada como uma deusa
guerreira, frequentemente alada, utilizando armas ou rodeada por
uma auréola de estrelas. Na arte neoassíria, é representada como uma
mulher nua, com asas, usando uma touca com chifres que atesta sua
divindade. Os estudiosos da iconografia religiosa estabelecem uma relação com o símbolo da roseta, pois esse motivo iconográfico foi amplamente encontrado em um templo de Ištar na cidade de Aššur. A
partir desta constatação, associa-se esse motivo da roseta à deusa Ištar. Possivelmente no período Neoassírio a roseta tenha sido o motivo
mais utilizado e substituiu o uso iconográfico da estrela, que também
é atribuído à Ištar23.
- A touca com chifres: Símbolo de divindade ou a tríade de
Aššur, Anu e Enlil
Este símbolo está presente no eixo central de um carro de
guerra representado por um pequeno ícone. A partir das informações
oferecidas por Black e Green24, esse ornamento ou símbolo aparece
desde o terceiro milênio a.C e é um distintivo que identifica o aspecto
ou estado divino da figura que o utiliza, geralmente representado na
iconografia como uma touca.
Nos kudurrus25 kassitas, este símbolo é particularmente identificado com o deus supremo Anu (An). No entanto, é na arte neoassíria que ele é transferido para o deus nacional Aššur. Em alguns casos
há ocorrência de três toucas aparecerem e representarem Aššur, Anu
(An) e Enlil.
23 GREEN, Anthony; BLACK, Jeremy. Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia: An Illustrated Dictionary. London: The British Museum, 2008, p.156.
24 GREEN, Anthony; BLACK, Jeremy. Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia: An Illustrated Dictionary. London: The British Museum, 2008, p.102-103.
25 Kudurrus, palavra acádica para fronteira. Eram documentos esculpidos em pedra.
Foram utilizados como marcos de fronteira e registravam as concessões de terras do
rei a seus “vassalos” na Babilônia. As partes superiores dos kudurrus possuíam símbolos de divindades que solenizavam e protegiam esses contratos. Ibidem, p.113.
30 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
- Anu (An)
Anu é um nome acádico, já An é uma palavra em sumério que
significa “céu”, nome dado ao grande deus do céu, o principal deus da
Criação, o maior de todos os deuses e também o pai de todos os deuses. Sua esposa é a deusa Uraš e, na tradição mais recente, é casado
com Ki; já para os babilônicos sua esposa é Antu.
Uma exceção é encontrada no período Neoassírio, onde alguns estudiosos acreditam que esta divindade é representada em relevo de pedra em Maltai ou que esse deus, no mesmo período, é representado pelo símbolo da touca com chifres26.
As características dadas a essa divindade por Parpola27 reafirmam o título dado por Black e Green, sendo Anu o “deus do céu”, porém o autor atribui outros títulos a esse deus, sendo eles: “O primeiro,
o pai do céu, o único grande do céu e da terra, o único que detém o
universo inteiro, o rei dos deuses, o pai e progenitor dos grandes deuses, o criador de tudo”. O autor afirma ainda que ele é um “reflexo” de
seu pai Anšar = Aššur, com o qual Anu é identificado.
O símbolo de sua autoridade é a coroa, que é conferida também ao rei assírio, assim como esse deus cedeu sua realeza divina para
seu filho Marduk, que deveria estabilizar a ordem no mundo.
- Enlil
Este deus se estabelece como um dos mais importantes do
panteão mesopotâmico. O centro do culto a Enlil, assim como de Aššur,
é o templo de E-kur “casa da Montanha”. No período Neoassírio, Enlil
também é simbolizado por uma touca com chifres28.
26 Idem, p. 30.
27 PARPOLA, Simo. Monotheism in Ancient Assyria. In: PORTER, Barbara Nevling
(ed.). One God or Many? Concepts of Divinity in the Ancient World: Essays on the concept of monotheism/polytheism in ancient Assyria, Egypt, Greece, and Israel. Casco
Bay ME: Casco Bay Assyriological Institute, 2000. Disponível em:< http://www.etana.
org/node/11896 > Acesso em: 14 abr. 2010.
28 GREEN, Anthony; BLACK, Jeremy. Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia: An Illustrated Dictionary. London: The British Museum, 2008, p.76.
Volume 2
31
Conhecido como “Senhor (EN) do vento” em sumério e como
Enlil em acádico, é possuidor de aspectos governamentais do poder e
da realeza. Sua esposa é Ninlil (ou Mulllisu em acádico). A origem desta
divindade é associada ao vento que acompanha o retorno da vegetação na primavera e à invenção da enxada, um dos primeiros instrumentos agrícolas. Na Assíria, estes mesmos poderes reais de Enlil foram transferidos a Aššur e a deusa Mullisu se tornou sua esposa divina.
No entanto, os assírios ainda manifestavam reverências a Enlil, como
se pode perceber pelas construções de templos em suas capitais. É no
I milênio que Enlil adquire um lugar especial no panteão assírio-babilônico, suas características soberanas são atribuídas então a Marduk
(Babilônia) e Aššur (Assíria).
- O crescente lunar: Sîn (Nanna-Suen)
O símbolo do crescente lunar deitado é um motivo artístico
que segundo Black e Green29, surgem na Mesopotâmia desde a Pré-História até o período Neobabilônico. As informações mais antigas
sobre este símbolo, que está relacionado ao deus da lua Sîn (Nanna-Suen),decorrem de inscrições que o descreviam na antiga Babilônia.
Em alguns períodos, este símbolo é representado sobre um
poste ou em enfeites elaborados que aparecem nos eixos dos carros
de guerra ou ainda em amuletos.
- Sete pontos de Sebittu
Este símbolo aparece essencialmente no eixo do carro de
guerra. Os sete pontos ou sete estrelas conhecidas como Sebittu representam as estrelas da constelação de touro, que são visíveis a olho
nu e já eram conhecidas pelos astrônomos mesopotâmicos.
29 Idem, p.54;135.
32 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
- Cruz ou disco solar de Šamaš (Utu)
Este símbolo da cruz ou do disco solar, com raios emanados
de seu interior, aparece no eixo de um carro de guerra e, principalmente, nos adornos das laterais dos cavalos que puxam esse tipo de
veículo. É interessante ressaltar que a cruz não aparece em kudurrus,
onde o disco solar é geralmente representado30.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desta análise, concluímos, preliminarmente, que os símbolos mais frequentes se apresentam em figuras antropozoomórficas e
que provavelmente exerciam uma função protetora em relação ao exército e rei assírios. As figuras de divindades antropomórficas se apresentam
em menor ocorrência: em uma representação de Aššur, que está em uma
máquina de guerra, e nos estandartes carregados no interior dos carros.
Existe a categoria dos símbolos astrais que aparecem na maioria das representações em amuletos, nos eixos dos carros de guerras,
nas armas e nos adornos dos cavalos do exército assírio.
Na categoria dos símbolos astrais e naturais, estão inseridos
grandes deuses do panteão assírio como Sîn, Šamaš, Ištar, os quais possuíam atributos específicos, além de serem, em sua maioria, divindades
guerreiras. Tais divindades aparecem em proporções menores, daí podemos concluir que esses símbolos exercem uma função mágico-protetora em relação aos exércitos e aos reis. A roseta de Ištar foi o símbolo
iconográfico de maior ocorrência, geralmente relacionado a objetos de
uso pessoal como armas, armaduras, carros, braceletes e aljavas. A divindade de Aššur, em seu disco alado, é a única divindade que aparece
representada em proporções maiores. Em todas as lajes, Aššur é representado participando das ações ou acompanhando as ações realizadas
pela pessoa do rei. Fica muito evidente a semelhança física e gestual
entre o rei assírio e a divindade Aššur.
30 GREEN, Anthony; BLACK, Jeremy. Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia: An Illustrated Dictionary. London: The British Museum, 2008, p.54.
Volume 2
33
Nesse sentido, compreendemos que a guerra não era decidida pelas ações ou decisões humanas, e sim, pelas ações divinas; é
nesse sentido que a elite detentora do poder cria uma complexa rede
de aparato religioso que, inserida no contexto militar, justifica, protege
e disponibiliza o sucesso, cria e recria significações religiosas, reorganiza os mitos e panteões e sintetiza toda uma composição iconográfica
de uma estátua em um único símbolo. Símbolo este que, mesmo para
um iletrado que não compreendesse os textos e inscrições do palácio,
produzia sentido e significado para aqueles que o visualizavam.
34 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
FICHA DE IDENTIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
ICONOGRÁFICO
Fundo:
A Representação da Guerra nos Relevos Assírios
Grupo:
Subgrupo:
Rei Aššurnazirpal II
O rei em seu carro na frente de uma
cidade sitiada
Suporte:
Dimensões:
Desenho
Papel
-----------------------
Local:
Datação:
Nº Doc.:
Técnica:
Palácio Noroeste, Nimrud –Iraque. Entre 884 a 859 ____.____.____.____.____
a.C.
Autor:
Desenho de W. Holl
Referência completa:
LAYARD, H. A. The monuments the Nineveh, London, vol II, pr. XIII, John Murray,
1853, p. 29.
Descritores:
O Rei assírio está em seu carro de guerra disparando flechas contra uma cidade
inimiga.
Em frente do carro real, o condutor do carro do exército adversário se segura em
seu cavalo para não cair.
Na parte superior, vê-se a figura do deus Aššur que desfere flecha na direção da
cidade.
Em seguida, um guerreiro assírio fere um guerreiro adversário que é protegido
por outro guerreiro.
Sobre os muros da cidade atacada, guerreiros adversários desferem flechas na
direção do exército assírio.
Na parte inferior dois guerreiros assírios ferem dois guerreiros do exército
adversário.
Inscrição:
Não há inscrição
Histórico:
Laje 3 a – Conjunto (3 a, 4 a)
Sala B – Sala do trono
Prancha XIII – (Layard, 1853, pr. XIII. p. 29)
Observações:
Volume 2
35
Laje 3 a: O rei em seu carro na frente de uma cidade sitiada.
Fotografia de Katia Pozzer. Museu Britânico, Londres.
36 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
IDENTIFICAÇÃO DOS ORNAMENTOS E SÍMBOLOS RELIGIOSOS
Laje 3 a – O rei em seu carro na frente de uma cidade sitiada – prancha 1, p.79.
Nome da
Divindade
Localização no desenho
Aššur
No alto da laje em um disco alado
Roseta/flor (Ištar)
Sete Pontos
(SEBITTI)
Touca com chifres
(Anu, Enlil e
Aššur)
Lua Crescente
(Sîn) e Šamaš
(Sol)
No carro de guerra
Volume 2
37
Rosetas/flores
(Ištar)
Cruz ou disco
solar (Šamaš)
Nos Braceletes, Túnicas, armaduras do rei e da divindade Aššur
No adorno que acompanha o cavalo do rei assírio
Roseta (Ištar)
38 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
A Fundação de uma Nova Cidade:
Akhetaton, o Horizonte do Aton
Liliane Cristina Coelho 1
A fundação de cidades por ordem régia era comum no Egito
antigo. Muitos faraós utilizaram tal artifício para construir não apenas novas Residências Reais, como Amenemhat I (c. 1991-1962 a.C.),
que erigiu Amenemhat-itji-tauí no Fayum, Amenhotep IV/Akhenaton
(c. 1353-1335 a.C.), com a construção de Akhetaton, no Médio Egito,
e Ramsés II (c. 1290-1224 a.C.), que transferiu sua Residência para
Per-Ramsés, no Delta, mas também fortalezas em locais de fronteira,
como Semna e Uronarti, contruídas no limite com a Núbia por Senusert III (c. 1878-1841 a.C.), e vilas para abrigar construtores de tumbas, como Lahun, erigida por ordem de Senusert II (c. 1897-1878 a.C.)
no Fayum, e Deir el-Medina, fundada na região de Tebas por Tothmés
I (c. 1504-1492 a.C.)2.
O que diferencia Akhetaton – objeto deste capítulo – das outras cidades citadas, e de muitas outras construídas ao longo do Nilo, é
que neste caso temos conhecimento de um projeto inicial, inscrito nas
estelas de fronteira que foram erigidas para delimitar o espaço pertencente à localidade. Um projeto não é conhecido, por exemplo, para
Lahun ou Deir el-Medina, e para as Residências Reais temos apenas
descrições posteriores, feitas por visitantes que se encantaram por características específicas e as relataram.
Outra característica de Akhetaton é a perenidade de sua existência: estima-se que a cidade tenha sido habitada por cerca de vinte a
vinte e cinco anos somente, tendo sido desocupada após a restauração
da religião tradicional levada a cabo durante o governo de Tutankhamon (c. 1333-1323 a.C.). Devido a tal particularidade, no entanto, a
1 Mestre e doutora em História Antiga pela Universidade Federal Fluminense. Professora do Curso de Especialização em História Antiga e Medieval do NEA-UERJ.
Email:
[email protected]
2 As datas seguem a cronologia proposta por BAINES, J. & MÁLEK, J. O mundo egípcio: deuses, templos e faraós. Madrid: Ediciones del Prado, 1996. v.1. p.36.
Volume 2
39
localidade é uma das mais bem documentadas de todo o Egito, sendo
conhecidas as plantas de diferentes estruturas dentre aquelas citadas
nas estelas de fronteira, como os templos dedicados ao Aton e as Casas do Faraó, além de casas de funcionários e de pessoas comuns, que
permitem entender a sociedade daquele período.
Meu objetivo neste trabalho, no entanto, é discutir alguns aspectos – geográficos mas sobretudo simbólicos – relacionados principalmente à escolha do local para a instalação da nova cidade. Para
tanto, parto da hipótese de que a opção por tal localização é parte de
um projeto político-religioso levado a cabo por Akhenaton a partir do
ano 5 de seu reinado, que incluiu também a adoção do Aton como divindade dinástica e a mudança na titulatura do faraó. Discutirei primeiramente, então, a scolha do Aton, um deus pouco conhecido, como a
divindade principal cultuada por Akhenaton.
I. O primeiro passo de um projeto políticoreligioso: Akhenaton e a escolha do Aton
O contexto de criação da cidade de Akhetaton está diretamente relacionado à adoção por Akhenaton de uma nova divindade como
deus dinástico: o Aton, um deus solar cuja proeminência era bem menor que a de Ra, a divindade solar mais conhecida do panteão egípcio.
Sayed Tawfik aponta razões políticas para a escolha do menos conhecido Aton e não de Ra como deus único no governo de Akhenaton, defendendo que existia uma grande influência política e religiosa dos sacerdotes de Amon-Ra em Tebas e de Ra em Heliópolis. Como o objetivo
de Akhenaton era aumentar o poder real, a escolha de Ra não seria a
melhor para atingir a meta, já que este deus tinha um clero poderoso3.
O mesmo autor defende, no entanto, que o deus Aton não
passa de uma manifestação do deus Ra. Segundo ele, há uma inscrição
fragmentária, na tumba de Ramose, na qual Akhenaton fala a Ramose
3 TAWFIK, S. Aton Studies 4: Was Aton – the God of Akhenaten – Only a Manifestation of the God Re? MDAIK. Mainz/Rhein: Verlag Philipp von Zabern, v. 32, p. 217226, 1976. p. 226.
40 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
sobre a crença no Aton e na qual há uma associação clara entre Aton
e Ra. Ele apoia sua teoria também na existência de uma necrópole em
Akhetaton para o touro Mnevis, animal sagrado do deus Ra de Heliópolis4. Tal cemitério, no entanto, não foi localizado pelas equipes
de arqueólogos que escavaram a cidade e seus arredores, apesar de
aparecer como uma das necrópoles que deveriam ser construídas no
projeto inicial de Akhetaton presente nas estelas de fronteira. Outra
aproximação entre Ra e Aton está na adoção, por parte de Akhenaton,
do título do sumo sacerdote solar de Heliópolis, “Maior dos Videntes”,
também para o sacerdócio maior do Aton.
A questão da escolha do Aton como divindade principal, no
entanto, envolve temas mais complexos, como uma solarização da religião, que é defendida por Jan Assmann e que é mais bem percebida
a partir do reinado de Amenhotep III (c. 1391-1353 a.C.). Segundo este
egiptólogo, “a Nova Teologia Solar pode ser definida como a explicação
e representação do circuito do sol em categorias não-constelativas de
teologia explícita”5. Esta nova teologia rejeita inteiramente os mitos,
o mundo pictórico e o politeísmo, o que explica a ausência de imagens
tri-dimensionais do Aton na arte do período.
Esta solarização também pode ser resultado de uma tentativa de recuperar o poder régio, baseado em governos da IV Dinastia
(c. 2575-2465 a.C.), época de construção das grandes pirâmides mas
também de foco no culto solar. Conforme apontam David Silvermann,
Josef Wegner e Jennifer Wegner, Akhenaton pode ter tentado recriar
de alguma maneira a relação existente entre o faraó e o deus solar Ra
naquele período, que viu surgir o título “Filho de Ra” 6.
O processo de solarização da figura dos Grandes Reis também
pode ser percebido na região da Síria-Palestina, e pode ser debatido
por meio das Cartas de Amarna, quando analisadas em conjunto com
outros documentos do mesmo período. É possível perceber, nos cabeçalhos das Cartas dos vassalos, a associação do rei ao sol, quando o
4 Idem. Ibidem. p. 219-221.
5 ASSMANN, J. The Search for God in Ancient Egypt. Ithaca & London: Cornell University Press, 2001. p. 201.
6 SILVERMAN, D. P.; WEGNER, J. W. & WEGNER, J. H. Akhenaten and Tutankhamon:
Revolution and Restoration. Philadelphia: University of Pennsylvania Museum of Archaeology and Antropology, 2006. p. 27-29.
Volume 2
41
príncipe trata o faraó por “mei rei, meu sol”. A orientalista Beate Pongratz-Leisten sugere que tal identificação, no sul, como por exemplo no
Egito, faz parte da criação de um discurso cosmotopográfico que busca
invocar, por meio da trajetória do sol, a extensão geográfica do controle político de determinado rei em todas as quatro direções, enquanto
no norte, como por exemplo no Hatti, isto reflete o equilíbrio entre o
poder político e o poder regional7.
Um exemplo da extensão da solarização do rei ao norte
pode ser encontrado em selos aediculae 8 do rei hitita Suppiluliuma
I (c. 1344-1322 a.C.)9. Nestes, um disco solar alado é suportado em
ambos os lados pelo hieróglifo para “rei”, semelhante a uma coluna, encimado por uma voluta, que significa “grande”. Próximo a cada
conjunto há uma adaga, signo associado ao título “Labarna”. Um selo
semelhante aparece em um edito de Suppiluliuma I, referente aos
tributos anuais que Niqmaddu II, governante da cidade costeira de
Ugarit, deveria enviar ao rei.
A aproximação entre o deus solar e o faraó, assim, já vinha
acontecendo durante o reinado de Amenhotep III. Segundo Cyril Aldred é visível, por meio dos monumentos régios, que houve uma divinização em vida deste governante. Ele e Tiy, sua esposa, fariam parte
de uma tríade divina junto com o demiurgo solar Atum, assim como
7 PONGRATZ-LEISTEN, B. From Pictograph to Pictogram: the Solarization of Kingship in Syro-Anatolia and Assyria. In: ARUZ, J.; GRAFF, S. B. & RAKIC, Y. (eds.) Cultures
in Contact: from Mesopotamia to the Mediterranean in the Second Millennium BC.
New York: The Metropolitan Museum of Art, 2013. p. 299.
8 A chamada forma aediculae foi criada durante o reinado de Suppiluliuma I. Trata-se de um selo composto de duas partes principais: um núcleo central, onde o nome
do rei, juntamente com o epíteto de "o Grande Rei" é inscrito em hieróglifos, e uma
inscrição cuneiforme que envolve o núcleo, onde os títulos e genealogia do rei são
demonstrados. (YALCIN, S. A Study of Cultural Interaction in the Eastern Mediterranean during the Late Bronze Age: Adaptation of the Winged Sun Disc by the Hittites.
In: DUISTERMAAT, K. & REGULSKI, I. (eds.) Intercultural Contacts in the Ancient Mediterranean. Leuven: Uitgeverij Peeters, 2011. p. 524.)
9 Suppiluliuma I foi um poderoso rei hitita que estabeleceu o controle do Hatti
sobre a area que vai do oeste da Turquia ao norte da Síria. Suas conquistas são conhecidas a partir de um texto posterior ao seu reinado, “O Testamento de Suppiluliuma”, elaborado possivelmente por ordem de seu filho, Mursili II. (BIENKOWSKI, P. &
MILLARD, A. (eds.) Dictionary of the Ancient Near East. London: The British Museum
Press, 2000. p. 280-281.)
42 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
posteriormente aconteceria com Akhenaton, Nefertiti e o Aton10.
A tentativa de aumentar o poder régio por parte de Akhenaton teve início com a colocação do nome do seu deus em dois cartuchos – tal como ocorria com os nomes do faraó, aproximando, assim, o
rei e o deus. Os chamados “nomes didáticos do Aton” refletem, então,
a ideologia real e o passo a passo de sua reforma. Ao adotar o primeiro nome didático, “Ele vive – Ra-Harakhty que se alegra no horizonte
em seu nome de Shu que está no Aton”, ainda em Tebas, Amenhotep
IV deu o primeiro passo em direção ao seu intento. O segundo passo
foi dado possivelmente no ano 5, quando o faraó mudou seus nomes
e começou a construção de uma nova cidade, Akhetaton. Este será o
tema discutido a seguir.
II. “Aquele que é útil ao Aton”: a adoção de um
novo nome
Em um determinado momento, possivelmente entre os anos
4 e 5 de seu reinado, Amenhotep IV (c. 1353-1335 a.C.) deu um passo
importante em direção à sua reforma: a mudança de seus nomes. Ao
adotar Aton como divindade principal em detrimento a Amon, todas as
referências a este último e à cidade de Tebas presentes na titulatura real
foram substituídas por alusões ao Aton e à nova cidade de Akhetaton.
Não há, nas fontes disponíveis, referências às razões que levaram a tais mudanças, mas uma análise dos títulos portados por Amenhotep IV/Akhenaton em suas distintas fases de reinado, em Tebas e
Akhetaton, podem clarificar alguns destes motivos e auxiliar para o
entendimento de alguns aspectos da chamada “Reforma de Amarna”.
Dos títulos que formam o que chamamos de “titulatura real”,
o único que não era definido pelo novo faraó assim que este subia ao
trono era o seu nome de nascimento, ou de Filho de Ra. Os outros
nomes, de Hórus, Duas Senhoras, Hórus de Ouro e Rei do Alto e Baixo
Egito, eram recebidos no momento de sua ascensão ao trono e os seus
10 ALDRED, C. Akhenaten: King of Egypt. London: Thames & Hudson, 2001. p. 151152.
Volume 2
43
componentes algumas vezes estavam ligados a uma ideologia ou a intenções do rei em questão11. Ao subir ao trono, Amenhotep IV tinha,
então, a seguinte titulatura:
O Hórus Vivo “Touro Poderoso, Sublime das Duas Plumas”;
Duas Senhoras “Grande de reinados em Karnak”; o Hórus
de Ouro “Portador das Coroas em Heliópolis do Sul”; o Rei
do Alto e Baixo Egito, Governante dos Nove Arcos, o Senhor
das Coroas, aquele que possui a Coroa do Alto Egito, o Senhor das Duas Terras, Neferkheperura-Uaenra; o Filho de
Ra, de seu corpo, seu amado, Amenhotep, o Divino Governante de Tebas12.
Apesar de não ser uma prática corrente, a mudança de nomes
acontecia e normalmente estava relacionada a um evento significativo, conforme se observa, por exemplo, na titulatura de Mentuhotep
II, que reflete as transformações ocorridas quando da reunificação do
Egito no início de Reino Médio, que foram levadas a cabo por este faraó13, ou naquela de Amenemhat I, que mudou alguns títulos depois
que decidiu construir sua nova residência em Itjitauí.14 Sayed Tawfik
afirma que, no entanto, Amenhotep IV/Akhenaton foi o único faraó a
mudar todos os seus nomes, inclusive o de nascimento15. A nova titulatura deste rei, então, ficou conforme segue:
O Hórus Vivo “Touro Poderoso, aquele que é amado por
Aton”; Duas Senhoras “Grande de reinados em Akhetaton”;
o Hórus de Ouro “Aquele que enaltece o nome do Aton”; o
Rei do Alto e Baixo Egito, aquele que vive por meio de Maat,
o Senhor das Duas Terras, Neferkheperura-Uaenra; o Filho de
Ra, aquele que vive por meio de Maat, o Senhor das Coroas,
Akhenaton, cujo tempo de vida é longo 16.
11 SHAW, I. The Oxford history of ancient Egypt. Oxford: Oxford University Press,
2000. p. 6.
12 A titulatura foi consultada em TAWFIK, S. Op. cit. 1976, p. 217.
13 COELHO, L. C. Vida pública e vida privada no Egito do Reino Médio (c. 2040-1640
a.C.), Niterói, 2009, 278 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. p. 29-30.
14 Idem. Ibidem. p. 36-37.
15 TAWFIK, S. Op. cit. 1976, p. 217.
16 A titulatura foi consultada no texto das estelas de fronteira do ano 5. Para uma
44 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
No caso de Amenhotep IV/Akhenaton a mudança da titulatura
foi necessária após a adoção do Aton como divindade principal. Com a
supressão do culto a Amon não era mais possível carregar em seus nomes referências a este deus, ao seu principal centro de culto, Karnak,
ou à sua cidade, Tebas. Assim, o nome de “Hórus”, o primeiro a compor
a titulatura real e que tem suas origens ainda no Período Pré-Dinástico,
foi modificado de “Touro Poderoso, Sublime das Duas Plumas”, uma
clara alusão a Amon, cuja representação é a de um homem com uma
coroa com duas altas plumas sobre a cabeça, para “Touro Poderoso,
aquele que é amado por Aton”, o que relaciona diretamente o rei ao
seu deus.
Outra referência ao Aton está no nome de “Hórus de Ouro”,
que remete à disputa entre Hórus e Set pelo trono do Egito e foi modificado de “Portador das Coroas em Heliópolis do Sul”, outra designação
para Tebas, para “Aquele que enaltece o nome do Aton”. O mesmo
acontece com o nome de “Duas Senhoras”, que alude à proteção das
deusas tutelares do norte e do sul, respectivamente Uadjti e Nekhbet,
sobre o rei. Para assinalar a mudança do centro religioso, tal título passa de “Grande de Reinados em Karnak” para “Grande de Reinados em
Akhetaton”, uma alusão clara à nova cidade construída no Médio Egito.
A única referência a outro deus que não o Aton presente na
titulatura de Akhenaton está no nome de Rei do Alto e Baixo Egito:
“aquele que vive por meio de Maat, o Senhor das Duas Terras, Neferkheperura-Uaenra”. O título completo na fase tebana do reinado era
“Governante dos Nove Arcos, o Senhor das Coroas, aquele que possui
a Coroa do Alto Egito, o Senhor das Duas Terras, Neferkheperura-Uaenra”. É perceptível neste caso que a primeira parte que compõe este
nome foi modificada para atender aos novos rumos do reinado, mas
a última, Neferkheperura-Uaenra, ou “Belas são as transformações
de Ra, Filho Único de Ra”, que aparece protegida por um cartucho, se
manteve. Esta faz referência ao deus Ra, outra divindade solar e que
está intimamente ligada ao Aton, conforme a proposta de Sayed Tawfik
tradução completa dos textos, ver: COELHO. L. C. Mudanças e Pemanências no Uso
do Espaço: a Cidade de Tell el-Amarna e a Questão do Urbanismo no Egito Antigo,
Niterói, 2015, 308 p. Tese ()Doutorado – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015, especialmente o capítulo II.
Volume 2
45
apresentada anteriormente, e possivelmente por esta razão este nome
não tenha sido mudado. Vale lembrar que o sumo sacerdote do Aton
tinha o mesmo título daquele do deus Ra de Heliópolis, qual seja, o
“Maior dos Videntes”.
A mudança mais radical, no entanto, e que foi a mais significativa justamente por envolver o nome de nascimento, foi aquela que
ocorreu no título “Filho de Ra”. Na fase tebana Amenhotep IV era o “Filho de Ra, de seu corpo, seu amado, Amenhotep, o Divino Governante
de Tebas”. Por ser filho “de seu corpo”, o rei aqui aparece como um
descendente direto ou um representante do deus na terra, daí na continuidade ele ser o “Divino Governante de Tebas”, pois ocupava o lugar
que fora de Ra no trono do Egito. Seu nome, Amenhotep, tinha um
significado que o relacionava diretamente ao deus dinástico, Amon, assim como a três de seus antecessores: “Amon está satisfeito”. Ao subir
ao trono tal nome passou a ser também protegido por um cartucho,
um sinal de proteção e também um símbolo do circuito do sol.
Ao adotar um novo deus, no entanto, o rei precisou também
modificar seu próprio nome. Além das mudanças necessárias para
adaptar o título à nova realidade – o faraó deixa de ser o filho “de seu
corpo, seu amado, o Divino Governante de Tebas” e passa a ser “aquele que vive por meio de Maat, o Senhor das Coroas, cujo tempo de
vida é longo” – não poderia existir, na nova nomenclatura, nenhuma
relação com Amon. Desta maneira, Amenhotep passou a se chamar
Akhenaton, ou “Aquele que é útil ao Aton”.
A nova titulatura reflete de forma clara alguns aspectos da
reforma proposta por Akhenaton. O primeiro é uma solarização da religião, que com este rei atingiu o seu auge, ao adotar uma divindade
solar, o Aton, como a principal de seu reinado. O segundo é o deslocamento para Akhetaton, a cidade construída sob suas ordens, refletido
no desaparecimento de Tebas, ou Heliópolis do Sul, e de Karnak de
seus nomes. Algumas considerações sobre o primeiro aspecto foram
discutidas nos subtítulos anteriores. O segundo será discutido a seguir.
46 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
III. “[...] não pertence a um deus, não pertence a
uma deusa”: Akhetaton, o Horizonte de Aton
Em um momento próximo àquele da mudança de seus nomes,
Akhenaton decidiu mudar seu centro administrativo e religioso17 para
um local no Médio Egito, virtualmente virgem, onde foi construída a
cidade de Akhetaton. Para delimitar o local foram erigidas estelas de
fronteira, que trazem informações importantes sobre o contexto de
criação da cidade bem como sobre as primeiras edificações a serem
erigidas e a delimitação do território, e cujo texto é apresentado na
íntegra no Capítulo II18.
O sítio de Akhetaton é conhecido desde o início do século
XVIII. A primeira referência moderna à cidade foi encontrada nos diários de viagem do jesuíta francês Claude Sicard, que visitou o Egito em
1714 e avistou uma das estelas de fronteira, que foi representada em
seu diário. Já o primeiro mapa detalhado do assentamento urbano foi
publicado por Napoleão Bonaparte na Description de l´Égypte, obra
que resultou de sua expedição ao país iniciada em 1798. Entre os primeiros egiptólogos e viajantes a visitarem o sítio estão John Gardner
Wilkinson, James Burton, Jean-François Champollion, que se tornou
mundialmente famoso pela decifração da escrita egípcia antiga, Robert Hay, Nestor l’Hôte e Karl Richard Lepsius, conhecido como pai da
Egiptologia alemã19.
17 Adoto aqui a expressão “centro administrativo e religioso” e não a palavra “capital” pois não há, na língua egípcia antiga, uma palavra que possa ser traduzida como
“capital”, apesar de existirem ao menos três – niwt, Hwt e dmi, que podem ser traduzidas como “cidade”. Para mais informações ver: COELHO, L.C. Op. cit. 2009. p. 56-76.
18 Utilizo neste trabalho o termo corrente na Egiptologia, “estela de fronteira”, mas
cabe aqui uma explicação sobre a função de tais monumentos. Mais do que simplesmente delimitar a cidade – função que será, no entanto, a mais ressaltada nesta
tese – tais estelas podem ser vistas como marcos territoriais, recriando a cidade, por
meio de seu texto e das imagens gravadas na luneta, a cada dia. Tal emprego também fica claro ao se observer o local onde foram instaladas, transformando a cidade
de Akhetaton em um grande templo dedicado ao Aton, conforme será discutido no
decorrer desta tese.
19 PEET, T. E. & WOOLLEY, C. L. The City of Akhenaten I. Excavations of 1921-22 at
el-Amarneh. London: The Egypt Exploration Society, 1923. p. v.
Volume 2
47
O interesse por estudar e entender o sítio por meio da Arqueologia, porém, teve início no final do século XIX. A primeira área
escavada foi a correspondente às tumbas construídas para o rei e sua
família e àquelas construídas para os nobres da cidade. Esta teve início
em 1883, sob a direção de Gaston Maspero, e a publicação dos resultados, em seis volumes publicados pela Egypt Exploration Society, começou em 1892 sob a responsabilidade de Norman de Garis Davies. As
escavações na cidade principal começaram na temporada de 1891-92,
sob a direção de William Matthew Flinders Petrie. Os locais explorados pelo arqueólogo foram o templo dedicado ao Aton, o Palácio Real
e algumas casas privadas 20. Os resultados desta primeira temporada
foram publicados na obra intitulada Tell el-Amarna21.
Ao longo do século XX equipes britânicas e alemãs coordenaram escavações na cidade e desde o ano de 1977 o arqueólogo britânico Barry J. Kemp supervisiona os trabalhos na localidade. Relatórios
anuais são publicados no The Journal of Egyptian Archaeology, editado pela Egypt Exploration Society, de Londres, e as atualizações mais
recentes são disponibilizadas no sítio eletrônico do Amarna Project,
também coordenado por Kemp.
As primeiras estelas de fronteira informam sobre as primeiras edificações a serem levantadas no local atualmente denominado
Cidade Central e que era conhecido pelos egípcios como “a ilha” ou
“o distrito”, bem como sobre a delimitação do local por meio da instalação de duas estelas de fronteira, uma ao norte e uma ao sul. Há
também referências oblíquas sobre as razões que levaram Amenhotep
IV/Akhenaton a mudar o local da residência real22 e sobre a escolha do
local para a instalação da nova cidade.
Para limitar a discussão ao aspecto mais bem iluminado pelo
texto das estelas do ano 5, qual seja, a escolha do local para a instalação da cidade, defendo aqui que tal escolha foi influenciada por razões
geográficas, como a curvatura do rio Nilo na região, formando uma
baía protegida, e também por aspectos religiosos, como a presença de
um wadi cuja forma poderia ser lida como o hieróglifo Axt. Tais carac20 Idem. Ibidem. p. v.
21 PETRIE, W. M. F. Tell el Amarna. London: Methuen & Co., 1894.
22 MURNANE, W. J. & VAN SICLEN III, C. C. The Boundary Stelae of Akhenaten. London: Kegan Paul International, 1993. p. 166.
48 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
terísticas, conforme minha hipótese de trabalho, foram determinantes
para a instalação da cidade naquela área, bem como sua localização,
no centro geográfico do Egito, a meio caminho das duas cidades de
maior peso urbano da época, Mênfis e Tebas.
Uma análise do texto presente nos monumentos do ano 5
mostra que as situações específicas a que me refiro acima não foram
anunciadas por Akhenaton. No relato, o faraó se refere à escolha do
local como se esta tivesse sido anunciada ao faraó pelo próprio Aton, e
o rei deveria apenas encontrar o lugar descrito pelo deus, conforme se
percebe pelo texto da estela K, linha XXI: “Foi o Aton, o meu pai, quem
[me aconselhou] sobre isto, então ela (i.e., a cidade) deve ser feita para
[ele] como Akhet[aton]”. 23
Os trechos que aparecem entre colchetes foram reconstruídos a partir do texto da estela X, também datado do ano 5. É possível
observar, por meio deste extrato, que Akhenaton justificou a construção de uma nova cidade como se isto fosse um pedido do próprio
Aton, que o aconselhou sobre isto. Em outro momento, no mesmo documento, fica claro que houve uma perturbação cada vez maior em
Tebas, e esta seria a razão para a mudança para Akhetaton. Esta é,
contudo, apenas uma referência oblíqua e, devido à fragmentação do
texto neste trecho, não é possível afirmar que tais agitações tenham
sido determinantes para a transferência da residência real.
Em outro segmento do texto, nas linhas 1 e 2 da mesma estela K, Akhenaton diz ter encontrado o local ideal para a construção de
Akhetaton, seguindo as indicações do Aton:
Vejam, foi o Faraó – que ele viva, prospere e tenha saúde –
quem encontrou este lugar – que não pertence a um deus,
[que não pertence a uma deusa, que não pertence a um governante (homem), que não pertence a] uma mulher governante, (e) que não pertence a nenhuma pessoa que faça algo
nela. [Este lugar --- não foi conhecido.] Foi antevisto que eu o
encontraria, [sendo] ---24
A justificativa para a escolha do local, segundo o texto das estelas, se baseia no fato de que tal lugar não havia pertencido antes a
23 O trecho das estelas de fronteira aqui apresentado pode ser consultado em COELHO, L.C. Op. cit. 2015.
24 Idem.
Volume 2
49
nenhum deus ou deusa, ou a nenhum governante homem ou mulher,
ou a nenhum outro homem ou mulher que tenha habitado aquelas
terras ou feito qualquer coisa com elas. Contraditoriamente, ao determinar o que pertenceria ao Aton, Akhenaton fala em “suas pessoas”,
“suas cidades” e “seus campos”, ou terras cultivadas, o que indica, conforme eu defendo com base nos mesmos textos, que o lugar de instalação de Akhetaton não era completamente virgem, existindo pequenas
comunidades que são designadas como dmi, ou seja, pequenas cidades ou vilas, que poderiam dar origem a centros urbanos maiores e
que estavam localizadas principalmente na margem oeste do rio Nilo,
na área agrícola relacionada à cidade.
Aspectos relacionados à geografia do local, no entanto, indicam que objetivos políticos e estratégicos foram levados em consideração para tal escolha. Por meio da análise de um mapa que mostra a
topografia da região, então, é possível levantar algumas hipóteses a
respeito da escolha do local para a instalação da nova cidade.
A primeira diz respeito à sua posição, no centro geográfico do
Egito, equidistante de Assuã, ao sul, e do Mar Mediterrâneo, ao norte,
os limites territoriais clássicos das Duas Terras. Dentro desta delimitação, a meu ver, Akhetaton ocupava uma posição politicamente estratégica: a distância entre Akhetaton e as cidades de Tebas e Mênfis, as
duas com maior peso urbano durante o Reino Novo, era próxima: cerca de 420 e 312 km, respectivamente. Tal disponibilidade geográfica é
mostrada no mapa da figura 1.
50 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Mapa. 1: Mapa do Egito, mostrando a localização das cidades de Akhetaton
(em vermelho) e Tebas e Mênfis (em azul) 25.
25 Referência: DAVID, R. The pyramids builders of Ancient Egypt. A modern investigation of pharaoh’s work-force. London: Routledge & Kegan Paul, 1986. p. 15.
Volume 2
51
Para explicar esta hipótese é necessário entender a visão de
mundo dos antigos egípcios, que pode ser sintetizada no conceito de
“monismo”. Essa forma de pensamento é compartilhada pelas egiptólogas escandinavas Gertie Englund e Raghenhil Bjenrre Finnestad26.
Segundo essas autoras, os egípcios viam seu mundo a partir de uma
unidade, como se o universo inteiro estivesse inter-relacionado em
uma grande rede, em um todo: como em uma visão ecológica em que
a vida estivesse interagindo e se interconectando com todas as outras
coisas do mundo. Não há diferença entre o animado e o inanimado,
o material e o imaterial. Segundo Ciro Cardoso, o monismo pode ser
definido da seguinte maneira:
Mundo humano (individual e social), mundo divino, mundo
natural, são aspectos de um todo visto como tal, desprovido
de barreiras instransponíveis. Não se acentua, nos conceitos
e na forma de pensar, a diferença entre animado e inanimado, humano e animal (ou vegetal), matéria e espírito, corpo
e alma. O mundo todo, único, é que constitui o objeto de um
pensamento baseado em mitos; o fato de tal mundo ser uma
totalidade coerente é que permite a ação eficaz, como se
acreditava, do ritual e da magia. No pensamento em questão,
há uma noção central: a vida, em sua latência, seu vir a ser,
suas manifestações, sua regeneração; dela se parte ontologicamente, mas também numa forma de pensar que emprega
muitas vezes, operacionalmente, a oposição (complementar
e não irreconciliável, como todas as oposições binárias frequentes no pensamento egípcio) masculino/ feminino como
categoria dinâmica. A vida é percebida mesmo no que para
nós é matéria inanimada. 27
Desta maneira, não havia no pensamento dos egípcios uma
divisão clara entre política e religião, já que o faraó era ao mesmo tempo humano e divino e não havia uma barreira entre os dois mundos.
Tendo este fato como base, defendo que há uma intencionalidade na
escolha do local para a instalação de Akhetaton, que está centrada na
26 ENGLUND, G. (org.). The religion of the ancient Egyptians. Cognitive Structures
and Popular Expressions. Uppsala: Acta Universitatis Upsaliensis, 1989.
27 CARDOSO, C. F. Deuses, múmias e ziggurats. Uma comparação das religiões do
Egito e da Mesopotâmia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. p. 24-25.
52 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
localização dos principais centros de culto aos deuses Ra, em Heliópolis, e Amon-Ra, em Tebas. Sigo aqui a proposta da egiptóloga Betsy
Bryan, que fez um estudo sobre a localização de alguns templos de
Amenhotep III no Egito e na Núbia 28.
Bryan sugere que há uma intencionalidade na localização de
templos dedicados a Amon-Ra por Amenhotep III no Egito e na Núbia.
Conforme sua proposta, se tomarmos os templos de Athribis/Bubastis
e Soleb/Sedeinga como os extremos norte e sul em um mapa, Tebas
ficaria bem no centro, o que indica sua importância na mitologia associada a Amon-Ra. Da mesma maneira, Akhetaton teria um papel essencial na religião de Akhenaton. Mesmo não havendo uma mitologia
relacionada ao Aton, a cidade era o principal centro de culto ao deus,
e o objetivo do faraó era que a divindade fosse cultuada ao longo de
todo o Egito. A posição central, então, auxiliaria para que o objetivo
fosse atingido.
Outra hipótese sobre a escolha do local está diretamente relacionada a uma formação geológica presente na região, e que teria
sido fundamental para tal escolha, segundo alguns dos estudiosos do
Período de Amarna. Trata-se de um wadi que tem a forma do hieróglifo Axt, ou horizonte, que aparece na escrita do nome da cidade e que
forma a entrada para o local de construção da tumba real. Na figura 1 é
possível ver a entrada para o Wadi Abu Hasah el-Bahri, mais conhecido
como Wadi Real, bem como uma imagem do hieróglifo Axt, com o Aton
representado como o disco solar com raios que terminam em mãos.
28 O’CONNOR, D. The City and the World: Worldview and Built Forms in the Reign
of Amenhotep III. In: O’CONNOR, D. & CLINE, E. H. Amenhotep III: perspectives on his
reign. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1998. p. 125-172. p. 149.
Volume 2
53
Fig. 1: Wadi Abu Hasah el-Bahri com uma imagem do hieróglifo Axt. 29
Baseio esta afirmação no fato de que existe uma relação muito importante entre a cidade e o wadi real, que se reflete justamente
na religião funerária. A mudança da localização das tumbas do oeste
para o leste na nova religião solar proposta por Akhenaton teve um
impacto profundo na ideia sobre um mundo do além. Com a supressão
do culto a Osíris e sem a referência do oeste, não haveria mais a união
entre Ra e Osíris para que ambos pudessem se renovar, tal como acontecia na religião funerária tradicional30. Conforme pode ser retirado do
Hino ao Aton, o paradeiro do deus quando a luz solar não está presente é desconhecido e o caos impera:
Ninguém conhece o teu paradeiro (quando) descansas no
horizonte ocidental. A terra está (então) nas trevas, à maneira da morte. Dorme-se no(s) quarto(s), as cabeças cobertas,
um olho não pode ver o outro (lit. o seu igual), todos os bens
29 Referência: SILVERMAN, David P.; WEGNER, Josef W. & WEGNER, Jennifer Houser.
Akhenaten and Tutankhamon: revolution and restoration. Philadelphia: University of
Pennsylvania Museum of Archaeology and Antropology, 2006. p. 48.
30 SANTOS, M. E. Caminho para a eternidade: as concepções de vida post-mortem
real e privada nas tumbas tebanas do Reino Novo - 1550-1070 a.C. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense. Niterói: 2012. p. 410.
54 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
das pessoas (lit. deles) podem ser roubados, (mesmo se) estiverem debaixo de suas cabeças, sem que elas percebam.
Todas as feras (lit. todos os leões) saem de seus covis, todos
os répteis picam (na) escuridão (desprovida de) luz! (?) A terra está em silêncio, (pois) aquele que criou os seres (lit. eles)
repousa no seu horizonte. 31
Há aqui uma relação importante: a entrada para o wadi, sendo vista como o hieróglifo Axt, representa o próprio horizonte, onde
o Aton repousa na ausência da luz. Ao mesmo tempo, segundo Ciro
Cardoso, o horizonte é para os egípcios antigos o lugar onde o mundo divino se encontra com o dos homens e este com o mundo dos
mortos32. Akhetaton, sob este ponto de vista, seria o lugar sagrado por
natureza, o espaço no qual os mundos se encontram e a partir do qual
toda a vida é dada pelo Aton.
A localização das tumbas no leste, em especial da tumba real,
aliada à posição das estelas de fronteira erigidas por ordem de Akhenaton, revela um aspecto importante do que o faraó propôs para a
existência post mortem. Em uma das paredes da tumba real há uma
cena, mostrada na figura 2, na qual Akhenaton, Nefertiti e ao menos
uma princesa, possivelmente Meritaton, cultuam ao Aton e este espalha os seus raios, que atingem as construções de Akhetaton e depois
a família real. Por meio da análise de tal cena o egiptólogo Michael
Mallinson propôs que a tumba funcionaria não apenas como um local
de rejuvenescimento para o rei, mas também como o local onde ele
se uniria ao Aton e ambos proveriam tanto o mundo dos vivos quanto
o dos mortos33. Para provar sua teoria, Mallinson traçou linhas imaginárias que partem de um ponto no centro da tumba real e se unem às
estelas de fronteira, resultando em um desenho semelhante àquele
presente na representação descrita acima e que pode ser visualizado
31 CARDOSO, C. F. Grande Hino ao Aton. Tradução inédita, gentilmente cedida pelo
autor, 2008. p. 2-3.
32 Idem. Construção de Monumentos Régios e Simbolização do Espaço no Antigo
Egito (Reino Novo, séculos XVI-XI a.C.) Revista Mundo Antigo (NEHMAAT-UFF/PUCG),
Campos dos Goytacazes (RJ), v.1, n.1 p. 29-54, jun. 2012. Disponível em: http://www.
nehmaat.uff.br/revista/2012-1/artigo01-2012-1.pdf. Acesso em: 02fev14. p. 33.
33 MALLISON, M. The Sacred Landscape. In: FREED, R. E. ; MARKOWITZ, Y. J. & D’AURIA, S. H. Pharaohs of the Sun. Akhenaton, Nefertiti, Tutankhamon. Boston : Museum
of Fine Arts, 1999. p. 72-79. p. 78.
Volume 2
55
na mapa 2. Conforme aponta Moacir Elias Santos, tal situação mostra
a dependência dos egípcios do período amarniano para com seu rei34,
que pode ser verificada tanto na iconografia quanto nos textos escritos, como no seguinte trecho do Grande Hino ao Aton:
(Quando) te levantas, belo, no horizonte do céu, ó Aton vivo,
aquele que deu início à vida, (quando) brilhas no horizonte
oriental, tu enches todas as terras com a tua perfeição. (...)
Teus raios cingem as terras até o limite de tudo o que tu criaste. Em tua qualidade de Sol, tu atinges (lit. trazes) os seus
confins e os submetes ao filho amado por ti (lit. de ti). 35
Fig. 2: Família real cultuando ao Aton em uma das representações da tumba real.
Referência: Amarna Royal Tomb36.
Tendo em vista o que foi discutido até agora, é possível perceber a importância da formação geológica para a decisão de Akhenaton
de construir sua nova cidade naquela região. Mas há ainda mais um
34 SANTOS, M. E. Op. cit. p. 411.
35 CARDOSO, C. F. op cit. 2008. p. 1-2.
36 Disponível em: http://www.flickr.com/photos/egyptexplorationsociety/3662061457/ Acesso em: 02/02/14.
56 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
fator que pode ter sido determinante para a instalação da cidade neste local específico. Nesta região o rio Nilo tem uma curvatura tal que
forma uma baía protegida. Por um lado a cidade seria protegida pelo
próprio rio, principal via de transporte do Egito antigo e, consequentemente, ponto de entrada para exércitos inimigos. Por outro, Akhetaton
estaria protegida pela formação montanhosa à beira do deserto, que
formava uma barreira natural à aproximação de possíveis opositores.
Mapa- 2: Relação da posição da tumba real com as estelas. Nesta imagem é possível verificar o alinhamento proposto, de forma que Akhenaton pudesse se reunir ao
Aton para garantir a vida aos vivos e aos mortos.37
37 Desenho de Moacir Elias Santos baseado em: FREED, R. E., MARKOWITZ, Y. J. e
D’AURIA, S. H. (ed.) Pharaohs of the Sun: Akhenaten, Nefertiti, Tutankhamen. Boston:
Museum of Fine Arts/ Bulfinch Press, 1999, p. 74, e no mapa com a localização das
estelas de fronteira de Akhetaton disponível em: http://www.amarnaproject.com/
pages/amarna_the_place/index.shtml Acesso em: 28set12.
Volume 2
57
Por meio da análise de um mapa que mostra a topografia da
região, tal como o apresentado no mapa 3, é possível perceber que a
cidade de Akhetaton se desenvolveu em uma baía cercada por montanhas, pois quanto mais próximas as curvas de nível no mapa maior
é a inclinação do terreno. A proteção da cidade, então, era facilitada
pelos aspectos geográficos presentes. Não discuto aqui e nem defendo
um determinismo geográfico, pois conforme discutido há um aspecto
simbólico muito claro presente nas características geográficas que levaram à escolha deste local.
No caso específico da opção por esta baía protegida há uma
relação clara com o texto das estelas de fronteira do ano 5, no qual a
Cidade Central de Akhetaton – que é descrita em maiores detalhes no
capítulo II – aparece denominada como “A Ilha do Aton, Distinto de Jubileus”. É interessante notar que o local escolhido para a construção da
cidade, neste sentido, tem uma configuração bastante peculiar: toda a
área urbana, desde o norte até o sul, tem características que permitem
que a mesma seja comparada a uma ilha, mas que é cercada por um
lado pela água – o rio Nilo – e pelos outros por uma cadeia de montanhas, na qual se destaca a entrada do wadi real.
58 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Mapa 3: Mapa da cidade de Akhetaton com curvas de nível que se referem à topografia da região. Referência: Amarna Project: Amarna the place. Disponível em:
http://www.amarnaproject.com/pages/amarna_the_place/index.shtml
Acesso em: 28 set 12.
Quando analisados em conjunto, os fatores envolvidos na hipótese de trabalho aqui sugerida – a posição geográfica central em
relação a Tebas e Mênfis, a formação geológica em forma de Axt e
a baía protegida – mostram que há um notável referencial simbólico
presente em cada fator geográfico que levou à escolha do local para a
instalação da cidade de Akhetaton. A posição geográfica central pode
ser relacionada mais propriamente ao culto ao Aton, que deveria se
Volume 2
59
espalhar por todo o Egito a partir de Akhetaton, a “Casa do Aton”. Já
o wadi na forma do hieróglifo Axt representava o próprio horizonte,
onde os mundos divino, dos vivos e dos mortos se encontravam, tornando Akhetaton o “Horizonte do Aton”, o local onde o deus se renovava e provia tanto os vivos quanto os mortos. Por fim, a localização
em uma baía protegida, além de atender a questões de segurança,
transformava a parte central da cidade na “Ilha do Aton, Distinto de
Jubileus”, tal como esta era descrita nas estelas de fronteira do ano 5.
A análise conjunta dos aspectos envolvidos na hipótese também mostrou que os motivos para a escolha do local descritos nas
estelas do ano 5, como ser um lugar virgem, que não pertenceu a
qualquer pessoa ou divindade antes do Aton, ou o fato do lugar ter
sido escolhido pelo próprio deus, amplamente religiosos, são de difícil
comprovação mas encontram fundamento no significado simbólico da
escolha feita por Akhenaton.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção de cidades por ordem régia foi bastante comum
ao longo da história egípcia, mas Akhetaton está cercada de particularidades. Sua fundação não pode ser considerada atípica, como pretenderam alguns estudiosos, mas a existência de um projeto inicial, gravado nas estelas de fronteira, e as escavações contínuas no sítio tornam a
cidade fundada por Akhenaton uma das mais ricas em documentação
de todo o Egito.
Uma análise efetuada nos textos das estelas de fronteira tornou possível conhecer não apenas o traçado da cidade, seu fim principal, mas as motivações expostas pelo faraó a respeito da escolha para
o local de instalação, todas elas relacionadas a motivos religiosos. A
documentação mostra, no entanto, que tal decisão foi influenciada
também por fatores geográficos, como a distância semelhante entre
as cidades de maior peso urbano da época, Tebas e Mênfis, e a existência de uma baía protegida, tanto pelo rio quanto pelas montanhas,
que tornaria a cidade segura. Motivos religiosos, no entanto, também
60 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
influenciaram a escolha, tal como a existência de um wadi com a forma
do hieróglifo akhet – o horizonte, que tornava o local de instalação da
cidade uma paisagem sagrada, pois este estava relacionado ao lugar
no qual o mundo dos vivos, o dos mortos e o dos deuses se encontravam, sendo esta uma das funções de Akhetaton.
O traçado da cidade e a distribuição das principais estruturas, assim, têm também um significado simbólico. A cidade não apenas
pode ser vista como uma versão menor de Tebas, ao tomar como base
as distâncias entre os templos, por exemplo, como também faz parte
de um projeto de expansão do culto ao Aton, estando situada no centro dos domínios egípcios na época, que se estendiam para o sul até
a quarta catarata, na Núbia, e para o norte até o rio Eufrates, na Síria.
Volume 2
61
O PAPEL DA RELIGIÃO NA
COLONIZAÇÃO FENÍCIA:
CONSIDERAÇÕES A PARTIR
DO CASO PORTUGUÊS
Francisco B. Gomes 1
Mapa 1 - Localização dos sítios referidos no texto. 1 - Castro dos Ratinhos; 2 - Abul
A; 3 - Castro Marim; 4 - Tavira; 5 - Alcácer do Sal; 6 - Setúbal; 7 - Almaraz; 8 - Lisboa;
9 - Santarém; 10 - Conímbriga; 11 - Santa Olaia. Base cartográfica do
Prof. Dr. Vitor S. Gonçalves.
1 Doutor em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sob
orientação da Profª. Drª Ana Margarida Arruda; Bolseiro da Fundação para a Ciência
e Tecnologia; UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa.
Volume 2
63
I. O papel da religião na colonização fenícia:
algumas considerações prévias
A acumulação de dados produzida pelo incremento da investigação sobre a presença fenícia na Bacia do Mediterrâneo2 e em particular sobre a vertente religiosa e cultual dessa presença3 permite hoje
uma aproximação bastante coerente ao papel desempenhado pelas
estruturas religiosas no estabelecimento da extensa e complexa rede
de colónias e entrepostos comerciais que ligou, nos inícios do I milénio
a.n.e., o Mediterrâneo Central e Ocidental ao Próximo Oriente.
Numa análise global, a principal característica definidora que
podemos atribuir aos contextos de culto fenícios documentados em
distintos pontos do Mediterrâneo4 é a sua marcada polifuncionalidade.
Nesse sentido, perpetuam uma tradição próximo-oriental bem conhecida de associação dos aspectos religiosos a aspectos económicos, e
nomeadamente comerciais 5. Os templos e santuários fenícios aliam,
de facto, ao aspecto metafísico uma importante dimensão económica,
quer ao nível da estruturação das actividades produtivas 6 quer como
agentes de relações comerciais 7.
2 AUBET, María Eugenia. Tiro y las Colonias Fenicias de Occidente. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2009.
3 BELÉN, María & MARÍN CEBALLOS, María Cruz. El fenómeno Orientalizante en
su vertiente religiosa. In: JIMÉNEZ ÁVILA, Javier & CELESTINO PÉREZ, Sebastián (coords.). El Período Orientalizante, Volume I. Madrid: CSIC, 2005, p. 441-466.
4 Idem.
5 Essa tradição conhecerá de resto múltiplos ecos no mundo mediterrâneo antigo,
cf. LIPINSKI, Edward. State and Temple Economy in the Ancient Near East. Leuven:
Departement Oriëntalistiek, 1979; DOMINGUEZ MONEDERO, Adolfo. La religión en
el emporion. Gerión, 19, 2001, p. 231-2.
6 ALVAR, Jaime. Actividad economica y actitud religiosa: Perspectivas para el análisis de la interacción de la religión y la economía. ARYS, 2, 1999, p.19-27; cf. tb., p. ex.,
SÁEZ ROMERO, António. El templo de Melqart de Gadir, hito religioso-económico y
marítimo: consideraciones sobre su relación con la industria conservera. In: MATEOS
CRUZ, Pedro & CELESTINO PÉREZ, Sebastián (eds.). Santuários, oppida y ciudades.
Arquitectura religiosa en el origen y desarrollo urbano del Mediterráneo Occidental.
Madrid: CSIC, 2009, p. 29-77.
7 BELÉN, María. Santuarios fenícios y comercio en Tartessos. In: FERNÁNDEZ URIEL,
Pilar, GONZÁLEZ WAGNER, Carlos & LÓPEZ PARDO, Fernando (eds.). Intercambio y
Comercio Preclassico en el Mediterráneo. Madrid: CEFYP, 2000, p. 293-312.
64 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Simultaneamente, esses espaços religiosos parecem ter actuado, pelo menos num momento inicial da expansão, como representantes do poder central8 e, sob os auspícios das suas divindades tutelares, têm uma autêntica missão diplomática, jogando um papel activo
no estabelecimento de relações sóciopolíticas com as comunidades
indígenas das múltiplas áreas de incidência da colonização fenícia.
Não menos importante, por outro lado, é o seu cariz de pólos
aglutinadores em torno dos quais se articula e expressa a identidade
das comunidades coloniais, cujas solidariedades entre si e com relação
à metrópole oriental se cimentam graças a um discurso religioso partilhado, que evoluirá posteriormente tornando-se um eixo de legitimação ideológica de entidades políticas autónomas emergentes, que se
afirmam sob a égide da divindade políada9.
A estes quatro aspectos fulcrais – aspecto metafísico, económico, político e identitário –, haveria a acrescentar distintas outras facetas de que se revestem estes espaços cultuais e que a investigação
recente tem vindo a enfatizar. Cite-se, por exemplo, o cariz de centro
de acumulação e transmissão de conhecimento dos santuários10 ou as
suas funções de apoio à navegação11, evidências acrescidas da polifuncionalidade desses contextos.
8 AUBET, María Eugenia. Tiro y las Colonias Fenicias de Occidente. Barcelona: Ed.
Bellaterra, 2009, p. 167-173.
9 ARTEAGA, Osvaldo. La liga púnico-gaditana. Aproximación a una visión histórica
occidental, para su contrastación con el desarrollo de la hegemonia cartaginesa en el
mundo Mediterráneo. In: Cartago, Gadir, Ebusus y la influencia púnica en los territorios hispanos. Ibiza: Museo Arqueològic d’Eivissa, 1994, p. 23-57.
10 JIMÉNEZ FLORES, Ana María & MARÍN CEBALLOS, María Cruz. Los santuarios
fenicio-púnicos como centros de sabiduría: el templo de Melqart en Gadir. In: Actas
del III Congreso Español de Antiguo Oriente Próximo, Volume II. Huelva: Diputación
Provincial de Huelva, 2004, p. 215-240; SOMMER, Michael. Shaping Mediterranean
economy and trade. Phoenician cultural identities in the Iron Age. In: HALES, Shelley
e HODOS, Tamar (eds.). Material Culture and Social Identities in the Ancient World.
Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 114-137.
11 RUIZ DE ARBULO, Joaquín. Santuarios y comercio marítimo en la península Ibérica durante la época arcaica. Quaderns de Prehistoria i Arqueología de Castelló, 18,
1997, p. 517-536; GÓMEZ BELLARD, Carlos & VIDAL GONZÁLEZ, Pablo. Las cuevas-santuario Fenício-Púnicas y la navegación en el Mediterráneo. In: FERNÁNDEZ GÓMEZ, Jordi & COSTA RIBAS, Benjamí (coord.). Santuarios fenício-púnicos en Iberia y su
influencia en los cultos indígenas. Ibiza: Museo Arqueológico de Ibiza y Formentera,
2000, p. 57-102.
Volume 2
65
Há contudo, para além da polifuncionalidade, uma outra característica prevalente dos contextos de culto orientais e «orientalizantes», em particular dos que se têm identificado no Sul da Península
Ibérica que julgo não ter sido devidamente valorizada e que merece,
de futuro, uma análise mais desenvolvida.
Sabemos hoje – e neste texto voltaremos a afirmá-lo – que os
santuários se posicionaram com muita frequência no contexto da expansão fenícia na primeira vaga dos contactos entre grupos populacionais cultural e etnicamente distintos – grupos orientais, por um lado,
e autóctones, por outro – e que, em muitas sitações, agiram de forma
activa, como se disse, no estabelecimento de relações de ordem social
e política com as comunidades locais, e em particular com os grupos
sociais de elite dentro das mesmas.
Neste sentido, estes espaços de culto não poderão ter deixado
de ser objecto de múltiplas leituras. Por um lado, evidentemente, têm
um significado concreto e específico para os agentes de origem oriental que os edificam; por outro, contudo, são alvo de leituras próprias
pela(s) comunidade(s) local(is) que os terão seguramente conhecido e
frequentado e que, inevitavelmente, terão procedido à sua apropriação e assimilação no contexto de discursos sóciopolíticos próprios do
contexto local. Nesse sentido, haveria que acrescentar à polifuncionalidade destes santuários uma efectiva polissemia, uma diversidade de
sentidos e leituras próprio de espaços religiosos inscritos num contexto de intensa interacção cultural.
Desta reflexão resulta, por outro lado, que a manutenção de
classificações dicotómicas restritivas, como as que estabelecem oposições entre feitoria/santuário ou palácio/santuário, parece pouco pertinente. À luz do que ficou dito, parece seguro afirmar que o significados
destes contextos não é uma característica intrínseca sua, sendo pelo
contrário fortemente condicionados pela forma como são percebidos
e conceptualizados por uma dada comunidade que os visita, que neles
conflui e que os inscreve na sua cosmovisão.
66 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
II. Os inícios do I milénio a.C. no Sul do território
português: contacto, interacção e transformação
cultural
Também o território meridional português se viu integrado, a
partir pelo menos do século VIII a.C., na ampla rede comercial e colonial fenícia a que antes aludi. A investigação arqueológica desenvolvida
ao longo das últimas décadas tem, com efeito, permitido documentar
um intenso influxo mediterrâneo, oriental12 que, contudo, atinge esse
território de forma desigual. O panorama que tem vindo a revelar-se
reveste-se, com efeito, de uma considerável complexidade, quer no
que diz respeito aos ritmos quer aos modos de penetração e assimilação dos estímulos exógenos13.
Por um lado, documentou-se uma presença oriental precoce
no centro da fachada atlântica peninsular14, precedendo a consolidação ao longo dos séculos VIII e, sobretudo, VII a.C. de uma rede de
povoados, muitos dos quais com origens autóctones bem atestadas,
que denotam contudo na sua cultura material e nos seus rasgos tecnológicos, construtivos, económicos e, mais latamente, culturais uma
marcada influência mediterrânea15.
Estes partilham, além disso, um padrão de implantação territorial específico, ocupando localizações proeminentes controlando a
foz e os estuários dos principais rios – Castro Marim no rio Guadiana;
Tavira no Gilão; Alcácer do Sal e Setúbal no Sado; Almaraz, Lisboa e
12 ARRUDA, Ana Margarida. Los Fenicios en Portugal. Fenicios y mundo indígena en
el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI a.C.). Barcelona: Universidad Pompeu Fabra,
1999-2000.
13 ARRUDA, A. M., 1999-2000, op. cit; Id. Orientalizante e Pós-Orientalizante no Sudoeste Peninsular. Geografias e Cronologias. In: JIMÉNEZ ÁVILA, Javier & CELESTINO
PÉREZ, Sebastián (coords.). El Período Orientalizante, Volume I, pp. 277-304. Madrid:
CSIC, 2005, p. 277-304; Id. O Iº Milénio a.n.e. no Centro e no Sul de Portugal: leituras
possíveis no início de um novo século. O Arqueólogo Português, Série IV: 23, 2005, p.
9-156; Id.. Indígenas, fenicios y tartésicos en el occidente peninsular: mucha gente,
poca tierra. In: ÁLVAREZ MARTÍ-AGUILAR, Manuel (ed.). Fenicios en Tartesos: nuevas
perspectivas. Oxford: Archaeopress, 2011, p. 151-160.
14 ARRUDA, A. M. 2005a, op. cit, p. 282-283.
15 ARRUDA, A. M., 1999-2000, op. cit.
Volume 2
67
Santarém no Tejo; ou Conímbriga, no Mondego – que terão constituído as principais vias de comunicação e de penetração do comércio
mediterrâneo16.
A par com a consolidação desta rede de povoamento «Orientalizante» documentam-se também neste momento a implantação dos
dois únicos estabelecimentos fundados ex novo conhecidos, únicas evidências directas de uma instalação propriamente colonial e, ainda assim, de tipo muito particular. Por um lado, no estuário do rio Sado, entre os já citados povoados de Alcácer do Sal e Setúbal, implanta-se em
meados do século VII a.C. o pequeno edifício de Abul A, edificado numa
pequena península elevada controlando o rio e com boas condições
portuárias17. Existem abundantes argumentos a favor de uma interpretação religiosa deste edifício18, pelo que a ele retornaremos adiante.
A outra instalação de provável carácter colonial situa-se já
no Centro de Portugal, no estuário do Mondego: o povoado de Santa Olaia19, fundado provavelmente na segunda metade do século
VII a.C. terá sido um pequeno núcleo fortificado com uma vocação
fortemente industrial, materializada na presença de uma bateria de
fornos de redução de ferro20; deve, por outro lado, relacionar-se com
as evidências de presenças «orientalizantes» em diversos núcleos do
Baixo Mondego21.
16 cf. ARRUDA, A. M., 1999-2000, op. cit; ARRUDA, A. M., 2005b, op. cit., com bibliografia completa.
17 MAYET, Françoise & SILVA, Carlos Tavares da. O Santuário de Abul B, uma presença púnica no Baixo Sado? In: Os Púnicos no Extremo Ocidente. Lisboa: Universidade
Aberta, 2001, p. 173-195.
18 ARRUDA, A. M., 1999-2000, op. cit., p. 91; ARRUDA, Ana Margarida & CELESTINO PÉREZ, Sebastián. Arquitectura Religiosa en Tartessos. In: MATEOS CRUZ, Pedro
& CELESTINO PÉREZ, Sebastián (eds.). Santuários, oppida y ciudades. Arquitectura
religiosa en el origen y desarrollo urbano del Mediterráneo Occidental. Madrid: CSIC,
2009, p. 33.
19 ROCHA, António Santos. Memórias e Explorações Arqueológicas, Vol. III. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1975.; PEREIRA, Isabel. Santa Olaia et le commerce
atlantique. In: Itinéraires Lusitaniens. Paris: Diffusion du Boccard, 1997, p. 209-253;
ARRUDA, A. M., 1999-2000, op. cit., p. 227-240.
20 PEREIRA, I., 1997, op. cit.
21 PEREIRA, I., 1997, op. cit.; ARRUDA, A. M., 1999-2000, op. cit., p. 252-256; NEVES,
Sílvia. O Crasto de Tavarede (Figueira da Foz) no quadro das problemáticas da I Idade do
Ferro no Baixo Mondego. Dissertação de Mestrado em Arqueologia e Território apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Edição policopiada, 2013. .
68 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
O facto de apenas contarmos com estes dois pequenos núcleos de provável origem propriamente colonial levanta a questão da
modalidade que assumiu a presença oriental nos seus primeiros momentos, que como já foi mencionado são anteriores a estas fundações,
remontando pelo menos à centúria anterior. Essa presença é, contudo,
inegável, e traduz-se em rápidas alterações quer ao nível da cultura
material, como da tecnologia, das formas de organização do espaço
doméstico ou nos próprios códigos de representação social22. A hipótese de uma instalação de populações orientais no interior dos povoados
indígenas23, bastante provável de resto, poderia ajudar a explicar as rápidas transformações que se detectam no registo arqueológico dessas
comunidades, demonstrando por outro lado a complexidade do processo de interacção cultural e a capacidade de adaptação da interface
colonial fenícia às condições sóciopolíticas locais.
Se a situação no litoral é complexa, detectando-se ritmos
e modalidades distintos de contacto entre as comunidades locais
e os influxos mediterrâneos, a documentação recente de uma penetração muito precoce de elementos orientais para o interior do
território meridional português24, situada com base na cronologia
radiométrica dos finais do século IX a.C.25 veio tornar ainda mais
complexo este panorama.
22 ARRUDA, A. M., 1999-2000, op. cit; Id. Orientalizante e Pós-Orientalizante no Sudoeste Peninsular. Geografias e Cronologias. In: JIMÉNEZ ÁVILA, Javier & CELESTINO
PÉREZ, Sebastián (coords.). El Período Orientalizante, Volume I, pp. 277-304. Madrid:
CSIC, 2005, p. 277-304; Id. O Iº Milénio a.n.e. no Centro e no Sul de Portugal: leituras
possíveis no início de um novo século. O Arqueólogo Português, Série IV: 23, 2005,
p. 9-156
23 ARRUDA, Ana Margarida. Indígenas, fenicios y tartésicos en el occidente peninsular: mucha gente, poca tierra. In: ÁLVAREZ MARTÍ-AGUILAR, Manuel (ed.). Fenicios
en Tartesos: nuevas perspectivas. Oxford: Archaeopress, 2011, , p. 151.
24 BERROCAL-RANGEL, Luis e SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana,
2004-2007. Lisboa: MNA, 2010; cf. tb. MATALOTO, Rui. Meio Mundo: o início da Idade do Ferro no cume da Serra d’Ossa. Revista Portuguesa de Arqueologia, 7:2, 2004,
p. 139-173.
25 SOARES, A. M. & MARTINS, J. M., 2010. As cronologias de base radiométrica têm
oferecido datações sistematicamente mais recuadas para a Idade do Ferro do Sul
Peninsular que as que se baseiam na seriação tipológica de materiais arqueológicos
– cf. ARRUDA, A. M., 2005, op. cit.; esta datação radiométrica de finais do século IX
a.C. corresponde, assim, ao mesmo horizonte cronológico das primeiras presenças
documentadas no litoral, já referidas.
Volume 2
69
Essa primeira penetração oriental, materializada pela construção de um edifício de culto de tipo claramente oriental no interior do
povoado indígena do Castro dos Ratinhos (Moura, Beja)26, que adiante
se comentará em maior detalhe, parece por outro lado ter respondido
a um contexto sóciopolítico muito particular, como se verá, e que não
conhece continuidade, sendo objecto de uma rejeição aparentemente
violenta que antecede o colapso generalizado das fórmulas sociais, políticas e territoriais próprias do Bronze Final do interior27.
Com efeito, e como se propôs recentemente28, a dificuldade
de manter uma rota terrestre que permitisse um contacto sistemático entre as comunidades do interior alentejano e as redes comerciais
mediterrâneas terá feito com que estes contactos precoces tenham
assumido um carácter eminentemente episódico. O comércio fenício
parece, por outro lado, ter desiquilibrado o sistema regional em favor
das comunidades litorais, que detinham um acesso muito mais facilitado a novos produtos socialmente valorizados mas também a novas
tecnologias, facto que parece ter gerado, ou pelo menos agudizado,
contradições sociais insanáveis que levaram a um esgotamento abrupto do modelo sóciopolítico das comunidades autóctones do interior29.
26 BERROCAL-RANGEL, L. & SILVA, A. C., 2004, op. cit.; PRADOS MARTÍNEZ, Fernando. La Arquitectura sagrada: Un santuario del siglo IX A.C. In: BERROCAL-RANGEL,
Luis & SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura).
Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana, 2004-2007, pp. 259-276. Lisboa: MNA, 2010, p. 259-276.
27 MATALOTO, Rui. Os Senhores e as Serras: o final da Idade do Bronze no Alentejo
Central. In: JIMÉNEZ ÁVILA, Javier (ed.). Sidereum Ana II. El río Guadiana en el Bronce
Final, pp. 185-213. Madrid: CSIC, 2012, p. 185-213; GOMES, Francisco B.. The West
writes back: Cultural contact and identity constructs in southern Portuguese Late
Bronze Age and Early Iron Age. In: The Mediterranean Mirror. Cultural Contacts in
the Mediterranean Sea between 1200 and 750 B.C.. Mainz: Römische-Germanisches
Zentralmuseum Mainz, no prelo, p. 346-362.
28 GOMES, F., op. cit..
29 GOMES, Francisco B.. The West writes back: Cultural contact and identity constructs in southern Portuguese Late Bronze Age and Early Iron Age. In: The Mediterranean Mirror. Cultural Contacts in the Mediterranean Sea between 1200 and 750 B.C..
Mainz: Römische-Germanisches Zentralmuseum Mainz, no prelo, p. 346-362.
70 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
III. Os espaços de culto na primeira fase da presença
fenícia no Sul de Portugal: os sítios e os dados
Como atrás ficou dito, dispomos de uma considerável documentação – quer extraída das fontes greco-latinas quer, sobretudo, recuperada através da investigação arqueológica – sobre a presença de
espaços religiosos, templos e santuários, na primeira linha da abertura
de novas vias para o comércio e a colonização fenícias e do estabelecimento de relações sócio-políticas com as comunidades locais.
Para nos atermos aqui ao caso das costas atlânticas, recordemos o testemunho das fontes clássicas que nos informam que as mais
antigas fundações fenícias no Extremo Ocidente – que, na perspectiva
das mencionadas fontes, seriam Gadir (Cádiz)30 e Lixus (Larache, Marrocos)31 – se inauguraram com a erecção dos seus respectivos templos,
facto que assume grande relevância, especialmente quando nos últimos anos a Arqueologia tem identificado também na Baixa Andaluzia,
e em particular na bacia do Baixo Guadalquivir, uma «rede» de instalações de carácter sacro que parecem ter estruturado densas redes de
contacto e de comércio32, facto que ecoa de resto o padrão de compor30 cf. GARCÍA Y BELLIDO, António. Hercules Gaditanus. Archivo Español de Arqueología, 36, 1963, p. 70-153.
31 cf. LÓPEZ PARDO, Fernando. Los enclaves fenicios en el África noroccidental: del
modelo de las escalas náuticas al de colonización con implicaciones productivas. Gerión, 14, 1996, p. 251-288; Id. Los fenicios en la costa atlántica africana: balance y
proyectos. In: COSTA RIBAS, Benjamín & FERNÁNDEZ GÓMEZ, Jordi (eds.). La colonización fenicia de Occidente: estado de la investigación en los inicios del siglo XXI.
Ibiza: Museo Arqueológico de Ibiza y Formentera, 2000, p. 19-48.
32 BELÉN, María & ESCACENA CARRASCO, Jose Luis. Testimonios religiosos de la
presencia Fenícia en Andalucía Occidental. SPAL, 6, 1997, p. 103-131.; BELÉN, María. Itinerarios arqueológicos por la geografía sagrada del Extremo Occidente. In:
FERNÁNDEZ GÓMEZ, J. & COSTA RIBAS, Benjamí (coord.). Santuarios fenício-púnicos en Iberia y su influencia en los cultos indígenas. Ibiza: Museo Arqueológico de
Ibiza y Formentera, 2000, p. 57-102; BELÉN, María. Santuarios fenícios y comercio
en Tartessos. In: FERNÁNDEZ URIEL, Pilar, GONZÁLEZ WAGNER, Carlos & LÓPEZ
PARDO, Fernando (eds.). Intercambio y Comercio Preclassico en el Mediterráneo.
Madrid: CEFYP, 2000, p. 293-312; BELÉN, María. Arquitectura Religiosa Orientalizante en el Bajo Guadalquivir. In: RUIZ MATA, Diego & CELESTINO PÉREZ, Sebastián
(coords.). Arquitectura Oriental y Orientalizante en la Peninsula Iberica. Madrid:
CSIC, 2001, p. 1-16.
Volume 2
71
tamento dos fenícios um pouco por todo o Mediterrâneo33.
Também no território português estudos recentes34 que permitiram compilar a informação disponível sobre os contextos de culto
na Idade do Ferro demonstraram a sua importância, tanto no horizonte histórico de interacção cultural que esteve na génese da Idade do
Ferro como no desenvolvimento histórico posterior das comunidades
locais35. A análise que se propõe nas páginas que se seguem centrar-se-á, contudo, nos exemplos mais antigos, analisando o papel desses
contextos religiosos na conformação da rede comercial e colonial fenícia no espaço analisado.
III.1 O papel dos santuários na abertura de novas vias
comerciais: o caso do Castro dos Ratinhos (Moura, Beja)
Paradoxalmente, o contexto de culto de tipo oriental mais antigo conhecido, de momento, no Sul do território actualmente português situa-se não no litoral, como poderia esperar-se, mas, como já se
avançou, no interior alentejano. O recentemente escavado e publicado
santuário do Castro dos Ratinhos (Moura, Beja)36 constitui a vários títulos um testemunho excepcional e difícil de interpretar.
O sítio, implantado numa colina sobranceira ao curso do rio
Guadiana em posição estratégica privilegiada, tanto do ponto de vis33 GROTTANELLI, Cristiano. Santuari e divinità delle colonie d’Occidente. In: La religione fenicia: matrici orientali e sviluppi occidentali. Roma: CNR, 1981, p. 109-133;
BELÉN, María & MARÍN CEBALLOS, María Cruz. El fenómeno Orientalizante en su vertiente religiosa. In: JIMÉNEZ ÁVILA, Javier & CELESTINO PÉREZ, Sebastián (coords.). El
Período Orientalizante, Volume I. Madrid: CSIC, 2005, p. 441-466.
34 ARRUDA, Ana Margarida & CELESTINO PÉREZ, Sebastián. Arquitectura Religiosa
en Tartessos. In: MATEOS CRUZ, Pedro & CELESTINO PÉREZ, Sebastián (eds.). Santuários, oppida y ciudades. Arquitectura religiosa en el origen y desarrollo urbano del
Mediterráneo Occidental. Madrid: CSIC, 2009, p. 29-77; GOMES, Francisco B.. Aspectos do sagrado na colonização fenícia. Lisboa: UNIARQ, 2012
35 GOMES, F., 2012, op. cit. p. 141-144.
36 BERROCAL-RANGEL, L. & SILVA, A. C., 2004, op. cit.; PRADOS MARTÍNEZ, Fernando. La Arquitectura sagrada: Un santuario del siglo IX A.C. In: BERROCAL-RANGEL,
Luis & SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura).
Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana, 2004-2007, pp. 259-276. Lisboa: MNA, 2010.
72 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
ta da defensabilidade como do controlo visual do seu entorno e, em
particular, da via fluvial, é desde há muito conhecido da investigação
arqueológica tendo contudo permanecido um “ilustre desconhecido”
até aos inícios do presente século quando foi lançado um projecto sistemático de intervenção relacionado com a construção da vizinha barragem do Alqueva37.
Mapa 2: Edifício de culto de tipo oriental do Castro dos Ratinhos
As escavações ali realizadas – cujos resultados foram, deve dizer-se, exemplarmente publicados – permitiram caracterizar com considerável detalhe a sequência de ocupação do sítio durante o Bronze
37 BERROCAL-RANGEL, L. & SILVA, A. C., 2010, op. cit, p. 19-20.
Volume 2
73
Final, cujo início pôde datar-se de um momento incerto no século XIII
a.C. 38 prolongando-se até aos momentos terminais dessa fase histórica, já no século VIII a.C.39.
Particularmente interessantes são os resultados das intervenções realizadas na área mais elevada do povoado, delimitada do
restante espaço habitado por um sistema murário próprio e que poderá ter constituído uma espécie de “acrópole”40, na qual se identificou
uma sequência de ocupação materializada na presença de conjuntos
numericamente reduzidos de espaços habitacionais de planta elíptica,
de tipo cabana41.
A análise desta mesma área permitiu documentar um processo de reestruturação espacial, cuja cronologia pôde estabelecer-se
com bases radiométricas no último quartel do século IX a.C.42. Nesse momento avançado da vida do povoado, grosso modo coincidente
com o primeiro influxo comercial e colonial fenício no litoral, verifica-se com efeito a construção no interior desta acrópole de um edifício
cujas características construtivas e arquitectónicas escapam, por completo, às tradições indígenas, de resto bem documentadas no próprio
sítio em momentos anteriores.
Esse edifício, que vem sobrepor-se à última das cabanas anteriormente mencionadas, relaciona-se, pelo contrário, com modelos
arquitectónicos de clara filiação mediterrânea. A sua técnica construtiva, com a realização de alicerces em alvenaria bem calibrada assentes
directamente no substrato geológico sobre os quais se ergueram as paredes, de taipa, é claramente forânea, encontrando os seus melhores
paralelos em contextos orientais e «orientalizantes»43.
38 Idem, p. 429.
39 SOARES, António Monge e MARTINS, José. A cronologia absoluta para o Castro
dos Ratinhos: Datas de Radiocarbono. In: BERROCAL-RANGEL, Luis e SILVA, António
Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana, 2004-2007. Lisboa: MNA, 2010, p. 409-414.
40 BERROCAL-RANGEL, L. & SILVA, A. C., 2004, op. cit.; PRADOS MARTÍNEZ, Fernando. La Arquitectura sagrada: Un santuario del siglo IX A.C. In: BERROCAL-RANGEL,
Luis & SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura).
Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana, 2004-2007, pp. 259-276. Lisboa: MNA, 2010, 244-258.
41 Idem, p. 431-432.
42 SOARES, A. M. & MARTINS, J. M., 2010.
43 BERROCAL-RANGEL, Luis e SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Bar-
74 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Designado pelos responsáveis da escavação como MN-23, o
conjunto edificado apresenta uma planta complexa, em L, com 10,92
m de comprimento máximo por 7,80 m de largura máxima, medidas
que traduzem a utilização de um módulo tipificado bem definido, utilizando como unidade de referência o chamado «côvado fenício» ou
«de Ezequiel» (0,52 m); assim, o edifício corresponderia a um módulo
de 21 x 15 côvados. Também os muretes de sustentação apresentam
uma espessura regular de 0,52 m, isto é, um côvado. Este facto implica
a existência de especialistas no local, responsáveis pela implementação do plano arquitectónico, reforçando a imagem de um contacto directo com o mundo «orientalizante» do litoral e, para além dele, com
o Próximo Oriente44.
O corpo principal do edifício é composto por dois compartimentos, designados N3 (de maiores dimensões) e M3 (o compartimento mais interior, de menores dimensões), que compõem um volume rectangular organizado de forma simétrica em torno a um eixo
Este-Oeste; o acesso a este espaço encontrar-se-ia, pelo menos numa
primeira fase, igualmente centrado com este eixo, fazendo-se pela fachada oriental, isto é, pelo lado Nascente do edifício. O espaço interno
encontrava-se pavimentado com argila vermelha, utilizada também
como reboco nas paredes. Noutras zonas identificaram-se também
áreas pavimentadas com lajes de xisto. Estão também presentes, por
outro lado, bancos adossados às paredes, nomeadamente no ângulo
Noroeste do compartimento N3 e no compartimento M3, igualmente
revestidos com reboco de argila vermelha45.
O eixo longitudinal deste espaço encontra-se bem assinalado
por uma sequência de equipamentos de claro significado cultual. Em
primeiro lugar, no extremo oriental do edifício, exumou-se uma laje de
xisto de configuração alongada e extremos afilados com uma das faces
profusamente trabalhada46, tendo-se identificado igualmente o alvéoragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana,
2004-2007. Lisboa: MNA, 2010, p. 188-192.
44 PRADOS MARTÍNEZ, Fernando. La Arquitectura sagrada: Un santuario del siglo IX
A.C. In: BERROCAL-RANGEL, Luis & SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana,
2004-2007, pp. 259-276. Lisboa: MNA, 2010, p. 267 e figura 128.
45 BERROCAL-RANGEL, L. & SILVA, A. C., 2010, op. cit, p. 188-192.
46 Idem, p. 319-320 e figura 148.
Volume 2
75
lo escavado na rocha onde esta peça se terá implantado, na vertical,
ainda com as pedras utilizadas como calços in situ47. Este facto levou
os responsáveis do estudo do sítio a propor uma natureza betílica para
este elemento, em relação também com uma determinada leitura do
espaço que adiante terei oportunidade de comentar48.
Mais adiante, sempre neste mesmo eixo, identificou-se uma
estrutura negativa aberta na rocha de base coberta por uma laje pétrea
rebaixada no seu centro; este contexto foi interpretado como servindo
de sustentáculo a um poste de madeira de 20-25 cm de diâmetro, ao
estilo das asherim dos templos próximo-orientais, elemento simbólico
relacionável com a «árvore da vida» e com o complexo religioso da
fertilidade/fecundidade49. Em associação com esta estrutura negativa
exumou-se ainda um conjunto de sete botões de ouro50. Finalmente,
sempre no eixo longitudinal deste espaço, identificou-se ainda uma estrutura de combustão circular de execução bastante cuidada51.
Igualmente centrado com este eixo encontra-se o acesso ao
compartimento interior M3, mais reservado, deste complexo, ligeiramente rebaixado em relação ao piso do compartimento N3. No interior deste, como já foi referido, identificaram-se bancos corridos adossados às paredes bem como uma estrutura de adobes com marcas de
combustão, talvez interpretável como «altar»52.
F. Prados Martínez, no detalhado estudo que realiza sobre
este edifício, enfatiza a semelhança do seu plano arquitectónico com
47 PRADOS MARTÍNEZ, F., 2010,op. cit, p. 273-274.
48 PRADOS MARTÍNEZ, Fernando. La Arquitectura sagrada: Un santuario del siglo IX
A.C. In: BERROCAL-RANGEL, Luis & SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana,
2004-2007, pp. 259-276. Lisboa: MNA, 2010, p. 267 e figura 128.
49 Ibidem. Cf. tb. OGGIANO, Ida. Dal terreno al divino. Archeologia del culto nella
Palestina del primo millenio. Roma: Carocci, 2005, p. 234.
50 BERROCAL-RANGEL, Luis e SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana,
2004-2007. Lisboa: MNA, 2010, p. 321-326.
51 BERROCAL-RANGEL, L. & SILVA, A. C., 2010, op. cit, p. 191.
52 PRADOS MARTÍNEZ, Fernando. La Arquitectura sagrada: Un santuario del siglo IX
A.C. In: BERROCAL-RANGEL, Luis & SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana,
2004-2007, pp. 259-276. Lisboa: MNA, 2010, p. 269.
76 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
os templos próximo-orientais de tipo Langbau53 ou «siríaco»54 e sugere que, apesar de as evidências conservadas revelarem uma divisão
do espaço interno em apenas dois compartimentos, este conjunto
arquitectónico poderia de facto estar dividido em três, correspondendo aos três compartimentos daqueles tipos templares orientais
– ulam, hekal e debir (grosso modo equivalentes aos clássicos naos,
antecella e cella)55.
Em momento posterior à construção deste volume principal,
edificou-se um outro compartimento, designado M2, adossado ao corpo principal do edifício pelo seu lado Sul. Este espaço, que não apresenta qualquer acesso pelo menos ao nível dos alicerces conservados,
apresenta uma configuração rectangular com dimensões igualmente
regulares (2,08 x 3,12 m, isto é, 4 x 6 côvados). Embora esta estrutura
se encontre bastante mal conservada, sugeriu-se que poderia corresponder a um espaço com alguma projecção em altura, que visaria dotar o edifício de um ponto elevado para efeitos rituais, mas também
plausivelmente, de domínio visual56.
A consideração geral dos dados disponíveis, nomeadamente no
que diz respeito à tipologia arquitectónica, às características e equipamentos construtivos, à configuração do espaço e às próprias evidências
contextuais de práticas rituais permitem sem dúvidas de maior interpretar este edifício como santuário57. A presença de um edifício desta
natureza no interior de um povoado de características eminentemente
indígenas cuja matriz cultural permanece, note-se, essencialmente inalterada causa estranheza, sobretudo pela sua antiguidade, já comentada.
Deve, por outro lado, assinalar-se que a edificação deste santuário é acompanhada pela construção, também no interior da área da
“acrópole”, de duas cabanas de planta perfeitamente circular, na qual
se empregam técnicas construtivas e unidades de medida igualmente
53 WRIGHT, George. Pre-Israelite temples in the land of Canaan. Palestine Exploration Quarterly, 103, 1971, p. 17-32.
54 WRIGHT, George. Ancient buildings in South Syria and Palestine. Leiden: E.J. Brill.
1985.
55 PRADOS MARTÍNEZ, F., 2010, op. cit, p. 269.
56 Ibidem.
57 PRADOS MARTÍNEZ, F., 2010 op. cit; BERROCAL-RANGEL, L. & SILVA, A. C., 2010,
op. cit, p. 426-428; GOMES, Francisco B.. Aspectos do sagrado na colonização fenícia.
Lisboa: UNIARQ, 2012, p. 58-59.
Volume 2
77
consentâneas com um know-how de matriz oriental58, ainda que evidentemente ajustada a uma tradição local de arquitecturas (sub-)circulares.
Por ventura igualmente interessante para a compreensão
do processo histórico que subjaz a esta precoce presença oriental
no interior do território português é, por outro lado, o contexto em
que se verificou o fim da vida deste santuário. As intervenções arqueológicas puderam identificar evidências de convulsões mais ou
menos violentas datáveis de meados do século VIII a.C., traduzidas
em vestígios de incêndios que terão afectado sectores importantes
do sistema defensivo do sítio59.
Após esse momento tem início a derradeira fase de ocupação
(antiga) do Castro dos Ratinhos em que o edifício MN-23, parcialmente
destruído, sofre reparações pontuais que denunciam, contudo, um regresso às técnicas construtivas locais. Funcionalmente, contudo, o edifício parece desempenhar nesta fase sobretudo funções produtivas e/
ou habitacionais, revelando uma desfuncionalização com respeito ao
seu papel religioso anterior60. A ocupação desta fase parece, de resto,
ter sido relativamente residual, tendo-se documentado o abandono
generalizado do povoado ainda nos finais do século VIII a.C..
A forma que assume a desvinculação deste espaço das funções para que fora construído e o seu eventual abandono parecem
assim sugerir um processo histórico de primeiro contacto abortado. A
implantação deste contexto de culto de clara matriz oriental responderia, de alguma forma, à necessidade de uma testa-de-ponte para
a abertura de uma rota de contacto e influência que, contudo, parece não ter sido bem sucedida. O episódio de violência que antecede
a desvinculação deste edifício das suas funções religiosas é, de resto,
muito sugestivo, e poderia bem interpretar-se como um episódio de
58 BERROCAL-RANGEL, Luis e SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana,
2004-2007. Lisboa: MNA, 2010, p. 247-249.
59 PRADOS MARTÍNEZ, Fernando. La Arquitectura sagrada: Un santuario del siglo IX
A.C. In: BERROCAL-RANGEL, Luis & SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana,
2004-2007, pp. 259-276. Lisboa: MNA, 2010, p. 274.
60 BERROCAL-RANGEL, Luis e SILVA, António Carlos. O Castro dos Ratinhos (Barragem do Alqueva, Moura). Escavações num povoado proto-histórico do Guadiana,
2004-2007. Lisboa: MNA, 2010, p. 157
78 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
sublevação social contra um influxo exógeno, justificado sobretudo por
uma eventual conotação deste com um grupo social dominante.
A identificação deste edifício de culto veio alterar de forma
substancial o quadro dos conhecimentos disponíveis sobre o processo
de penetração de elementos orientais para o interior do Sudoeste da
Península Ibérica. A sua interpretação histórica, contudo, e pela sua
própria excepcionalidade, permanece aberta a discussão, podendo-se
contudo avançar com algumas hipóteses de leitura.
Desde logo importa sublinhar que, com a descoberta deste
santuário, parece ficar demonstrado sem margem para dúvidas que a
abertura de novas vias de comércio e o estabelecimento de relações
sócio-económicas com as comunidades autóctones andam estreitamente ligados ao aspecto religioso, funcionando os santuários como
testas-de-ponte e pólos estruturadores de redes de contacto, influência
e comércio, algo que se vem propondo a partir do registo arqueológico
de outras áreas peninsulares, nomeadamente do Baixo Guadalquivir61.
Outro dado fundamental prende-se com a datação deste edifício, que o coloca em (quase) perfeita sincronia com as mais antigas
evidências da presença oriental no litoral62. Se a essa precocidade somarmos o impacto cultural oriental praticamente nulo documentado
no sítio, torna-se especialmente difícil interpretar o quadro histórico
que terá ditado este ensaio de penetração e fixação no interior.
Considero, como tive já oportunidade de expôr anteriormen63
te (Gomes, 2012: 59; no prelo), que a edificação do santuário do Cas61 BELÉN, María. Itinerarios arqueológicos por la geografía sagrada del Extremo
Occidente. In: FERNÁNDEZ GÓMEZ, J. & COSTA RIBAS, Benjamí (coord.). Santuarios
fenício-púnicos en Iberia y su influencia en los cultos indígenas. Ibiza: Museo Arqueológico de Ibiza y Formentera, 2000, p. 57-102.; BELÉN, María. Santuarios fenícios y
comercio en Tartessos. In: FERNÁNDEZ URIEL, Pilar, GONZÁLEZ WAGNER, Carlos &
LÓPEZ PARDO, Fernando (eds.). Intercambio y Comercio Preclassico en el Mediterráneo. Madrid: CEFYP, 2000, p. 293-312.
62 ARRUDA, Ana Margarida. Orientalizante e Pós-Orientalizante no Sudoeste Peninsular. Geografias e Cronologias. In: JIMÉNEZ ÁVILA, Javier & CELESTINO PÉREZ,
Sebastián (coords.). El Período Orientalizante, Volume I, pp. 277-304. Madrid: CSIC,
2005, p. 277-304.
63 GOMES, Francisco B.. The West writes back: Cultural contact and identity constructs in southern Portuguese Late Bronze Age and Early Iron Age. In: The Mediterranean Mirror. Cultural Contacts in the Mediterranean Sea between 1200 and 750 B.C..
Mainz: Römische-Germanisches Zentralmuseum Mainz, no prelo, p. 59.
Volume 2
79
tro dos Ratinhos pode explicar-se de forma mais satisfatória a partir da
óptica da comunidade local; tal como foi já sugerido pelos responsáveis do estudo do sítio, creio que pode pensar-se que a presença oriental poderá ter sido de alguma forma solicitada pelas elites locais, o que
explicaria desde logo a implantação privilegiada do santuário, no interior de um espaço claramente diferenciado no contexto do povoado.
Tal situação justificar-se-ia plenamente pela necessidade permanente dessas elites de aceder a novos vectores de afirmação económica,
social e política, bem como pelos ecos da chegada dos primeiros comerciantes e colonos orientais que terá tido sem dúvida repercussões
nas redes sócio-políticas regionais, justificando a aposta das elites do
interior num acesso controlado aos fluxos comerciais mediterrâneos.
Em todo o caso, independentemente dos condicionalismos
que possam ter gerado a implantação deste santuário, o influxo oriental que este pretendia materializar não parece ter colhido no meio indígena. A própria precocidade deste episódio, anterior à consolidação
de uma rede de estabelecimentos orientalizantes, a incapacidade dos
grupos do interior de gerar bens com procura no Mediterrâneo ou o
relativo isolamento geográfico do sítio (na perspectiva das rotas comerciais, de índole marítime e estuarina) poderão ter sido alguns dos
factores que ditaram a imobilização da projectada rota comercial; em
simultâneo, a plausível tentativa das elites locais de impor um modelo
social de recorte hierárquico mais acentuado poderá ter gerado tensões irresolúveis, culminando num episódio de violência que se saldou
na definitiva rejeição do elemento oriental e, eventualmente, no colapso da formação social autóctone.
III.2 Os espaços de culto na consolidação da interface comercial
fenícia: o exemplo de Abul A (Alcácer do Sal, Setúbal)
A área do Baixo Sado, considerada já como «...un espacio colonial fenicio por excelencia...»64, constitui um exemplo especialmente
interessante de interacção cultural durante os inícios da Idade do Ferro. Neste território, estruturado já durante o Bronze Final a partir do
64 ARRUDA, A. M., 1999-2000, p. 97.
80 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
importante pólo que subjaz ao castelo e à cidade de Alcácer do Sal65,
o influxo comercial e colonial fenício fez-se sentir em momentos que,
permanecendo imprecisos, podem considerar-se como relativamente
antigos, resultando numa progressiva reestruturação do território, nomeadamente com a fundação de um núcleo habitacional situado sob a
actual cidade de Setúbal66, em momento que caberia situar ainda dentro de um horizonte final da Idade do Bronze, já em transição para a
Idade do Ferro67, e cuja posição, controlando a barra do Sado, sugere
um interesse no controlo directo da navegação no estuário daquele rio.
Desconhecemos, infelizmente, a natureza específica que possa ter assumido a primeira presença fenícia no Sado; não obstante, o
efectivo – e rápido – impacto oriental denotado pela cultura material
não permite pensar numa frequentação simplesmente esporádica da
zona por marinheiros e comerciantes fenícios. Não sendo fácil de provar com os dados actualmente disponíveis, a proposta de que possa
ter-se verificado a instalação de populações de origem oriental nos
próprios povoados autóctones68 parece especialmente apelativa pelo
potencial explicativo que encerra.
65 SILVA, C. T. da et al., 1980-1981; SILVA, C. T. da, 2005; ARRUDA, Ana Margarida.
Los Fenicios en Portugal. Fenicios y mundo indígena en el centro y sur de Portugal
(siglos VIII-VI a.C.). Barcelona: Universidad Pompeu Fabra, 1999-2000, p. 64-72.
66 SOARES, J. & SILVA, C. T. da, 1986.
67 Idem.
68 ARRUDA, A. M., 2011, p. 151
Volume 2
81
Fig.1: Planta do edifício de culto de Abul A – Fases I e II.
É seguramente no contexto subsequente da consolidação da
presença oriental nesta zona que deve inscrever-se a fundação, em
meados do século VII a.C.69, do pequeno edifício de Abul A70. Este, isolado com relação a qualquer núcleo habitacional, implanta-se numa
69 Em cronologia convencional, não radiométrica.
70 MAYET, F. & SILVA, C. T. da, 2000.
suave elevação sobranceira ao Sado, numa zona com boas condições
naturais para a atracagem de embarcações, sensivelmente a meia distância entre as já citadas Alcácer do Sal e Setúbal, principais núcleos
de origem indígena onde se nota um clara adopção de rasgos culturais
«orientalizantes»71.
A construção, realizada ex novo, iniciou-se com a edificação
de um espesso muro perimetral desenhando um quadrado praticamente perfeito, com cerca de 22 m de lado; com uma espessura entre
0,90 e 1,10 m de espessura, alcançando contudo 1,50 m ao nível das
fundações em determinadas secções, foi construído com blocos pétreos sobre os quais se ergueriam alçados de taipa.72
Quanto ao espaço interior, este organizou-se em torno de
um pátio central, igualmente quadrado, de aproximadamente 11 m
de lado, delimitado por muros com fundações mais robustas que os
restantes; em torno a este distribuía-se um conjunto de outros compartimentos de menores dimensões, caracteristicamente pavimentados com argila vermelha.73 Quanto à entrada, neste primeiro momento construtivo fazia-se por um espaço rectangular que se projectava
da massa do edifício para Oeste; esta espécie de torre abria-se a Sul,
controlando eficazmente as entradas e saídas do edifício, ao mesmo
tempo que oferecia um amplo domínio visual do rio74.
Importa também referir um outro aspecto acerca do plano
arquitectónico de Abul A: as dimensões do edifício nesta primeira fase
(aproximadamente 22 m de lado) sugerem, tal como no caso antes
comentado do Castro dos Ratinhos, a utilização de um módulo arquitectónico bem definido, baseado no «côvado real» (cerca de 11 m, 20
x 0,55 cm). Este facto, aliado às evidências de uma planificação prévia,
com a construção do muro perimetral antes do estabelecimento das
divisões interiores, são sugestivas da existência de um plano prévio,
71 ARRUDA, Ana Margarida. Los Fenicios en Portugal. Fenicios y mundo indígena en
el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI a.C.). Barcelona: Universidad Pompeu Fabra,
1999-2000; SILVA, Carlos Tavares da. A presença fenícia e o processo de Orientalização nos Estuários do Tejo e do Sado. In: JIMÉNEZ ÁVILA, Jávier e CELESTINO PÉREZ,
Sebastián (eds.). El Período Orientalizante. Madrid: CSIC, 2005, p. 749-766.
72 MAYET, Françoise & SILVA, Carlos Tavares da. L’établissement phénicien d’Abul.
Portugal. Paris: Diffusion du Boccard, 2000.
73 Idem, p. 137-140.
74 Idem, p. 140.
Volume 2
83
eventualmente executado por um (ou mais) especialista(s), claramente imbuído(s) de um know how oriental75.
Este primeiro edifício teve uma existência relativamente curta, sendo objecto de uma profunda remodelação arquitectónica enquadrável ainda na segunda metade do século VII a.C.; a construção
do novo edifício parece corresponder a um desejo de alargamento do
espaço disponível bem como de reorientação da entrada no complexo76. De facto, o alargamento do edifício da fase anterior implicou o
desmantelamento do muro perimetral a Sul e Oeste, por um lado, e a
transferência da entrada do lado Ocidental para o lado Sul. Simultaneamente, assiste-se a uma reformulação significativa do espaço interior.
O pátio central, que mantém no essencial as suas funções anteriores, é agora reduzido, passando a ter uma configuração rectangular e sendo delimitado por muretes de xisto77, que configuram simultaneamente um corredor periférico que passou a envolver o pátio e
assumiu a partir de então uma função distribuidora dentro do complexo78. O piso deste novo pátio compunha-se de uma camada de argila
vermelha cobrindo um empedrado constituído por seixos rolados de
quartzo branco79.
Há ainda a registar nesta fase a construção no centro do pátio de uma estrutura de combustão rectangular80; a sua interpretação
como zona destinada à queima de essências é verosímil, mas o seu significado religioso/cultual parece, em absoluto, indiscutível, parecendo
por outro lado plausível que existisse uma realidade do mesmo tipo na
primeira fase, que não se conservou81 (idem: 167-8).
No que diz respeito aos compartimentos envolventes, a situação na ala Oriental e Setentrional permanece essencialmente inalterada. As mudanças mais drásticas ocorrem, portanto, na ala Ocidental
e na Meridional82, mantendo-se contudo o recurso à argila vermelha
75 Idem, p. 156.
76 Idem, p. 142.
77 Idem, p. 145.
78 Idem, p. 147.
79 Idem, p. 146-7.
80 Idem, p. 144.
81 MAYET, Françoise & SILVA, Carlos Tavares da. L’établissement phénicien d’Abul.
Portugal. Paris: Diffusion du Boccard, 2000, p. 167-168.
82 Idem, p. 149-150.
84 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
para a realização de pavimentos. Relativamente à ala Sul, é sobretudo
marcante a abertura da nova entrada do edifício83, feita agora através
de um corredor simples com 2,5 m de largura, resultante da destruição
do muro perimetral e da abertura de um dos antigos compartimentos,
desembocando directamente no corredor periférico e prolongado no
exterior do edifício por um empedrado de blocos pétreos irregulares.
As evidências estratigráficas sugerem que o período de utilização do edifício desta segunda fase não terá igualmente sido muito
longo, parecendo que o abandono definitivo de Abul A terá decorrido
ainda na primeira metade do século VI a.n.e.. É igualmente importante
referir o facto de se ter verificado que próximo do momento de abandono do sítio se terá dado um incêndio, embora localizado84.
Tanto a tipologia arquitectónica como as técnicas construtivas
empregadas, a par dos próprios elementos de cultura material exumados
no interior deste edifício, não deixam lugar a dúvidas quanto à sua filiação especificamente mediterrânea, oriental85. A sua interpretação, contudo, tem levantado algumas dúvidas que devem aqui ser recordadas.
Os responsáveis pelos trabalhos arqueológicos, embora assinalando com notável intuição a polifuncionalidade deste contexto, interpretam-no primariamente como um edífício de claro pendor comercial, tendo insistido na leitura deste edifício como feitoria (comptoir),
entreposto fundado por impulso exógeno, fenício, funcionando de forma eminentemente autónoma embora, naturalmente, em conexão estreita com os pólos autóctones da região, em particular Alcácer do Sal86.
A. M. Arruda87 propôs, por seu turno, uma outra leitura deste
espaço que acentuava algumas das suas características arquitectónicas
– nomeadamente os pisos de argila vermelha e o «altar» da segunda
fase – e sublinhava o facto de os paralelos mais próximos para estes
aspectos se encontrarem nas arquitecturas religiosas do Baixo Gua83 Idem, p. 147.
84 Idem, p. 147.
85 Idem; ARRUDA, Ana Margarida. Los Fenicios en Portugal. Fenicios y mundo indígena en el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI a.C.). Barcelona: Universidad Pompeu Fabra, 1999-2000, p. 90-91.
86 MAYET, Françoise & SILVA, 2000, op. cit.
87 ARRUDA, A. M., 1999-2000, op. cit., p. 91; Id, Ana Margarida. O Iº Milénio a.n.e.
no Centro e no Sul de Portugal: leituras possíveis no início de um novo século. O Arqueólogo Português, Série IV: 23, 2005, pp. 55-56.
Volume 2
85
dalquivir88, sugerindo assim que o edifício do Baixo Sado poderia ter
funcionado primariamente como espaço cultual, embora sem negar
nunca que este núcleo fosse também um importante pólo comercial.
Esta leitura não é, de resto, incompatível com a proposta por
F. Mayet e C. T da Silva que admitem, embora em plano secundário, a
existência de uma actividade cultual no sítio, justamente atestada pelo
«altar» da segunda fase. A leitura de Abul A como santuário é também
fortemente sugerida pela construção, na sequência do abandono deste edifício, de um outro complexo arquitectónico na área designada
Abul B, complexo que se tem interpretado unanimemente como espaço de culto89, que parece herdar a carga religiosa e prolongar a memória de Abul A enquanto espaço sagrado.
Convém insistir, neste ponto, naquilo que ficou já dito acima,
que no contexto do Mediterrâneo Antigo, comércio e actividade económica por um lado e, por outro, atitude religiosa não são dissociáveis;
numerosos estudos sobre as pautas de comportamento não apenas
dos comerciantes Fenícios90 mas também, por exemplo, dos Gregos91
demonstram que os próprios santuários funcionam como pivots de redes comerciais bem como pólos estruturadores da exploração económica do território.
Torna-se assim perfeitamente natural aceitar que numa paisagem colonial como o Baixo Sado se possa ter implantado num momen88 ARRUDA, Ana Margarida & CELESTINO PÉREZ, Sebastián. Arquitectura Religiosa
en Tartessos. In: MATEOS CRUZ, Pedro & CELESTINO PÉREZ, Sebastián (eds.). Santuários, oppida y ciudades. Arquitectura religiosa en el origen y desarrollo urbano del
Mediterráneo Occidental. Madrid: CSIC, 2009, p. 29-77.
89 MAYET, F. & SILVA, C. T. da, 2000, op. cit., p. 177-229.
90 RODRÍGUEZ FERRER, Alfonso. El Templo de Hércules-Melkart: un modelo de explotación económica y prestigio político. In: PEREIRA MENAUT. Gerardo (ed.). Actas
del 1er. Congreso Peninsular de Historia Antigua, Volume II. Santiago de Compostela:
Universidad de Santiago de Compostela, 1988; RUIZ DE ARBULO, Joaquín. Santuarios
y comercio marítimo en la península Ibérica durante la época arcaica. Quaderns de
Prehistoria i Arqueología de Castelló, 18, 1997; SÁEZ ROMERO, António. El templo
de Melqart de Gadir, hito religioso-económico y marítimo: consideraciones sobre su
relación con la industria conservera. In: MATEOS CRUZ, Pedro & CELESTINO PÉREZ,
Sebastián (eds.). Santuários, oppida y ciudades. Arquitectura religiosa en el origen y
desarrollo urbano del Mediterráneo Occidental. Madrid: CSIC, 2009.
91 DOMINGUEZ MONEDERO, Adolfo. La religión en el emporion. Gerión, 19, 2001,
p. 221-257.
86 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
to precoce um santuário que teria servido como pivot no estabelecimento de laços económicos e sócio-políticos com as elites autóctones.
A questão da funcionalidade de Abul A testemunha as dificuldades
interpretativas que decorrem de uma aplicação simplista do binómio
religioso/secular conforme o concebemos modernamente a contextos
do passado92; mesmo uma leitura polifuncional deste espaço não parece suficiente para traduzir a complexidade de sentidos de que ele se
terá revestido no seu período de funcionamento.
Quanto ao seu significado no contexto territorial em que se
insere, o do Baixo Sado, creio importante tecer ainda algumas reflexões. Parece perfeitamente plausível associar Abul A ao desenvolvimento de um horizonte «Orientalizante» no Baixo Sado e mesmo admitir que terá desempenhado um papel relevante na penetração do
comércio oriental para o interior alentejano; o que não parece tão
verosímil é que uma instalação de tão pequenas dimensões possa ter
sido a responsável única pelo pujante influxo oriental documentado
naquela área, que de resto, como acima referi, poderá datar-se de um
momento anterior à construção do edifício em análise93.
A fundação do provável santuário de Abul A poderá ter representado assim a consequência – e a expressão – de uma presença
oriental plenamente consolidada, consentida seguramente pelas elites
locais, nomeadamente as sediadas em Alcácer do Sal, que beneficiariam do controlo do comércio a larga distância ao mesmo tempo que
incorporavam activamente elementos de representação social e ideológica de matriz oriental, empregues na construção e representação de
novos discursos identitários intra- e inter-grupais.
Considerado a partir desta óptica, o pequeno edifício de
Abul A constituíria um pivot na estruturação do comércio fenício
com esta área, servindo como ponto de referência à presença oriental que estaria mais dispersa no território e mais intimamente ligada
ao próprio povoamento indígena do que até há relativamente pouco
tempo se concebia94.
92 BRÜCK, Johanna. Ritual and rationality. Some problems of interpretation in European Archaeology. In: INSOLL, Timothy (ed.). The Archaeology of Identities. A reader.
Londres: Routledge, 2007, p. 281-307.
93 GOMES, Francisco B.. Aspectos do sagrado na colonização fenícia. Lisboa:
UNIARQ, 2012, 47.
94 ARRUDA, Ana Margarida. Indígenas, fenicios y tartésicos en el occidente peninVolume 2
87
IV. A função “empórica” dos santuários na
expansão da rede comercial fenícia: reflexões finais
Em trabalho recente dedicado aos espaços religiosos da Idade do Ferro no Sul de Portugal95, no qual se baseia em boa medida o
presente contributo, tive oportunidade de propôr uma tipologia dos
papéis históricos desempenhados por aqueles ao longo do dinâmico e
diversificado período analisado. Dentro dessa tipologia, propus classificar uma parte dos contextos estudados, incluindo aqueles trabalhados neste contributo, como santuários empóricos96.
Estes correspondem a uma tipologia muito particular em que
se incluem aqueles contextos de culto que, pela sua posição na malha
de povoamento, parecem corresponder a enclaves conotados de forma
mais ou menos directa com práticas comerciais. São particularmente
relevantes, como houve já oportunidade de enfatizar, na configuração
do mundo «Orientalizante» e na consolidação das rotas através das
quais as influências mediterrâneas penetrarão progressivamente para
o interior ao actuarem como «testas-de-ponte» no estabelecimento
de contactos, como parece ser o caso do Castro dos Ratinhos, e como
pivots de redes comerciais estabelecidas, como no caso de Abul A.
No contexto do Mediterrâneo Antigo o estabelecimento de
enclaves comerciais é normalmente precedido pela instalação de espaços cultuais97, que asseguram de alguma forma a neutralidade dos
espaços de intercâmbio, colocados sob a protecção divina, mas servem também a prazo como focos de entesouramento, podendo além
disso assumir um papel de arbitragem, controlando por exemplo os
pesos ou os valores de câmbio98. Também no processo colonial fenício
a mesma norma parece ter-se verificado, como já tive oportunidade
sular: mucha gente, poca tierra. In: ÁLVAREZ MARTÍ-AGUILAR, Manuel (ed.). Fenicios
en Tartesos: nuevas perspectivas. Oxford: Archaeopress, 2011, p. 151.
95 GOMES, F., 2012, op. cit.
96 Idem, p. 142-143.
97 DOMINGUEZ MONEDERO, Adolfo. La religión en el emporion. Gerión, 19, 2001,
p. 221-257.
98 RUIZ DE ARBULO, Joaquín. Santuarios y comercio marítimo en la península Ibérica durante la época arcaica. Quaderns de Prehistoria i Arqueología de Castelló, 18,
1997, p. 517-536.
88 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
de comentar, com a fundação de pólos coloniais a ser precedida pela
instalação de santuários que actuarão, num primeiro momento, como
representantes do Estado Tírio99 e, posteriormente, como focos na
construção das identidades cívicas próprias desses pólos100.
Para o relativamente próximo território do Baixo Guadalquivir tem-se também defendido a existência de contextos de culto propriamente fenícios em estreita conexão com os pólos «tartéssicos» da
região, actuando como intermediários das relações comerciais entabuladas entre ambos101. Um processo semelhante parece ter ocorrido no
actual território português, sendo o caso do Castro dos Ratinhos muito
significativo ao atestar a presença de um contexto claramente exógeno
no interior de um povoado indígena, de resto plenamente enquadrável
num âmbito cultural do Bronze Final. Como comentei, é ainda difícil,
estabelecer quais poderão ter sido as razões efectivas para o estabelecimento deste santuário, podendo talvez admitir-se que a comunidade
local, ou pelo menos as suas elites, tenha desempenhado um papel
activo, estimulando ou solicitando a instalação do santuário como forma de captar o comércio oriental e as possibilidades que este gera no
que diz respeito à construção e representação de discursos de poder.
Abul A também é significativo a este respeito, embora aqui
pareça provável que o santuário expresse já uma rede de contacto e
intercâmbio plenamente estabelecida entre os colonos e comerciantes fenícios e as populações locais; a sua construção responde pois à
necessidade de um espaço estruturado de interacção, tutelado pela
autoridade divina. Não terá sido também despicienda a sua função
na projecção de uma identidade propriamente oriental num território
essencialmente estranho, condição imprescindível para a manutenção
de um processo dialéctico de estabelecimento de laços comerciais e
sócio-políticos com as comunidades locais.
99 AUBET, María Eugenia. Tiro y las Colonias Fenicias de Occidente. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2009.
100 ARTEAGA, Osvaldo. La liga púnico-gaditana. Aproximación a una visión histórica
occidental, para su contrastación con el desarrollo de la hegemonia cartaginesa en el
mundo Mediterráneo. In: Cartago, Gadir, Ebusus y la influencia púnica en los territorios hispanos. Ibiza: Museo Arqueològic d’Eivissa, 1994.
101 BELÉN, María. Itinerarios arqueológicos por la geografía sagrada del Extremo
Occidente. In: FERNÁNDEZ GÓMEZ, J. & COSTA RIBAS, Benjamí (coord.). Santuarios
fenício-púnicos en Iberia y su influencia en los cultos indígenas. Ibiza: Museo Arqueológico de Ibiza y Formentera, 2000, p. 57-102.; ESCACENA CARRASCO, J. L., 2001.
Volume 2
89
Em todo o caso, ambos os exemplos analisados, nessa exposição, ilustram com grande acuidade a importância desempenhada pelos contextos de culto nas fases iniciais da expansão e consolidação da
rede comercial fenícia; as instituições religiosas parecem ter-se situado na primeira linha dessa expansão, desempenhando um papel que
transcende amplamente o mero domínio simbólico. Polifuncionais na
sua concepção e polissémicos pela sua natureza, os contextos de culto
desempenharam um papel de vanguarda no processo colonial fenício.
90 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
A UBIQUIDADE DO MAṆḌALA
NO BUDISMO TÂNTRICO INDO-NEPALÊS
Cibele E. V. Aldrovandi1
As tradições tântricas, das quais o budismo esotérico é parte,
têm sido uma das maiores correntes da religiosidade do Sul da Ásia há
pelo menos 1500 anos. Na Índia e, mais tarde, no Nepal, a paisagem
urbana, a arquitetura sagrada e secular, as esculturas, os relevos, as
pinturas e mesmo a estrutura narrativa de algumas fontes textuais budistas foram permeados por uma concepção espácio-temporal recorrente que replica a cosmografia budista — o maṇḍala2. O uso ubíquo
do modelo do maṇḍala, desde a antiguidade, pressupõe três elementos básicos e entretecidos: os limites, a hierarquia e a importância da
centralidade. Essas esferas culturais distintas apresentam dimensões
formais semelhantes que estruturam, de modo subjacente, as experiências com o sagrado a partir desse elemento cosmográfico comum e
onipresente no contexto do budismo tântrico indo-nepalês.
I. O Budismo Tântrico
O tantrismo esteve no cerne da civilização indiana e tornou-se
um fenômeno pan-indiano a partir dos séculos IV-V d.C, disseminando1 Este artigo é parte dos resultados de uma pesquisa de pós-doutorado realizada no
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Área de Língua e Literatura Sânscrita
da FFLCH-USP e na École Française D’Extrême Orient em Paris, sob supervisão do
Prof. Dr. Mario Ferreira e realizado com apoio do CNPq - Brasil. Email:
[email protected]
2 Neste artigo, as palavras de origem sânscrita estão grafadas com os diacríticos
para a transliteração do devanāgarī. A concordância nominal dos termos sânscritos
segue o ajuste ao gênero próprio desta língua, não serão adotadas as desinências
do plural das palavras em sânscrito, mantendo a concordância de artigos e adjetivos
como indício do número gramatical (e.g. o/os maṇḍala).
Volume 2
91
-se, mais tarde, por diferentes regiões do continente asiático3. Definido como um movimento filosófico e ritualístico que influenciou tanto
as seitas hinduístas, como as budistas e jainistas, ele está fundamentado nas prescrições e nos ensinamentos contidos nos Tantra – uma
série de tratados que compilam conhecimentos de origem não-védica.
O termo Tantra remete, portanto, a certas tradições cujas práticas religiosas utilizam um aparato mágico-ritualístico com o objetivo de livrar
o praticante do saṃsāra, o ciclo de reencarnações, fazendo-o entrar
em contato com a realidade do Absoluto e visando a união do micro e
do macrocosmo – cujo objetivo é a liberação – mokṣa ou nirvāṇa.
Num sentido mais estrito, são práticas espirituais de caráter
específico – sādhanā – que utilizam rituais e formas de meditação que
são preservadas e transmitidas por uma linhagem de mestres e discípulos4. O Tantra é um sistema esotérico que requer uma iniciação
especial, conferida ao discípulo por seu mestre. A relação mestre-discípulo – guruśiṣyaparaṃparā –, é a base de todo o ensinamento tântrico. A tradição paraṃparā também se articulou e criou suas ramificações na vida social e cultural em todo o Sul da Ásia5. A literatura
tântrica consiste em manuais e rituais altamente técnicos que não podem ser compreendidos pela simples leitura. Devido ao seu caráter
secreto, eles requerem a ajuda direta de um mestre, que possa instruir
o iniciado nos vocabulários e conceitos específicos do Tantra. Existem,
nos dias atuais, linhagens paraṃparā ininterruptas que situam os primeiros grandes mestres – mahāsiddha – no século VII d.C6.
O tantrismo teria sido, inicialmente, um fenômeno hindu7.
No entanto,
No período mais remoto, não parecem ter existido divisões
sectárias entre os adeptos do tantrismo, que podiam ser ini3 PADOUX, A. Tantrism: An Overview. In: ELIADE, M. (ed.) Encyclopedia of Religion. Nova Iorque: Macmillan, v. 14, 1987, p. 272–274.
4 MISHRA, T. N. Impact of Tantra on Religion and Art. New Delhi: D.K. Printworld,
1997, p. 79-80; SARAN, P. Yoga, Bhoga and Ardhanariswara: Individuality, Eudaemonism and Gender in South Asian Tantra. London: Routledge, 2008, p. 44.
5 SARAN, op.cit., p. 44.
6 BÉGUIN, G. Mandala: Diagrammes Ésotériques du Népal et du Tibet au Musée
Guimet. Paris: Éditions Findakly, 2011, p. 14.
7 PADOUX, op.cit., p. 274.
92 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
ciados e ao mesmo tempo praticar as metodologias budista, śivaíta ou śakta, simultaneamente. Enquanto os sistemas
metafísicos dos hindus, dos budistas e dos jainistas explicam
a natureza fundamental da realidade, o objeto da sua literatura tântrica é desvelar métodos práticos, embora esotéricos, que possam ser utilizados para alcançar essa realidade.
Os Tantra não professam verdades novas, mas sim, novas
técnicas para realizar a Verdade8.
A diferença entre os ensinamentos tântricos e não-tântricos,
por sua vez, é a reinterpretação das tradições soteriológicas hindus
e budistas que emergiram a partir de uma matriz indiana comum de
práxis e especulação religiosas. Ao invés de se desgastarem tentando
controlar o desejo – kāma – os trantrika defendem, explicitamente, o
uso dessa mesma energia para estimular os sentidos de modo a alcançar o samadhī – a enstasis, união mística9. Assim, a prática tântrica,
no que concerne seu aspecto soteriológico, oferece um “atalho” para
a salvação10. No contexto budista, essas técnicas são consideradas não
somente eficazes, mas também extremamente rápidas, possibilitando
alcançar a liberação – ou a transformação ao estado de budeidade –,
em uma única vida.
Na fase tardia do budismo indiano houve um crescimento da
quantidade de ritos e de elementos de caráter popular e sobrenatural
em muitos tipos de adoração, como a dīkṣā (iniciação), a introdução e o
uso sistemático dos mantra (sons sagrados), das mudrā (gestos sagrados), dos maṇḍala (diagramas sagrados), das dhāraṇī (versos místicos)
e dos nyāsa (visualizações) – todos pertencentes a esse novo contexto
esotérico. Parte desses elementos remonta a períodos anteriores ao
budismo e, possivelmente, têm origem pré-védica.
O budismo tântrico teria sido praticado, inicialmente, de modo
secreto até formar, séculos mais tarde, uma escola própria. Os aspectos místicos e ocultos do tantrismo indiano foram paulatinamente incorporados à práxis budista, formando essa nova escola – o Tantrayāna
8 GUPTA, S. Yoga and Antaryaga in Pancaratra. In: GOUNDRIAAN, T. (ed.). Ritual
and Speculation in Early Tantrism. Studies in Honor of André Padoux. Albany, State
University of New York Press: 175-208, 1992 (p. 175, tradução nossa).
9 SARAN, op.cit. p. 50.
10 SARAN, op.cit. p. 45; MISHRA, op.cit., p. 79-80.
Volume 2
93
ou Mantrayāna –, do qual as formas posteriores, como o Vajrayāna,
derivaram11. O seu desenvolvimento na Índia é, entretanto, complexo
e difícil de ser traçado. Não há uma única fonte ou mesmo um conjunto razoável de documentos sobre a época, o lugar e as circunstâncias
da formação e do aparecimento do pensamento e da iconografia tântricos. Sabemos que as práticas, os textos e as imagens do tantrismo
não emergiram juntos, cada qual teve sua própria trajetória histórica,
tornando difícil o estabelecimento de uma cronologia do movimento
tântrico de modo sistemático. Em razão das práticas tântricas serem
esotéricas e, portanto, secretas, há um consenso geral de que deve ter
havido um longo período de desenvolvimento, circulação e transmissão oral dos sādhanā, antes de sua perpetuação na forma escrita12.
O budismo tântrico, nesse sentido se desenvolveu como uma
continuação da filosofia Mahāyāna – geralmente pautado pelos ensinamentos sobre a vacuidade e a compaixão, pregados por esse caminho13. Os textos Prajñāpāramitā contém toda a parafernália de adoração encontrada nos Tantra, que inclui a recitação dos mantra. O que
diferencia o caminho do budismo tântrico, ou Vajrayāna, dos demais,
como vimos, são os métodos e processos utilizados pelos praticantes
para obter a iluminação.
No início das pesquisas sobre esse ramo do budismo, a maior
parte dos estudiososs o considerava uma espécie de “degeneração”
do budismo mais antigo. Isto porque, durante décadas, existiu um profundo desconhecimento acerca da sua riqueza especulativa e litúrgica.
Nesse mesmo sentido, o próprio estudo dos maṇḍala esteve sujeito
a interpretações ambíguas e anacronismos que apenas recentemente
foram trazidos à luz14.
11 MISHRA, op.cit., p. 80-81.
12 CUMMINGS, C. A. Tantra in India. In: HUNTIGNTON, J.; BANGDEL, D. (eds.). The
Circle of Bliss: Buddhist Meditational Art. Chicago: Serindia; Columbus: The Columbus Museum of Art, p. 23-28, 2003, (vide p. 24-25).
13 CUMMINGS, op.cit., p. 24.
14 BÉGUIN, op. cit., p. 8.
94 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
II. Os Maṇḍala e o Tantrismo
Entre as diferentes características do tantrismo está o uso ritual de desenhos, mais ou menos complexos, chamados geralmente
de maṇḍala – mas também denominados yantra, cakra ou pura. Essa
terminologia dos “diagramas (místicos)” muitas vezes foi utilizada de
modo intercambiável, tendo sido discutida e classificada por uma série
de estudiosos15.
A palavra maṇḍala tem origem sânscrita – uma língua do
ramo indo-ariano antigo –, seu gênero é masculino e o seu significado,
um círculo. Em seu uso mais genérico, a palavra maṇḍala se refere a
algo que é ‘redondo’ ou ‘circular’ – como um anel, um disco, um globo
ou um halo –, além disso, o termo pode descrever uma região, uma divisão terrestre, um domínio, um território, um distrito, uma província,
um país, ou ainda, uma assembleia ou um grupo, um círculo de amigos
do rei – a nobreza, uma sociedade, o próprio corpo e, também, as principais subdivisões de um texto16.
Embora muitos estudos tenham surgido após a obra de Tuc17
ci , foi esse estudioso quem estabeleceu os principais elementos
acerca da teoria e prática concernentes aos maṇḍala indo-tibetanos.
Embora alguns desses trabalhos mais recentes sequer façam menção
à sua obra, sua influência é facilmente identificada nas temáticas discutidas pelo pesquisadores mais recentes.
15 PADOUX, A. (ed.). Mantras et Diagrammes Rituels dans L’Hindouisme. Paris:
Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1986; BRUNNER, H. Mandala et Yantra dans le Sivaisme Agamique: definition, description, usage rituel. In:
PADOUX, A. (ed.). Mantras et Diagrammes Rituels dans L’Hindouisme. Paris: Éditions
du Centre National de la Recherche Scientifique, 1986, p. 11-35; BÜHNEMANN, G.
(ed.). Mandalas and Yantras in the Hindu Traditions. Leiden: Brill, 2003.
16 BÜHNEMANN, op.cit., p. 13; BÉGUIN, op.cit., p. 10; BAFNA, S. On the Idea of
the Mandala as a Governing Device in Indian Architectural Tradition. Journal of the
Society of Architectural Historians, v. 59, n. 1, p. 26-49, 2000 (vide p. 44); BRAUEN,
M. Mandala: Sacred Circle in Tibetan Buddhism. Stuttgart: Rubin Museum of Art and
Arnoldsche Art Pubs., 1992 (vide p. 11).
17 TUCCI, G. Teoria e Prática da Mandala: com particular atenção à moderna psicologia profunda. Tradução: Mario Ferreira. São Paulo, Ed. Pensamento, 1969.
Volume 2
95
O maṇḍala delimita a superfície consagrada e a preserva da
invasão das forças desagregadas simbolizadas por ciclos demoníacos. Mas ela é muito mais do que uma simples superfície consagrada que se deve manter pura para fins rituais e
litúrgicos. Ela é, na verdade, um cosmograma, é o universo
inteiro em seu esquema essencial, em seu processo de emanação e reabsorção: o universo não apenas em sua extensão
espacial inerte, mas como revolução temporal; e ambos esses aspectos, como processo vital que emana um princípio
essencial e que gira em torno de um eixo central, a montanha
Sumeru, o axis mundi sobre o qual se apóia o céu e que mergulha os fundamentos do misterioso subsolo18.
Esse espaço consagrado é, frequentemente, um círculo mas
também pode surgir como um quadrado, um triângulo, um semi-círculo ou, ainda, possuir uma outra forma19. Essa variedade de formatos
e estruturas dos maṇḍala são baseados nas tradições das diferentes
escolas, nas suas aplicações rituais, no tipo de divindade adorada,
nas qualificações e nos objetivos do praticante20. De modo geral, o
maṇḍala designa um diagrama com um centro e seus eixos, mas as
interpretações são muito variadas e um mesmo texto pode oferecer
mais que uma explicação.
Os yantra, por sua vez, são traçados lineares e, aparentemente, possuem um caráter mais secreto que os maṇḍala, no qual
o adepto “coage” ou “controla” [da raíz verbal √yam] a divindade a
realizar uma determinada ação21. A palavra designa um instrumento, máquina, aparelho ou dispositivo mecânico, mas também um
diagrama mágico22. Enquanto os yantra têm um caráter mais móvel,
dificilmente possuem representações pictóricas de divindades como
os maṇḍala, geralmente se limitando a formas lineares, que podem
18 Idem, ibidem, p. 28-29.
19 BRUNNER, H. Mandalas in Abhinavagupta’s Tantrāloka. In: BÜHNEMANN G.
(eds.) Mandalas and Yantras in the Hindu Traditions. Leiden: Brill, p. 225–238, 2003
(vide p. 157); BRAUEN, op.cit., p. 12-13; TÖRZSÖK, J. Icons of Inclusivism: Mandalas
in Some Early Shaiva Tantras. In: BÜHNEMANN, G. (ed.) Mandalas and Yantras in the
Hindu Traditions. Leiden, Brill, p.179-224, 2003 (vide p. 208).
20 BÜHNEMANN, op.cit., p. 13.
21 BRUNNER, op.cit., p. 19.
22 BÜHNEMANN, op.cit., p. 28-31.
96 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
conter um mantra ou sílabas-semente e ser bi ou tridimensionais23.
O termo cakra – roda ou círculo –, têm um uso bem menos preciso e
não parece descrever uma categoria específica, podendo designar os
centros de energia sutil ou mesmo um grupo de divindades invocadas
nos maṇḍala ou yantra24. O termo pura aparece como equivalente ao
maṇḍala, para descrever uma cidade, ou a divisão territorial sobre a
qual reina uma divindade25.
No Nepal, as palavras maṇḍala, yantra e mantra são empregadas por todas as camadas sociais e não apenas pelos especialistas em rituais. Quando um newār emprega a palavra
yantra em uma conversa, ele a entende como um triângulo
com um ponto no centro, simbolizando uma forma da deusa.
Por oposição, o maṇḍala (newār: maṇḍal) é uma representação complexa de um grupo de divindades. (...) Os textos
servem para ajudar a memorizar e os desenhos fornecem indicações sobre a disposição das divindades para a cosntrução
de um maṇḍala26.
Como cada ação sagrada tem necessidade de um espaço,
mesmo que seja um espaço interiorizado, esse lugar deve ser delimitado e consagrado em seu propósito específico e, assim, ele se torna um
yantra – um instrumento para a ação sagrada, uma “recriação de um
espaço sagrado, ordenado, que torna possível as ações sagradas”27.
Uma etimologia da palavra maṇḍala a divide em dois componentes maṇḍa [explicado como sāra (essência)] e la [da raiz verbal √lā
(iniciar, começar, tomar ou dar)]28. Os textos budistas também divi23 GRAY, J. Domestic Mandala: architecture of lifeworlds in Nepal. Hampshire:
Ashgate Pub. Lmtd., 2006 (vide p. 19); BRAUEN, op.cit., p. 24; BÉGUIN, op. cit., p. 13.
24 BRUNNER, op.cit., p. 20; BÜHNEMANN, op.cit., p. 50.
25 BRUNNER, op.cit., p. 32.
26 VERGATI, A. Quelques Remarques sur L’usage du Mandala et du Yantra dans la
Vallée de Kathmandu, Népal. In: PADOUX, A. (ed.). Mantras et Diagrammes Rituels
dans L’Hindouisme. Paris, Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique:
37-47. 1986 (p. 3, tradução nossa).
27 BÄUMER, B. Pañjara et Yantra: le Diagramme de L’Image Sacrée. In: PADOUX, A.
(ed.). Mantras et Diagrammes Rituels dans L’Hindouisme. Paris, Éditions du Centre
National de la Recherche Scientifique: 49-64, 1986 (p. 49, tradução nossa).
28 PADOUX, A. Mandalas in Abhinavagupta’s Tantraloka. In: BÜHNEMANN, G. (ed.)
Mandalas and Yantras in the Hindu Traditions. Leiden, Brill, p. 225-238, 2003 (vide
Volume 2
97
dem a palavra maṇḍala nesses dois componentes, mas as interpretações diferem ligeiramente como, por exemplo, “apreensão ou captura
da essência”, no qual a essência é cercada ou enclausurada, isto é, restrita. O maṇḍala de forma perfeitamente pura é envolto pelo “círculo
da sabedoria-conhecimento” – vidyajñanacakra –, com a divindade
principal no centro cercada por seu séquito. Portanto,
O maṇḍala é um mundo centrado, uma área cujo centro foi
estabelecido e cujas fronteiras foram claramente definidas.
É um recinto sagrado, um mundo ou campo do qual as influências demoníacas, isto é, desordenadas e perturbadoras,
foram expelidas e dentro do qual rituais podem ser realizados sem obstáculos ou perigo. [...] é uma totalidade, um todo
formado pela associação das partes. O círculo, sempre e em
todo lugar, foi um símbolo de completude e perfeição. No
budismo, ele simboliza a budeidade. [...] o meio pelo qual se
alcança a budeidade. [...] O maṇḍala é um esquema comprimido do cosmo com as formas em sua coesão e integralidade
essenciais. Nos confins do maṇḍala, o mundo está contido
em sua pureza original, inseparavelmente permeado pelas
virtudes e qualidades dos Budas. [...] um paradigma da estrutura espiritual do universo infundido da natureza búdica;
e, ao mesmo tempo, do mundo espiritual que existe dentro
do ser, o mundo interior através do qual ele deve passar em
sua peregrinação de volta ao seu próprio centro, o local interno de sua Iluminação. [...] na sua mente mais interna, ele
está atravessando a enxurrada do saṃsāra, encontrando seu
caminho para o centro do cosmos, que é o bodhimaṇḍa, o
lugar onde os Budas alcançam a iluminação29.
A cosmologia bramânica apresenta o universo na forma de
um círculo que tem em seu centro uma montanha – Monte Meru – o
axis mundi, ao redor do qual se encontram os oceanos e continentes:
o mundo tem a forma de um cosmograma30. A cosmologia budista, tal
como descrita no Abbhidharmakośa – um tratado de Vasubandhu, do
século IV ou V d.C. –, apresenta o universo como um número virtualp. 227).
29 SNODGRASS, A. The Symbolism of the Stupa. Delhi, Motilal Banarsidass.1992
(p. 104-105, 107, tradução nossa).
30 BÉGUIN, op.cit., p. 10.
98 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
mente infinito de sistemas mundiais. Cada um desses sistemas, consiste em uma base cilíndrica gigante e, na sua superfície, estruturada
com montanhas e água, está um reino celestial. O mundo dos seres
humanos está no centro do continente sul, Jambudvipa, no lado sul do
monte Meru31. Nesse sentido, “o layout simétrico é evidente: o topo
da montanha é subdividido em quatro regiões, que correspondem às
quatro direções que estão orientadas para o centro – uma planta típica
da representação do maṇḍala”32.
Em relação à origem, os pesquisadores costumam propor
que os maṇḍala tântricos derivaram das tradições védicas, nas quais o
layout dos altares sacrificiais seriam os indícios de um antigo interesse
pelos desenhos geométricos imbuídos de simbolismo cosmológico33.
Alguns aspectos desses rituais recorrem na práxis da construção dos
maṇḍala e na invocação das divindades por meio dos mantra. Esses
espaços sagrados dos maṇḍala e dos yantra seriam, assim, uma continuidade dos lugares em que ocorriam os antigos sacrifícios védicos34,
no entanto, deve-se considerar que essa cosmografia se desenvolveu
em contextos esotéricos distintos do antigo milieu védico-bramânico.
Os maṇḍala hindus mais antigos são, muito provavelmente,
anteriores ao século VI d.C.35 Estudos apontam para o uso dos maṇḍala
em cerimônias associadas aos ritos de passagem – como os saṃskāra
hindus36. De fato, as estruturas do tipo maṇḍala parecem recuar a uma
data bastante remota na história das religiões indianas e estruturas semelhantes podem ser encontradas em muitas outras culturas37.
Os maṇḍala possuem formas, materiais e padrões diferentes que dependem da tradição que criou essa sintaxe-geométrica38
31 BRAUEN, op.cit., p. 43.
32 Idem, ibidem, p. 45 (tradução nossa)
33 KRAMRISCH, S. The Hindu Temple. Delhi, Motilal Banarsidass, 1946. A autora
realizou um estudo pioneiro e aprofundado sobre o uso dos maṇḍala na arquitetura
dos templos indianos.
34 BÜHNEMANN, op.cit., p. 26; APTE, R.N. Some Points Connected with the Constructive Geometry of Vedic Altars. ABORI - Annals of the Bhandarkar Oriental Research Institute, v. 7, p. 1–16, 1926 (vide p. 2-3).
35 BÜHNEMANN, op.cit., p. 27; BRAUEN, op.cit., p. 15.
36 VERGATI, op.cit., p. 37, 43-45.
37 SAMUEL, G. The Origins of Yoga and Tantra: Indic Religions to the Thirteenth
Century. Cambridge: University Press, 2008 (vide p. 224).
38 BÉGUIN, op.cit., p. 10.
Volume 2
99
– são preparados com diversos elementos, que incluem pós coloridos, gemas preciosas, frutas e folhas, substâncias perfumadas e outros materiais mais permanentes39. Os maṇḍala são necessários em
rituais especiais, como festivais ou observâncias religiosas (vrata) e
fundamentais nos ritos de iniciação tântricos – dīkṣā –, nos quais a visualização do maṇḍala é um elemento essencial40. Durante a iniciação, a estrutura do maṇḍala funciona como um lugar no qual, pela
primeira vez, as divindades se tornam visíveis ao iniciado41. No entanto, um maṇḍala não é uma mera estrutura física com um desenho
específico. Eles figuram entre os lugares em que as divindades podem
ser invocadas e tornam-se uma parte integral da sua estrutura42.
Desenhar um maṇḍala não é coisa simples; é um rito, que
visa a uma palingenesia do indivíduo, o qual deve concentrarse sobre os menores detalhes com a atenção reclamada pela
importância do resultado a obter. Um erro, um engano ou
um esquecimento, tornam o trabalho ineficaz43.
Nesse mesmo sentido, no movimento contínuo do centro
para fora e de fora para o centro, é o maṇḍala que ordena o processo
de emanação (utpattikrama) e retorno (sampannakrama) no mundo
transmigratório do saṃsāra44.
É necessário perguntar se a lógica diagramática que consiste
em repartir as divindades sobre um espaço ritual, sobre o
qual os antropólogos insistem, deve ser lida como uma
disposição estática organizada hierarquicamente – um
panteão estável –, ou como uma estrutura dinâmica que
exprime o movimento criador da divindade principal assistida
por aquelas que a circundam, como também o movimento
39 RASTELLI, M. Mandalas and Yantras in the Pañcaratra Tradition. In: BÜHNEMANN, G. (ed.) Mandalas and Yantras in the Hindu Traditions. Leiden, Brill, p.
119-152. 2003 (vide p. 123); PADOUX, op.cit, p. 226.
40 RASTELLI, op.cit., p. 133-31; TÖRZSÖK, op.cit., p. 185-6; PADOUX, op.cit., p. 227-8.
41 TÖRZSÖK, op.cit., p. 189-190; BRUNNER, op.cit., p. 21-23.
42 TÖRZSÖK, op.cit., p. 183-84.
43 TUCCI, op.cit., p. 40-41.
44 MACDONALD, A. W.; STAHL, A. V. Newar Art: Nepalese Art during the Malla
Period. Bangkok: Orchid Press. 1979 (vide p. 42).
100 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
inverso em direção à reabsorção cósmica que se seguirá ao
uso do diagrama pelo adepto45.
Os textos esotéricos designam os palácios celestiais das divindades, situados fora do mundo fenomênico, explicitamente pelo termo maṇḍala46. O maṇḍala concebido como um palácio real decorre
do espelhamento entre o mundo sagrado e a realeza indiana47. Nele,
o paraíso celestial de Indra, rei dos deuses, é descrito como um grande
palácio, semelhante aos palácios dos reis terrenos. O maṇḍala é uma
concepção pan-asiática, cujas ideias cosmográficas foram refletidas no
esquema das cidades imperiais e na imagem ideal do reino do cakravartin – o monarca universal das tradições indianas48. No budismo,
essa associação seria mais evidente em razão da sobreposição da figura do Buda à do cakravartin – o monarca universal.
As estruturas de tipo maṇḍala estão relacionadas à existência de um centro e ao grau em que os componentes periféricos são
tratados como emanações ou projeções daquele centro e, nesse sentido, redutíveis a ele. Esse sentido dos elementos externos como emanações ou projeções de uma unidade subjacente é, como vimos, um
componente essencial do esquema do maṇḍala completamente desenvolvido.49 Assim, a concepção do maṇḍala, na qual a figura central
representa a divindade suprema e universal, à qual as figuras das quatro direções são aspectos subordinados, parece um desenvolvimento
natural em relação à situação política da época. Ela reflete rigorosamente a ideia de um rei supremo e central, do qual se espera que os
outros governantes menores sejam projeções locais, ao invés de reis
independentes. Dessa maneira, o esoterismo budista que se desenvolveu nesse período pode ser concebido como uma metáfora imperial50.
O esoterismo budista institucional, em particular, pode tanto
receber o crédito e aceitar a responsabilidade pelo desenvol45
46
47
48
49
50
PADOUX, op.cit., p. 5 (tradução nossa).
BÉGUIN, op.cit., p. 11.
TUCCI, op.cit., p. 45.
Idem, ibidem, op.cit, p. 29.
SAMUEL, op.cit., p. 225.
DAVIDSON, op.cit., p. 137-38.
Volume 2
101
vimento das formas meditativas dos maṇḍala. Os maṇḍala
são articulações implícitas e explícitas de um horizonte político no qual o Buda central atua como o Rājādhirāja [Rei
dos reis] em relação às demais figuras do maṇḍala. Em sua
origem e evolução, os maṇḍala religiosos representam uma
tentativa budista de santificar a vida pública existente e recriar o meditador como o personagem capaz de controlar
o mundo perturbador da prática feudal indiana. Os outros
Budas e Bodhisattvas vivem dentro ou próximos ao seu palácio (kūṭāgāra). Eles assumem suas posições baseados no seu
desejo e pela agência da coroação por ele outorgada. Eles refletem seu séquito e seus próprios séquitos segmentários, e
eles em última instância se dissolvem nele, o que demonstra
sua subordinação à veracidade de sua existência. Nas bordas
de alguns maṇḍala vivem os demônios, serpentes e outros
seres de existência marginal nos grandes campos de cremação. Quando recebem sua coroação no maṇḍala, os monges
recebem a autorização explícita para empreender e manipular a existência fenomênica. Sua ação representa a instituição
budista colocando um agente no idioma e na metáfora da
vida pública, personificando a reação da instituição monástica ao sistema feudal predatório, emulando sua forma enquanto subverte seu objetivo51.
No centro, no santuário (kūtāgara) ou palácio (vimāna), reside o senhor soberano do maṇḍala (maṇḍaleśa), no coração de um
lótus florido. Ao redor, nas pétalas abertas, estão as divindades secundárias consideradas, nesse contexto, como aspectos da deidade
principal. Cada qual corresponde à região do espaço, ponto cardeal,
que lhe é própria. As quatro portas (toraṇa), no meio de cada um
dos lados, tem forma de “T” e podem estar guardadas por divindades de aspecto aterrorizante. As portas e muros são representados
como planos ou elevações. Os muros podem ter cores diferentes e os
corredores tomam a forma de galerias (paṭṭikā) que têm um número
variável de divindades todas elas do kula (clã) da divindade principal.
O conjunto do maṇḍala é contido em um grande círculo chamado
“círculo de proteção” (rakṣacakra) e no exterior se encontram os ce-
51 Idem, ibidem, p. 131 (tradução nossa).
102 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
mitérios (śmaśāna)52. Os seres aterrorizantes que se encontram no
limiar dos maṇḍala e que podem ser vistos até mesmo nas laterais
das entradas dos templos hindus, são os vighnāntaka, aqueles que
põem fim aos vighna, os impedimentos ou forças que ameaçam a
pureza sacral do local em que se cumpre o rito, mas, paralelamente,
também aquelas que se encontram no interior do adepto, impedindo
seu caminho para a iluminação53.
Um outro aspecto da alegoria cultural do maṇḍala é sua relação microcósmica, na qual o humano e o divino coexistem em um contínuo, fundamental na construção da individualidade indiana54. Assim,
no tantrismo, o indivíduo é o centro de sua experiência no mundo – e o
que ele experimenta internamente reflete o que é experimentado externamente. Cada indivíduo, como um microcosmo, é interpenetrado
e, por sua vez, replica o macrocosmo, um é homólogo ao outro, numa
conexão mística entre planos múltiplos de existência55.
O cakravartin, o monarca universal, é a expressão cultural típica desse potencial individual e da soberania existencialmente passível de experimentação. Por essa razão, o modelo de realeza divina
foi amplamente utilizado para expressar a soberania política do rei indiano56. Mas, ao mesmo tempo, a autonomia pessoal do yogin e do
místico. Durante o uso místico desse diagrama meditativo, o yogin se
coloca como um cakravartin no centro de um maṇḍala visualizado.
Esse maṇḍala tem o aspecto bidimensional de um diagrama-meditativo que, em estágios avançados da práxis se torna tridimensional57.
O complexo mente-corpo humano do adepto é concebido e
assimilado ao templo indiano. A divindade desse templo, no
caso, é o próprio yogin que foca sua atenção no topo da cabeça em busca da união mística, o que corresponde à centra52 TUCCI, op.cit., p. 42-45; BÉGUIN, op.cit., p. 20-23; BRAUEN, op.cit., p. 16-17,
21-23.
53 TUCCI, op.cit., p. 57.
54 SARAN, op.cit., p. 64.
55 BRAUEN, op.cit., p. 155-169; GRAY, op.cit., p. 4, 19; BÉGUIN, op.cit., p. 10-11.
56 TAMBIAH, S. J. World Conqueror and World Renouncer: a study of Buddhism
and polity in Thailand against a Historical background. Cambridge Studies in Social
Anthropology, n. 15. Cambridge: University Press, 1976.
57 SNELLGROVE, D. L. The Hevajra Tantra: A Critical Study. London Oriental Series,
v. 6. London: Oxford University Press, 1959.
Volume 2
103
lização da consciência no bindu – o ponto central do maṇḍala
bidimensional, ou de modo equivalente, o crânio do yogin,
com o maṇḍala tridimensional – que desencadeia a experiência mística58.
Nesse sentido, a dimensão trivalente do modelo do maṇḍala
– macro, meso e microcosmo – fornece um sentido tangível de seu poder e coerência, aplicados à práxis desenvolvida nos contextos culturais sob o seu domínio. Os modelos culturais que seguem o padrão do
maṇḍala fornecem um desenho recorrente em vários níveis. Esse padrão reflete, por sua vez, uma “polivalência multifacetada construída
sobre conceitos autóctones e a ideia tradicional de uma convergência
simultânea no padrão do maṇḍala”, em que, “o modelo cultural e os
parâmetros pragmáticos estão de acordo e apoiam um ao outro, eles
não podem ser desagregados”59.
III. Os Maṇḍala na Paisagem Sagrada e Secular
A civilização indiana há muitos séculos vive sob a égide da poderosa metáfora do maṇḍala. Além de seu aspecto mesocósmico, as
facetas macro e microcósmicas desse elemento cultural ubíquo e poderoso são evidentes no Sul e Sudeste da Ásia60. Em seu aspecto mesocósmico, o maṇḍala é considerado um modelo social61 e reteve o
significado de distrito administrativo nos estados modernos de origem
indiana62. Essa configuração é replicada em muitas esferas e contextos
culturais diferentes. O maṇḍala serviu de modelo para os reinos asiáticos, fornecendo um diagrama social, geométrico, territorial, cosmo58 SARAN, op.cit., p. 64 (tradução nossa).
59 TAMBIAH, op.cit., p. 91 (tradução nossa).
60 SARAN, op.cit., p. 43.
61 TAMBIAH, op.cit.; DAVIDSON, R. M. Indian Esoteric Buddhism: a Social History
of the Tantric Movement. Nova York: Columbia University Press, 2002.
62 HANKS, L. M. The Thai Social Order as Entourage and Circle. In: SKINNER, G.
W.; A. T. KIRSCH (eds.). Change and Persistence in Thai Society. Ithaca, N.Y.: Cornell
University Press, 1975. p. 197-218.
104 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
lógico e topográfico, denominados unidades sociopolíticas galáticas63.
A geometria das unidades sociopolíticas, inclusas aquelas
encontradas no estado nepalês – o Nepal Maṇḍala –, também é manifesta como um desenho recorrente, em diferentes níveis64. Nesse
sentido, os maṇḍala fazem parte de diferentes aspectos da cultura nepalesa, são a base fundamental sobre a qual se erigiram, por exemplo,
as cidades no Vale do Katmandu, assim como os templos e seus programas iconográficos65.
A alegoria do maṇḍala permeia as distribuição espacial e os
espaços cívicos das três principais cidades nepalesas do Vale do Katmandu: Bhaktapur, Katmandu e Patan66. O Nepal está situado na principal rota comercial entre a Índia, o Tibete e a China, o que o estabelece como local chave na transmissão cultural e na disseminação do
tantrismo nessas regiões67. Nesse sentido, a concepção de geografia
sagrada nepalesa é articulada de modo único pelo budismo newār.
Embora para os não iniciados esse conceito não seja óbvio, os praticantes concebem o Vale do Katmandu como o
maṇḍala de Cakrasaṃvara. Seguindo esse construto, a forma estrutural do maṇḍala é replicada na geografia sagrada,
com três círculos concêntricos ao redor do Vale (...). De modo
semelhante, os oito maiores campos de cremação ao redor
do Vale se encontram na confluência de rios. Esses locais
perigosos e poluídos, localizados na periferia dos espaços
sagrado e profano, criam as fronteiras externas do maṇḍala
físico, espelhando os campos de cremação fora do maṇḍala
de Cakrasaṃvara68.
63 TAMBIAH, op.cit, p. 69.
64 SLUSSER, M. S. Nepal Mandala: A Cultural Study of the Kathmandu Valley.
Princeton, Princeton University Press, 1982.
65 TAMBIAH, op.cit, p. 69; GLOWSKI, J. M. Protection, Power and Politics: an Iconographic Study of Kumari Baha Mandala in Kathmandu. Ph.D. Dissertation, Ohio State
University, Columbus, 2002 (vide p. iii).
66 LEVY, R. I. Mesocosm: Hinduism and the Organization of a Traditional Newar
City in Nepal. Berkeley: University of California Press, 1990 (vide p. 155-6).
67 SARAN, op.cit, p. 52.
68 BANGDEL, D. Tantra in Nepal. In: HUNTIGNTON, J.; BANGDEL, D. (eds.). The Circle of Bliss: Buddhist Meditational Art. Chicago: Serindia; Columbus: The Columbus
Museum of Art, p. 29-36. 2003, (p.34, tradução nossa).
Volume 2
105
Os residentes hindus e budistas do Vale do Katmandu conceitualizam seus locais sagrados como constituindo um maṇḍala, ou
seja, um arranjo circular de divindades, que é homólogo macrocosmicamente ao universo, mesocosmicamente, ao espaço sociocultural e
público indiano e, microcosmicamente, ao corpo e à pessoa do adorador individual69. Embora os locais que demarcam o vale nepalês como
um maṇḍala variem para os hindus e os budistas, a contemporaneidade dessa concepção assevera a continuidade cultural da civilização do
Vale do Katmandu70.
O modelo do maṇḍala é espacial e subjacente tanto à
organização das cidades quanto aos edifícios sagrados e seculares71. O
palácio construído em cada praça era o centro ou o eixo da versão cívica
do modelo pan-indiano do maṇḍala, cujos princípios também regulam
a construção dos templos, mas também dos estupa e dos caitya budistas, construídos a partir de um complexo simbolismo arquitetônico72.
O Vāstu-puruṣa-maṇḍala é o diagrama a partir do qual se
constrói o edifício sagrado, de forma quadrada, que fornece o princípio
da forma arquitetônica e da planta dos templos hindu73. Ele é estabelecido a partir de uma prefiguração metafísica, o vāstu é o campo de
existência demarcado pelas bordas da planta do edifício, que, enquanto
um maṇḍala, é coextensivo ao cosmos estruturado74. Quase todos os
templos na Índia têm um forte elemento tântrico em sua tradição75,
pelo menos desde o século V d.C., mas cada região do subcontinente
incorporou elementos das tradições regionais, como se observa nas diversas fontes escritas relativas à construção desses edifícios76.
69 LEVY, op.cit., p. 150; GELLNER, D. N. Monk, Householder, and Tantric Priest:
Newar Buddhism and its Hierarchy of Ritual. Cambridge Studies in Social and Cultural
Anthropology, n. 84. Cambridge: Cambridge University Press, 1992 (vide p. 191).
70 SLUSSER, op.cit., p. 12; BARRÉ, V.; BERGER, P.; FEVEILE, L.; TOFFIN, G. Panauti:
Une Ville au Nepal. Paris: Berger-Levrault, 1981.
71 KRAMRISCH, op.cit., p. 29.
72 TUCCI, op. cit., p. 30; SNODGRASS, op.cit., p. 104-52.
73 KRAMRISCH, op.cit., p. 22, 29, 30-32.
74 SNODGRASS, op.cit., p. 107, 109-110.
75 SARAN, op.cit., p. 43.
76 BAFNA, op.cit., p. 27. Esse pesquisador testou o postulado proposto por
Kramrisch (1946), questionando a ubiquidade do Vāstu-puruṣa-maṇḍala na arquitetuta indiana.
106 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
O valor do trabalho de Kramrisch está essencialmente em
dar um significado unificado, se não totalmente coerente, ao
que era antes considerado um mero simbolismo esotérico e,
mesmo, irrelevante. (...) o passo crucial que Kramrisch deu foi
reconhecer as implicações poderosas e amplas do maṇḍala
como uma ideia geradora. O que antes foi visto como superficialmente simbólico, como esquemas essencialmente práticos a serem utilizados com propósitos rituais e, até certo
ponto, como guias do layout de complexos e assentamentos
foram, a partir de então, compreendidos como instrumentos
geradores que carregavam uma concepção simbólica profunda do próprio ato de construção77.
Nos Vastu-śastra e Śilpa-śastra – os tratados que regem a arquitetura e as esculturas indianas, o templo da divindade é semelhante ao corpo humano, cada parte com um nome correspondente, de
modo que o topo do edifício – śikhara –, seja o topo da cabeça. Ambos – templo e corpo humano – são concebidos como um maṇḍala. O
mesmo conceito se estende aos estupas budistas,
A planta de um estupa é um maṇḍala. A orientação e os eixos
entrecruzados da planta do estupa proclamam a presença de
um maṇḍala. O ritual para desenhar uma planta de estupa é
o mesmo que aquele para criar um maṇḍala. (...) Estupas independentes são construídas como maṇḍala e os conjuntos
também são arranjados em padrões de maṇḍala78.
Em alguns estupas, a forma do maṇḍala se estabelece externamente pelos eixos cruzados dos portais e escadarias79, em outros, o
maṇḍala se torna aparente com as imagens dos Budas ou outras divin-
77 Idem, ibidem, p. 31 (tradução nossa).
78 SNODGRASS, op.cit., p. 126, 129 (tradução nossa).
79 Idem, ibidem, p. 131-132, 135; BÉGUIN, op.cit., p. 14. Nos estupas Hinayāna,
geralmente são os Mānuṣī Budas – os Budas do presente eon –, que ocupam o centro
e as direções cardeais, enquanto os estupas das escolas Vajrayāna são explicitamente
erigidos como maṇḍala. No Nepal, esses monumentos possuem os cinco Budas Jina,
ou Dhyāni Budas – com o Ādi-Buddha, ou Vairocana, no centro. Esses estupas são expressões do maṇḍala do mundo adamantino – vajra-dhātu-maṇḍala, que representa
o mundo de multiplicidade e divisão.
Volume 2
107
dades dispostas nas quatro direções80. Nas grutas talhadas na rocha
há, também, evidências do uso recorrente dos maṇḍala.
O ponto sobre o solo selecionado para ser o centro da planta do estupa é simbolicamente o traço ou o reflexo no nível
terrestre do centro primordial do qual deriva a existência por
emanação. Pelo reflexo e pela equivalência simbólica o centro visível é identificado com o centro transcendente. Ele é
visto como o omphalo, o ventre, o flucro do mundo, o ponto
fonte progenitora da manifestação81.
Esse esquema se estende, igualmente, ao espaço doméstico,
pois as casas são, ao mesmo tempo, agentes na criação e manutenção dessa dinâmica. Seus habitantes vivem a cosmologia em meio à
própria arquitetura doméstica, com rituais que criam e organizam tais
espaços82. O Vastuśastra é um sistema de arquitetura e construção
para todas as formas construídas, que incluem residências privadas,
templos, bairros, vilas e cidades inteiras83. Assim,
As casa nepalesas são maṇḍala (diagramas místicos), não
apenas na vida cotidiana mas também na imaginação. Elas
são construídas materialmente, erigidas ritualmente e configuradas praticamente como espaços funcionais para a vida
doméstica e como espaços sagrados que reiteram a natureza
do cosmos, de modo que, morar nesses maṇḍala domésticos
produz um conhecimento do cosmos que eles representam.
Como maṇḍala, as casas são um meio para a vida diária e
para o conhecimento personificado do cosmos do qual esse
mundo cotidiano recebe significado (...). Para o chefe de família, a vida no mundo é prática e cosmológica84.
80 SNODGRASS, op.cit., p. 126, 141-45; BRAUEN, op.cit., p. 68-73; BÉGUIN, op.cit.,
p. 15, 30; TUCCI, op.cit., p. 13. Nos estupas Hinayāna, geralmente são os Mānuṣī
Budas – os Budas do presente eon –, que ocupam o centro e as direções cardeais, enquanto os estupas das escolas Vajrayāna são explicitamente erigidos como maṇḍala.
No Nepal, esses monumentos possuem os cinco Budas Jina, ou Dhyāni Budas – com
o Ādi-Buddha, ou Vairocana, no centro. Esses estupas são expressões do maṇḍala do
mundo adamantino – vajra-dhātu-maṇḍala, que representa o mundo de multiplicidade e divisão.
81 SNODGRASS, op.cit., p. 19 (tradução nossa).
82 BARRÉ et al., op.cit.; GRAY, op.cit., p. 1, 17, 32-33.
83 GRAY, op.cit., p. 25.
84 Idem, ibidem, p. 1, 4 (tradução nossa).
108 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Os princípios do desenho vastu orientam o layout dos cômodos de uma casa e, consequentemente, as atividades domésticas das
pessoas que a habitam, em relação à geografia sagrada. A casa como
maṇḍala é uma representação tanto do dono quanto do cosmos85.
Ultimamente muitos acadêmicos têm apresentado forte evidência de que as grutas budistas, os santuários hindus e mesmo as esculturas personificam certos yantra e maṇḍala. (...)
Todos esses argumentos são um tanto diferentes da afirmação de o maṇḍala (particularmente o Vāstu-puruṣa-maṇḍala)
ser a chave para gerar as formas das estruturas contruídas.
Nesses casos, os templos e outras estruturas foram construídos, nem tanto pelas informações formais decodificadas a
partir do maṇḍala mas, simplesmente, como uma versão tridimensional delas e, mais significativamente que isso, como
formas que servem para esconder os maṇḍala ali inseridos.
Em outras palavras, as formas dessas estruturas não eram
supostamente derivadas desses maṇḍala. O único requisito
era que eles fornecessem pontos de correspondência com
o maṇḍala subjacente, de modo que um iniciado pudesse
recosntruir mentalmente o maṇḍala que de outra maneira
está escondida da visão. O maṇḍala, em si, não carregava
nenhuma informação sobre a arquitetura da superestrutura. Aqui, ao invés do maṇḍala codificar a informação sobre a
superestrutura, é a forma arquitetônica que codifica a informação sobre os maṇḍala. Os maṇḍala permanecem o que
são – suportes meditativos86.
A ubiquidade dessa configuração geométrica na paisagem
urbana causa certamente efeitos culturais pronunciados. Esse padrão
é reiterado pelos festivais e rituais comunais, quando divindades são
carregadas pelas ruas das cidades numa procissão que tem locais específicos para sua adoração e que estabelecem um circuito mandálico
no espaço urbano sacralizado87. Nas cidades e nos templos, o que se
observa é que os padrões que seguem a configuração dos maṇḍala
85 GRAY, op.cit., p. 23, 29-30, 32-33.
86 BAFNA, op.cit., p. 46 (tradução nossa).
87 GUTSHOW, N. The Ritual Chariots of Nepal. Mobile Architecture in Asia: cerimonial chariots, floats and carriages. Art and Archeology Research Papers, 16: 32-38.
1979 (vide p. 33).
Volume 2
109
permaneceram constantes e disseminados pela paisagem sagrada e
secular das diferentes regiões do Sul e do Sudeste asiáticos.
IV. A Imagética dos Maṇḍala – Painéis e Esculturas
Os maṇḍala, por questões históricas, são melhor conhecidos
no ocidente pelos painéis e pinturas, no entanto, além dos suportes bidimensionais, existem evidências da existência dos maṇḍala escultóricos ou tridimensionais, desde períodos bastante remotos, conhecidos
pelos textos e tradições budistas88.
Os maṇḍala imagéticos foram descritos sucessivamente e em
grande detalhe nas fontes textuais. Os pintores e escultores deveriam
seguir minuciosamente essas prescrições89.
No budismo, a obra de arte sempre é um meio de comunicar conceitos soteriológicos ao espectador no nível em que
ele está pronto para compreendê-los. Em razão das obras
de arte serem formas de comunicação, as imagens devem
ser vistas como ‘textos’; porque elas pertencem ao budismo
‘real’ de seu tempo, mesmo que os detalhes sobre as tradições dos ensinamentos que as cercam estejam perdidas ou
sejam obscuras90.
88 HUNTINGTON, J. C. Note on a Chinese Text Demonstrating the Earliness of Tantra. Journal of the International Association of Buddhist Studies, v. 10, n. 2, 1987,
p. 88-98. O estudioso sugere que indícios iconográficos dessas estruturas podem
ser encontrados já nos séculos I e II a.C.; SAMUEL, op.cit., p. 225-26. O célebre Suvarṇaprabhāsasūtra – o Sūtra da Luz Dourada, de afiliação Mahāyāna, parece ser a
primeira referência ao esquema cosmográfico budista dos quatro Budas das quatro
direções, tendo sido datado de pouco antes do século V d.C. e traduzido para o chinês entre 414 e 421 d.C.
89 BÉGUIN, op.cit., p. 28. Duas dessas fontes são bastante célebres, o Vajravalī, do
século XI, descreve os 26 tipos principais de maṇḍala da escola Mahāsukha. Um outro tratado, mais completo, atribuído ao mesmo autor, o Niṣpannayogāvali, descreve
42 maṇḍala; BRAUEN, op.cit., p. 26., que já havia pesquisado o Vajravalī, menciona
28, 42 e 55 tipos de maṇḍala. Esse estudioso menciona um outro mestre, chamado
Mitrayogin, que teria transmitido seu conhecimento de 108 maṇḍala no Tibete, entre os anos de 1198 e 1199.
90 HUNTINGTON, J. C. The Iconography and Iconology of Maitreya Images in Gand-
110 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Cada divindade pode, teoricamente, ser o centro de um
maṇḍala. Os Dhyāni Budas estão associados, cada qual, a uma direção,
um mantra, uma cor, uma Prajñā e um guardião do portal. Os maṇḍala
mais recorrentes apresentam um Buda associado a outros Budas ou
aos Bodhisattvas e seus séquitos. Existem, também, os maṇḍala dedicados aos próprios Bodhisattvas e seus séquitos91.
Fig. 1: Placa modelada com Maṇḍala do Buda e dos oito Bodhisattvas
Terracotta, Século VI, Gupta, Índia, 12,7cm.
Fonte: Metropolitam Museum of Art (www.metmuseum.org).
Fig. 2: Aṣta-mahā-bodhisattva-maṇḍala - na Gruta 12 de Ellora - “Tin Thal”. Primeiro andar, parede posterior, à direita da entrada da antecâmara do santuário
central. Calukya, final do século VII - início do VIII.
Fonte: © John C. Huntington (Cortesia do Huntington Archive of
Buddhist and Asian Arts).
Nos maṇḍala mais antigos, os atributos dos Budas e Bodhisattvas não eram totalmente distintos e podiam se repetir. Mais tarde,
além de programas iconográficos mais complexos, os atributos se tornaram específicos, acompanhados da padronização das poses e das
mudrā, os personagens associados, por sua vez, também passaram a
hara. Journal of Central Asia, v. 7, n. 1, p. 133-179, jul. 1984 (p. 136, tradução nossa).
91 DONALDSON, op.cit., p. 126.
Volume 2
111
ajudar na identificação de cada Buda e Bodhisattva. Exemplos desses
maṇḍala mais antigos existem, pelo menos desde o século VI d.C., em
placas de terracota de Uttar Pradesh (Imagem 1). Mas também se encontram exemplares talhados nas grutas budistas de Maharashtra –
como as grutas 6, 11 e 12 de Ellora (Imagem 2)92.
Os princípios da iconografia dos maṇḍala foram evidenciados
no programa iconográfico da Gruta 6 de Aurangabad, em Maharashtra. O arranjo nessas grutas teriam sido inspirados pelo Vajradhātu-mahāmaṇḍala ou pelo Mahākaruṇā-garbhadhātu-mahāmaṇḍala,
embora a correspondência entre o maṇḍala descrito na fonte textual
e o layout da gruta não sejam exatos93. Isto porque,
Os maṇḍala em si, são arranjos muito complexos, que obviamente não são encontrados integralmente em Aurangabad
(...). O arranjo e os detalhes finais do maṇḍala devem ser
decididos pelo ācārya; portanto, é muito provável que a maneira como os maṇḍala eram apresentados variasse consideravelmente, desde que os principais elementos estivessem
presentes. Dado o trabalho intenso que o entalhe da pedra
exigia, é muito provável que apenas os elementos principais
estivessem presentes nesse tipo de suporte94.
O conceito de arte esotérica acessível ao público leigo seria
algo tardio e, no período inicial, as visualizações elaboradas parecem
ter sido destinadas a poucos praticantes avançados95.
Outra questão importante é que, tanto nas pinturas como
nas esculturas, é possível e também usual, se reduzir o maṇḍala ao
92 DONALDSON, op.cit., p. 127; BÉGUIN, op.cit., p. 12.
93 HUNTINGTON, J. C. Cave Six at Aurangabad: A Tantrayana Monument?. Kaladarsana: American Studies in the Art of India, 1981, p. 47-55.
94 HUNTINGTON, op.cit., 1981, p. 49 (tradução nossa).
95 BRANCACCIO, P. The Buddhist Caves at Aurangabad: Transformation in Art and
Religion. Leiden: Brill. 2011 (vide p. 185-187). Para a autora, a probabilidade de que
conceitos secretos e imbuídos de concepções metafóricas profundas fossem registrados de modo explícito e com acesso ao público leigo nessas grutas, já no estágio
inicial dessa complexa iconografia, parece pequena para alguns estudiosos, dado o
caráter esotérico envolvido em tais práticas. No entanto, seria necessário comprovar
que as grutas de Aurangabad eram visitadas por leigos e não destinadas exclusivamente aos monjes, no período em que essas imagens foram esculpidas. Além disso,
o fato do público leigo ter acesso às esculturas não significa, necessariamente, que
eles compreendessem os conceitos ali contidos.
seus elementos essenciais, assim, o ārya (progenitor) pode representar todo o maṇḍala e outros tipos de reduções também são possíveis.
Esse fenômeno, por sua vez, dificulta enormemente a identificação de
temas esotéricos em obras mais antigas96.
Na prática do maṇḍala, em geral, a divindade central pode
servir como uma lembrança do todo, uma vez que ele (ou
ela) é o progenitor do todo; há numerosos exemplos no
mundo budista de uma figura única servindo de substituta
de todo o maṇḍala. Assim quando existem cinco divindades
do ciclo presentes, não pode haver dúvida de que o maṇḍala
é intencional97.
Além disso,
É necessário fazer uma distinção entre imagens de culto
primárias (ārya – o ‘reverenciado, venerado’) e as imagens
subsidiárias das imagens de culto. Na teoria budista, o ārya é,
na verdade, o gerador de todo o conjunto de imagens que o
cercam. Assim, a ‘imagem primária’ deve ser compreendida
tanto como o foco principal do conteúdo comunicativo, assim como a fonte de todos os ‘reflexos’ de si mesma em qualquer unidade iconográfica na qual ela está contida, quer seja
num templo completo ou simplesmente numa única imagem
com alguns atendentes. Isso inclui até a mais modesta das
imagens votivas. Da mesma maneira, é preciso manter em
mente a posição da figura no contexto. Se a imagem estiver
96 HUNTINGTON, op.cit., 1984, p. 152-153. Um estudo iconográfico sobre uma
imagem de Maitreya proveniente de Gandhāra, datada dos séculos III-IV d.C., considerou a relação entre os personagens presentes nas cenas da base da imagem e
a imagem principal, como um maṇḍala escultórico. Nesse caso, a imagem estaria
associada ao budismo esotérico, bem antes do século VII d.C., data tradicionalmente
atribuída ao seu surgimento no subcontinente indiano. Os quatro Bodhisattva presentes na base possuem os atributos e estão na posição correta (direções cardeais)
que lhes caberia na representação esquemática de um maṇḍala: Maitreya no centro
do grupo, como o ārya (progenitor) das demais divindades – fornecem indícios de
um proto-pāñcajina-maṇḍala.
97 HUNTINGTON, J. C. The Iconography of Borobudur revisited: The Concepts
of Slesha (Multivalent Symbology) and the Sarava[buddha]kaya as Applied to the
remaining Problems. In: KLOKKE, M.; SCHEURLEER, P. L. (eds.), Ancient Indonesian
Sculpture. Leiden, KITLV Press, 1994, p. 133-153 (p. 141, tradução nossa).
Volume 2
113
no centro do templo, ela é o ārya de todo o sistema iconográfico do templo98.
A Gruta 90 de Kanheri, datada da metade do século VI d.C.,
possui dois relevos esculpidos nas paredes com claras noções tântricas99. Outros dois maṇḍala tântricos foram identificados na Gruta 6
de Ellora, datados de c. 600 d.C. Eles estão nas paredes laterais do
santuário da gruta e são desenhados como diagramas quadrados de
nove partes, com um Buda em dharmacakramudrā em cada um desses compartimentos100.
Fig. 3: Gruta 12, Ellora – “Tin Thal”, Calukya, final do século VII – início do VIII.
Fonte: Aldrovandi (2004).
Fig. 4: Bodhisattvas nas laterais da entrada do santuário principal no segundo andar
da Gruta 12 de Ellora. Calukya, final do século VII – início do VIII.
Fonte: Aldrovandi (2004).
98 HUNTINGTON, op.cit., 1984, p. 139, 161 (tradução nossa).
99 CUMMINGS, op.cit., p. 27; BÉGUIN, op.cit., p. 120. Na parede esquerda do
santuário há um maṇḍala que representa um Buda central ladeado por dois Bodhisattva, duas figuras femininas e outras divindades subsidiárias. Esse relevo foi identificado como o Buda Vairocana, cercado por quatro Tathāgatas e oito Budas Mānuṣī
no exterior. A presença desse maṇḍala é um exemplo da complexidade crescente do
programa iconográfico no budismo indiano. Nesse caso, o relevo demonstra o conhecimento do maṇḍala subjacente do Yoga Tantra mais elevado, aquele dos cinco Budas Jina que personificam o conhecimento da iluminação de um Buda e transmitem
esse conhecimento ao praticante tântrico.
100 CUMMINGS, op.cit., p. 27; NEVILLE, op.cit., p. 17. Conceitualmente, compreende-se que o Buda central gera os outros oito, quatro nas direções cardeais e quatro
nas direções intermediárias, cada um deles, um aspecto ou reflexo da figura central.
114 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Figuras 5, 6 e 7: Buda ladeado por Bodhisattvas no santuário principal do segundo
andar da Gruta 12 de Ellora. Calukya, final do século VII – início do VIII. Fonte: ©
John C. Huntington (Cortesia do Huntington Archive of Buddhist and Asian Arts).
Fig. 8: Pintura do Sarvadurgatipariśodhana-maṇḍala do Buda Akṣobhya, Tibete centro-sul. Pigmentos e ouro sobre algodão. Século XIII. Fonte: Brauen (1992, p. 89).
Fig. 9: Maṇḍala tridimensional do Guhyasamāja, Nepal, Século XX, Metal, Coleção
do Monastério Namgyal, Dharamshala, Índia. Fonte: © John C. Huntington (Cortesia
do Huntington Archive of Buddhist and Asian Arts).
A complexidade dos programas iconográficos desse período
teve seu ápice na Gruta 12 de Ellora – Tin Thal (Imagem 3) –, na qual,
cada um dos três andares possui um santuário (Imagem 4) com Śākyamuni ladeado por Avalokiteśvara e Vajrapāṇi no interior. Nas laterais,
estão dispostos oito Bodhisattvas (Imagens 5, 6 e 7). A gruta também
Volume 2
115
apresenta cinco maṇḍala idênticos, talhados em relevo nas paredes,
diagramas de nove partes quadradas, com um Buda cercado por oito
Bodhisattva, que correspondem ao padrão encontrado nos santuários
de cada pavimento (Imagem 2).
Cada andar dessa gruta [12] deve ser compreendido como
um espaço físico mandálico tridimensional, gerado pela divindade central do santuário e os três andares como elementos de um único esquema. Cada andar da gruta pode
representar um nível diferente de realização, cada um mais
elevado que o anterior, e que espelha os estágios do iniciado
tântrico durante suas práticas. Os três andares também sugerem uma relação do conceito tântrico do esquema dos três
corpos do Buda – trikāya101.
Assim, as esculturas de um Buda ladeado por oito Bodhisattvas em pé, encontradas nesses nichos na Gruta 12 de Ellora, são
consideradas uma espécie de maṇḍala tridimensional102. Esse arranjo
é muito semelhante à disposição encontrada nos maṇḍala bisdimensionais nepaleses e tibetanos (Imagem 8). O uso dos maṇḍala é fundamental a todas as formas de prática tântricas e a presença desses
maṇḍala imagéticos, nas grutas de Maharashtra, comprova que essas
práticas estavam em uso na Índia pelo menos desde o século VII d.C.
e que tiveram continuidade até os dias atuais, nas regiões em que o
budismo tântrico se desenvolveu (Imagem 9).
V. O Maṇḍala Textual em um Sūtra Nepalês
Finalmente, evidências recentes do uso desses diagramas sagrados na estrutura narrativa de certas fontes textuais foram encontradas durante a análise de um manuscrito indo-nepalês, contendo o
Guṇakāraṇḍavyūhasūtra [GKV], uma fonte Vajrayāna do século XV103.
101 Idem, ibidem, p. 27 (tradução nossa).
102 DONALDSON, op.cit., p. 127.
103 ALDROVANDI, C. A monumentalidade discursiva no budismo indo-nepalês: uma
116 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
De fato, a forma como o texto indiano original – o Kāraṇḍavyūhasūtra
[KV] – se expandiu, como foi retrabalhado e reinserido em novas molduras narrativas evidenciou um tipo de interdiscursividade associada
aos maṇḍala.
Sabemos que a utilização de narrativas emolduradas é um
procedimento retórico recorrente nas obras indianas desde a antiguidade, cujo exemplo mais conhecido é o Mahābhārata104. A estrutura
narrativa do GKV foi composta de modo concêntrico – em termos formais, ela apresenta uma sucessão de diálogos que emolduram o fio
condutor da narrativa. Embora a estrutura das molduras internas varie
em cada capítulo, em termos temporais a cronologia é criada e, ao
mesmo tempo, legitimada pela linhagem dos personagens pseudo-históricos ou míticos citados, por vezes de modo recorrente, ao longo de
cada capítulo. Algo que é claramente observável na estratigrafia textual, pois há uma mudança importante entre as duas formas narrativas:
enquanto, no KV, a narração das histórias internas se dá sempre pela
pessoa do Buda Śākyamuni, no GKV, os Budas do passado também se
tornaram narradores. Além de ser um procedimento associado à legitimação das elites sacerdotais, o fato de transformar os antigos Budas
em narradores, no GKV, amplia, em muitas eras, a cronologia de divindades que o legitima105. A dimensão espacial, por outro lado, é criada
estratigrafia das fontes escritas e iconográficas presentes no Guṇakāraṇḍavyūhasūtra. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, v. 22, p. 3 - 30, 2012; ALDROVANDI, C. Texto como Mandala: a estratigrafia discursiva no Guṇakāraṇḍavyūhasūtra. Revista Kriterion, Departamento de Filosofia, UFMG, 2015 (no prelo).
104 BUITENEN, J. A. B. (trad.; ed.). Prefácio. The Mahabharata. Volume 1, Book 1:
The Book of the Beginning. Chicago: The University of Chicago Press, 1973 (vide p.
xvi-xxiii).
105 ALDROVANDI, op.cit. 2015. Nesse sentido, um passado cosmológico é criado
no GKV, por meio do que podemos melhor descrever como molduras pretéritas, que
remetem o texto às eras passadas, tornando-o um cosmograma tridimensional. Já o
presente narrativo, ou a época em que o o sūtra foi produzido, é estabelecido pela
moldura externa com o rei e o mestre nepaleses. Além disso, o colofão de cada novo
manuscrito do GKV, o reinsere em uma nova moldura e estabelece sua linhagem,
citando seu copista e local de produção. Também é necessário pensar numa metamoldura, que, embora não apareça citada na obra, é a moldura formada cada vez
que os sacerdotes, monges e estudantes budistas lêem o GKV, algo que é feito em
voz alta nos templos nepaleses até os dias atuais. Dessa forma, o ato de leitura da
obra cria, em si, uma moldura que insere o leitor-presente na última camada dessa
estratigrafia cosmo-narrativa.
Volume 2
117
pela citação de uma série de lugares associados às molduras narrativas
e às diferentes regiões dos reinos do Desejo e da Forma – Kamadathu
e Rupadhatu – na cosmologia budista, todas elas visitadas pelo Bodhisattva Avalokiteśvara, protagonista da narrativa, durante sua jornada
para resgatar os seres sencientes.
Como vimos, os elementos que determinam o uso ubíquo do
modelo do maṇḍala são os limites, a hierarquia e a importância da
centralidade. Os limites nesse caso, são traçados pelas molduras narrativas, a hierarquia se dá entre os narradores, e a centralidade, no Bodhisattva Avalokiteśvara106. Toda essa tridimensionalidade textual, por
sua vez, nos coloca diante de um forte indício de mandalização. Além
disso, como observado anteriormente, se a obra de arte no budismo
“pode ser lida como texto”107, também é possível, por extensão de sentido, pensar no sūtra como imagem – criada a partir de uma estruturação narrativa que o redesenha em uma esfera transcendente – no caso
do Guṇakāraṇḍavyūhasūtra, o desenho de um maṇḍala. Esse Sūtra,
no que tange à estrutura espácio-temporal de seu conteúdo narrativo
e de seus personagens, foi constituído na forma de um cosmograma
tridimensional, isto é, o texto original indiano ao ser transposto para o
millieu nepalês adquiriu uma transcendência narrativa que o reconfigurou como um maṇḍala textual108. Enquanto o KV é um sūtra indiano
106 ALDROVANDI, op.cit. 2015. Assim, ao estabelecermos um diagrama desse
maṇḍala textual, a moldura narrativa presente corresponderá ao elemento quadrado do maṇḍala, i.e., à esfera terrestre – Jambudvipa. As outras molduras narrativas,
sejam elas referentes ao rei Jinaśrī e seu mestre Jayaśrī; ao imperador Aśoka e seu
mestre Upagupta; ao Buda Śākyamuni e o bodhisattva Sarvanīvaraṇaviṣkambhin; ou
aos demais Budas do Passado, podem ser configuradas como os círculos internos
desse maṇḍala. Cada capítulo gera um maṇḍala específico, com desenho e personagens particulares. O ponto central do maṇḍala, do qual tudo emana é o próprio
Bodhisattva Avalokiteśvara, que perpassa tanto as esferas espaciais (geográficas)
quanto temporais (todos os planos); ele é o centro, o ārya ou o gerador do maṇḍala,
e, ao mesmo tempo, o seu corpo é o próprio maṇḍala que contém todo os reinos
do universo. Avalokiteśvara perpassa todas as esferas espaciais e temporais, mas, ao
mesmo tempo, ele também as contém – ele encerra todos os mundos em seu próprio corpo. No GKV, Avalokiteśvara é o eixo central ao redor do qual toda a narrativa
cosmológica se desvela. No esquema soteriológico budista, ele é o elo de ligação
entre todos esses mundos.
107 HUNTINGTON, op.cit, 1984, p. 136.
108 ALDROVANDI, op.cit. 2015. Algo que não havia sido proposto anteriormente
por nenhum estudioso, ou mesmo utilizado como forma de análise de outras fontes
118 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
de afiliação Mahāyāna, o GKV é uma recriação forjada em um contexto
Vajrāyana nepalês, profundamente associado aos maṇḍala.
Consideações finais
Em suma, os maṇḍala certamente estão entre as grandes metáforas já criadas acerca do universo e sua cosmogonia. A onipresença desses cosmogramas na paisagem cultural e na práxis religiosa do
subcontinente indiano e nas demais regiões da Ásia é incontestável,
particularmente nas áreas e períodos em que o tantrismo foi preponderante. Dessa forma, o que se observa é que as evidências recuperadas asseveram a recorrência e reiteram a ubiquidade desses diagramas sagrados no contexto budista indo-nepalês, em vários níveis de
convergência – tanto micro, meso quanto macrocósmicos. Todos eles
emergem amparados por esse paradigma cosmográfico: o maṇḍala.
literárias budistas.
Volume 2
119
CULTUANDO OS MORTOS
E AS DIVINDADES:
EXPRESSÕES DA RELIGIOSIDADE E
A FORMAÇÃO DA POLIS GREGA NO
PERÍODO GEOMÉTRICO (900 A 700 A.C.).
Camila Diogo de Souza1
O processo de emergência, formação e consolidação da polis
grega constitui um objeto de estudo amplamente debatido e controverso. Tais análises fundamentam-se na dicotomia mundo dos mortos,
de um lado, versus mundo das divindades e dos heróis de outro. Os rituais que envolvem o mundo dos mortos são frequentemente considerados como expressões de religiosidade de caráter individual, familiar,
em oposição às práticas cultuais que configuram o mundo dos deuses
e dos heróis, concebidas enquanto formas coletivas de manifestação
religiosa do corpo cívico da polis.
Uma das consequências evidentes dessas abordagens que
devemos ponderar nos remete ao tratamento isolado de aspectos da
cultura material, que, por natureza, são intrínsecos e indissociáveis,
isto é, práticas rituais que integram o mundo cultural de uma sociedade como um todo, mesmo que elas tenham conotações e funções
distintas. Sejam rituais direcionados aos mortos, às divindades ou
aos heróis, tais manifestações fazem parte do universo da religião,
constituído tanto pela ação humana, isto é, as práticas e os resultados materiais das mesmas, como a deposição de objetos, a realização de sacrifícios, banquetes fúnebres, orações e lamentações, etc.,
quanto pelas crenças, ou seja, as concepções de morte e vida após
1 Pós-doutoranda do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo (MAE/USP). E-mail:
[email protected]. Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos aos organizadores deste dossiê, Carolina Kesser Barcellos Dias,
Semíramis Corsi Silva e Carlos Eduardo Campos, pelo convite para participar com
este breve ensaio reflexivo sobre os papéis das manifestações de religiosidade no
processo de formação da polis grega. Trata-se de um tema bastante discutido, porém
controverso e ainda fértil e inovador.
Volume 2
121
a morte, de divino, sagrado em oposição ao profano, entre outras.
Neste caso, o universo das práticas e das crenças é também tratado
de forma isolada e antagônica, minimizando ou até mesmo anulando
as inúmeras relações de causa e efeito que um campo possui sobre
o outro. A ação não existe sem a crença, da mesma forma que a convicção não existe sem a práxis.
Essas reflexões nos remetem a um outro resultado que emerge das análises dicotômicas entre o mundo dos mortos e o mundo das
divindades e dos heróis e diz respeito a uma tendência acentuada em
considerar a passagem do aspecto privado, individual e familiar dos rituais do mundo dos mortos para o âmbito público e coletivo dos cultos
às divindades e aos heróis como uma etapa absolutamente necessária
e presente no processo de formação da polis.
Para muitos autores, esse processo evolutivo da constituição
da polis grega, marcado pela transferência de manifestações religiosas
privadas nas sepulturas para os cultos públicos nos santuários, é exteriorizado por meio da diminuição dos objetos depositados nos túmulos e do início da deposição de um grande número de oferendas nos
templos no final do Período Geométrico2. Tal fato constitui uma das
2 A cronologia do Período Geométrico na Grécia Antiga varia significativamente
em suas datas absolutas para as principais regiões e os grandes centros de produção
cerâmica do mundo grego. A denominação deste período surgiu em função da decoração do estilo cerâmico adotada a partir do final da Idade do Bronze, do final do
Período Micênico, por volta de 1100 a.C. e início da denominada Idade do Ferro. A
figuração dos vasos passa a ser constituída fundamentalmente de motivos não figurados “puramente” geométricos, como linhas paralelas horizontais e verticais, barras
oblíquas, meandros, círculos e semicírculos concêntricos, triângulos hachurados, etc.
À diversidade e complexidade dos motivos decorativos, das composições e combinações dos motivos não figurados formando painéis horizontais e verticais que ocupam
cada vez mais o espaço, a superfície e as partes dos vasos, acrescenta-se a introdução
das figuras animais e humanas geometrizadas que desenvolvem ações e compõem
cenas iconográficas, principalmente no final do Período Geométrico. Os dois principais centros de produção cerâmica geométrica são o ático e o argivo. Tais variações
regionais implicam em diferenças cronológicas significativas em relação às datas absolutas que constituem cada subperíodo em cada região. Entretanto, de maneira
geral, o Período Geométrico compreende um longo período de aproximadamente
200 anos que podem ser subdivididos nos seguintes subperíodos para a produção
cerâmica ática: Geométrico Antigo (900 a 850 a.C.), Geométrico Médio, (850 a 775
a.C.) e o Geométrico Recente (775 a 700 a.C.). Cada subperíodo é segregada ainda
em duas fases, I e II. Coldstream, John Nicolas. Greek Geometric Pottery. A survey
122 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
evidências mais significativas para demonstrar o advento de uma sociedade em que a expressão do status individual tende a se dissipar e
até mesmo desaparecer face às manifestações de identidade coletiva,
isto é, a polis. Análises dessa natureza reduzem o conceito de polis a
um modelo abstrato e fortemente influenciado pelas estruturas constitutivas da cidade grega durante Período Clássico.
As raízes de tais abordagens encontram-se em generalizações
mais profundas e antigas e tão (ou até mesmo mais) abstratas e imprecisas quanto as noções de público e privado e as definições do próprio
termo polis e religião grega. Conforme afirma De Polignac:
“Não é um bom método atribuir ou recusar o rótulo polis à
uma sociedade caso ela apresente ou não, em suas manifestações rituais, traços que nos permitem detectar uma ideologia
igualitária ou “isonômica” oposta à exaltação do indivíduo”3.
A partir de tais reflexões, enfatizamos que o objetivo deste
breve ensaio não visa formular de antemão ou utilizar modelos preestabelecidos de definições da polis grega. Buscamos, a partir da análise
de dois casos bem particulares de expressões da religiosidade, entender como duas sociedades estão se organizando e construindo suas
of ten local styles and their chronology. London: Methuen & Co. Ltd, 1968. Para a
cerâmica argiva as balizas cronológicas são um tanto diferentes: Geométrico Antigo
(900 a 820 a.C.), Geométrico Médio (820 a 750 a.C.) e o Geométrico Recente (750 a
700 a.C.). Paul Courbin divide cada fase em I e II e ainda o Geométrico Recente II em
IIa, IIb e IIc. Courbin, Paul. La céramique géométrique d’Argos. Paris: De Boccard,
1966. Para maiores detalhes sobre a cronologia de casa subfase dos subperíodos do
Geométrico e suas especificades regionais, como por exemplo as datas absolutas
aproximadas para cada fase da produção cerâmica geométrica argiva, ver De Souza,
Camila D. As Práticas Mortuárias na região da Argólida entre os séculos XI e VIII a.C.
Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. Suplemento 13. São Paulo: Imprensa
Oficial, 2011. Para comparar com demais regiões: Snodgrass, Anthony M. The Dark
Age of Greece. An Archaeological Survey of the Eleventh to the Eighth Centuries BC.
New York: Routledge, 1971; Coulié, Anne. La céramique grecque aux époques Géométrique et Orientalisante : XIe-VIe siècle av. J.-C. Les manuels d’art et d’archéologie
antiques. Paris : Picard éditions, 2013.
3 De Polignac, François. « Entre les dieux et les morts. Statut individuel et rites
collectifs dans la cité archaïque. » In: Hägg, Robin (ed.). The Role of Religion in the
Early Greek Polis. Proceedings of the Third International Seminar on Ancient Greek
Cult, organized by the Swedish Institute at Athens, 16-18 October 1992. Stockholm:
Åströms, p. 31-40, p. 39-40.
Volume 2
123
próprias crenças e suas definições de polis, principalmente no final do
Período Geométrico. Partiremos do exame das práticas funerárias executadas no sítio de Argos, na região da Argólida, no Peloponeso, e no
sítio de Erétria, localizado na ilha da Eubéia, à leste do continente. A
proposta apresentada considera uma abordagem micro analítica, centralizada nos detalhes de um conjunto de evidências de natureza funerária, que nos permite reconsiderar alguns paradigmas do processo
de formação da polis e dos papéis das manifestações religiosas nos
aspectos econômicos e sociais desse processo.
Apresentamos, dessa forma, um catálogo resumido do material arqueológico contendo uma breve descrição das sepulturas e de
seu conteúdo nos dois sítios selecionados, Argos e Erétria, afim de discutir as principais interpretações sobre ambos os casos e, em última
instância, refletir sobre as relações entre as expressões de religiosidade e a formação da polis no Período Geométrico.
I. Erétria
As escavações em Erétria remontam ao ano de 1885, contudo
as primeiras sepulturas datadas do Geométrico foram reveladas apenas em 1903 por N. Kourouniotis4. Os primeiros vestígios arqueológicos de habitação do sítio remontam ao século IX a.C. e, a partir de
então, sua ocupação será contínua e intensa até o final do VI da nossa
era, com períodos de prosperidade e destaque da cidade principalmente do Período Arcaico até o Helenístico. Em 1965 e 1966, Claude
Bérard5 descobre um conjunto de sepulturas do século VIII a.C., 18
4 Para detalhes da história das escavações da Escola Suíça de Arqueologia na
Grécia (École suisse d’archéologie en Grèce – Schwizerische Archäologische Schule in
Griechenland) em Erétria, ver Blandin, Béatrice. Les pratiques funéraires d’époque
géométrique à Érétrie : espace des vivants, demeures des morts. ERETRIA XVII. Gollion : Infolio ; [Athènes] : École suisse d’archéologie en Grèce, cop, 2007.
5 Uma primeira publicação dos túmulos e dos demais vestígios arqueológicos
encontrados na área da Porta Oeste da cidade foi realizada por C. Bérard em 1970:
Bérard, Claude. L’hérôon à la porte de l’ouest. ERETRIA III. Berne: Francke, 1970. Em
2007, Béatrice Blandin publica dois volumes sobre as práticas funerárias em Erétria,
124 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
no total (do T. 5 ao T. 20, T. 23 e T. 24), sendo cremações em urnas de
bronze e inumações em cova simples, concentradas na área noroeste
do assentamento, próximo a Porta Oeste, contendo um mobiliário funerário bastante singular e abastado: pontas de lança em ferro, espadas e acessórios para vestimenta.
Tais descobertas marcaram de forma crucial as interpretações
sobre a história do desenvolvimento do sítio e da formação da polis de
Erétria. Os enterramentos datam entre 720 e 680 a.C. e, por volta de
desta data, um monumento triangular em pedra foi erguido sobre os
túmulos. No centro da estrutura triangular, um bóthros, datado entre
675 e 625 a.C. foi identificado, contendo figurinhas de terracota de
divindades sentadas, cavalos, cavaleiros, assim como cinzas e madeira
carbonizada, ossos animais, e fragmentos de vasos de formas diversas.
Túmulo 5.
Cremação secundária de um adulto do sexo masculino. Urna funerária em bronze
fechada com uma placa de calcário.
Duas pontas de lança em ferro, uma lâmina em bronze.
Final do GR.
Túmulo 6.
Cremação secundária de um adulto do sexo masculino. Urna funerária em bronze
fechada com um outro caldeirão em bronze. Vestígios de mortalha que envolviam os
restos ósseos incinerados.
No interior da urna funerária:
Fragmento de um vaso fechado, ligeiramente queimado na superfície, um anel em
ouro, um anel em prata, dois arcos de fíbulas, um em ouro, outro em ferro, fragmentos de folhas em ouro e em cobre e um selo.
Ao redor da urna:
Quatro espadas em ferro, seis pontas de lança, cinco em ferro e uma em bronze
(cetro).
Final do século VIII a.C.
Túmulo 7.
Cremação secundária de um adulto do sexo feminino. Urna funerária em bronze fechada por uma placa de chumbo. Vestígios de mortalha que envolviam os restos
ósseos incinerados.
Final do VIII e início do VII a.C.
reavaliando os dados já encontrados e incluindo dados de novas escavações. Blandin, Béatrice. Les pratiques funéraires d’époque géométrique à Érétrie : espace des
vivants, demeures des morts. ERETRIA XVII. Gollion : Infolio ; [Athènes] : École suisse
d’archéologie en Grèce, cop, 2007.
Volume 2
125
Túmulo 8.
Cremação secundária de um adulto do sexo masculino. Urna funerária em bronze
fechada por uma placa de calcário e uma placa de mármore.
Uma ponta de lança em ferro.
Final do GR.
Túmulo 9.
Cremação secundária de um adulto do sexo masculino. Urna funerária em bronze
fechada por uma de arenito xistoso e uma placa de calcário.
No interior da urna funerária:
Uma fíbula em ferro.
Sobre a placa de cobertura:
Duas espadas em ferro, quatro pontas de lança em ferro, quinze vasos cerâmicos
(treze em cerâmica fina pintada e dois em cerâmica rústica).
Final do GR.
Túmulo 10.
Cremação secundária de um adulto de sexo feminino. Urna funerária em bronze fechada com um bloco de pedra. Vestígios de mortalha que envolviam os restos ósseos
incinerados.
No interior da urna funerária:
Um fragmento de vaso cerâmico, três anéis, dois em ouro, um em prata, dois alfinetes em ouro, uma placa (diadema?) em ouro, uma peça de fixação (?) em ouro, um
pingente em osso.
No exterior da urna:
Uma haste em chumbo.
Final do GR.
Túmulo 11.
Inumação de uma criança de aproximadamente 2 anos. Cova simples.
Onze vasos cerâmicos, quatorze discos de terracota, um anel em bronze, uma pérola
em âmbar, dois fragmentos em bronze.
Aproximadamente 700 a.C.
Túmulo 12.
Inumação de uma criança de aproximadamente 3 anos. Cova simples.
Punhal em ferro, nove vasos cerâmicos.
Final do VIII, início do VII a.C.
Túmulo 13.
Cremação secundária de um adulto do sexo feminino. Sepultura perturbada (cova
simples?).
Fragmento de lâmina em cobre.
GR
126 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Túmulo 14.
Inumação de uma criança de aproximadamente 9 meses. Cova simples.
Três vasos cerâmicos, um alfinete em ouro, dois braceletes revestidos em ouro, um
colar em pérolas de vidro, um diadema em ouro.
760-650 a.C.
Túmulo 15.
Inumação de um adolescente de aproximadamente 15 anos. Cova simples.
GR
Túmulo 16.
Inumação de uma criança entre 5 e 6 anos de idade. Cova simples.
Um vaso cerâmico.
GR, por volta de 680.
Túmulo 17.
Inumação. Poucos restos ósseos sem identificação de idade e gênero. Cova simples.
GR
Túmulo 18.
Inumação. Poucos restos ósseos sem identificação de idade e gênero. Cova simples.
Dois vasos cerâmicos.
GR
Túmulo 19.
Inumação de uma criança (composição do mobiliário funerário). Restos ósseos ausentes. Cova simples.
Oito vasos cerâmicos.
Aproximadamente 700 a.C.
Túmulo 20.
Inumação. Poucos restos ósseos sem identificação de idade e gênero. Cova simples.
GR?
Fossa 21.
Depósito votivo. Ossos de animais.
Cinco vasos cerâmicos de grande porte, quatro crateras e, provavelmente, uma ânfora.
GR
Túmulo 22.
Sepultura perturbada. Depósito votivo?
Uma espada em ferro, uma ponta de lança em ferro, fragmentos de vasos cerâmicos.
GR
Volume 2
127
Túmulo 23.
Inumação de um adolescente de aproximadamente 15 anos do sexo feminino. Covas
simples.
Um vaso em cerâmica rústica.
GR
Túmulo 24.
Inumação de um adulto do sexo masculino. Covas simples. Sepultura perturbada.
GR
Um primeiro olhar sobre os dados, indica que há um total de 7
cremações e 11 inumações. Seis cremações são em urnas funerárias de
bronze, grandes caldeirões que encerram cinzas e restos ósseos de indivíduos adultos em mortalhas, dois do sexo feminino e quatro do sexo
masculino6. Uma das cremações secundárias corresponde a um indivíduo adulto do sexo feminino provavelmente em uma cova simples,
porém a cova foi perturbada ainda na Antiguidade. As inumações, todas realizadas no mesmo tipo de sepultura, covas simples, são, em sua
grande maioria, de crianças (5 no total) e bem pequenas, com poucos
anos de vida. Nota-se a presença de dois adolescentes e de três sepulturas em que os restos ósseos não puderam ser identificados devido
à pequena quantidade ou até mesmo à ausência dos mesmos. Restos
ósseos infantis, principalmente de neonatos e crianças com pouca idade, são difíceis de serem preservados, fato que sugere a identificação
de túmulos “vazios” enquanto túmulos de crianças.
Claude Bérard defende que os dados levantados acima constituem um exemplo nítido do processo de “heroicização”, de “evolução
do príncipe ao herói”7, responsável pela formação da polis de Erétria
no final do século VIII e início do VII a.C.8 Para o autor, algumas comunidades do final do Período Geométrico passaram por uma processo
6 Para os detalhes das sepulturas, catálogo completo com descrição, imagens
e análise, vide: Blandin, Béatrice. Les pratiques funéraires d’époque géométrique
à Érétrie : espace des vivants, demeures des morts. ERETRIA XVII. Gollion : Infolio ;
[Athènes] : École suisse d’archéologie en Grèce, cop, 2007.
7 Bérard, Claude. « Récupérer la Mort du Prince : héroïsation et formation de la
cité. » In: Gnoli, Gherardo; Vernant, Jean-Pierre (dir.) La Mort, Les Morts dans les
Sociétés Anciennes. Cambridge: CUP, 1982, p. 89-106, especialmente p. 100.
8 Id. « Erétrie. L’organisation de l’espace et la formation d’une cité grecque ». In:
Schnapp, Alain (org.). L’Archéologie Aujourd’hui. Paris, 1981, p. 229-249.
128 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
sócio-político de “crise da soberania”9, resultante do desaparecimento do wanax micênico (o “rei” dos palácios micênicos) no século XII
a.C. As funções políticas, econômicas, religiosas e militares centralizadas na figura do wanax teriam sido, portanto, partilhadas nas mãos
dos basileis, membros de uma aristocracia guerreira, identificada à
denominada aristocracia homérica (os “príncipes” do Período Geométrico), que se mantêm no poder por meio de suas conquistas e valores
individuais durante a maior parte do Período Geométrico10.
A quantidade de objetos em metal presente nas cremações,
principalmente de artefatos militares, pontas de lança em ferro, punhais e espadas em ferro e bronze, e ainda, anéis e diademais em ouro
e alfinetes em bronze, associada ao fato das cinzas serem encerradas
em mortalhas e contidas em urnas de bronze, contribuíram para a interpretar esses enterramentos como exemplos de sepultamentos de
heróis seguindo o modelo homérico11. De fato, as similitudes entre os
rituais dispensados aos heróis nas obras literárias e aos indivíduos da
Porta Oeste são marcantes, entretanto, cabe ressaltar uma diferença
essencial nos enterramentos em Erétria: a presença de cremações femininas. As mulheres nas obras homéricas jamais recebem o mesmo
tratamento funerário dedicado aos grandes heróis.
Para Bérard, durante o século VIII a.C. as comunidades teriam
sofrido mudanças sócio-políticas significativas que desequilibraram e
questionaram os poderes individuais dos basileis. “Recuperar a morte do príncipe”12, portanto, surge como uma resposta e um recurso
9 Id. « Récupérer la Mort du Prince : héroïsation et formation de la cité. » In:
Gnoli, Gherardo; Vernant, Jean-Pierre (dir.) La Mort, Les Morts dans les Sociétés
Anciennes. Cambridge: CUP, 1982, p. 89-106, principalmente p. 97-98.
10 Whitley, James. “Early States and Hero Cults: a re-appraisal.” JHS, vol. 108,
1988, p. 173-182; Id. “Social Diversity in the Dark Age Greece.” BSA, vol. 86, 1991, p.
341-365.
11 Os quatro grandes personagens homéricos, Heitor, Ájax, Pátroclo e Aquiles são
cremados numa pira, suas cinzas e restos ósseos são depositados numa urna de ouro
ou de bronze que é devidamente enterrada. No local, o túmulo, são realizadas várias
manifestações religiosas, rituais em homenagem ao herói morto, como por exemplo,
libações, ofertas de objetos, comida, cantos, danças, banquetes fúnebres e discursos. Finalmente, ergue-se um monumento na sepultura em homenagem ao herói.
Ilíada, XXIV: 789-99; Ilíada, XXIII.
12 Bérard, Claude. « Récupérer la Mort du Prince : héroïsation et formation de la
cité. » In: Gnoli, Gherardo; Vernant, Jean-Pierre (dir.) La Mort, Les Morts dans les
Volume 2
129
ideológico da aristocracia homérica para legitimar e justificar sua permanência no poder no processo de formação da polis. O indivíduo do
túmulo 6 configura um desses príncipes do Período Geométrico que
é transformado em um “herói democratizado” pelos seus pares, os
demais membros da aristocracia homérica (os indivíduos enterrados
próximos ao T. 6) e, assim, passa a prestar seus serviços para a comunidade como um todo, seja por meio de funções religiosas, com a
construção do herôon (monumento triangular) e do estabelecimento
de um culto comum, o culto heroico, seja por suas funções políticas,
enquanto herói, real ou pretendido, fundador da cidade, seja ainda
por meio de suas funções militares, como guardião e protetor da comunidade como um todo, uma vez que seu túmulo e o herôon se encontram próximos de um dos portões e das muralhas da cidade, intra
muros. Além disso, a organização das estruturas da polis de Erétria,
como por exemplo, o estabelecimento da ágora, da acrópole e das áreas de maior concentração residencial do Período Arcaico, seria resultado em grande medida da localização do herôon13.
A presença do cetro no T. 6 demonstra, para Bérard, a união
do caráter político e militar do herói fundador e protetor da cidade e
ainda constitui um símbolo de legitimação por meio da reinvindicação
pretendida do poder político e do status social de ancestralidade micênica14. A “heroicização” em Erétria, dessa forma, assegurou a continuidade étnica da aristocracia, legitimando sua manutenção no poder
político, porém lhe atribuiu uma nova ordem social, política e militar
em meio à crise ocasionada pelas forças “igualitárias” da polis.
Jean-Paul Crielaard discorda em alguns aspectos de Bérard e
argumenta que os enterramentos do herôon de Erétria não devem ser
entendidos como uma resposta à uma situação de “crise” política, não
constituem, portanto, uma ruptura em relação à configuração da sociedade do Período Geométrico, mas sim uma continuidade. O autor
concorda com Bérard indicando que a “heroicização” teve sim um paSociétés Anciennes. Cambridge: CUP, 1982, p. 89-106, p. 100.
13 Bérard, Claude. « Erétrie. L’organisation de l’espace et la formation d’une cité
grecque ». In: Schnapp, Alain (org.). L’Archéologie Aujourd’hui. Paris, 1981, p. 229249, especialmente p. 237-243.
14 Bérard, Claude. « Le Sceptre du Prince. » MusHelv XXIX, 1972, pp. 219-227,
principalmente p. 226.
130 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
pel da “coletivização” das expressões religiosas para a polis como um
todo em Erétria, porém, defende que a diferenciação e a ostentação da
aristocracia não a coloca à margem da “nova” sociedade, pelo contrário, o culto heroico articula e integra e dá continuidade ao poder dessa
aristocracia homérica. Segundo Crielaard, tal interpretação é sustentada principalmente pelo fato de haver cremações femininas juntos com
as cremações masculinas:
“Por meio do ritual funerário uma afirmação mais explícita foi feita a fim de enfatizar que a riqueza e as qualidades
excepcionais não estão relacionadas à conquista individual,
mas ao nascimento”15.
Notamos que, na verdade, as críticas dirigidas às interpretações de Bérard por Crielaard questionam o próprio conceito de polis,
proposto principalmente por Ian Morris16 para a sociedade ateniense
do final do Período Geométrico e início do Período Arcaico, segundo o
qual o modelo ideal de polis está intrinsecamente relacionado com a
identidade dos cidadãos e do estado, enquanto isonomia. Tal modelo
opõe a estrutura da sociedade homérica, cujas formas de prestígio e
de reconhecimento social17 são caracterizadas através da performance
militar, dos atributos individuais, do espírito agonístico e da prática de
troca de bens, de dom e contra-dom, com a estrutura isonômica e coletiva da polis fundamentada no corpo de guerreiros-cidadãos a partir
dos laços familiares. A existência e a formação da mesma só se tornam
possível, dessa maneira, com a evolução e a passagem dessa aristocracia homérica para a aristocracia de nascimento. Tais abordagens nos
indicam que o culto heroico constitui uma manifestação religiosa que
valida e comprova de forma efetiva a emergência de uma polis18.
15 Crielaard, Jan Paul. “Cult and Death in Early 7th-Century Euboea. The aristocracy and the polis.” In: Marchegay, Sophie; Le Dinahet, Marie-Therèse; Salles, JeamFrançois (eds.). Nécropoles et Pouvoir. Idéologies, pratiques et interprétations. Actes
du Colloque Théories de la Nécropole Antique, Lyon 21-25 Janvier 1995. Paris: De
Boccard, 1998, p. 43-58, principalmente p. 48.
16 Morris, Ian. Burial and Ancient Society. The rise of the Greek city-state. Cambridge: CUP, 1987.
17 Expressão criada por Alain Duplouy “modes de reconnaissance sociale”: Duplouy, Alain. Le prestige des élites : recherches sur les modes de reconnaissance sociale en Grèce entre les Xe et Ve siècles avant J.-C. Paris: les Belles lettres, 2006, p. 14.
18 Bérard, Claude. « Récupérer la Mort du Prince : héroïsation et formation de
Volume 2
131
Contudo, a este processo de “heroicização”, acrescenta-se a
construção de um templo e o estabelecimento de um culto a uma divindade políade como um dos indícios essenciais que atestam a existência de uma polis. Por vota de 725 a.C., verificamos a construção do
templo de Apolo Daphnephoros, configurando o culto à divindade patrona de Erétria e que, conforme afirma Crielaard, “cimentou a coesão
da comunidade da polis como um todo”19.
II. Argos
As escavações sistemáticas no sítio de Argos foram iniciadas
por volta de 1092 e 1903 por Wilhelm Vollgraff20. Desde então, escavações sistemáticas têm sido realizadas pela Escola francesa de Atenas
(École française d’Athènes), EfA, e pelo Serviço Arqueológico Grego na
cidade moderna de Argos, revelando uma grande quantidade de sepulturas datadas do Período Geométrico21. Atualmente, mais de 200
la cité. » In: Gnoli, Gherardo; Vernant, Jean-Pierre (dir.) La Mort, Les Morts dans
les Sociétés Anciennes. Cambridge: CUP, 1982, p. 89-106, principalmente p. 90; Snodgrass, Anthony M. Archaeology and the Rise of the Greek State. Cambridge: CUP,
1977; Id. “The Rise of the Pólis.” In: Hansen, M. H. (ed.) The Ancient Greek City-State.
Symposium on the Occasion of the 250th Anniversary of the Royal Danish Academy
of Sciences and Letters. July,1-4, 1992. Historisk-filosofiske Meddelelser 67. Copenhagen, 1993, p. 30-40; Coldstream, John Nicolas. “The Formation of the Greek Polis:
Aristotle and Archaeology.” Geisteswissenschaften Forschungen, Vorträge G272. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1984, p. 7-22; Sourvinou-Inwood, Christiane. “Reading” Greek culture: texts and images, rituals and myths.” Oxford: Clarendon Press;
New York: Oxford University Press, 1991.
19 Crielaard, Jan Paul. “Cult and Death in Early 7th-Century Euboea. The aristocracy and the polis.” In: Marchegay, Sophie; Le Dinahet, Marie-Therèse; Salles, JeamFrançois (eds.). Nécropoles et Pouvoir. Idéologies, pratiques et interprétations. Actes
du Colloque Théories de la Nécropole Antique, Lyon 21-25 Janvier 1995. Paris: De
Boccard, 1998, p. 43-58, p. 50.
20 Para o histórico das escavações realizadas por Wilhelm Vollgraff: Mulliez, Dominique ; Banaka-Dimaki, Anna. (eds). Sur le pas de Wilhelm Vollgraff. Cent ans d’activités archéologiques à Argos. Actes du Colloque International organisé par la IVe
EPKA et l’École française d’Athènes, 25-28 septembre 2003. Recherches Franco-helléniques IV. Athènes : EfA; Paris : De Boccard, 2013.
21 Para uma boa síntese do histórico das escavações de Argos pela EfA e tam-
132 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
túmulos são atribuídos a este período, contudo uma grande parte deste material ainda permanece inédita22.
Durante as campanhas de 1954, o arqueólogo Paul Courbin
evidenciou uma sepultura, o Túmulo 45, contendo a inumação de um
indivíduo adulto do sexo masculino entre 25 e 30 anos de idade e enterrado com três anéis e duas lâminas, em ouro, dois machados duplos,
doze obelói e dois cães de chaminé em forma de barcos de guerra em
ferro, uma armadura, composta pelo elmo e a couraça, e cinco anéis
em bronze e nove vasos cerâmicos ricamente decorados23. Tal sepultura, associada à descoberta de alguns outros enterramentos masculinos
contendo instrumentos em bronze, como outros dois elmos24, obelói,
adagas, espadas e pontas de lança em ferro, levou inúmeros estudiosos a classificar esses túmulos como “túmulos de guerreiros”25 e como
bém dos dados arqueológicos revelados e estudados até o presente vide: Piérart,
Marcel ; Touchais, Gilles (eds). Argos. Une ville grecque de 6000 ans. Paris : Mediterranée, CNRS editions, 1996 e Pariente, Anne, Touchais, Gilles. (eds). Argos et
l’Argolide. Topographie et urbanisme, Actes de la Table ronde organisée par l’École
française d’Athènes et la 4e Éphorie des antiquités préhistoriques et classiques,
Athènes-Argos, 28 avril-1er mai 1990, Paris, 1998.
22 Quatro grandes obras de publicação sistemática dos vestígios e de reflexões
sobre as práticas mortuárias em Argos podem ser elencadas: Courbin, Paul. Les
Tombes Géométriques d’Argos, I (1952-1958). Études Péloponnésiennes VII. École
Française d’Athènes, Paris : Librairie J. Vrin, 1974; Hägg, Robin. Die Gräber der Argolis in sumykenischer, protogeometrischer und geometrischer Zeit. BOREAS 7:1, Lage
und Form der Gräber, Uppsala, 1974; Foley, Anne. The Argolid 800-600 B.C. SIMA,
vol. LXXX, Göteborg, 1988; De Souza, Camila D. As Práticas Mortuárias na região da
Argólida entre os séculos XI e VIII a.C. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia.
Suplemento 13. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011.
23 Para detalhes da sepultura e seu contéudo vide: Courbin, Paul. « Une Tombe
Géométrique d’Argos. » BCH 81 (1957), p. 322-386; Id. Les Tombes Géométriques
d’Argos, I (1952-1958). Études Péloponnésiennes VII. École Française d’Athènes, Paris
: Librairie J. Vrin, 1974, especialmente p. 40-1; Hägg, Robin. Die Gräber der Argolis
in sumykenischer, protogeometrischer und geometrischer Zeit. BOREAS 7:1, Lage und
Form der Gräber, Uppsala, 1974; principalmente p. 24, 40, 120, 124; Foley, Anne. The
Argolid 800-600 B.C. SIMA, vol. LXXX, Göteborg, 1988, especialmente p. 208.
24 Um segundo elmo foi identificado em uma das sepulturas encontradas no Terreno Stavropoulos (Protonotariou-Deilaki, Evangelia. Πρώιμος γεωμετρικός τάφος
εξ Άργους, ΑΑΑ 3, 1970, p. 180-183), e um terceiro, descoberto em uma inumação
masculina do Terreno Theodoropoulos, T. XVII (Protonotariou-Deilaki, Evangelia.
Από το Άργος του 8ου και 7ου αι. π.Χ., ΑSAtene 60, 1984, p. 33-48).
25 Hägg, Robin. “Burial Customs and Social Differentiation in 8th-Century Argos.”
In: Hägg, Robin; Marinatos, Nanno. The Greek Renaissance of the Eight Century B.
Volume 2
133
evidências materiais que marcam definitivamente a passagem de uma
aristocracia guerreira homérica para uma aristocracia de nascimento.
A própria terminologia utilizada para descrever a armadura
encontrada no T. 45 (panóplia, a armadura do hoplita) indica que tais
enterramentos foram entendidos como a expressão do surgimento de
uma nova camada de indivíduos no seio da organização social argiva
do final do Geométrico Recente, caracterizada pelo exército de cidadãos que constituirá um dos elementos essenciais definidores da polis
em formação. Crielaard contrasta o exemplo de Erétria em relação ao
argivo indicando que em Erétria as mulheres também recebem os enterramentos heroicos devido à presença de cremações femininas na
área do herôon. Em Argos, o autor afirma que os túmulos femininos,
muito menos abastados que os de Erétria, são em geral mais pobres
que os masculinos ou as mulheres são até mesmo excluídas dos enterramentos. A grande quantidade de armamentos presente nos túmulos masculinos demonstra, portanto, que a “ideologia aristocrática
parece estar mais fortemente conectada com a proeza militar” em
Argos que em Erétria26.
Para De Polignac, a presença da panóplia e dos alfinetes em
bronze, dos cães de chaminé em ferro e da “louça do banquete”27 no T.
45 resulta da elaboração de uma nova articulação entre o domínio funerário e o cultual por meio da qual a ancestralidade e a amplificação dos
C.: Tradition and Innovation. Proceedings of the Second International Symposium at
the Swedish Institute in Athens, 1-5 June, 1981. Stockholm, 1983, p. 27-31; Pappi,
Evangelia. « Argive Geometric Figured Style. The rule and the exception. » In: Rystedt, Eva; Wells, Berit. (eds.) Pictorial Pursuits: Figurative Painting on Mycenaean
& Geometric Pottery. Papers from Two seminars at the Swedish Institute at Athens
in 1999 & 2001. ActaInstAthenSueciae, Series in 4o, LIII. Stockholm: Distributor Paul
Åströms Förlag, 2006, p. 229-37; Pappi, Evangelia; Triantaphillou, Sevi. « Mortuary
Practices and the Human Remains: a preliminary study of the geometric graves in
Argos, Argolid. » In: Mazarakis-Ainian, Alexandros. (ed.) The “Dark Ages” Revisited.
Acts of an International Conference in Memory of William D. E. Coulson, Volos 14-17
June, 2007. Volume II. University of Thessaly Press: Volos, 2011, p. 673-688.
26 Crielaard, Jan Paul. “Cult and Death in Early 7th-Century Euboea. The aristocracy and the polis.” In: Marchegay, Sophie; Le Dinahet, Marie-Therèse; Salles, JeaNFrançois (eds.). Nécropoles et Pouvoir. Idéologies, pratiques et interprétations. Actes
du Colloque Théories de la Nécropole Antique, Lyon 21-25 Janvier 1995. Paris: De
Boccard, 1998, p. 43-58, principalmente p. 48.
27 Id. Ibid., p. 35.
134 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
laços de parentesco permitem à aristocracia argiva conservar ou conquistar uma posição privilegiada no processo de emergência da polis. O
status do defunto passa a ter três aspectos: 1) enquanto guerreiro-cidadão (o hoplita e sua panóplia); 2) manipulando os laços de descendência
com os basileus, os “príncipes” da Idade do Ferro e 3) controlando os
rituais coletivos, a uma divindade políade que passa a ser objeto de culto comum e principal de todo o corpo de cidadãos da cidade.
Neste sentido, a fundação do Heraion de Prosymna possui um
papel fundamental para De Polignac. A aristocracia argiva legitima e
justifica sua participação no poder por meio do controle das atividades
rituais em um edifício público, o templo, e dedicadas a uma divindade
políade, neste caso, a Hera. Para o autor, os enterramentos argivos do
final do Período Geométrico evidenciam, dessa maneira, o caráter duplo de mudança nas expressões de religiosidade, na imagem social do
defunto e na natureza do ritual, que caracterizam a formação da polis.
Contudo, estudos mais recentes de um conjunto de sepulturas escavadas pela EfA sob a coordenação de Yvon Garlan nas campanhas de 1967 na Sondagem 80 no Terreno Papaparaskevas, localizado
na área sul da cidade moderna (T. 263, T. 265, T. 266, T. 276, T. 277 e T.
278)28, indicam que o caso argivo é, na realidade, mais complexo e não
se “enquadra” completamente neste modelo de emergência da polis.
Um total de 17 sepulturas contêm 27 indivíduos: 25 adultos de ambos
os sexos, masculino e feminino, e 2 crianças de pouca idade. Todos os
enterramentos são inumações em posição contraída e as sepulturas
constituem grandes cistas revestidas e cobertas com grandes placas de
pedra de calcário29. Os sepultamentos mais antigos datam do final do
28 A publicação sistemática dessas sepulturas (T. 263, T. 265, T. 266, T. 278) e
demais túmulos datados do Geométrico escavados pela Escola francesa de Atenas
(EfA) entre 1958 e 1973, que compreende o dossiê “Tombes Géométriques d’Argos
II” como continuidade da obra de Paul Courbin (1974), constitui o resultado da pesquisa de quatro anos de pós-doutorado conduzida por C. D. de Souza e financiada
pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e pela
FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), entregue à EfA
em março de 2016.
29 Para as definições, imagens e especificações dos tipos de sepulturas utilizadas
em Argos durante o Período Geométrico, incluindo a cista, ver: De Souza, Camila D.
As Práticas Mortuárias na região da Argólida entre os séculos XI e VIII a.C. Revista do
Museu de Arqueologia e Etnologia. Suplemento 13. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011.
Volume 2
135
Geométrico Antigo e, durante o Geométrico Médio e principalmente o
Geométrico Recente os túmulos foram reutilizados várias vezes.
Túmulo 263.
Inumação de seis indivíduos adultos do sexo masculino e feminino. Cista em orthostato.
Interior da cista:
Vinte e dois vasos cerâmicos, um pingente em ouro, três alfinetes em bronze, quatro
anéis em bronze, fragmentos de pelo menos dois alfinetes em ferro.
No exterior da cista, sobre as placas de cobertura:
Dois vasos cerâmicos.
GM II, GR I, GR IIa, GR IIb, GR IIc (dois indivíduos).
Túmulo 265.
Inumação de cinco indivíduos adultos do sexo masculino e feminino. Cista em orthostato.
Interior da cista:
Dezoito vasos cerâmicos, duas pontas de lanço em ferro, oito alfinetes, sete em ferro,
um em bronze, três adagas em ferro, dois anéis em bronze, um espiral em bronze,
um grampo em ferro para reparação de vaso.
No exterior da cista, sobre as placas de cobertura:
Doze vasos cerâmicos.
GM II, GR I, GR IIa, GR IIb, GR IIc.
Túmulo 266.
Inumação de sete indivíduos adultos do sexo masculino e feminino. Cista em orthostato.
Interior da cista:
Quarenta e seis vasos cerâmicos, sete alfinetes, dois em ferro e cinco em bronze,
uma fíbula em bronze, seis anéis em bronze, uma ponta de lança em ferro, dois fragmentos de punhal em ferro, um espiral em ouro, um objeto em osso em forma e
decoração de tabuleiro de xadrez, um objeto em ferro (cetro?).
GM II, GR I, GR IIa, GR IIb.
Túmulo 276.
Inumação. Poucos restos ósseos de uma criança de pouca idade. Pequeno jarro manufaturado.
GR
Túmulo 277.
Inumação de uma criança de pouca idade. Pitos manufaturado fechado com placa
de calcário.
GR II
136 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Túmulo 278.
Inumação de sete indivíduos adultos do sexo masculino e feminino. Cista em orthostato.
Interior da cista:
Vinte e oito vasos cerâmicos, dois anéis em bronze, um alfinete em ferro, uma adaga
em ferro.
No exterior da cista, sobre as placas de cobertura:
Três vasos cerâmicos.
GA I, GM I, GM II, GR I, GR IIa, GR IIb, GR IIc.
A primeira diferença marcante que nos chama a atenção é
o fato de todos os enterramentos de adultos constituírem inumações
múltiplas, com uma grande quantidade de indivíduos enterrados sucessivamente em uma mesma sepultura. Análises osteológicas mais
recentes indicam que tais indivíduos possuem entre 40 e 50 anos de
idade, de ambos os sexos, masculino e feminino, e gozam de boas condições de saúde30. A análise dentária indica o mesmo tipo de dieta rica
em carboidratos e proteínas, resultante de uma alimentação abundante em carne e açúcares. Também não há indícios de patologias graves,
sejam genéticas, sejam causadas por esforços físicos31.
Além disso, a análise mais detalhada do mobiliário funerário dessas sepulturas revela que não há distinções sociais de gênero
por categoria de objetos. Homens e mulheres são enterrados com os
mesmos tipos de artefatos em metal, militares e de vestuário e com os
mesmos tipos de vasos cerâmicos, isto é, as mesmas formas de vasos
decorados com um rico repertório iconográfico próprio da produção
cerâmica argiva, como por exemplo o condutor entre a dupla de cavalos e a série de figuras femininas de mãos dadas segurando um ramo
de trigo. Tais resultados corroboram a ideia de que a mulher de meia-idade deve ter tido um papel ativo na construção da identidade social
argiva, pelo menos, no final do Geométrico, pois ela participa do mes30 Pappi, Evangelia; Triantaphillou, Sevi. « Mortuary Practices and the Human Remains: a preliminary study of the geometric graves in Argos, Argolid. » In:
Mazarakis-Ainian, Alexandros. (ed.) The “Dark Ages” Revisited. Acts of an International Conference in Memory of William D. E. Coulson, Volos 14-17 June, 2007. Volume II. University of Thessaly Press: Volos, 2011, p. 673-688, principalmente p. 719.
31 Hapiot, Laurence. Alimentation, hygiène et environnement sanitaire dans le
monde égéen ancien. Thèse (Doctorat) – Département d’Archéologie, Université Paris 1, Panthéon-Sorbonne, 2015.
Volume 2
137
mo sistema simbólico de práticas funerárias usado para os homens32.
Neste sentido, esta afirmação é igualmente válida para o papel da
mulher na sociedade do final do Período Geométrico em Erétria, uma
vez que os mesmos tipos de enterramento e de sepultura, de objetos
depositados com os mortos e os mesmos locais são utilizados para ambos os gêneros.
Além disso, podemos levantar algumas reflexões sobre as funções etárias dos indivíduos nas duas sociedades. Apesar do pequeno
número de enterramentos de crianças, em ambos os sítios, eles não
se encontram em áreas isoladas que possam ser definidas como necrópoles infantis. As práticas funerárias são bastante distintas daquelas executadas para os adultos de ambos os gêneros. Em Erétria, as
crianças, principalmente aqueles de pouca idade, nos primeiros anos
de vida, são inumadas em covas simples. Em Argos, nesse pequeno
lote de sepulturas do Terreno Papaparaskevas, Sondagem 80, elas são
também inumadas, mas em vasos funerários. Podemos sugerir, dessa
forma, que a persona social da criança passa a exercer um papel mais
ativo na organização e na identidade social durante o final do Período
Geométrico, contribuindo para reforçar os laços familiares e a ancestralidade enquanto atributos determinantes nas práticas funerárias e
nas expressões de religiosidade.
Todavia, parece haver uma diferença entre os dois casos, pois
em Erétria, as inumações infantis (e de adolescentes) encontram-se
mais isoladas, na área noroeste do herôon e das cremações dos adultos, formando praticamente um lote específico para enterramentos
agrupados de acordo com o critério etário, provavelmente um embrião
das futuras necrópoles exclusivamente infantis do Período Arcaico. Já
em Argos, os sepultamentos infantis estão mais imbricados espacialmente, sendo impossível a identificação de lotes de enterramentos
agrupados de acordo com a faixa etária dos indivíduos33.
Apesar das diferenças entre os casos de Argos e Erétria, no
final do Período Geométrico, percebemos em ambas as comunidades
32 Langdon, Susan. “Beyond the Grave: Biographies from Early Greece.” AJA, v.
105, 2001, p. 579-606, especialmente p. 591-592. Id. Art and Identity in Dark Age
Greece, 1100-700 B.C.E. Cambridge: CUP, 2008.
33 De Souza, Camila D. As Práticas Mortuárias na região da Argólida entre os séculos XI e VIII a.C. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. Suplemento 13. São
Paulo: Imprensa Oficial, 2011.
138 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
um processo gradual de formação de agrupamentos de sepulturas
configurados por aspectos familiares, de parentesco e/ou de um determinado grupo social34. Este fato é evidenciado principalmente em Argos em que as sepulturas são reutilizadas várias vezes, destacando-se
inclusive uma continuidade evidente das áreas utilizadas para enterrar
os mortos desde o início até o final do Geométrico.
O exame dos dados elencados do conjunto de sepulturas do
Terreno Papaparaskevas, Sondagem 80, em Argos, proporciona também algumas reflexões sobre o modelo de guerreiros-cidadãos (hoplitas) que configuram o novo modelo militar e político da polis. Verificamos que comparativamente à quantidade de vasos cerâmicos,
o número de artefatos em metal é relativamente pequeno, principalmente daqueles considerados como armamentos, a grande maioria é
composta por alfinetes e anéis em bronze. Conforme já apontamos em
outro ensaio35, interpretar tais enterramentos como expressões do
“ideal heroico da aristocracia militar argiva”36 é bastante questionável
e até mesmo insustentável.
A panóplia do T. 45 trata-se de um exemplo isolado, único,
não encontrado em nenhum outro contexto de natureza funerária até
34 Hägg, Robin. “Some Aspects of the Burial Customs of the Argolid in the Dark
Age.” AAA 13, 1980, p. 119-26; Id. “Burial Customs and Social Differentiation in
8th-Century Argos.” In: Hägg, Robin; Marinatos, Nanno. The Greek Renaissance of
the Eight Century B. C.: Tradition and Innovation. Proceedings of the Second International Symposium at the Swedish Institute in Athens, 1-5 June, 1981. Stockholm,
1983, p. 27-31. Pappi, Evangelia; Triantaphillou, Sevi. « Mortuary Practices and the
Human Remains: a preliminary study of the geometric graves in Argos, Argolid. » In:
Mazarakis-Ainian, Alexandros. (ed.) The “Dark Ages” Revisited. Acts of an International Conference in Memory of William D. E. Coulson, Volos 14-17 June, 2007. Volume II. University of Thessaly Press: Volos, 2011, p. 673-688, especialmente p. 728;
De Souza, Camila D. As Práticas Mortuárias na região da Argólida entre os séculos XI
e VIII a.C. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. Suplemento 13. São Paulo:
Imprensa Oficial, 2011, p. 145, 232.
35 De Souza, Camila D. “Aportes arqueológicos na produção do conhecimento
histórico”. Cadernos do LEPAARQ, Vol. XII, n°24, 2015, p. 1-19.
36 Pappi, Evangelia. « Argive Geometric Figured Style. The rule and the exception.
» In: Rystedt, Eva; Wells, Berit. (eds.) Pictorial Pursuits: Figurative Painting on Mycenaean & Geometric Pottery. Papers from Two seminars at the Swedish Institute at
Athens in 1999 & 2001. ActaInstAthenSueciae, Series in 4o, LIII. Stockholm: Distributor
Paul Åströms Förlag, 2006, p. 229-37.
Volume 2
139
o momento em Argos37. De fato, está claro que os enterramentos denotam elementos aristocráticos exteriorizados por meio do repertório
iconográfico da cerâmica funerária, como a presença marcante de cavalos. Contudo, cenas de luta, de competições e/ou jogos fúnebres,
batalhas em barcos etc. são extremamente raras na cerâmica geométrica argiva. O cavalo, o pássaro e o peixe correspondem aos elementos pictóricos animais centrais e típicos do repertório argivo e a figura
humana masculina aparece, quase na totalidade das cenas, conduzindo os cavalos com as duas ou com uma das mãos pelo arreio, porém
sempre com os dois braços erguidos. Com raríssimas exceções, as figuras humanas femininas são representadas em fileiras, de mãos dadas e segundo ramo de trigo. Dessa forma, não há qualquer elemento
material que nos indique a manifestação de uma sociedade guerreira,
militar e/ou “heroicizada”.
Em Argos, podemos afirmar que é a cerâmica que adquire
valor de prestígio durante o Geométrico. Os vasos cerâmicos depositados nos túmulos são ricamente decorados e em uma grande quantidade proporcionam um exemplo cujos valores artísticos e “industriais”
(termo aqui entendido como uma produção em larga escala) não se
opõem enquanto elementos de distinção e definição de prestígio. Os
vasos demonstram que são os usos dados aos objetos e sua visibilidade que caracterizam seu valor de prestígio e de reconhecimento social,
e não o objeto por si mesmo (incrustado com significados e valores
relativos e anacrônicos de “riqueza”).
A análise iconográfica do material cerâmico funerário associada à análise osteológica dos enterramentos38 sugerem que, na verda37 Os outros dois exemplos de elmos encontrados em túmulos do Período Geométrico citados anteriormente configuram elmos muito distintos em relação à forma
e à decoração dos elmos característicos da panóplia hoplítica do Período Arcaico,
pois são elmos arredondados, sem a presença de crista.
38 A análise osteológica realizada por Laurence Hapiot de alguns dos indivíduos do
sexo masculino dos túmulos do Terreno Papaparaskekas, Sondagem 80, e de outros
de sepultamentos revelados durante as campanhas da EfA de 1969 a 1970, sob a
responsabilidade de Jean-François Bommelaer e Yves Grandjean, na área do setor δ,
na praça principal do bairro Kypséli na área sul da cidade, indica lesões ósseas compatíveis da denominada “síndrome do cavaleiro”, contribuindo de forma efetiva para
a ideia de uma planície de criação de cavalos e de uma aristocracia ligada à criação
e à prática da montaria. Os detalhes desta análise serão publicados futuramente em
um capítulo do dossiê “Tombes Géométriques d’Argos II”.
140 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
de, a aristocracia argiva teria tido como papel social principal a criação
de cavalos, propícia também devido ao caráter geográfico da região, já
que a Argólida é uma extensa planície de quase 200km2. Além disso,
podemos também inferir que tais cenas possuem conotações cultuais,
uma vez que as cenas com as figuras femininas estão também presentes na grande maioria dos vasos cerâmicos encontrados no Heraion
de Prosymna e configuram cenas rituais em que danças são efetuadas
como parte das atividades de culto em homenagem à Hera39.
Neste sentido, em certa medida, as reflexões de De Polignac
são bastante pertinentes para o caso argivo, pois o controle das atividades rituais em homenagem a uma divindade políade por parte da
aristocracia argiva assume um papel central no processo de formação
da polis. Podemos sugerir, dessa forma, que as manifestações de religiosidade expressas nos sepultamentos estão intrinsecamente relacionadas àquelas praticadas à uma divindade. Neste caso, o mundo dos
mortos e as atividades de culto que envolvem as práticas rituais funerárias não devem ser examinadas isoladamente e consideradas como
antitéticas em relação ao mundo das divindades e das atividades de
culto realizadas nos santuários. Não se trata de um processo evolutivo
linear, da passagem ou da transferência de locais e naturezas de cultos distintas, mas sim de expressões religiosas complementares, em
constante processo de interação e modificações que contribuem de
maneira conjunta para o processo de formação da polis.
O período que compreende o intervalo dos séculos IX e VIII
a.C. conheceu de maneira sucessiva e concorrente, as múltiplas elites
de caráter bastante diferenciado umas em relação às outras. Seja essa
elite “heroicizada” como evidenciam os enterramentos na Porta Oeste
em Erétria e a consequente construção de um monumento em homenagem a essa elite, o herôon, seja uma elite fundamentada nos laços
familiares e detentora das atividades de culto dedicadas a uma divindade comum, como podemos verificar em Argos, o que elas tinham em
39 A autora Kalliope Krystalli-Votsi indica que essa representação iconográfica típica do repertório geométrico argivo não possui um significado em particular, mas
pode remeter a dois momentos distintos das danças que ainda hoje são efetuadas
em muitas comunidades na Grécia nos períodos de colheita do trigo. Krystalli-Votsi,
Kalliope. « Cratère Géométrique d’Argos » In: Études Argiennes. BCH Supplément
VI. Athènes, Paris, 1980, p. 85-92, especialmente p. 91.
Volume 2
141
comum era a vontade de seus indivíduos em alcançar o mais alto grau
possível da hierarquia social e aí se manter o maior tempo possível40.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Notamos que as diversificadas interpretações sugeridas pelos diversos autores para os dois casos estudados dividem-se em duas
perspectivas de estudos. De um lado, aquelas que consideram que as
manifestações religiosas tiveram um papel bastante ativo no processo
de formação da polis. De outro, algumas abordagens deixam implícito
um papel mais passivo das práticas religiosas frente a configuração das
estruturas econômicas e sociais da polis.
O desafio mais difícil para os pesquisadores do Período Geométrico e para aqueles que se debruçam sobre um tema tão vasto e
fértil, porém tão debatido e controverso sobre o processo de emergência e consolidação da polis grega, constitui se desprender das amarras
dos modelos de polis propostos para comunidades como Atenas, Argos e Esparta durante o Período Clássico. Conforme Catherine Morgan
nos chama atenção, comunidades na região da Tessália, da Fócida e
da Arcádia, por exemplo, demonstram que a dinâmica política das comunidades da Idade do Ferro torna-se uma forma insustentável para
a dinâmica religiosa. A religião grega e da polis é considerada como
um veículo identitário, sobretudo de caráter étnico41 e o processo de
emergência da polis se dá de uma forma bastante diferenciada em relação aos modelos ateniense e argivo.
François De Polignac também estabelece conexões intrínsecas entre a identidade religiosa e a identidade da polis: “O que chamamos de polis resultou do estabelecimento progressivo de coesões
sociais e de hierarquias que tornaram a forma de busca por um acordo
40 Duplouy, Alain. Le prestige des élites : recherches sur les modes de reconnaissance sociale en Grèce entre les Xe et Ve siècles avant J.-C. Paris: les Belles lettres,
2006, p. 222-223.
41 Morgan, Catherine. Early Greek states beyond the polis. London, New York:
Routledge, 2003.
142 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
com relação à escolha dos cultos mediadores e das modalidades de
participação em seus ritos”42. Os cultos mediadores se estruturam a
partir de um modelo bipolar da geografia religiosa grega, isto é, por
meio da instalação de templos dedicados às divindades protetoras do
território (santuários extra urbanos), e de edifícios erguidos no centro
urbano dedicados aos heróis, fundadores míticos (ou reais) da cidade
(o herôon). A polis grega é assim vista não como uma formação estatal
estruturada, mas sim como “um agente que desenvolveu vários modos
de participação em práticas sociais ritualizadas”43. Verificamos uma
ênfase acentuada na religião enquanto prática cultural na organização
e estruturação da polis.
Não se trata de negar aspectos universais da religião grega,
mas de evitar reduzi-las a generalizações demasiado imprecisas e sincrônicas que acabem tornando-se verdades universais. Estudiosos do
Copenhagen Polis Centre têm se debruçado com afinco para definições
de polis enquanto um conceito muito além daquele arraigado e
fundamentado no Período Clássico enfatizando aspectos seculares de
sua estrutura, do cotidiano e que definem a autonomia enquanto seu
caráter irredutível:
“Uma comunidade pequena, altamente institucionalizada e
auto governável de cidadãos vivendo com suas esposas e crianças em um centro urbano (...) e seus territórios e escravos”44.
De uma forma ou de outra, um olhar um pouco mais detalhado e simultaneamente correlacional de aspectos das evidências materiais das expressões religiosas nos permite afirmar que “a construção
da polis como uma ordem simbólica monolítica e consistente cronologicamente é uma simplificação que não faz jus à dinâmica interna
desses estados”45. Dessa forma, análises que se fundamentam em um
modelo sincrônico, unívoco e abstrato do conceito de polis desconside42 De Polignac, François. La Naissance de la cité grecque, Paris : Éd. La Découverte, 1984, p. x.
43 Id. Ibid., p. viii e passim.
44 Hansen, Morgens H.; Nielsen, T. H. An inventory of archaic and classical poleis.
An investigation conducted by The Copenhagen Polis Centre for the Danish national
research Foundation. Oxford: Oxford University Press, cop, 2004, p. 31.
45 Kindt, Julia. Rethinking Greek Religion. Cambridge, CUP, 2012, p. 21.
Volume 2
143
ram as diferenças locais e regionais, as variações mais individualizadas
dentro de uma mesma comunidade, e ainda, excluem as perspectivas
diacrônicas de transformações culturais. Conforme afirma John Gould,
devemos enfatizar o aspecto dinâmico da religião grega enquanto “um
sistema aberto, não fechado”46 e, portanto, como um espaço suscetível à introdução de novas manifestações e a improvisações.
46 Gould, John. Myth, ritual, memory, and exchange: essays in Greek literature
and culture. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 210.
144 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
MUJERES GUERRERAS:
EL MITO AMAZÓNICO EN LA GRECIA
ARCAICA Y CLÁSICA
Arturo Sánchez Sanz1
Una constante en la mitología griega, consiste en que, a menudo, parece que traspasa la realidad, de manera que ambos mundos,
el real y el imaginado, se mezclan. El mundo amazónico despertó el interés de los autores griegos desde la época del propio Homero, creándose diversos mitos y varias versiones de cada uno de ellos a lo largo
de la Historia. La persistencia de la figura de estas mujeres guerreras
en la literatura Clásica generó, en el imaginario colectivo, una visión
estereotipada de ellas y de los acontecimientos que las rodearon. En
la antigua Grecia nunca existió una casta sacerdotal, como sí sucedió
en otras culturas, que detentara y fijara los cánones “oficiales” de cada
mito, al ostentar la exclusividad del saber religioso. Ello permitió que
cualquiera pudiera crear sus propios mitos, que podían o no ser aceptados por la comunidad y perpetuarse en el tiempo, generando una
enorme cantidad de referencias que, incluso, englobaban relatos tanto
de tradición popular y aristocrática.
A lo largo de estas páginas analizaremos distintos aspectos de
los mitos amazónicos, a través de los relatos que han llegado hasta nosotros. Para intentar comprender los motivos que propiciaron la aparición de estas mujeres guerreras debemos estudiar en detalle tanto el
contexto histórico de la comunidad griega en la Antigüedad como las
condiciones sociales en que vivieron las mujeres en aquella época. Los
textos mitológicos tenían una función moralizante que, en este caso,
1 Licenciado en Historia por la Universidad Complutense de Madrid, especialista
en Historia Antigua (UCM), Máster en Historia y Ciencias de la Antigüedad Por la Univ.
Complutense de Madrid y la Universidad Autónoma de Madrid (UCM/UAM), especializado en Oriente Próximo y Egipto. Doctorando en Estudios del Mundo Antiguo (Univ.
Complutense de Madrid). Miembro del grupo de investigación Identidad ciudadana
en la polis griega Arcaica y Clásica, y su proyección espacial y cultual, de la Univ. Complutense de Madrid.
[email protected] https://ucm.academia.edu/ArturoSanchez
Volume 2
145
se aprecia con claridad y que nos permite explicar muchos de los aspectos que caracterizaron a estas figuras.
I.Análisis del mito amazónico
En la mitología griega, las amazonas eran consideradas como
una antigua y legendaria tribu de guerreras, dignas descendientes de
Ares y la náyade Harmonía. Tradicionalmente su patria se estableció
siempre en los confines orientales del mundo conocido, ya fuera en
alguna región cercana al Cáucaso, en las riberas del Termodonte (el
actual Terme Çayi, en la región de Capadocia) en Asia Menor, en Tracia, en Escitia meridional e incluso en Libia, puesto que el lugar fue
variando a lo largo del tiempo. Su origen, si es que el mito tuvo alguna
base real, pudo estar relacionado con las tribus escitas, sármatas, etc.
asentadas al norte del Cáucaso, cuyas mujeres no eran ajenas al uso
de las armas.
En el valle de Temiscira, habrían fundado una o varias ciudades (los autores difieren), a cuya capital se dio el mismo nombre y que,
al parecer, controlaba un extenso territorio a costa de continuos enfrentamientos con los pueblos vecinos. Las amazonas eran imaginadas
y descritas por los griegos como un pueblo de mujeres, organizado en
un estricto sistema de matriarcado2 y gobernadas por una reina. A la
realeza amazónica se le suponía un vínculo directo con Ares, ya que
éste le regaló un cinturón a la reina Hipólita, quizá como símbolo de
su soberanía. Según algunos relatos, ningún hombre podía residir en
el país de las amazonas, lo cual planteaba un problema a la hora de
explicar el sistema de descendencia que empleaban para evitar su extinción. El problema fue resuelto o bien haciéndolas a todas hijas de
Ares y de madre amazona, o se indicaba que una vez al año visitaban a
2 En Das Mutterrecht: eine Untersuchung über die Gynaikokratie der alten Welt
nach ihrer religiösen und rechtlichen Natur. Stuttgart: Verlag von Krais und Hoffmann,
1861, Bachofen sostuvo que todas las culturas habían evolucionado al patriarcado
del matriarcado, basándose en mitos que él consideró historia.
146 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
una tribu vecina (ya sean gargareos3, cálibes, etc.) de forma grupal y
convenida, o se relacionaban con extranjeros, en algunos casos y fuera
del grupo, sin mantener ningún lazo con ellos tras la unión (aunque
existían excepciones).
Se cuenta que las niñas eran educadas como amazonas, adiestradas en las labores de campo, la caza y el arte de la guerra; adoptando la condición de las madres y desconociendo la identidad del padre.
Por su parte, los varones, según versiones, eran mutilados −dejándoles
ciegos o cojos−, los utilizaban como esclavos, los sacrificaban o eran enviados con sus progenitores para que los criaran o hicieran con ellos lo
que desearan. En cualquier caso, se desconoce si a la reina le sucedían
sus propias hijas o aquella que, de entre la tribu, destacara por atributos como la fuerza, la inteligencia y las dotes de mando. Principalmente
adoraban a su padre Ares, pero también a Artemisa4, cuya mítica vida
tenía muchos paralelos con la de estas mujeres o, incluso, recientemente se las ha relacionado con el primitivo culto a la Diosa Madre.
Los griegos las muestran como amantes de la guerra por asociación a su progenitor, pero desarrollándola preferentemente a caballo, por lo que eran consideradas expertas jinetes que también practicaban la caza. Los relatos míticos y sus representaciones indican que,
entre sus armas típicas destacaba el arco, junto con la jabalina y el
hacha de doble filo. Como elementos defensivos usaban cascos y en diversas escenas pictóricas aparecen con escudos beocios o en forma de
luna, llamados peltas, quizá porque los griegos las mostraban adicionalmente bajo la protección de Artemisa, diosa de la caza y de la Luna.
Etimológicamente, la palabra “amazona” ha protagonizado
una discusión ya tradicional. Se dice que podría derivar del epónimo
iraní hamazam−, que originalmente significaba “guerreras”, o que tenía un origen asiánico de hama “todas”, zan “mujeres”. La variante
griega estaba compuesta de a, “sin”, y mazos, “senos”, relacionado con
3 A quienes Jaimoukha identifica como un pueblo que podría entenderse como
Proto-Nakh o predecesor de esta cultura étnica situada al norte del Cáucaso, ya que
“gergara” en lengua Nakh se traduce como “familia o parentesco”. JAIMOUKHA, Amjad. The Chechens: A Handbook; New York, Routledge, 2005, p. 50.
4 Como indica Rocca para quien la faceta cazadora de las amazonas adquiere un
mayor peso que sus otras ocupaciones. ROCCA, S. “Delle amazoni alla militia Phoebes”; en Misoginia e maschilismo in Grecia e in Roma; Genova, Universitá di Genova,
1980, pp. 97-119.
Volume 2
147
la tradición de que las amazonas se mutilaban el pecho derecho en la
infancia. Esta acción habría tenido un sentido funcional para tensar el
arco o arrojar la lanza cómodamente (la simetría del cuerpo humano
queda rota de forma voluntaria por éstas), mientras que criaban a sus
hijas con el izquierdo. Para Alonso del Real5, los dialectos no indoeuropeos que eran hablados en la región donde se las ubicaba habrían
sido el origen de los términos “ama”, que se traduciría como “madre”,
asociado con la Diosa Madre, y “zana” cuyo carácter indoeuropeo le
relaciona con la palabra griega “genos”, cuyo significado sería “hijas o
descendientes de la Diosa Madre”.
No es necesario incidir en el carácter mítico de las amazonas6,
sin embargo, no son pocos los autores que aún buscan atisbos de realidad en ellas, basándose en lo que se conoce sobre las mujeres escitas,
sármatas, etc. Sea como fuere, una cosa es considerar la existencia de
mujeres guerreras y otra es pensar que las amazonas, tal y como nos
las presentan los textos griegos, pudieron ser reales. El mito, que no
podemos entender como saga, aun cuando Klugmann7 lo defienda al
otorgarle un carácter más amplio considerándolo como una expresión
de la “conciencia nacional” (término este último que no puede aplicarse
en la Antigüedad y aun menos en el caso griego), habría sido producto
de los esquemas de pensamiento griego y, particularmente, de los intereses políticos, sociales y religiosos de los atenienses.
Se trataría, pues, de un pensamiento basado en las aptitudes
guerreras, hacia las cuales se orientaba a los varones, quienes por ello
ostentaban una posición social predominante. Dentro de esta concepción, las mujeres estarían destinadas a su hogar y a la maternidad,
5 ALONSO DEL REAL, C. Realidad y leyenda de las amazonas; Madrid, Espada-Calpe, 1997, p. 83.
6 Diversos autores recientes como Alonso del Real, Testart o Jones-Bley aún no
lo descartan completamente basándose en las tumbas descubiertas al norte del mar
de Azov y asociadas con escitas y sármatas, las cuales mostrarían un cierto poso de
realidad sobre el que se habría basado el relato mítico posterior o contemporáneo.
TESTART, Alain. “Les Amazones, entre mythe et réalité”; L’Homme, 163, 2002, pp. 185194. JONES-BLAY, Karlene. “Arma Feminamque cano; warrior-women in the Indo-European world”; In: LINDUFF, Katheryn M., RUBINSON, Karen S. Are All Warrios Male?.
Gender Roles on the Ancient Eurasian Steppe; Lanham, AltaMira Press, 2008, p. 35.
7 KLUGMANN, Adolf. “Ueber die Amazonen in den Sagen der kleinasiatischen
Städte”; Philologus 30/4, 1871, pp. 524-556.
148 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
como tareas principales, a pesar de que Platón comentaba: “Lo referente a la guerra no debe ser descuidado por las mujeres, sino que,
como los ciudadanos todos, también las ciudadanas han de dedicarse
a ello.”8 A pesar de ello, el mito amazónico hunde sus raíces en una
visión opuesta a la socialmente aceptada por los griegos, donde los
hombres, no se trataba ya de que no disfrutaran de un papel dominante, sino que no jugaron ningún papel, excepto ocasionalmente y con
ánimo procreativo o, incluso, relacionado con el hogar y las labores
agrícolas. Por su parte, las mujeres controlarían todas las facetas de la
sociedad y, sobre todo, el ámbito militar, en este caso desapareciendo
o invirtiendo la dicotomía hombre/mujer en la que asentaba sus raíces
la sociedad griega, donde el primero representaba a la cultura y la segunda a la naturaleza9.
Los mitos, y los rituales asociados a ellos, como relatos tradicionales conectados con dioses o héroes de un pasado remoto, se elaboraban con la intención de dar respuesta a problemas sociales (matrimonio, incesto, etc.), físicos (muerte, enfermedad) o emocionales.
Su intención era ofrecer estabilidad y cohesión a la comunidad que los
creaba, al quedar explicados en forma de historias10 que ofrecían mensajes fácilmente asimilables, al incluir la respuesta a esos problemas.
Los mitos eran creados por sociedades que se desarrollaban, y por ello
éstos también lo hicieron con el paso del tiempo, pues el mensaje que
debían transmitir podía variar en función de nuevas necesidades.
Así, eran utilizados, culturalmente, para ofrecer precedentes y
ejemplos, que servían de guía ante toda decisión y acción, generando
resultados conocidos, con el fin de evitarlos o emularlos11. Los griegos
8 Leyes, 813e-814c.
9 Los griegos entendían que las mujeres eran incapaces de controlar sus deseos
debiendo ser supervisadas y controladas por los varones. Según Aristóteles: “Así, el
hombre libre manda al esclavo de otro modo que el varón a la hembra y que el
hombre al niño, y en todos ellos existen las partes del alma, pero existen de distinto
modo: el esclavo carece en absoluto de la facultad deliberativa; la hembra la tiene,
pero desprovista de autoridad; el niño la tiene, pero imperfecta.” Política I, 13, 7-8.
10 Caldwell indica que, en sus orígenes, probablemente los mitos comenzaron
siendo simplemente historias entretenidas. CALDWELL, Richard. The origin of the
gods: a psychoanalytic study of Greek theogonic myth; New York, Oxford University
Press, 1989, p. 4.
11 Díez de Velasco coincide en que se trataba de crear modelos para comprender
el papel del ser humano en la tierra, el problema del mal y del bien, la muerte, de
Volume 2
149
acudían a los mitos para comprender sus vidas, como argumentos que
emplear en el arte de la persuasión y como racionalizaciones con las
que justificar cada faceta de su existencia. En base a ello, la propia existencia del mito bastaba para garantizar la historicidad de los hechos12
y los personajes en él relatados. Tenía una finalidad instructiva para sus
oyentes, dentro de unos valores y conocimientos prefijados de antemano, y por aquellos que lo divulgan y lo aceptan como tal. Se desarrollan
con un esquema atractivo en forma de historia, que despierta el interés
a través de una trama dramática, etc. y de valores simbólicos, que suelen referirse a conflictos o tensiones en el orden social o en la condición
humana. Podían entenderse y conectarse por el oyente con su propia
realidad, para que él mismo fuera quien extrajera las conclusiones que
se buscaba transmitir, y encontrara individualmente la solución.
Fig. 1: Vaso ático de figuras negras. Aquiles derrotando a una amazona.
C. 520 a.C.
Fuente: Metropolitan Museum of Art.
la diversidad (de sexos, inteligencias, apariencias, destinos) y de la identidad grupal.
DIEZ DE VELASCO, Francisco. Lenguajes de la religión: mitos, símbolos e imágenes de
la Grecia Antigua. Trotta, Madrid, 1998, pp. 16-17.
12 Autores como Bennet inciden en que el mito habría surgido a raíz de la existencia cierta de sociedades matriarcales entre los habitantes prehelénicos de la Grecia
continental, sugiriendo incluso un posible origen cretense. BENNET, Florence M. Religious cults associated with the amazons; New York, Columbia Univ. Press, 1912, p. 76.
150 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Concretamente, el mito de las amazonas podría haber tenido
una finalidad básica, la defensa del sistema social patriarcal13 (el mito
ayudaba a definir los roles sexuales y sus formas de interacción aceptadas). En dicho sistema, determinados privilegios sólo se le concedían
a los varones, cuya función productiva y guerrera se contraponía a la
reproductiva y hogareña de las mujeres, entre las cuales incluso estaba
mal vista la amistad (ensalzada habitualmente en el caso de los hombres), ya que según Picazo14 se entendía que podía resultar peligrosa
al debilitar la lealtad debida a los maridos.
Ambos roles eran los que ambos sexos estaban predestinados a cumplir dentro de la sociedad, ya que en los relatos sobre las
amazonas siempre eran derrotadas por varones inevitablemente de
origen griego, lo cual demostraba la superioridad de su sistema social
con respecto al de aquellas15. En este sentido, en su Vida de los Filósofos ilustres, Diógenes Laercio ofrece una anécdota acerca de Sócrates
donde aquel contaba que la Fortuna le había ofrecido tres bendiciones: “haber nacido humano y no bruto, hombre y no mujer, y griego y
no bárbaro” 16. Así, el mito de las amazonas habría cobrado relevancia
solo por motivos indirectos, ya que lo importante no habría sido su
existencia o no, sino que sus derrotas frente a los héroes fundadores
varones griegos habría contribuido a formar y reforzar su concepto patriótico de “Estado”, alcanzando estas un valor paralelo a la importancia de este concepto entre los griegos, que no dudarían en recordar sus
victorias sobre ellas17.
13 Sobre cuyo nacimiento los propios griegos se remitían al mito de Cécrope, primer rey de Atenas y nacido directamente de la Tierra como símbolo de la autoctonía
que defendían los atenienses. Apolodoro, Biblioteca Mitológica, III.14.1. Pausanias,
Descripción de Grecia, I.26.6. Heródoto, Historias, VIII.55.
14 PICAZO GURINA, Marina. Alguien se acordará de nosotras: mujeres en la ciudad
griega antigua; Barcelona, Bellaterra, 2008, p. 59.
15 Graves defiende que las derrotas de las amazonas ante Heracles, Teseo, etc.
escenifican el fin de los sistemas matriarcales que previamente habían existido en
Grecia, Asia Menor, Tracia y Siria; aun cuando no existen pruebas de la existencia real
de este tipo de sistemas a lo largo de la historia, no así los matrilineales. GRAVES,
Robert. Los mitos griegos. Vol II; Madrid, Alianza, 1985, p. 89.
16 I. 33
17 MERCK, M. “The City’s Achievements”, en S. Lipshitz (ed.); Tearing the Veil:
Essays on Femininity; London, Routledge and Kegan Paul, 1978, p. 96.
Volume 2
151
Por otro lado, buscaba referir, con el conocimiento de sus derrotas y la extinción de su sistema social (producido, por su debilidad,
a manos de sus vecinos), la importancia de que las mujeres se integren
en el sistema social griego con su papel preestablecido, y se avengan al
matrimonio18, ya que de lo contrario podrían acabar como aquellas.
Sobre ello, Aristóteles19 opina que el derecho al matrimonio (o epigamia, cuya necesidad niegan las amazonas) es uno de los elementos característicos de los Estados; por lo que éstas, a pesar de estructurarse
en torno a ciudades regidas por instituciones como la monarquía, no
serian consideradas como formadoras de un Estado propiamente dicho.
En el caso de las amazonas, apenas contamos con más datos
sobre los nacimientos que el hecho de que se quedaban con las niñas
y devolvían a sus padres a los niños, cuando no los mutilaban y los
empleaban para distintas labores. Este sistema se mostraba enteramente distinto del empleado por los griegos, donde tras el parto, la
familia, y cualquier persona que hubiera intervenido en él, se sometían
a los preceptivos rituales de purificación al considerarse la sangre derramada como un miasma20. Luego se celebraban las Anfidromías, se
inscribía al recién nacido en el oikos21 y se procedía al reconocimiento
oficial o a la exposición, se le asignaba un nombre tras realizar ofrendas a distintos dioses (Artemisa, Ilitía o Deméter Curótrofo) a los que
consagraban las ropas manchadas durante el parto y el cinturón que
18 Para los griegos a través del matrimonio se podía controlar la sexualidad de sus
esposas, por su propia naturaleza tendentes a la lujuria, y con ello se aseguraban de
que sus hijos eran suyos; mientras que las amazonas controlaban su propia sexualidad, sin valorar a la identidad del padre. BLAKE TYRRELL, W.; BROWN, F. Athenian
Myths and Institutions; New York, Oxford U. Press, 1991, p. 180.
19 Pol. 1280b, 10-15
20 Bruit Zaidman y Schmitt recuerdan que por ello estaba prohibido dar a luz en
los santuarios e incluso que existían leyes que reglamentaban las purificaciones, ya
que la “mancha” podía afectar a la ciudad entera, mediante aspersiones, baños en
agua de mar o quema de incienso y azufre. BRUIT ZAIDMAN, L.; SCHMITT PANTEL, P.
La religión griega en la polis de la época clásica; Akal, Madrid, 2002, pp. 37-38.
21 El oikos comprendía el núcleo familiar y se organizaba en torno a distintas jerarquías como: hombre-mujer, libres-esclavos. TRÜMPER, Monika. “Space and Social
Relationships in the Greek Oikos of the Classical and Hellenistic Periods”; In: RAWSON, Beryl; A Companion to Families in the Greek and Roman Worlds; Wiley-Blackwell, Oxford, 2010, p. 34.
152 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
había portado la madre22, y finalmente, al décimo día, se celebraba
un sacrifico y un banquete al que acudía la familia con regalos para el
recién nacido.
Las amazonas renegaban del matrimonio, por lo que una de
las funciones de sus mitos era la de proteger esta institución, ya que
la existencia de estas mujeres guerreras representaba el caos dentro
del orden social natural, que quedaría restaurado por los varones en
cada una de sus victorias. Este es el mismo caso que los misterios de
Eleusis o los mitos de inversión relacionados con Dioniso, Atenea o Artemisa23, los cuales a menudo eran representados en festividades de
orden caótico, como las dionisíacas, y que se utilizaban para proclamar
un orden concreto a través del caos.
Así, las mujeres que aceptaban su rol social, aunque consideradas por debajo de los hombres, sí que presentaban por ello ciertos
aspectos positivos que eran valorados. Estos estarían relacionados con
su fertilidad para producir un heredero, y con la custodia del hogar, frente a la posibilidad de que actuaran por sí solas, en busca de sus propios
placeres y fines. Por ello se acercarían más a la naturaleza y lo irracional
(ambas características propias de lo femenino para los griegos), opción
que sería desterrada al aceptar el sistema patriarcal, donde el varón sería
quien “civilizara” esa condición y controlara su posible transgresión24.
Aunque los mitos no representan la desaparición del orden
establecido, cuando refieren un comportamiento contrario a ello por
parte de las mujeres, sí muestran como las afectadas actúan de forma
impredecible y negativa, como sucede con Deyanira y Heracles; aunque sea en defensa del propio sistema patriarcal. Las amazonas acep22 Que para Blok seria portado por las mujeres griegas como representación de
la transición desde la niñez al papel de esposa y madre. BLOK, Josine H. The Early
Amazons. Modem and Ancient Perspectives on a Persistent Myth; Leiden, E. J. Brill,
1995, pp. 427-30.
23 En cuyo templo de Éfeso existieron cuatro esculturas de amazonas realizadas
por los mejores escultores griegos del siglo V a.C. Plinio, HN. 34. 53. Ello hace que
autores como Bennet destaquen la relación de las amazonas con el culto a la diosa y
en especial con este templo. BENNET, Florence M. Religious cults associated with the
amazons; New York, Columbia Univ. Press, 1912, p. 31.
24 Para Lefkowitz la sociedad amazónica fue siempre empleada por los griegos
como un ejemplo de lo que sucedería si el poder político y social quedara en manos
de mujeres guerreras. LEFKOWITZ, Mary R. Women in Greek Myth; London, Gerald
Duckworth & Co. Ltd, 2007, pp. 5-12.
Volume 2
153
tan el rol de madres de mujeres, no de hombres, lo cual es acentuado
por la falta de un pecho25, que sirve también para ejemplificar esa
negativa a asumir el rol de mujer griega, establecido por la imposición
de la ideología de los varones.
La propia mitología griega ofrece numerosos ejemplos de
mujeres que se niegan a asumir dichos roles, incluso no relacionadas
con las amazonas, y las terribles consecuencias que deben sufrir por
ello, aunque, también ofrecen los ejemplos contrarios con sus consecuentes recompensas. Penélope, la esposa de Odiseo, fue una de ellas,
siendo recompensada con el retorno de su marido. En contraposición
conocemos la actitud de Clitemnestra26, poniendo a Egisto en el papel
femenino de la relación, como clara inversión de los papeles sociales
al modo de las amazonas. También es interesante el caso de Atalanta,
cuya negativa al matrimonio y la práctica actividades como la caza y el
arco, la relacionan con las amazonas27. Este ejemplo asocia la negación de este rol, por parte de las mujeres (que las hace civilizadas, juiciosas, etc.), con su conversión en amazonas (y por ello salvajes, etc.)
al ceder ante su naturaleza.
El mundo griego era patriarcal y androcéntrico, organización
social basada en un predominio de los hombres sobre las mujeres, del
marido sobre la esposa, del padre sobre la madre y los hijos, de los viejos
sobre los jóvenes, y de la línea paterna sobre la materna. El núcleo del
patriarcado ateniense era el oikos, del cual dependían el individuo y el
Estado, el cual, a su vez, dependía para sobrevivir de sus recursos económicos y del matrimonio para crear nuevos ciudadanos. La fuente de
ambos elementos era el hombre, alimentador y defensor, marido y pa25 Este tipo de elementos del mito habría alcanzado incluso a los autores romanos
como muestra Quinto Curcio cuando afirma que la ropa de las amazonas no cubría
todo su cuerpo sino que dejaba al descubierto el pecho izquierdo y no llegaba por
debajo de la rodilla. (VI. 5.27).
26 Para Whalley este acto simbólico representaría la liberación de los roles tradicionales de la mujer griega. WHALLEY, Jo. On the bravery of women: the ancient amazon and her modern counterparts; Tésis Doctoral, Victoria University of Wellington,
2010, p. 62.
27 Realmente la tradición habla de dos Atalantas, una beocia y otra arcadia, pero
para Hard sendos mitos se fusionaron en distintas regiones y por sus similitudes propone un origen común muy anterior. HARD, Robin. The Routledge handbook of greek
Mythology; London, Routledge, 2004, p. 545.
154 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
dre. Por él, los hijos adquirían legitimidad y la mujer existencia social, ya
que toda su vida estaba bajo el dominio y la protección legal del hombre.
La casa, en numerosas culturas, supone un reducto femenino
y es en el interior donde la mujer mantiene su dominio y crea su mundo28, pero ésta también tiene subdivisiones internas donde existe una
parte femenina y una masculina29. El gineceo era la parte misteriosa e
infranqueable de la casa, dedicada a la mujer; mientras que en el domo
el marido se reunía con otros hombres. El mundo de las amazonas,
diseñado a partir de lo externo, desdeña la casa, el interior, como espacio propio. El exterior masculino y masculinizador, adoptado por estas
mujeres como dimensión exclusiva, sugiere la violación voluntaria de
espacios pre-establecidos y adjudicados al hombre.
El matrimonio para los griegos simbolizaba el orden, y el
matriarcado una inversión inconcebible fuera del orden natural. Una
muestra de ello aparece en la Lisístrata de Aristófanes o en las mujeres de Lemmnos, quienes, ya a finales del s. V a.C., refleja en ella tanto la visión que tenían de su propia condición las mujeres atenienses,
y su latente negación, como los problemas que un cambio en su rol
podían acarrear a los varones y el potencial que las mujeres podían
tener para trastocar los patrones tradicionales del orden en la polis.
Para Zografou30, el mito de las amazonas tendría su origen en algún
tipo de sistema social matriarcal preindoeuropeo31 conocido por los
griegos en época remota, y relacionado con antiguos mitos relativos
28 Hawley y Levick opinan que la exclusión del ámbito público y su confinamiento
en el hogar por parte de los griegos continentales apareció como influencia de la misma práctica que ya llevarían a cabo los jonios de Asia Menor con antelación, quienes,
a su vez, la habrían adoptado de pueblos vecinos más al Este. HAWLEY, R. y LEVICK, B.
Women in antiquity: new assessments; London, Routledge, 2004, p. 22.
29 Caldwell, en su estudio de los mitos griegos relacionándolos con el psicoanálisis,
el de las amazonas escondería una interpretación relacionada con el deseo femenino
de llegar a ser un hombre, escapando de la feminidad y de lo que esta conllevaba
dentro de la sociedad griega. CALDWELL, Richard. The origin of the gods: a psychoanalytic study of Greek theogonic myth; New York, Oxford University Press, 1989, p. 40.
30 ZOGRAFOU, Mina. Amazons in Homer and Hesiod (a historical reconstruction);
Athens, 1972, p. 32.
31 Algo que Brioso niega al entender que se trataría simplemente de un mito que
no necesariamente debe asociarse a sociedades de este tipo, que por otra parte no
se han documentado. BRIOSO SÁNCHEZ, Máximo. “Geografía mítica de la Grecia Antigua II”; Philologia hispalensis, nº 9, 1994, p. 198.
Volume 2
155
a prácticas religiosas realizadas por sacerdotisas armadas32. Quizá se
basó en Cadogan Rothery33 para el cual en muchas etapas de la evolución humana las sociedades primitivas estaban regidas por sacerdotisas que actuaban también como líderes del grupo y por ello habrían
tenido funciones guerreras. Esta visión está relacionada con las teorías
de Alonso del Real34 y Cantarella35, para quien el matriarcado habría
florecido entre el 12.000-6.000 a.C. siendo la estructura social típica
de la Edad del Bronce, aun cuando se tratara ya solo de una fuerte
presencia femenina en la sociedad y la religión, más que de un matriarcado, Es posible que, en tiempos remotos, los griegos o incluso los
cretomicénicos hubieran tenido contacto con alguna de estas culturas
durante su actividad colonizadora en Asia Menor, y de cuyo recuerdo
transfigurado surgirían las míticas amazonas.
32 Graves indica que sacerdotisas armadas podrían haber participado en las Boedromias y en las Hibriscas; y defiende que, en las costas del sureste del mar Negro
y en el golfo de Sirte en Libia, habrían existido sacerdotisas de la diosa Luna que
llevaban armas, y los relatos de los viajeros que en el pasado remoto se cruzaron con
ellas habría sido el germen del mito de las amazonas. En este sentido, a mi parecer,
se hace más plausible la creación del mito ex profeso con el fin de defender el patriarcado, pues éste encaja perfectamente en esa misión, que era vital para la supervivencia del sistema social griego. GRAVES, Robert. Los mitos griegos. Vol II; Madrid,
Alianza, 1985, pp. 404-405.
33 CADOGAN ROTHERY, Guy. The amazons in antiquity and modern times; London,
Francis Griffiths, 1910, p. 12.
34 ALONSO DEL REAL, Carlos. Realidad y leyenda de las amazonas; Madrid, Espada-Calpe, 1997, p. 40.
35 CANTARELLA, Eva. Pandoras Daughters. The Role and Status of Women in
Greek and Roman Antiquity; Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1987,
p. 13.
156 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Fig. 2: Lecito de figuras rojas que representa una amazonomaquia. C. 420 a.C.
Fuente: Metropolitan Museum of Art.
Los más importantes relatos sobre las amazonas las relacionan
con importantes héroes griegos como Heracles, Teseo, Belerofonte o
Aquiles. Los mitos más antiguos relacionados con estas dos primeras figuras muestran en las amazonas un carácter pacífico, donde Hipólita entregó su cinturón sin hostilidades y Antíope habría sido secuestrada por
Teseo con engaños. La tradición posterior a Homero, encabezada por
Arctino, habría influido en las versiones posteriores que incluirían elementos bélicos asociados a ellas, aunque sobre ello cabe destacar que
ya Homero hizo referencia con anterioridad a sus actitudes guerreras.
La “cuestión de las mujeres” se sometió a discusión, entre la
intelectualidad ateniense, en las comedias de Aristófanes desde finales del s. V a.C., así como las obras de Eurípides36 y otros autores. Así
lo defiende Dubois37, para quien en esa época se produjo una transformación en el mundo de la polis griega con respecto a la consideración de la mujer, como consecuencia de la Guerra del Peloponeso y de
los cambios políticos y sociales derivados de ella, representado en un
alejamiento del pensamiento mítico hacia otro más relacionado con el
presente y la vida de la polis.
La mythopoiesis de las amazonas, y las posteriores variaciones
que estos mitos fueron sufriendo, reflejan su adaptación al desarrollo
36 Como se aprecia en el caso de Medea. Eurípides, Medea, 230-250.
37 DUBOIS, Page. Centaurs and amazons. Women and the Pre-History of the Great
Chain of Being; University of Michigan Press, 1999, p. 34.
Volume 2
157
constante de la sociedad que los generó. A pesar de ello, mantenían
su fondo y enseñanza invariables, en cuanto al modelo social ideal que
debía mantenerse en cuanto al binomio hombre-mujer y al miedo a
la alteralidad38 que estas últimas representaban39. Los mitos relacionados con las amazonas se desarrollaron o presentaron leves variaciones según el autor, la época o las necesidades políticas. Esta misoginia,
como indica Schultz40 desde un punto de vista psicoanalítico, se habría
originado cuando el temor a que las mujeres pudieran invertir el orden
de las cosas dio paso al odio41, reflejado en los epítetos negativos que
las amazonas recibieron en los textos. La actitud de las amazonas y su
aversión al matrimonio las colocaban no ya tan solo fuera del marco social establecido, sino claramente opuestas a él. Eran vistas, pues, como
una sociedad organizada en torno a unas figuras que mostraban cierto
carácter híbrido masculino/femenino42. Eran asociadas a los límites de
la naturaleza irracional racional aunque quizá por su representación en
forma enteramente humana sí se aceptaba que vivieran organizadas en
sociedades, asentadas en ciudades y manteniendo un sistema jerárquico encabezado por una reina, no como los centauros que vivían salvajemente en los bosques. Para afianzar este sentimiento se habría necesitado que en algún momento histórico hubiera existido algún tipo de
enfrentamiento entre hombres y mujeres dentro de la sociedad griega.
38 Para Blok los griegos demostraron un gran temor a que las mujeres les quitaran
sus privilegios. BLOK, Josine H. The Early Amazons. Modem and Ancient Perspectives
on a Persistent Myth; Leiden, E. J. Brill, 1995, p. 112.
39 Para Walcot estos mitos también serian reflejo del miedo de los varones a la
sexualidad de las mujeres, pero no explica el porqué de ese miedo que quizá podría
relacionarse con la asociación de aquella con la naturaleza y lo que esta representaba
en cuanto a las mujeres. WALCOT, P. “Greek Attitudes towards Women: The Mythological Evidence”; Greece & Rome, Second Series, Vol. 31, No. 1, 1984, p. 46.
40 SCHULTZ, B. “The amazons in Early Greece”; Psychoanalytical Quarterly 11,
1942, pp. 512-13 y 518.
41 Lagerlof indica que las representaciones de amazonas en Atenas también respondían al temor que los propios ciudadanos sentían hacia una posible sublevación
de las mujeres atenienses. LAGERLOF, Margaretha R. Sculptures of the Parthenon:
Aesthetics and Interpretation; London, Yale University Press, 2000, p. 90.
42 Para Bachofen las amazonas no representarían un elemento contrario a lo masculino sino que su muerte reflejaría la “verdadera sublimidad de lo femenino”, defendía su realidad ya que el desarrollo humano no podría darse sin la existencia de
una etapa matriarcal. BACHOFEN, J.J. Versuch Über die des Alten Grabersymbolik;
Basilea, Helbing y Lichtenhahn, 1925, pp. 73-74.
158 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
En el contexto político, el mito de las amazonas tomó una nueva dirección tras las Guerras Médicas por la atmósfera de intensa antipatía que se generó hacia los persas y otros extranjeros43. A ello se
unió que los atenienses cobraron conciencia de lo exiguo de su pasado
heroico, y de la necesidad de aumentarlo mediante este tipo de mitos
heroicos para apoyar sus pretensiones en el exterior. Para el griego clásico, las acciones eran areté si demostraban su proeza, lo que les valdría
fama inmortal. Como la vida después de la muerte era una continuación
sin alegría, había que asegurar la reputación de los hombres para que
su memoria perdurara entre los vivos, y para ello el triunfo era lo más
importante, pues la derrota confería la desgracia y el olvido. Por ello la
muerte de las amazonas hizo imperecedera la reputación de Atenas y
su “imperialismo” sobre unas tierras que no les pertenecían convertía
su causa en injusta, frente a la justicia de los atenienses en defenderlas.
A pesar de todo, parece que la mayoría de los griegos creían
que habían existido en algún momento44, aunque nunca encontraron
nada al llegar al Termodón. Sera ya en el siglo XX cuando se han localizado tumbas de mujeres guerreras, en zonas cercanas de las estepas
rusas y asociadas a escitas, sármatas, etc., que se han relacionado con
ellas. En cualquier caso, ello demuestra que, probablemente, nos encontramos ante un mito perteneciente al ámbito pregriego, ya que su
ubicación siempre se fue colocada cada vez más hacia el límite oriental
del área cultural griega45. Así, en la época Arcaica se encontraría más
43 BOARDMAN, J. “Herakles, Theseus and Amazons”, en D.C. Kurtz y B.S. Sparkes,
eds.; The Eye of Greece. Studies in the art of Athens; Cambridge, Cambridge Univ.
Press, 1982, p. 5.
44 Aunque Hardwick opina que probablemente no habría sido así, pero aunque
algunos autores clásicos le dan la razón otros muchos autores lo sostenían y quizá
podríamos ver en ello si bien no una creencia generalizada si al menos de una parte
importante de la población en base a que el argumento de la victoria ateniense sobre
ellas habría sido tildado de fantástico cuando éstos lo usaron a la hora de otorgarse
prestigio y valor a través de las oraciones fúnebres. HARDWICK, Lorna. “Ancient Amazons - Heroes, Outsiders or Women?”; Greece & Rome, Second Series, Vol. 37, No.
1, 1990, p. 14.
45 Blake Tyrrell incide en que existen varias ubicaciones para la patria de las amazonas a lo largo de la historia griega, y que todas se encontraban siempre fuera de
Grecia, algo en lo que incide también Schefold incidiendo en el caso de Pentesilea
que asocia al de Memnón en este sentido. BLAKE TYRRELL, W. Las amazonas: un
estudio de los mitos atenienses; México, F. Cultura Económica, 2001, pp. 114-115.
Volume 2
159
allá de Troya o Tracia, en el s. VI a.C. se ubicaron en Escitia46, en el s. V
a.C. en Capadocia a orillas del Termodonte, y ya en época helenística
muy lejos en Oriente, debido a que la ampliación progresiva de los
conocimientos griegos sobre aquellas zonas no había dado muestras
reales de ellas. Quizá el mito comenzó con noticias llegadas a los griegos desde el interior del Asia Menor o de las costas del mar Negro47,
acerca de unas mujeres nómadas, montadas y armadas. El aumento
de las relaciones comerciales entre los griegos y estos pueblos nómadas, a finales del VI a.C., habría favorecido un mejor conocimiento de
sus costumbres y una mayor precisión en las representaciones48. No
obstante, esta visión tendría poco que ver con su asentamiento en ciudades como Temiscira49. Dicha licencia griega quizá tendríamos que
relacionarla con el prestigio que los griegos quisieron darles a fin de
SCHEFOLD, K. Myth and Legend in eraly greek art; London, Thames and Hudson,
1966, p. 45.
46 Shapiro incide en la aparición de vasos decorados con figuras de amazonas
con rasgos menos helenizados y más asociados a tracios (como en sus escudos de
medialuna o sus gorros frigios) y escitas (en figuras de arqueras que visten de igual
forma), a partir de mediados del siglo VI a.C. antes de que estas fueran asimiladas a
los persas, momento en que estos modelos dejaron de aparecer. Sobre los motivos
para ello se basa en Proclo (Crest. 2) quien en el siglo V a.C. siguiendo una fuente
anterior indicaba que las amazonas provenían de Tracia, tradición que se habría difundido en el siglo VI a.C. quizá asociada a las relaciones comerciales que los griegos establecieron con este pueblo entre el cual se alojó Pisístrato y de donde trajo
consigo a su vuelta a Atenas numerosos mercenarios, aunque la presencia escita
en Atenas no está tan bien documentada y sobre ello indica que bien pudieron ser
también contratados por aquel como arqueros del ejército de la ciudad. SHAPIRO,
H. A. “Amazons, Thracians, and Scytians”; Greece, Roman and Byzantin Studies, vol.
XXIV, 1983, p. 106.
47 Graves indica que el mito del Noveno trabajo de Heracles tendría una base
cierta relacionada con las expediciones comerciales micénicas realizadas a mediados
del II Milenio a.C. hacia el mar Negro. Sobre ello Blok opina que, probablemente,
la atribución de la ubicación de las amazonas en una zona próxima al mar Negro se
habría producido antes de que algunos autores indicaran que esta se localizaría en
Temiscira, quedando así como un topos literario donde ambas posibilidades rivalizarían. GRAVES, Robert. Los mitos griegos. Vol II; Madrid, Alianza, 1985, p. 90. BLOK,
Josine H. The Early Amazons. Modem and Ancient Perspectives on a Persistent Myth;
Leiden, E. J. Brill, 1995, p. 91.
48 BLOK, Josine H. The Early Amazons. Modem and Ancient Perspectives on a Persistent Myth; Leiden, E. J. Brill, 1995, p. 415.
49 WHALLEY, Jo. On the bravery of women: the ancient amazon and her modern
counterparts; Tésis Doctoral, Victoria University of Wellington, 2010, p. 32.
que su derrota cobrara más valor, al tratarse de mujeres que habían
formado un imperio (la polis significaba para los griegos el orden y la
civilización), en lugar de simples nómadas.
Los escitas eran nómadas y vivían en las estepas rusas al norte
del mar Negro, como sucedía también con los sármatas y los saurómatas, a tenor de los relatos de Isócrates o Diodoro. Heródoto50 indica
que los saurómatas descendían de escitas y amazonas51 cuando éstas,
que habían sido capturadas en la batalla del Termodón y embarcadas
con rumbo a Grecia, mataron a sus captores. Como no sabían nada
del arte de la navegación, fueron a parar al lago Maiopis (en Escitia),
donde tras comenzar saqueando sus rebaños52 terminaron por unirse
a sus pobladores.
En lo que respecta a la sociedad de las amazonas, no debemos olvidar que su conocimiento parte de antiguas obras literarias y
restos iconográficos presumiblemente elaborados por hombres, y que
éstas invierten el ideal de modelo social griego. El problema radica en
que la mayoría de los textos muestran repeticiones de obras anteriores, tópicos e, incluso, elaboraciones imaginarias propias que aportan
pocos datos. Estrabón53 cuenta que consultó a autores antiguos como
Hecateo, Heródoto y Helánico, a los que consideraba como creadores
de mitos y no historiadores. Sin embargo, también consultó el trabajo
de Éforo, discípulo de Isócrates, que escribió una historia de su ciudad
natal, atribuyendo su fundación a una amazona.
En cuanto a su armamento, en los relatos más antiguos no se
distingue del que utilizaban los griegos, pero tras su asimilación con
los persas54, pasará a ser un elemento más de oposición. Los hoplitas
50 IV, 110-117.
51 Explicación que Rostovfzeff defiende como histórica basándose en las teorías
de finales del XIX y principios del XX, asociando a las amazonas con sacerdotisas
guerreras asociadas a la Diosa Madre y muy típicas de en Asia Menor, aunque más
adelante trataremos sobre ello. ROSTOVTZEFF, M. Los iraníes y los griegos en el sur
de Rusia; Oxford, Clarendon Press, 1922, p. 33.
52 ALBALADEJO VIVERO, M. “Crueldad y violencia en los personajes femeninos de
Heródoto”; EMERITA. Revista de Lingüística y Filología Clásica (EM) LXXV 2, 2007, p. 313.
53 II, 5.
54 La cual Blok interpreta como un signo del intento de los clásicos por acentuar
su carácter bárbaro que antes cuando se las representaba como los hoplitas griegos
no se apreciaba tan evidentemente. BLOK, Josine H. The Early Amazons. Modem and
Ancient Perspectives on a Persistent Myth; Leiden, E. J. Brill, 1995, p. 404.
Volume 2
161
griegos eran ciudadanos que pagaban sus armas y combatían en formación. Portaban armadura, lanza y su escudo pesados, mientras que
las amazonas, como aparecen en la iconografía, llevaban armaduras ligeras para favorecer su movilidad, portando lanzas y jabalinas (a veces
también hachas de doble filo) junto con arcos para atacar al enemigo
a distancia. También utilizaban un escudo en forma de medialuna cubierto de pieles, y luchaban más frecuentemente a caballo que a pie.
El arco estaba mal visto por los griegos, como arma de combate, desde
los tiempos homéricos, ya que matar a distancia era considerado como
de cobardes, y se asociaba con el modo de luchar de los odiados persas, que estaba por debajo de la dignidad de los griegos.
No obstante, a pesar de su faceta guerrera, no contamos con
representaciones de amazonas muertas en la iconografía. Ello pudo
deberse al hecho de que sus figuras nunca mostraban un claro carácter
femenino (a excepción de su piel blanca y en algunas esculturas), buscando evitarse tanto mientras estaban vivas, como aún más cuando
deberían aparecer desnudas sin sus armas, tras ser derrotadas, por la
tradición griega de apoderarse de las armas del enemigo vencido. No
obstante, ello hubiera recalcado más su carácter femenino y, quizá,
habría ayudado a reforzar el mensaje que los griegos querían mostrar,
sin que se desvirtuara la victoria de sus oponentes varones, tanto en
cuanto a la heroización épica como acerca del destino inevitable de
quienes se oponen al orden social.
En cuanto a las representaciones escultóricas, si bien los artistas de vasos áticos han transmitido siempre una imagen de las amazonas vestidas, muchos escultores optaron por mostrarlas semidesnudas
con su clámide abierta por el costado, en un contraste de belleza y
fiereza. A pesar de ello, es interesante mencionar que el tema del amor
no se refleja en ninguna de las representaciones de las amazonas recogidas en la cerámica griega. Pareciera que se trataba de un elemento
tabú, en cuanto a la iconografía del mito, buscándose su asunción solo
como enemigas y alejadas de los roles aceptados para las mujeres.
Otro de los elementos importantes del relato amazónico fue
la ubicación que los diversos autores las asignaron a lo largo del tiempo. La más célebre era la costa meridional del mar Negro, en las cercanías del río Termodón. Aunque, autores como Homero las ubican en
Licia y Frigia, sobre el río Sangario; otros como Arctino, en la Etiópida,
162 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
hablaba de la Tracia Pentesilea, y Esquilo opinaba que llegaron al Termodón procedentes de la Cólquida, que él ubica (erróneamente) al
norte del mar Negro, en torno del lago Meotis. En otros relatos aparecen mucho más hacia el este, en las estribaciones de los montes del
Cáucaso, al Norte de Albania o, como ya hemos visto, incluso cerca de
Libia. En cualquier caso, éstas se encontraron siempre fuera de Grecia,
de una patria donde su sistema social y forma de vida no habrían tenido cabida, e incluso cuando éstas la invadieron acabaron derrotadas
y muertas. Por lo que se las ubica en el límite oriental del mundo conocido, que varió según los griegos lo fueron ampliando a lo largo del
tiempo gracias a sus expediciones. En base a ello, eran ubicadas cada
vez más lejos, de Jonia55 a Frigia, pasando del río Termodón al lago
Meotis y a los montes del Cáucaso; ya que el límite del mundo habitado que representaba la frontera entre la civilización y el salvajismo,
entre lo racional y lo maravilloso. Más allá de dicha frontera, ya fuera
en oriente, occidente, norte o sur, los griegos afirmaban la existencia
reinos de leyenda, seres míticos y demás maravillas como gorgonas,
hiperbóreos, etc. en lugares desconocidos y alejados de su mundo. De
forma que cuanto más lejos estuvieran esos lugares de Grecia, más
acentuado seria su salvajismo y más leyendas se contarían.
Es interesante un aspecto aparecido en Éforo (Est. de Bizancio, Ethnika, Amazonas), donde achaca la debilidad de los persas (relatada tras la victoria griega en las Guerras Medicas) a la “predestinación
geográfica”. Ello nos muestra otro aspecto de la visión griega sobre
la inversión de papeles de las mujeres amazónicas ya que, por ello,
los hombres eran “blandos” y las mujeres “duras”. Estaría relacionado también con que la vida de los griegos estaba gobernada por un
imperativo, que los jóvenes llegasen a ser guerreros y las doncellas,
esposas y madres. El Estado tenía apremiante necesidad de soldados,
y la sociedad griega se centraba en el guerrero varón adulto, mientras
que las mujeres no eran ni siquiera consideradas ciudadanas56, sino
55 Donde autores como Wilke y Hurt colocan su hogar primigenio a lo largo de la
costa jónica, a raíz de lo cual diversas ciudades de la zona llevarían nombres de amazonas. WILKE, B. y HURT, J. Literature of the Western World, Vol. 1: The Ancient World
Through the Renaissance; 5th Ed. New Jersey, Prentice-Hall, 2001, p. 127.
56 La mayoría de ellas no llegarían a ser ni osas (sólo algunas eran elegidas para
servir durante un año a Artemisa en el santuario de Braurón), canéforas, ni arréforas,
Volume 2
163
que pertenecían a la sociedad en calidad de madres, esposas e hijas
de ciudadanos, que debían estar recluidas en el gineceo. Se entendía
que, una mayor claridad en la piel de las mujeres, indicaba que habían permanecido allí, en contraposición a aquellas que podían tener
un tono más oscuro57. Ello era entendido como un símbolo de mayor
aceptación y respeto por su condición y deberes, frente a la sociedad
ginecocéntrica de las amazonas, cuyo tono de piel más reflejaba esa
negación. No se ocupaban de su hogar y de engendrar varones, como
las mujeres griegas, sino que eran madres de hijas que vivían a su imagen, y que no cumplían con los rituales de transición griegos58. Quizá
por ello, en sus mitos son siempre derrotadas por héroes de origen
griego (quienes con sus victorias habrían establecido el límite del mundo en el que se definiría la polis griega frente a las amazonas y a los
centauros como enemigos de la civilización); de forma que, la lucha
contra las amazonas se consideraría como uno de los trabajos obligatorios de todo héroe griego que se precie de serlo. Ello es un elemento
interesante que chocaría con la propia concepción griega del heroísmo
épico. La fama de los héroes se sustentaba en el combate frente a enemigos que debían mostrar una dignidad, valor, fuerza, etc. al menos
similar a la de su oponente, para con ello ofrecer un componente adicional de grandeza a la victoria.
En el caso de las amazonas, esta regla se rompe por tratarse
de mujeres cuya fuerza física se entendía menor que la de sus oponentes masculinos, mostrándose así la dicotomía en cuanto a las atribuciones y características que se asociaban a cada género. A pesar de ello y
que es a lo más que podían aspirar.
57 Irwin indica que en la poesía griega los hombres son descritos como melas (oscuros de piel) y las mujeres como leukos (de piel blanca), lo cual muestra una clara
diferenciación entre los sexos respecto a sus funciones. Para los griegos la tez oscura
representaba la virilidad, que incluía virtudes como el valor y la capacidad de lucha,
mientras que la tez clara reflejaba afeminamiento. Aristófanes, Las asambleístas 6364. IRWIN, Eleanor. Colour Terms in Greek Poetry; Toronto, Edgar Kent, 1974, p. 111.
58 Según Diez de Velasco, para los griegos la mujer, antes de la boda es una mergaité, tras la maternidad una moteris, y entre ambos momentos vive en un estado liminar e indeterminado (y peligroso) que es el de marti, en el que progresivamente la
sexualidad desenfrenada perimatrimonial se domestica por medio de la procreación.
DIEZ DE VELASCO, Francisco. Lenguajes de la religión: mitos, símbolos e imágenes de
la Grecia Antigua. Trotta, Madrid, 1998, pp. 117-118.
164 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
de la opinión de Blok59, para quien entre los griegos el enfrentamiento
entre un hombre y una mujer no sería digno, no parece que se hubiera interpretado así por los griegos. Las victorias sobre las amazonas,
lejos de mostrarse como un acto vergonzoso, no dejaron de exaltarse
quizá como muestra de que el fin justificaría los medios, y desviando
la atención sobre su condición femenina para centrarse en su aspecto
masculino evitando desvirtuar la victoria.
CONCLUSIÓN
Así, un mito se inventa para revelar una solución a un problema inherente en el sistema comunitario humano, dentro de la estructura social y del momento histórico que lo imbuyeron, basándose en
la posibilidad de un levantamiento de las mujeres contra los hombres.
Sin embargo, aunque el mito de las amazonas pudo generarse así, fue
variando en su propósito inicial generación tras generación donde se
le fueron añadiendo otros significados que no excluían el primero. Esto
sucedió tras la victoria frente a los persas, con las hazañas de las que
los atenienses se jactaban por haber realizado, y de su “pureza” al estar libres de la naturaleza “extranjera” de las mujeres, puesto que ellos
no habían nacido de una mujer, sino de la tierra, como afirmaban Homero60, Esquilo61 o Hesíodo62.
Por todo ello, las amazonas personalizarían diversas facetas
que afectaban a los griegos, al incluir aspectos militares y maritales
dentro de un mito que pervivió hasta el final del mundo antiguo, a
través de textos, relieves, pinturas, etc. En cuanto a lo militar, sus derrotas no solo sirven para demostrar la superioridad de lo masculino
frente a lo femenino, en una faceta propia de los primeros, sino también la victoria griega frente a los persas, a quienes las asociaron, y el
59 BLOK, Josine H. The Early Amazons. Modem and Ancient Perspectives on a Persistent Myth; Leiden, E. J. Brill, 1995, p. 282.
60 II, 547-548.
61 Eum. 902-913.
62 Trabajos y días, 90-105.
Volume 2
165
valor de los atenienses frente a ellas, que reafirmaron su derecho de
nacimiento a la posesión de sus tierras. En cuanto a lo marital, vendría
a ejemplificar que la sociedad patriarcal es el medio óptimo para controlar la sexualidad63 y precipitación femeninas64, que representaban
todo lo contrario a lo que era apreciado por los varones; aun a pesar
de que éstas, en sí, incluirían tanto aspectos masculinos (guerreras)
como femeninos (mujeres). Todo ello muestra como lógicos, para los
griegos, los diversos finales que se les dio en los mitos a lo largo de
toda la Historia Antigua.
Constituyen un mito creado y elaborado por los griegos con
un fin y propósito concreto, y no en base a la libre invención de los autores clásicos que nos hablan de él. Nos presenta con claridad numerosos aspectos opuestos a lo griego, enmarcados en lugares más allá
de lo real, así como las circunstancias y finalidad que ello implica. De
ello se extrae, fácilmente, por sus oyentes o lectores, una enseñanza
básica de cómo deben ser las cosas y cómo el orden establecido es el
correcto, el mejor posible para los griegos y su visión del mundo. Se
encontraban lejos del papel de madre y esposa griega, lo cual chocaba
con el orden establecido en la mentalidad griega y representaba una
ruptura con la naturaleza de la mujer.
La propia fuerza del mito lo mantuvo vivo, no solo a lo largo
de toda la antigüedad, sino hasta nuestros días, e incluso fue trasplantado al Nuevo Mundo a través de la imaginación de quienes allí fueron en busca de riquezas y aventuras. Pues aquellas nuevas tierras se
presentaban propicias para revivir numerosos mitos y leyenda, o para
crear los suyos propios. Ello desembocó, entre otras cosas, en que el
río Amazonas lleve su nombre. Su leyenda no solo podemos encontrarla en la mentalidad de los pueblos del Mediterráneo, sino que, con
algunas variantes propias de cada cultura o región, se encuentran presentes en todos los continentes, quizá a excepción de Oceanía. Apa63 Como indica Picazo, la sophrosine o capacidad de autocontrol era exclusiva del
varón griego que debía velar porque su esposa no cediera a las pasiones que la dominaban su naturaleza de mujer. PICAZO GURINA, Marina. Alguien se acordará de
nosotras: mujeres en la ciudad griega antigua; Barcelona, Bellaterra, 2008, p. 38.
64 Según Blok elementos que encarnarían las amazonas. BLOK, Josine H. The Early
Amazons. Modem and Ancient Perspectives on a Persistent Myth; Leiden, E. J. Brill,
1995, p. 68.
166 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
recen en relatos de China, África, Escandinavia, etc. e incluso fueron
mencionadas por los navegantes árabes de los siglos XI-XIII. Es por ello
que su posible existencia permaneció viva e impresionó a los hombres
de todos los tiempos, que las representaron en pinturas, esculturas,
obras de teatro, poemas, etc.
Volume 2
167
RELIGIÃO E JUSTIÇA: O USO DE
ARGUMENTOS RELIGIOSOS NAS
TETRALOGIAS DE ANTIFONTE
Priscilla Gontijo Leite1
A experiência religiosa grega abrangia todos os domínios da
vida do sujeito, sendo completamente imersa na vida social. Seguindo o esquema proposto por Vegetti2, pode-se dividir a experiência
religiosa em dois planos que se correlacionam. O primeiro se refere à
ritualidade cotidiana, com todos os ritos que acompanham o sujeito
desde quando ele acorda até ir dormir, nos domínios da vida privada
e no cumprimento de suas funções públicas. O segundo diz respeito
ao conjunto de relatos míticos que ordenam o kósmos e, ao mesmo
tempo, proporcionam inteligibilidade aos rituais praticados. Dessa maneira, a observância do ritual exigia do sujeito a crença nos ritos.
O exercício constante dos rituais constitui um dos sustentáculos importantes para o politeísmo3, pois colocavam o sujeito em
contato frequente com os deuses, gerando uma relação de familiaridade. Sendo assim, o religioso está em tudo e sua presença é marcante
mesmo nas esferas em que não estamos habituados a vê-lo, como é
o caso das disputas judiciais. Os discursos forenses estão repletos de
exemplos da utilização da argumentação religiosa para conquistar a
benevolência do público.4 Essa utilização se torna ainda mais evidente quando o caso em litígio envolve diretamente algum preceito reli1 Professora Adjunta do Departamento de História da UFPB. Pesquisadora do ATRIVM-UFRJ. E-mail:
[email protected]
2 VEGETTI, M. O Homem e os deuses. In: VERNANT, Jean-Pierre (org.). O homem
grego. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, p. 1994, 249.
3 Segundo a definição de Burkert, o politeísmo ocorre quando várias divindades
são adoradas no mesmo local, ao mesmo tempo, pela mesma comunidade e pela
mesma pessoa. (BURKERT, W. Religião Grega na época Clássica e Arcaica. Tradução
de M. J. Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 421).
4 LEITE, P. G. Ética e retórica forense: asebeia e hyrbis na caracterização dos
adversários em Demóstenes. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014.
Volume 2
169
gioso, como os assassinatos, que provocam uma desordem na relação
entre homens e deuses por produzir uma mácula (miasma).
O objetivo do presente texto é entender aspectos da religião
5
grega por meio dos discursos de Antifonte, em particular as Tetralogias, demonstrando as possíveis relações entre as esferas jurídicas e
religiosas, já que na pólis as esferas política, jurídica, social e religiosa
não eram bem delimitadas e nem claramente divididas. Essa imbricação de âmbitos da pólis foi expressa por Vernant ao afirmar que “todo
sacerdócio é uma magistratura e toda magistratura comporta um aspecto religioso”6. Todos os atos da vida cotidiana possuíam elementos que reportavam a uma dimensão religiosa, desde as coisas mais
corriqueiras até as mais solenes, da esfera pública à esfera privada.
Todo poder político antes de ser efetivado ou toda discussão para ser
legitimada exigiam uma validade no plano do sagrado, que era atingida
após a prática de um ritual religioso, o sacrifício7.
As Tetralogias são profundamente marcadas por um
ambiente religioso. Dentre as fontes do registro forense, é nas Tetralogias que os aspectos religiosos são mais evidentes. As Tetralogias são
5 Estamos cientes da inexistência no vocabulário grego de um termo para expressar o sentido de religião. Alguns termos e expressões se aproximavam desse sentido,
como por exemplo “as coisas dos deuses” (ta ton theon) (PARKER, R. The vocabulary
of religion. In: CHRISTIDIS, A. F. A History of Ancient Greek: From the Begginnings to
Late Antiquity. Edited for the Centre for the Greek Language by A. F. Christidis with
assistance of Maria Arapopolou and Maria Christi. New York, Cambrigde: Cambrigde University Press, 2007, p. 1070). Também era utilizada a expressão “veneração
aos deuses”, que designa, ao mesmo tempo, a prática dos cultos (BURKERT, W. Religião Grega na época Clássica e Arcaica. Tradução de M. J. Simões Loureiro. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.517). Para Benveniste, o termo que mais se
aproxima para nomear a religião, no grego, é theskeie, que é aplicado por Heródoto
para a observação das prescrições aos cultos. (BENVENISTE, Émile. O vocabulário
das instituições indo-européias. Tradução de Denise Bottmann e Eleonora Bottmann.
Campinas: 1995. Vol. 2, p. 267). Esse termo é desconhecido do ático e reaparece no
século I d.C., para designar a religião como um conjunto de crenças e suas práticas.
O conceito religião grega é utilizado por toda a literatura especializada para designar
as relações que os homens estabeleciam com a esfera divina na Grécia antiga. Assim,
optou-se em continuar utilizando o termo religião para designar o conjunto de práticas e sentimentos que esses homens tinham com relação ao sagrado.
6 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Pensamento na Grécia Antiga: Estudos de Psicologia Histórica. Trad. Haiganuch Sarian, 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1973, p.278.
7 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica
D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p.60.
170 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
datadas do início do estabelecimento da retórica e da consolidação
do sistema judiciário em Atenas, e por isso constituem valiosas fontes
para entender as transformações do pensamento jurídico ateniense
e o lugar que os argumentos religiosos ocupavam na estratégia persuasiva de Antifonte. As Tetralogias correspondem a conjuntos de discurso considerados como exercícios retóricos que abordam o tema do
assassinato e não possuem títulos e, por essa razão, são chamados de
Tetralogia I, Tetralogia II e Tetralogia III. Elas representam um conjunto
de doze discursos e propõem três causas imaginárias, que seguiam os
critérios estabelecidos pelos procedimentos judiciais ateniense. Cada
Tetralogia apresenta quatro discursos, dois da acusação e dois da defesa. Inicia-se com a exposição dos argumentos da acusação, seguidos da
réplica da defesa com a repetição novamente de ambos os discursos
nessa ordem. Nesse segundo momento, a acusação aproveitava para
reafirmar seus pontos, bem como para atacar e desestabilizar os argumentos de defesa. Por fim, a defesa alegava sua inocência e a impropriedade da acusação sustentava a necessidade e de sua consequente
punição, já que permitiria ao verdadeiro culpado ficar livre e continuar
contaminando a cidade.
Para atingir nosso fim, o percurso investigativo será divido em
três partes. A primeira abordará aspectos gerais a respeito da religião
cívica. A segunda se aprofundará nos conceitos de pureza e impureza
que serão importantes no desenvolvimento da estratégia retórica de
Antifonte e, por fim, nos deteremos na análise das Tetralogias.
I. A pólis e a religião: a religião cívica
O uso do conceito de religião cívica para o fenômeno religioso
grego deve ser cauteloso. Como afirmamos anteriormente, a religião
estava presente em todos os domínios da vida do sujeito. Falar em religião agrária, religião familiar, religião cívica, religião sectária e religião
pan-helênica não significa dizer que essas esferas religiosas fossem separadas. Elas coabitavam dentro do mesmo sujeito. Essa divisão tem
uma função mais didática para o estudioso moderno entender a comVolume 2
171
plexidade do fenômeno religioso grego.8 Assim, optamos por utilizar
o conceito de religião cívica, para facilitar o entendimento de certos
aspectos religiosos que estão presentes nos discursos forenses.
A religião era completamente integrada à vida cívica. Todos
os atos importantes, tais como reuniões da assembleia, sorteio de
magistrados e julgamentos eram precedidos de sacrifícios aos deuses
protetores. A própria contagem do tempo era marcada pela religião,
já que as festas para homenagear os deuses marcavam o calendário
cívico. O calendário se caracterizava por ser um conjunto de regras
ritualísticas. Os nomes dos meses eram baseados nas cerimônias religiosas que ocorriam no período9. Segundo os relatos, Atenas se destacava entre as cidades gregas na realização de festivais10, que eram
tão numerosos a ponto de prejudicar a resolução de outros assuntos
pela cidade, pois, nos dias de comemoração religiosa, suas demais
funções ficavam reduzidas ao mínimo: “Se, primeiramente, [os atenienses] têm de celebrar mais festivais que qualquer outra cidade grega (durante os quais a capacidade de gerir os assuntos do Estado é mínima) [...]” (Pseudo-Xenofonte, A constituição dos Atenienses, 3.2).11
O autor do tratado A constituição dos Atenienses, ao fazer
sua crítica ao regime democrático, demonstra que a democracia ateniense utilizava dos ritos religiosos para inserir todos os cidadãos,
mesmo os mais pobres, nos acontecimentos da cidade. Para isso,
era então necessário arcar com as despesas das grandes festas que
aconteciam anualmente12:
8 Para mais informações sobre os diferentes tipos de religiosidade grega ver:
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica D’Avila
Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006. p. 69-88; GERNET, Louis; BOULANGER,
André. Le génie grec dans la religion. Paris: Éditions Albin Michel, 1987; ZAIDMAN,
Louise Bruit; PANTEL, Pauline Schmitt. Religion in the Ancient Greek City. Cambridge:
Cambridge University Press, 2002, p. 112 -140; VIAN, Francis. La religion grecque à
l’époque archaïque et classique. In: Histoire des religions. I. Encyclopédie de la Pléiade. Direction Henri- Charles Puech. Ligugé: Aubin, 1994.
9 VEGETTI, M. O Homem e os deuses. In: VERNANT, Jean-Pierre (org.). O homem
grego. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1994, p.235.
10 Cf. Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, II, 38.
11 Todas as referências a Constituição dos Atenienses de Pseudo- Xenofonte pertencem a tradução de MARTINS, P. R. A constituição dos Atenienses. Tradução do
grego, introdução, notas e índices: Pedro Ribeiro Martins. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011.
12 Na mesma obra, tem-se a enumeração das festas celebradas por Atenas anual-
172 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Quanto aos sacrifícios, ritos religiosos, festivais e templos
o povo – apesar de saber que é impossível aos indivíduos
pobres oferecer sacrifícios, celebrar banquetes, estabelecer
novos ritos e viver numa cidade bela e grandiosa–, mesmo
assim descobriu uma maneira de fazer tudo isto. Ou seja, a
cidade realiza muitos sacrifícios, à custa do erário público,
mas é o povo que aproveita os banquetes, dividindo entre
si as partes dos animais sacrificado. (Pseudo-Xenofonte, A
constituição dos atenienses, 2.9)
Essa situação não era restrita apenas a Atenas. A maior parte
das atividades e despesas das cidades gregas eram dedicadas à religião. Havia um esforço coletivo para a construção de templos, cujas
ruínas sobreviveram ao longo do tempo; para a organização de festivais; para o estabelecimento do calendário religioso e cívico, que se
interagiam e se complementava; e para a execução correta dos ritos
que acompanhavam os atos públicos.
A organização de festivais por parte da cidade era importante, já que assegurava a relação entre homens e deuses, por meio da
demarcação da diferença entre eles, e a coesão entre os habitantes da
cidade, garantindo a integração social, por ser um momento de convivência e de auto exaltação da comunidade. Por essa razão, Burkert
afirma que a religião verdadeiramente praticada pelos gregos se concentrava nas festas, que quebravam e ordenavam o cotidiano.13
As grandes festas cívicas constituem a expressão mais espetacular da religião. Elas exprimem e exteriorizam a piedade de toda a
pólis, pois celebram e reconhecem a ordem entre homens e deuses.
Igualmente, a festa evidencia e reforça a coesão dos habitantes da cidade por meio do respeito e do reconhecimento dos benefícios feitos
pelos deuses e, ao mesmo tempo, na esperança de que as manifestações da benevolência divina estariam por vir.14
Assim, a pólis assumia a responsabilidade e a autoridade de
manter o sistema religioso, mediando as relações entre o humano e o
mente: Dionísias, Targélias, Panateneias, Prometeias e Hefesteias (Pseudo-Xenofonte, A constituição dos Atenienses, 3.4)
13 BURKERT, W. Religião Grega na época Clássica e Arcaica. Tradução de M. J. Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 437.
14 ZAIDMAN, L. B. Le commerce des dieux. Eusebeia: essai sur la piété en Grece
ancienne. Paris: La Découverte, 2001, p. 21.
Volume 2
173
divino. Ela era responsável por articular um panteão de deuses a serem
venerados, escolhendo as divindades que seriam protetoras e patronas. Estabelecia o sistema de cultos e festas a serem seguidos de acordo
com o calendário sagrado, também estipulado por ela. Em suma, da
pólis provinha a base fundamental na qual a religião grega operava15.
Para Sourvinou-Inwood, a religião era a “faceta da ideologia
da pólis”16 que deveria ser mais respeitada pelos cidadãos. Qualquer
sinal de desrespeito à religião era indicativo de deslealdade à cidade.
Segundo a autora, a pólis era imbuída de uma mentalidade em que a
pessoa era percebida como participante do ritual, que era considerado
uma atividade em nome da cidade. A cidade, por sua vez, era a responsável por mediar e garantir a execução dos cultos e a participação
dos cidadãos neles. Cada sinal de desacato aos cultos tornava toda a
cidade culpada de impiedade.17
Será exatamente o receio de praticar uma impiedade contra
a cidade o aspecto mais explorado nas Tetralogias de Antifonte. O
orador se utiliza do dever do cidadão de bem cuidar da religião para
construir argumentos capazes de demonstrar que a ação do adversário pode prejudicar toda a comunidade, uma vez que interfere nas
relações entre o homem e os deuses. Essa interferência se deve à produção de um uma mácula, que no contexto dos discursos é produzida
por um assassinato.
II. O contato com o sagrado: pureza e mácula
Como vimos no tópico anterior, a religião era integrada à pólis
e o sujeito estava em constate contato com o sagrado por meio de ritos,
libações e festas que circundavam a vida privada e pública. O sujeito estava sempre habilitado para participar desses eventos, uma vez que sua
15 SOURVINOU-INWOOD, Cristiane. What is Polis Religion? In: MURRAY, Oswyn;
PRICE, Simon. The Greek City from Homer to Alexander. Oxford: Clarendon Press,
1991, p.295.
16 Ibidem, p. 305.
17 Ibidem, p. 399.
174 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
condição natural era de pureza. Esse estado de pureza só era interrompido quando ele entrava em contato com alguma mácula. Nesse sentido,
ao contrário da tradição cristão, para a religião grega a pureza não tinha
que ser adquirida ou obtida, ela já era o estado normal da pessoa.18
No vocabulário grego, a impureza é expressa pelos termos miasma (mácula), akathartos (maculado), miaros (impuro), enages (maldito)
e miaiphonos (manchado pelo crime de sangue). Já a pureza é indicado
pelas palavras katharos (sem mancha), akratos (puro), akeraios (não maculado), akraiphnes (puro), hosios (piedade) e hagnos (puramente).19
No pensamento grego, o que caracteriza a impureza é sua
condição material. A impureza se localiza em um ser concreto, como
por exemplo no assassino ou mesmo em um lugar. Outra característica
da impureza é seu poder de contágio, pois toda a coletividade pode
ser contaminada pela impureza de um de seus membros. Sendo assim, a purificação individual é uma condição necessária para que seja
reaberto o contato entre a esfera humana e dos deuses. Já a pureza
está relacionada com a ideia de ordem e de equilíbrio, sendo também
associada à ideia de justiça (dike).
As tragédias nos oferecem exemplos do caráter contagioso da
mácula e de seus riscos para a pólis, bem como a preocupação dos
cidadãos em contê-la. Em Édipo Rei, um crime impune gerou uma mácula que perturba a ordem da cidade, atraindo para si a punição divina,
18 Alguns segmentos da religião sectária, como por exemplo o orfismo eram contrários a essa visão da religião tradicional. Para o orfismo, os homens já nasciam
com uma mácula inicial (a teofagia), pois eram provenientes das cinzas dos titãs,
que foram castigados por Zeus após devorarem o Dioniso-criança. Por isso, os homens deveriam fazer uma série de rituais purificatórios e seguir um rígido padrão de
conduta. É válido lembrar que a busca por uma salvação individual não correspondia aos ideais da religião tradicional, mas era um elemento importante das religiões
sectárias e de mistérios. Esses cultos eram mais voltados à pessoa do que ao cidadão, buscando fornecer respostas às angustias mais íntimas que não eram satisfeitas
pelos cultos cívicos, como por exemplo a questão da morte. Por ter um caráter mais
aberto, atraía os sujeitos que normalmente tinham uma posição muito reduzida na
vida cívica, como escravos, estrangeiros e mulheres. Para mais informações sobre as
religiões sectárias vide VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad.
Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p.69- 88.
19 Para mais informações sobre esses termos e exemplos de sua ocorrência na
literatura grega vide MOULINIER, L. Le pur et l’impur dans la pensée des grecs: d’Homere à Aristote. Paris: C. Klincksieck, 1952.
Volume 2
175
que é caracterizada pela peste, a infertilidade das mulheres e dos animais e a falta de alimentos:
Sacerdote: Tu o vês como nós: Tebas, sacudida na tormenta,
não consegue mais manter a cabeça acima da onda mortífera.
A morte a golpeia nos germes onde se formam os frutos do
solo, a morte golpeia em seus rebanhos de bois, em suas mulheres, que não engendram mais a vida. Uma deusa com um
archote, deusa terrível entre todas, a Peste, se abateu sobre
nós, fustigando nossa cidade e esvaziando aos poucos a casa
de Cadmo, enquanto o tenebroso inferno vai se enchendo de
nossas queixas, de nossos soluços (Ésquilo, Édipo Rei, 15-30).20
O risco do contágio e de dano por causa da impureza também
é explorado por Antifonte nas Tetralogias. Nesses discursos, a impunidade do assassino poderia provocar colheitas infrutíferas na cidade,
portanto, o mesmo tipo de consequência referida na tragédia:
É, de resto, inconveniente para vós que este sujo e impuro
(μιαρὸν καὶ ἄναγνον) entre nos santuários dos deuses para
sujar (μιαίνειν) a pureza (ἁγνείαν) deles, sentando-se às
mesmas mesas que os inocentes e enchendo-os de sujeira
(συγκαταπιμπλάναι), pois é a partir disso que acontecem as
más colheitas e as realizações se tornam desafortunadas21.
(Antifonte, Tetralogia I, 1. 10)22
Nem todos os crimes produzem uma mácula, mas o assassinato em particular abala de forma direta a relação entre os homens
e os deuses, que somente será restabelecida após o ritual de purificação. No caso da tragédia, Édipo leva sua mácula para Tebas por ter
assassinado no confronto da estrada seu pai, cuja identidade até então
era desconhecia. Para restabelecer novamente a ordem, o assassino
deve ser condenado ou então passar para o exílio.
20 Todas as referências a tragédia Édipo Rei pertencem a tradução de NEVES, P.
Édipo Rei. Porto Alegre: L&PM, 2007.
21 O mesmo argumento também aparece nos seguintes parágrafos das Tetralogias: Tetralogia I, 1. 3, 10, 11 Tetralogia I, 2. 11; Tetralogia I, 3. 1; Tetralogia II, 3. 12;
Tetralogia III, 1. 3; Tetralogia III, 1. 5; Tetralogia III, 3. 6, 7.
22 Todas as referências das Tetralogias de Antifonte pertencem a tradução de RIBEIRO, L. F. B. Testemunhos, fragmentos, discursos. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
176 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
A alternativa do exílio era possível, pois na mentalidade grega,
era forte a ligação entre a mácula e o local onde o sangue foi derramado. Enquanto não ocorresse a purificação, haveria a chance de a comunidade ser contaminada. Assim, o culpado, ao se sujeitar o processo
de exílio, já está iniciando o processo de purificação e abrindo a possibilidade para que seja novamente aceita no interior da comunidade.
As tragédias também oferecem exemplos do exílio como medida para
restabelecer a ordem após o homicídio. Em Hipólito, Teseu tem que
ficar um ano longe de casa para se purificar do assassinato de seus primos Palântidas, que tentavam usurpar o trono do rei Egeu (Eurípides,
Hipólito, 34-37). Já na trilogia de Ésquilo, a Oresteia, antes de receber
a absolvição pelo matricídio, Orestes se exila e vai buscar proteção no
templo de Apolo para se purificar (Ésquilo, Eumênides, 280-283). Para
esse fim, ele realiza um ritual que envolve o sacríficio de um animal.
Na visão de Burkert, o ritual de purificação é um rito de passagem, pois promove a reintegração do assassino à comunidade.23 O
ritual consistia no sacrifício de um animal, geralmente um porco ou
leitão, que tinha sua garganta cortada e o sangue escorria pelas mãos
do impuro.24 O sangue das mãos era lavado com água e o homicida
se encontrava novamente apto para participação dos rituais religiosos
e, assim, da vida em sociedade. O processo de purificação trata-se de
uma demonstração visual da mácula, representada pelo sangue do
sacrifício, e igualmente por sua remoção através da lavagem desse
sangue. A mão que, de uma maneira simbólica, ainda estava suja com
o sangue da vítima é limpa no momento em que o sangue sacrificial
se vai com a água.25
Dessa forma, os processos de purificação do homicídio consistem em ações físicas de limpeza, na qual é removido tudo aquilo que
impede o contato com o sagrado, i.e., o sangue. O meio mais comum
de purificação era a lavagem por meio da água, mas também poderia
ser acompanhado da fumaça proveniente da queima de alguma planta
ou animal oferecido em sacrifício.
23 BURKERT, W. Religião Grega na época Clássica e Arcaica. Tradução de M. J. Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.174.
24 MOULINIER, L. Le pur et l’impur dans la pensée des grecs: d’Homere à Aristote.
Paris: C. Klincksieck, 1952, p.176.
25 Ibidem, p. 90. A manipulação do sangue dos animais também é um aspecto
importante nos rituais que acompanham os juramentos.
Volume 2
177
Para assegurar que o contágio pela mácula não se propague,
o impuro deve cumprir rituais de purificação ou então se afastar para
o exílio e depois realizar os rituais devidos. A pena do exílio era extremamente severa e pode representar a morte simbólica ou cívica
do cidadão, pois o privava daquilo que é essencial para o exercício de
seus direitos: a cidade. Longe de sua pólis natal, perderia o direito de
exercer sua condição política, bem como se distanciaria de toda a rede
social e afetiva que tinha estabelecido ao longo da vida. No caso do homicídio, o primeiro passo feito a alguém que era suspeito desse crime
era proibi-lo de frequentar os lugares comuns da cidade. Estava interditado de entrar em templos, de participar das reuniões públicas, não
podia conversar com ninguém, partilhar de refeições e não deveria ser
recebido em nenhuma casa e nem participar de rituais religiosos de
qualquer espécie, mesmo os de cunho mais íntimo.
No caso dos homicídios, a mácula poderia ser causada tanto
por homens quanto por animais e objetos inanimados. Não fazia diferença qual era a natureza do agente provocador da poluição, o importante era encontrar uma formar de purificá-lo. Esse aspecto da mentalidade grega nos ajuda a entender o funcionamento de determinados
tribunais de homicídios. Em Atenas havia cinco tribunais para julgar
homicídios: Areópago, Paládion, Delfínion, Freato e Pritaneu.26 O Areópago julgava os homicídios intencionais, as tentativas de assassinato
e os casos de incêndio e envenenamento. O Paládion era responsável
pelos homicídios involuntários, que são as mortes provocadas por ferimentos sem a intenção de prejudicar a vítima e aquelas praticadas
contra escravos e estrangeiros. Para o Delfínion, eram destinados os
casos em que o assassinato estava dentro dos limites das leis, ou seja,
os casos em que um adúltero é apanhado em flagrante27, quando se
mata alguém por engano na guerra ou numa competição esportiva28
e por fim, quando a morte é decorrente da defesa a uma agressão29.
26 O discurso Contra Aristócrates de Demóstenes é uma valiosa fonte para o funcionamento desses tribunais.
27 Essa situação é exemplificada no discurso de Lísias Sobre o assassinato de Eratóstenes.
28 O exercício retórico Tetralogia II de Antifonte aborda essa situação em que um
jovem morre durante o treinamento de lançamento de dardos.
29 A Tetralogia III narra a morte de um idoso por um jovem, que o matou ao revidar sua agressão. O Contra Mídias de Demóstenes, nos parágrafos 70 a 76, narra dois
178 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Já no Freato eram julgados os casos em que um homicida já exilado
era processado novamente por um crime idêntico. Como não poderia entrar na cidade, por causa do risco de contágio da mácula, ele
poderia fazer sua defesa a partir de um barco. Por fim, os homicídios
provocados por uma pessoa desconhecida ou por um animal ou ser
inanimado eram conduzidos ao Pritaneu. Para cada caso, esse último
tribunal estabelecia a maneira correta de se realizar a purificação. No
caso de a morte ser provocada por algum animal, este era sacrificado.
Se a morte foi em decorrência de algum objeto, como uma pedra que
cai sobre a pessoa, o objeto era levado para fora dos limites da cidade.
Assim, a mácula representava na mentalidade grega o senso
de desordem, uma interdição aos homens que foi realizada e por isso
trazia o risco de prejudicar gravemente a cidade. Com a mancha retirada, restaurava-se a restauração da pureza, vital para a continuidade
da aproximação dos deuses com os homens e para garantir a ordem
no mundo.30 As ideias de miasma e pureza faziam parte do cotidiano
do homem grego dos séculos V e IV e por isso poderiam ser utilizadas
para atingir fins persuasivos, sendo tão eficazes, pois encontravam ressonância nos sentimentos dos cidadãos.31
III. Antifonte e o uso do argumento da impureza
A mácula provocada pelo assassinato gerava na comunidade
ateniense um assombro e uma preocupação maiores do que as impurezas do cotidiano, e por isso foi utilizada pelos oradores para expressar a culpa do oponente e a necessidade da punição, pois, com
sua aplicação, a pólis estaria se resguardando dos prejuízos que podem afetar todos os habitantes. Isso explica, em parte, as razões pelas
quais as Tetralogias são marcadas pela preocupação excessiva pela
conflitos que acabaram em morte. O primeiro é o caso de Eutino e Sófilo e o segundo
Éveon e Beoto.
30 MOULINIER, L. Le pur et l’impur dans la pensée des grecs: d’Homere à Aristote.
Paris: C. Klincksieck, 1952, p.168.
31 Ibidem, p.212-213.
Volume 2
179
contaminação da mácula do assassinato e da realização do desejo de
vingança do morto32, que é transformado também em um dever dos
juízes. De acordo com Sealey, as ocorrências desses temas nas Tetralogias são: Tetralogia I, 1.3; 1.9-11; 2.11; 3.9-11; Tetralogia II, 1.2; 3.1112; Tetralogia III, 1.3-5; 2.8; 3.7; 4.10-11.33
Além de ressaltar os perigos da mácula para a cidade, Antifonte caracteriza os assassinatos como uma impiedade aos deuses (Tetralogia III, 1.2)34, o que reforça ainda mais o argumento de que o homicídio provoca um sério distúrbio na ordem do cotidiano.35 Na própria
obra do orador, encontra-se as razões para considerar o homicídio uma
impiedade. Segundo ele, os deuses criaram os homens para terem uma
morte natural na velhice. Ao interromper a vida de um homem antes da
hora, o mortal está desafiando a vontade divina. Dessa maneira, ao praticar um homicídio, o sujeito viola ao mesmo tempo os preceitos divinos e as regras criadas pelos homens para assegurar a boa convivência:
Pois o deus, querendo fazer a raça humana, engendrou nossos primeiros ancestrais, e como alimento forneceu a terra
e o mar, a fim de que não escasseassem os víveres necessários a evitar a morte antes da consumação da velhice. E
já que nossa vida foi considerada digna de valor pelo deus,
aquele que mata outrem ilegalmente comete uma impiedade em relação aos deuses (ἀσεβεῖ μὲν περὶ τοὺς θεούς),
além de burlar as prescrições legais (νόμιμα) dos homens.
(Antifonte, Tetralogia III, 1.2)
32 SEALEY, R. The Tetralogies ascribed to Antiphon. Transactions of the American
Philological Association, 114, p.71-85, 1984; SILVA, A. C. A arte da contradição na primeira Tetralogia de Antifonte. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade
Federal de Minas Gerais, 2005, p.74.
33 SEALEY, R. The Tetralogies ascribed to Antiphon. Transactions of the American
Philological Association, 114, p. 71-85, 1984.
34 Argumento semelhante também aparece em outro discurso de Antifonte, Acerca do assassinato de Herodes, 93.
35 O relato mítico da institucionalização da justiça se dá por meio do julgado de
um homicídio, o matricídio de Orestes. No processo de criação das instituições da
cidade verificou-se a necessidade de controlar o processo de vingança privada que
regia os costumes com relação aos homicídios. Para mais informações sobre o assunto vide LEITE, P. G. Ética e retórica forense: asebeia e hyrbis na caracterização dos
adversários em Demóstenes. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014,
p.110-150 e LEÃO, D. F. O Horizonte legal da Oresteia. Humanitas, 57, p.3-38, 2005.
180 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
O tema da impiedade em associação com o miasma é bem
explorado na Tetralogia I. A causa em discussão é o assassinato de um
homem que voltava para casa com seu escravo após o jantar. Ninguém
presenciou o crime e, por isso, a verossimilhança assume um papel
importante na construção da contradição entre a acusação e a defesa.
36
Ambas utilizam largamente as evidências circunstanciais, como, por
exemplo, um suposto ataque de bandidos. Como não há testemunhas,
tudo se passa no campo da suposição. Um parente próximo da vítima
acusa do crime um inimigo que estava sendo processando pelo morto,
sob a acusação de roubar um templo, que também é um crime com
traços de impiedade. Com a morte, o inimigo estaria livre da acusação,
o que para os parentes da vítima constitui motivo suficiente para o
crime. Os nomes dos envolvidos não são citados nos discursos, o que
corrobora a tese de que as Tetralogias são exercícios retóricos.
Para justificar a ação judicial, mesmo sem provas concretas
a respeito da identidade do assassino, a família do morto utiliza argumentos religiosos para convencer os juízes. Na apresentação do caso,
afirma que a impiedade cairia sob toda a cidade não somente pelo
miasma do assassinato, mas também pela inação daqueles que, sabendo de sua existência, nada fizeram para prevenir a pólis. Assim,
para a família, a punição do inimigo pela morte é a garantia que ela e a
cidade ficaram livres do miasma e da impiedade:
Nós, que acusamos judicialmente o assassinato, não deixamos o culpado para perseguir o inocente, pois sabemos que
toda a cidade fica manchada pelo criminoso até que ele seja
perseguido; a impiedade (ἀσέβημα) torna-se nossa, por nosso erro (ἁμαρτίας), a pena se volta contra nós, se não perseguimos de modo justo. Sabendo, portanto, que nesse caso
toda a mancha (μιάσματος) retorna sobre nós tentaremos
vos mostrar, o mais claramente possível que pudermos, de
acordo com o que conhecemos, que <o réu> matou o homem. (Antifonte, Tetralogia I, 1.2-3)
O tema da impiedade é novamente retomado no final do
discurso e serve para reforçar a necessidade de punição do acusa36 Para mais informações sobre esses aspectos vide SILVA, A. C. A arte da contradição na primeira Tetralogia de Antifonte. Dissertação de mestrado apresentada à
Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.
Volume 2
181
do, fazendo com que o dever da vingança também seja dos juízes, já
que ela reside no âmbito público da cidade. A família relembra que
o acusado realizou vários atos ímpios, já que antes de matar, já tinha
pilhado um templo. Por conseguinte, com a sua punição, a cidade ficaria purificada: “É preciso que vós considereis a vingança do morto
como vossa vingança; que sobre este aí se coloquem seus atos ímpios
(ἀσεβήματα), que o acontecimento infeliz seja particular (ἰδίαν), para
ficar purificada a cidade (πόλιν)” (Antifonte, Tetralogia I, 1.11).
A defesa se utiliza do fato notório de ser inimigo da vítima
para demonstra sua inocência. Como ele seria considerado o principal
suspeito se algo acontecesse com o morto, tinha a preocupação de
que nenhum mal acontecesse a ele. Como não é possível demonstrar
de forma eficaz sua inocência e culpa, a defesa usa também dos mesmos argumentos do miasma e da impiedade para tentar persuadir os
juízes. Em seus discursos, são ressaltados a impureza que resulta em
condenar um inocente a morte, bem como o fato de a impiedade prosseguir na cidade já que o verdadeiro culpado continua solto:
Quanto a mim, de todo modo livre de culpa, nem mancharei
a pureza dos deuses entrando nos santuários, nem cometo
impiedade (ἀνόσια) ao vos persuadir a me absolver. Os que
me perseguem e, portanto um inocente, e por outro lado
deixam o culpado, esses são os responsáveis pelas más colheitas; ao persuadir-vos, colocam-nos na posição de ímpios
perante os deuses (ἀσεβεῖς εἰς τοὺς θεοὺς), é justo que venham a lhes calhar todas as penas que dizem ser eu digno de
padecer. (Antifonte, Tetralogia I, 2.11)
Assim, como em Édipo Rei, a primeira consequência grave
para a cidade com a impunidade de um crime de impiedade corresponde às más colheitas, que podem desestruturar toda a vida coletiva,
levando a um clima de stasis. A defesa também complementa sua argumentação afirmando ser vítima de perseguição, que deixaria o verdadeiro culpado livre e, com isso, a cidade continuaria sob o risco do
contágio da mácula:
Desse modo injusto me perseguindo e buscando me matar
de modo sacrílego (ἀνοσίως), eles se dizem puros, e de mim,
que vos persuado a agir piamente (εὐσεβεῖν), dizem que faço
182 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
coisas ímpias (ἀνόσια). Eu, estando puro de toda reprovação,
em meu próprio nome, me apoio no pudor diante da piedade (εὐσέβειαν) dos que jamais foram injustos, em nome do
morto, lembro da expiação que lhe é devida, e vos rogo a não
prender o inocente, deixando livre o culpado, pois, se eu for
morto, ninguém mais há de procurar o culpado. Em respeito
a essas coisas e conforme a justiça e a santidade (σεβόμενοι
ὁσίως καὶ δικαίως), absolvei-me, e evitai de reconhecer um
dia o erro e vos arrepender, pois em tais casos o arrependimento é incurável. (Antifonte, Tetralogia I, 4.11-12)
Com isso, ele espera despertar nos juízes o sentimento de
compaixão e de filantropia e assim conseguir a absolvição, assemelhando-a com um ato de piedade. Ele justifica a escolha desse recurso
para se defender na ausência de possibilidade de demonstrar os verdadeiros culpados e apresenta a hipótese de que a morte da vítima
seria em decorrência de um ataque de bandidos que o mataram para
evitar sua identificação. Com sua operação retórica, o suspeito transforma-se de acusado em vítima, invertendo os papéis. Essa inversão
somente é possível através da exposição de alguns pontos de dúvida
na narrativa (como o que aconteceu no momento da morte) e dos perigos coletivos da impiedade.
A Tetralogia II narra a morte de um jovem no ginásio enquanto um grupo praticava o lançamento de dardos. Assim como na Tetralogia I, não são mencionados os nomes dos envolvidos. Mas, ao
contrário da Tetralogia I, nesse agrupamento de discursos não há uma
preocupação com o jogo de verossimilhança, pois tanto a acusação
quanto a defesa estão de acordo com o que ocorreu no momento da
morte. O foco em disputa é a demonstração da culpa dos envolvidos. A
culpa seria do jovem que lançou o dardo ou daquele que correu em direção ao objeto? Ambas as partes se utilizam de argumentos religiosos
para demonstrar a possibilidade de condenar ou não uma morte que
pode ser justificada. A escolha da piedade (eusebeia) nos discursos se
explica pelo fato de que um dos deveres envolvidos nessa noção é o
cuidado que os filhos devem ter com o bem-estar dos pais e principalmente com o cumprimento das honras fúnebres. Nessa ação fictícia,
uma família já perdeu seu filho e a outra corre o risco de também perdê-lo se este for condenado.
Volume 2
183
O caso foi levado para o tribunal pelo pai do morto, que acusa o jovem praticante de dardos de ter assassinado seu filho. Já o jovem atleta, juntamente com seu pai, se defende com a alegação de
que estava seguindo totalmente as regras do esporte. A culpa então
seria do morto que correu em direção ao dardo lançado, numa zona
interditada aos transeuntes. Como a responsabilidade do ocorrido é
toda do morto, pela argumentação da defesa, não há necessidade de
um ritual para eliminar o miasma: “Pois o moço, não por desmedida
ou por desregramento (οὐχ ὕβρει οὐδὲ ἀκολασίᾳ), mas enquanto se
exercitava na lança com os da mesma idade no ginásio, atingiu-o, embora, conforme a verdade do que realmente fez, não tenha matado
ninguém” (Antifonte, Tetralogia II, 2.3). É importante observar que a
defesa tem o cuidado de demonstrar para os juízes que o jovem atleta
estava em condições normais, não tendo seu estado mental alterado
por algo que poderia impeli-lo a praticar tal crime.
Ao longo do discurso, a defesa continua se utilizando dos argumentos da piedade na construção da inocência do jovem atleta. De acordo com o pai, o filho não pode ser culpado pelo erro de outrem e a morte
do rapaz foi um infortúnio de sua própria responsabilidade e, portanto,
não haveria necessidade de se vingar o morto. O argumento da piedade
também é utilizado para afirmar que o veredicto correto é aquele que
conduz a inocência do acusado, libertando não só o jovem, mas também
a família que sofre com a possibilidade de condenação do filho:
Tende piedade (ἐλεοῦντες) da infelicidade inocente da
criança, e do sofrimento desse velho e pobre que sou; não
nos torneis desgraçados por vossa condenação, mas sede
piedosos (εὐσεβεῖτε) e absolvei. Pois o morto, que se jogou
em desgraças, não fica sem vingança, e não é justo que nós
tenhamos que sustentar estes erros. Sendo estes os fatos,
guardai pudor diante da piedade (εὐσέβειαν) e da justiça, e
de modo santo e justo (ὁσίως καὶ δικαίως) absolvei-nos, e
não jogueis os dois, pai e filho, nas mais miseráveis desgraças
fora da época. (Antifonte, Tetralogia II, 2.11-12)
Os mesmos argumentos são utilizados novamente no final
do segundo discurso da defesa, em que se destacam a dor da família
e a necessidade dos juízes de votarem conforme os preceitos divinos
184 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
e os valores humanos, o que levaria imprescindivelmente a absolvição do acusado:
Não nos lanceis em desgraças imerecidas, nem por querer
socorrê-los em seus infortúnios formeis opinião contrária
à divindade, mas conforme à piedade e à justiça (ὅσιον καὶ
δίκαιον); lembrando que o padecimento se deu porque ele
correu sob a trajetória de lança; absolvei-nos, pois não somos culpados do assassinato. (Antifonte, Tetralogia II, 4.10)
A família do morto em seus discursos de acusação demonstra
a consciência do fato de o assassinato ser involuntário, mas para eles,
isso não diminui a dor da família e a responsabilidade do jovem atleta (Antifonte, Tetralogia II, 1.2). Assim, percebe-se que a disputa para
conquistar a simpatia dos juízes está em torno do sofrimento de duas
famílias diante da fatídica situação e, por isso, tem-se o uso de termos
como eusebeia e eleos para atrair a simpatia dos juízes.
Além dos argumentos envolvendo a piedade, a acusação
também reforça a necessidade de condenar o suspeito para evitar
que o miasma se espalhe pela cidade: “Peço-vos que tenhais piedade (ἐλεοῦντας) dos pais privados do filho, que deploreis a morte prematura da vítima, que o expulseis de todos os lugares dos quais a lei
expulsa o assassino, não tolerando que toda a cidade fique manchada
(μιαινομένην) por causa dele” (Antifonte, Tetralogia II, 1.2). Dessa maneira, há o apelo ao risco da contaminação pelo miasma e o espírito
vingativo do morto, transformando essa crença religiosa tradicional
em um apelo emocional surpreendente para os juízes.
A acusação, tanto nesse discurso quanto na sua réplica (Antifonte, Tetralogia II, 3.7-9), concorda com a ideia de que a morte pode
ser justificável a partir do erro do morto, mas que isso dispensaria a
purificação. A estratégia da acusação é demonstrar que a falha não
reside apenas na vítima que acabou por falecer, pois ele já pagou seu
erro com a própria vida, mas também no acusado, que está errado, e,
por isso, merece ser punido.
É no discurso de réplica da acusação que é dada a maior
atenção à doutrina da poluição pelo miasma e feita uma referência a
asebeia. Acerca do incidente do ginásio que provocou a morte do filho,
o acusador exime os deuses de qualquer responsabilidade, já que a
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185
morte foi uma consequência direta da ação humana e a culpa deveria
recair totalmente sobre aquele que lançou o dardo. Por fim, termina
sua argumentação defendendo que não cabe aos homens questionar
as ações divinas, referindo-se à morte de seu filho, e sim cumprir com
os deveres religiosos e cívicos, i. e., obter a condenação do culpado e
a purificação do miasma: “Pois, se o infortúnio acontece sem qualquer
participação do deus, é justo que o erro se torne desgraça para o que
erra (ἁμάρτημα οὖσα τῷ ἁμαρτόντι), mas se a mancha divina precipita-se sobre o agente ímpio (ἀσεβοῦντι), não é justo fazer obstáculo aos
projetos divinos” (Antifonte, Tetralogia II, 3.8).
Mais adiante, no mesmo discurso, novamente a punição do
jovem atleta é colocada de acordo com os ditames humanos e divinos
que são apresentados pela repetição da fórmula hosios kai dikaios. O
tema da piedade também aparece, para fazer com que o voto dos juízes seja favorável à condenação, livrando, assim, a cidade da mancha.
A dor dos pais mais uma vez é lembrada e a punição corresponderia a
uma forma de atenuá-la:
A partir da própria defesa dos defensores, então, o jovem
participou do assassinato, por isso não seria nem justo nem
pio (οὐκ ἂν δικαίως οὐδὲ ὁσίως) que fosse absolvido. Pois
nós, arruinados pelo erro deles e acusados de suicidas, deveríamos padecer de nossa parte não coisas ímpias, mas pias
(ὅσια ἀλλ’ ἀνόσι’). Por outro lado, os autores de nossa morte,
se não forem expulsos dos lugares que não lhes convêm, serão absolvidos com piedade (εὐσεβοῖντ’) mesmo sendo ímpios (ἀνοσίους). E, já que toda sujeira de todos os malfeitores
pode retornar sobre vós, deveis agir com muita precaução
nessas questões, pois, condenando-os e expulsando-os dos
lugares de que a lei expulsaria, estareis puros dos agravos,
absolvendo-os, submeter-vos-eis à culpa. Por mor de vossa
piedade (εὐσεβείας) e das leis, puni-o com o exílio; não participeis de sua mancha (μιαρίας); e a nós, os parentes, sepultados ainda vivos por ele, imponde, ao menos em aparência,
uma desgraça mais leve. (Antifonte, Tetralogia II, 3.11-12)
Por fim, na Tetralogia III, é retratada a disputa judicial entre
os parentes de um idoso contra um jovem. O moço e o velho entraram
em uma luta corporal por causa de uma injúria. Possivelmente ambos
186 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
estavam bêbados, dado o uso do termo hybris. O jovem, que gozava da
vantagem de seu vigor físico, matou o velho com seus golpes. Para se
defender da acusação de assassinato e provar sua inocência, o jovem
argumenta que a briga fora iniciada pelo idoso, sendo então seu comportamento uma legítima defesa.
Diferentemente das Tetralogias anteriores, os argumentos não
se concentram nem na verossimilhança (Tetralogia I) nem na atribuição
de responsabilidade pela morte (Tetralogia II). O embate gira em torno
da acusação de um novo suspeito: o médico que cuidou dos ferimentos
do velho. A defesa afirma que a morte do velho é decorrente dos tratamentos inadequados recebidos após a briga e não por causa da gravidade dos golpes. Tal ponto é facilmente rebatido na réplica da acusação,
que ressalta a lei ateniense que impede o médico de ser condenado
pela morte de seu paciente. Além disso, a acusação complementa que,
se a vítima não tivesse sofrido tantos danos graves, não teria nenhuma
necessidade de ir ao médico (Antifonte, Tetralogia III, 3.5).
Além da acusação contra o médico, há uma preocupação em
caracterizar o comportamento do jovem e do velho. A acusação se utiliza principalmente do argumento da hybris para caracterizar a agressão:
Mas, por arrogância e desregramento (ὕβρει), sob o efeito
do vinho, espancou e estrangulou um homem de idade
até privá-lo da vida; como assassino está sujeito às penas
atribuídas a esse crime [...] É preciso que vós rejeiteis o ato
por sua ilegalidade, em nome do padecimento da vítima,
castigando a desmedida (ὕβριν) com a pena merecida: tirar,
em contrapartida, a vida daquele que deliberou o crime.
(Antifonte, Tetralogia III, 1.6-7)
Para contra-argumentar, a defesa se utiliza da hybris (Antifonte, Tetralogia III, 4.2, 6) para caracterizar o velho e demonstrar que foi
ele quem iniciou a briga, tendo o jovem apenas se defendido e, portanto, estaria livre da responsabilidade pelo ocorrido.
Os argumentos religiosos são utilizados logo no início do discurso da acusação para demonstrar os deveres da família com relação
ao morto e as consequências negativas caso elas sejam negligenciadas.
Esse ponto é aliado a demonstração da importância vital do sistema
judicial para a cidade, que é visto como um símbolo do agir correto dos
Volume 2
187
cidadãos. Assim, para a acusação, qualquer ação de homicídio envolve
grandes responsabilidades, uma vez que, se deixassem o culpado sem
a devida punição, seriam atormentados pelo morto e seu desejo de
vingança, mas, se levassem um inocente a ser condenado, a cidade
continuaria com o miasma e teria cometido uma impiedade. Com isso,
a acusação demonstra para os juízes que tem certeza de que o jovem
acusado é culpado pelo homicídio e que encontrará no processo decisório dos juízes a purificação da cidade e de si mesma, já que promoveria a vingança do morto da forma correta:
Já nós, os vingadores dos mortos, se, por causa de uma outra
inimizade, perseguimos os inocentes, deixando de vingar o
morto pela punição dos terríveis criminosos, seremos atormentados pelos gemidos dos mortos. Se, por outro lado,
levamos à morte os puros, ficamos sujeitos às penas cabíveis a um assassinato, e, finalmente, se nós vos persuadimos a fazer coisas ilegais, tornamo-nos culpados por vosso
erro (ἁμαρτήματος). Eu, com efeito, temendo essas coisas,
ao conduzir o ímpio (ἀσεβήσαντα) para diante de vós, fico
puro das incriminações. Vós, por outro lado, aproximando a
razão do vosso julgamento sobre os graves fatos narrados, e
impondo ao autor do crime a pena justa pelo padecimento
da vítima, mantereis toda a cidade purificada dessa mancha
(ἅπασαν τὴν πόλιν καθαρὰν τοῦ μιάσματος καταστήσετε).
(Antifonte, Tetralogia III, 1.4-5)
Para reforçar esses argumentos, o jovem acusado é apresentado mais adiante como ímpio (asebeia). Dessa forma, ao apresentar
o verdadeiro culpado diante dos juízes, cumpriria seu dever como cidadão, não deixando a cidade ficar com o miasma, e estaria livre dos
tormentos do morto desejoso de vingança. Tais aspectos também são
ressaltados no segundo discurso da acusação, o qual rebate a teoria
de que o velho começara a briga. Para a acusação, mesmo que o velho
tivesse iniciado a briga (o que seria totalmente improvável segundo
sua argumentação) o jovem deveria ter mostrado a temperança de limitar a potência de seus socos. Dessa forma, o desrespeito ao idoso é
classificado como uma forma de impiedade. Por isso, o jovem, imbuído
de hybris, provocou a poluição na cidade que somente estaria livre do
miasma com sua condenação:
188 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Mas ele chega a tal ponto de audácia e despudor, que não
lhe basta, para se defender, discursar em favor de sua própria impiedade (ἀσεβείας), mas diz que nós, os que perseguimos a mancha (μίασμα) deixada por ele, fazemos coisas
contrárias à lei divina e à piedade (ἀθέμιστα καὶ ἀνόσια) [...]
Em nome do morto, nós vos confiamos a tarefa de, curando
o ressentimento dos mortos contra os criminosos por causa
do assassinato, deixar toda a cidade pura da mancha (πᾶσαν
τὴν πόλιν καθαρὰν τοῦ μιάσματος καταστῆσαι). (Antifonte,
Tetralogia III, 3.6-7)
Para contestar o argumento da impiedade apresentado pela
acusação, a defesa reforça a impiedade existente na condenação de
um inocente: “Pois, acusando de assassinato a mim que estou puro
de culpa, privando-me da vida que deus me proporcionou, cometem
uma impiedade em relação ao deus (περὶ τὸν θεὸν ἀσεβοῦσιν)” (Antifonte, Tetralogia III, 2.7). A defesa constrói sua argumentação sob
três pontos: (i) a legítima defesa (Antifonte, Tetralogia III, 2.2; 4.3,8);
(ii) nem todo jovem comete hybris, podendo ela ser praticada pelos
mais velhos (Antifonte, Tetralogia III, 4.2,6); (iii) a morte foi provocada pelo médico que não soube ministrar o tratamento correto (Antifonte, Tetralogia III, 2.3).
Depois de apresentar todos esses pontos, a defesa prossegue
na sua argumentação a respeito da impiedade, afirmando novamente
que a maior impiedade seria condenar um inocente e, para se livrar
dessa culpa, os juízes deveriam inocentá-lo para que eles e a cidade
continuassem puros: “Sabendo dessas coisas e deixando cair sobre
eles essa impiedade (ἀσέβημα), tornai-vos puros de culpa e absolvei-me pia e justamente (ὁσίως καὶ δικαίως), pois desse modo todos os
cidadãos estaremos totalmente puros” (Antifonte, Tetralogia III, 2.9).
A defesa encerra seu discurso novamente afirmando o perigo
da contaminação na condenação de um inocente. Segundo o jovem
acusado, se ele for condenado, a família do morto irá cessar sua perseguição contra o verdadeiro assassino, deixando assim a cidade contaminada pelo miasma:
Se o matardes, o espírito do morto não se voltará menos contra os culpados, e, já que outro também terá perecido impiamente (ἀνοσίως), tereis duplicado a mancha dos criminosos
Volume 2
189
que cabe aos que mataram. [...] Temendo essas coisas, considerai como vosso dever absolver da culpa aquele que é puro
e, entregando ao tempo a tarefa de revelar aquele que de
fato está manchado (μιαρὸν) de sangue, deixai aos parentes
e amigos da vítima a tarefa de vingá-la. Pois assim fareis as
coisas mais justas e mais santas (δικαιότατα καὶ ὁσιώτατα).
(Antifonte, Tetralogia III, 4.10-11)
Assim, em todas as Tetralogias, o autor demonstra sua grande
habilidade em produzir o confronto de raciocínios sobre um mesmo
tema, ou seja, em fazer antilogias. A utilização de elementos pertencentes à tradição religiosa e cultural é fundamental no processo de
confecção de antilogias, já que é a partir dela que são fornecidos os
argumentos contrários ou favoráveis à causa. Todos os discursos de
defesa e acusação reforçam aos juízes o dever de cumprirem sua sentença obedecendo ao rigor das leis e dos princípios religiosos, elemento que é lugar comum em muitos discursos forenses que possuímos. O
que diferencia o autor das Tetralogias dos outros oradores é a grande
ênfase na propagação do miasma. A doutrina do miasma assume um
papel importante no desenvolvimento dos argumentos, tanto na credibilidade dos fatos narrados como nos danos provocados pelo assassinato, seja pela defesa, seja pela acusação.37 A advertência feita aos
juízes para seguirem as prescrições jurídicas é a melhor maneira de
combater o infortúnio que poderia advir sobre a cidade bem como de
eliminar a mácula e punir uma impiedade.38 O apelo aos juízes concerne em obedecer a obrigação moral e religiosa, tornando-se vingadores
das vítimas de homicídio. Se fossem desrespeitosos no cumprimento
da punição do assassino, poderiam sofrer perseguições do fantasma
do morto, pois sabemos pela tradição religiosa que o fantasma apenas
perseguia pessoas ligadas à sua família.
Os argumentos religiosos, em particular o medo da contaminação pela mácula do assassinato e o desejo de vingança do morto,
servem de base fundamental para a determinação da veracidade do
fato narrado. Esses argumentos possuem maior concentração nos pró37 CARAWAN, E. The Tetralogies and Athenian homicide trials. The American Journal of Philology, 144, 2, p. 235-270, 1993.
38 SILVA, A. C. A arte da contradição na primeira Tetralogia de Antifonte. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais, 2005, p.158.
190 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
logos e nos epílogos das três Tetralogias. De uma forma geral, pode-se
considerar a seguinte estrutura para as Tetralogias no uso desses argumentos: a acusação se coloca como o vingador do morto e convida os
juízes para que, através do seu voto, também participem dessa tarefa,
e ressaltam a importância de se manter a cidade livre do miasma. Isso
somente seria obtido com a condenação do adversário. Por outro lado,
a defesa assegura que mais grave do que deixar um criminoso livre é
condenar um inocente, pois isso constitui uma impiedade. A defesa
também argumenta que sua condenação seria injusta, já que não é
culpada. Assim, não haveria a purificação da mácula e a pólis continuaria sob a influência de suas mazelas. Aliada a esses argumentos
religiosos, há a tentativa de tornar o suspeito em uma vítima, que sofre
consequências tão graves quanto o morto. Perceberemos que, na demonstração detalhada dos argumentos desenvolvidos nas Tetralogias,
que a menção às noções religiosas desempenha um papel fundamental no processo de transformação do acusado em vítima.
As Tetralogias, mesmo sendo exercícios retóricos, demonstram a atenção do autor às leis atenienses, já que seus casos imaginários seguem todos os requisitos estipulados pelo sistema jurídico.39
Esse grupo de discursos também apresenta uma constante aproximação entre os domínios do sagrado e das leis dos homens. Isso indica
que ambos os domínios são concordantes e operam no mesmo sentido: a manutenção da ordem da cidade. Um ato humano, o assassinato, poderia acarretar no prejuízo das relações entre homens e deuses
por causa da mácula. Para reparar e restabelecer a forma correta de
comunicação era necessário outro ato humano: a punição do culpado.
Assim, a punição é decorrente do direito positivo, por temer as consequências da ação divina, como as más colheitas e outros infortúnios.
Essa aproximação fornece elementos retóricos que constituem lugares comuns nos discursos. O fato de terem se tornando recorrentes nos é indicativo da sua eficiência persuasiva. Para Carawan,
os argumentos religiosos das Tetralogias demonstram a descrença do
autor pelo método jurídico da dike phonou, já que era possível facilmente manipular as provas e a responsabilidade dos envolvidos.40 As
39 CARAWAN, E. The Tetralogies and Athenian homicide trials. The American Journal of Philology, 144, 2, p. 235-270, 1993.
40 Ibidem, p. 268.
Volume 2
191
Tetralogias surgiram em um momento em que a cidade estava aprimorando seus mecanismos políticos e principalmente modificando as regras e as leis de convivência social. Por isso, essas fontes retratam essa
transição, como, por exemplo, no argumento do espírito de vingança
do morto, em que há a passagem do campo privado para o público,
pois nas Tetralogias os juízes são convocados para se transformarem
em vingadores dos mortos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se a preocupação com a contaminação da pólis não fosse
grande, não faria sentido a criação de tribunais como o Freato e o
Pritaneu e sua longa permanência mesmo quando em desuso. O
desuso desses tribunais é um indicativo de que a doutrina do miasma
foi perdendo sua representatividade diante da população, tornando-se um resquício da tradição religiosa e cívica, motivo que, por si só,
já fazia com que esses tribunais fossem necessários para a mentalidade ateniense. A melhor maneira de perceber o uso da doutrina do
miasma nas Tetralogias não é somente através da comparação com
o direito ateniense, mas principalmente entender esses discursos
como exercícios retóricos com o objetivo de criar antilogias, em que o
argumento religioso foi o privilegiado. As Tetralogias, ao mesmo tempo
em que ensinam a lidar com o sistema jurídico, oferecem uma crítica
a ele, devido à possibilidade de manipulação dos termos da acusação.
Assim, o trabalho de Antifonte permite perceber que a origem ateniense do direito tem profundas ligações com a religiosidade.
O orador explora as relações entre piedade e justiça, indicando que
as transgressões das normas realizadas pelos homens podem também
ser uma ofensa à esfera sagrada. Dessa forma, desrespeitar o mundo
dos homens em qualquer um de seus aspectos também é colocar em
risco toda a ordem religiosa.
192 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
‘KILLING IN THE NAME OF’.
CENAS SACRIFICIAIS DE ANIMAIS NOS
VASOS ÁTICOS DE FIGURAS NEGRAS
Carolina Kesser Barcellos Dias1
O sacrifício é uma atividade central na maioria dos rituais religiosos gregos e uma forma em particular que pode ser definida como
“sacrifício sangrento de animais para consumo alimentar” era predominante entre as práticas cívicas coletivas da cidade antiga2. Esta prática, simultaneamente, criava os laços comunitários entre os cidadãos,
assim como servia como um meio privilegiado de comunicação com o
mundo divino3. Nosso conhecimento sobre a religião e rituais gregos
chegam via três principais fontes, as literárias, as epigráficas e as arqueológicas e, neste texto, destacaremos dentre as arqueológicas, os
aspectos iconográficos do material cerâmico grego4 que dão conta de
algumas etapas da performance ritualística do sacrifício de animais,
especificamente em um conjunto de peças datadas de meados do século V a. C., e atribuídas a uma produção específica5.
1 Doutora em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade
de São Paulo (MAE-USP), atualmente pós-doutoranda (DOCFIX-FAPERGS/CAPES) e
professora permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Pelotas (PPGH-UFPel), coordenadora e pesquisadora associada do Laboratório de Estudos sobre a Cerâmica Antiga (LECA-UFPel).
2 SCHMITT-PANTEL, Pauline; ZAIDMAN, Louise Bruit. Religion in the Ancient
Greek city. Cambridge University Press, 1992, p. 19.
3 SCHMITT-PANTEL; ZAIDMAN, op. Cit., p. 19.
4 A análise iconográfica neste texto é um recorte de nossa pesquisa de doutorado
desenvolvida entre os anos 2004 e 2009, no Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo, sob orientação da profa. Dra. Haiganuch Sarian. A tese
pode ser acessada no Banco de Teses da USP, disponível em: http://www.teses.usp.
br/teses/disponiveis/71/71131/tde-21092009-094148/pt-br.php). Os resultados da
pesquisa encontram-se em DIAS, Carolina K. B. Apontamentos sobre a atribuição de
vasos áticos: o Pintor de Gela. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19, 2009, p. 235-255, disponível em http://www.nptbr.mae.usp.br/wp-content/
uploads/2013/06/MAE-19-2009-Pgs-235_255.pdf.
5 Esta produção, objeto de nossa pesquisa, é atribuída ao “artista ático produtor
de lécitos de figuras negras mais prolífico no período que vai da última década do
Volume 2
193
O conjunto abordado é formado por 36 vasos cerâmicos6
atribuídos à produção do Pintor de Gela, que contêm cenas de animais – touros em 34 dos vasos, carneiros em um lécito, e um pássaro
em uma enócoa – em contexto rito-sacrificial indicado, sobretudo, por
elementos arquitetônicos (como as colunas que limitam um espaço
fechado) e rituais, como o altar (com ou sem fogo), e o lutério, a bacia
lustral. Em 6 desses vasos, a presença de figuras humanas conduzindo
os animais compõe um elemento contextualizador da situação rito-sacrificial representada e, em um deles, o lécito Londres 1905.7.11-17,
há a presença da deusa Atena em gesto de libação. Em 22 vasos, os
animais são acompanhados por figuras do séquito dionisíaco ou divindades aladas e em 9 vasos, os animais aparecem sozinhos próximos a
altares ou ao lutério.
Questiona-se se as cenas em que os animais se encontram em
frente a altar ou lutério seriam relacionadas a algum ritual sacrificial
específico, e se os touros representados estariam sendo dedicados a
alguma divindade em especial. Para Hemelrijk8, a resposta não parece definitiva (“como podemos ver, é impossível decidir qual interpretação é preferencial: touros poderiam ser sacrificados para quase
todas as divindades”9), porém, o autor demonstra certa inclinação
em acreditar que “por causa do caráter especial da obra do pintor de
Gela”10, os touros seriam dedicados a Dioniso.
século VI a meados do século V a.C.” (DIAS, op. Cit., p. 235), uma figura anônima,
batizada por Emilie Haspels em 1936, graças ao estudo sistemático dos “traços e as
características que a levaram a agrupá-los e ligá-los formal e estilisticamente a uma
personalidade artística a quem batizou ‘Pintor de Gela’” (DIAS, op. Cit., p. 236). Vasos feitos ‘à sua maneira’ ou ‘à sua oficina’, completam a nomenclatura comumente
aplicada à esta produção.
6 Alguns vasos podem ser observados no Arquivo Beazley (AB), disponíveis em:
http://www.beazley.ox.ac.uk/pottery/default.htm; indicaremos os números das fichas quando pertinentes. As demais informações sobre as peças encontram-se na
bibliografia indicada.
7 Londres, Museu Britânico 1905.7-11.1, 500-480 a.C. AB, Ficha nº 330075; HEMELRIJK, op. Cit, p. 144, figs. 48-49.
8 HEMELRIJK, Jaap M. The Gela Painter in the Allard Pierson Museum. BABesch,
XLIX, 1974, p. 117-158.
9 HEMELRIJK, op. Cit., p. 140.
10 Hemelrijk faz referência à especialização na produção de “cenas dionisíacas”,
ou seja, aquelas em que personagens do universo dionisíaco são representadas (Dioniso, reconhecido por atributos ou recorrência iconográfica, acompanhado de Sáti-
194 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Apoiados em um grande volume de documentos e, sobretudo na iconografia dos vasos de figuras negras e vermelhas, uma perspectiva antropológica do ritual sacrificial na Grécia Antiga11 pode ser
construída, e aqui faz sentido a abordagem que trata principalmente
dos movimentos e da ordem do ritual, que iconograficamente estão
bem representados pela série de vasos atribuídos ao Pintor de Gela.
Esses vasos figuram como principal fonte documental para o estudo da
aproximação dos animais ao altar, momento imediatamente anterior
ao sacrifício e ponto máximo da cerimônia; essas cenas formam uma
série única na iconografia ática.
As imagens do sacrifício animal na Grécia arcaica e clássica
tratam de momentos específicos do ritual12: (a) antes do sacrifício,
quando os animais aparecem ainda vivos (b) o sacrifício e (c) o pós-sacrifício, incluindo cenas em que aparecem partes do animal ou sua
carcaça. Em nossa série, o esquema presente em todos os vasos do
Pintor de Gela remete ao primeiro momento, com os animais vivos
sendo encaminhados ou interagindo com os elementos fundamentais
do ritual (altar, sobretudo), acompanhados por personagens humanas
ou divinas, ou de outros animais.
ros e Mênades, embora os componentes de seu séquito possam aparecer sozinhos
em cena). As cenas dionisíacas compõem o maior número de vasos atribuídos ao
Pintor de Gela: 168 vasos (44,6%) entre lécitos, enócoas, olpas e ânforas.
11 DURAND, Jean-Louis. Sacrifice et labour en Grèce ancienne. Essai d’anthropologie. Images à l’appui 1. Paris; Rome Découverte; École Française de Rome, 1986.
12 VAN STRATEN, Folkert T. Hierà Kalá: images of animal sacrifice in Archaic and
Classical Greece. Leiden; NY; Köln: E. J. Brill, 1995.
Volume 2
195
Tipos de cenas
Gráfico 1 - Cenas Sacrificiais
Obs.: Das 19 cenas de animais acompanhados por personagens do séquito dionisíaco, há uma cena com Dioniso montado em touro, 16 cenas com Mênades montadas,
acompanhadas ou não por Sátiros, e uma cena com um Sátiro acompanhando um
touro. Das cenas de animais acompanhados por outras divindades, há um com a
presença de Atena e dois com a presença de Vitórias. Em um dos vasos com Vitória,
há um pássaro sobre o lutério. São seis as cenas com figuras humanas em procissão
com os animais; cinco com touros e uma com carneiros. Apenas touros compõem o
esquema ‘animais sós’, tanto em frente a um altar como a um lutério.
Os animais sacrificiais nos vasos atribuídos ao Pintor de Gela
são encontrados em três tipos principais de cenas:
1. Animais acompanhados por figuras míticas;
2. Animais acompanhados por figuras humanas;
3. Animais sozinhos.
É importante que se tenha em mente que o ritual sacrificial
196 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
segue uma ordem precisa, uma série de movimentos ordenados que
vão desde a procissão e encaminhamento do animal ao altar até o momento em que é sacrificado:
Os homens formam um círculo, e fazem circular ao redor
[da trápeza], perielaúnein, os touros designados [para o sacrifício]. Os novos cidadãos, a partir da prática coletiva que
Sópatro estabeleceu, organizaram assim os primeiros movimentos da thusía, novamente inserida no grupo. O touro, encaminhando-se em direção ao altar, estabelece com os vegetais, a relação portadora da morte. Os homens, em ambos os
casos têm o controle da situação. Os touros em grupo ou um
animal solitário descrevem concretamente, sob coação dos
homens, o espaço cerimonial. Ao final do movimento, ocorre
a morte, propriamente dita: um dos animais do grupo se designa como vítima entre os outros, ou, se sozinho, o touro
preparado para o sacrifício é solto em direção ao altar. Quando lá chega, ele mesmo dá o sinal de sua própria morte. No
espaço constituído do rito, onde tudo está definitivamente
em seu lugar, a sequência de gestos é sempre a mesma, onde
os animais têm a iniciativa e cada vez da mesma maneira13 .
As cenas presentes nos vasos atribuídos ao Pintor de Gela dão
conta dos momentos fundamentais da ordenação do ritual imediatamente anteriores ao sacrifício propriamente dito. Observamos em alguns vasos a pompé – a procissão em que sacerdotes e participantes
do ritual encaminham os animais em direção ao local sagrado –, representada como um desfile linear e ordenado de homens e animais em
direção ao altar. A ordem é o elemento essencial do ritual e a fórmula iconográfica adotada é a representação de animais e homens, em
duplas, encaminhando-se ao local sagrado. Por vezes, esses conjuntos
homem-animal aparecem ladeando um altar, que é o centro da ação,
o local onde se dará finalmente o clímax do ritual. Em alguns vasos, os
homens não são mais representados, mas o fato de os animais permanecerem em cena com o altar ou o lutério, no eixo central da cena, faz
com que a ordem do ritual representado se mantenha.
Há ainda uma terceira maneira adotada pelo Pintor de representar os animais em relação ao altar: suprime-se completamente a
13 DURAND, op. Cit., p. 90. Grifos nossos.
Volume 2
197
figura humana, multiplica-se o número de animais e os dispersa ao
redor do altar; uma interessante utilização de elementos gráficos que
representa uma possível desordem no espaço do rito. Durand sugere que esse tipo de cena é possivelmente ligado a uma importante
festividade ateniense: a Bouphonia14, Festival específico da cidade de
Atenas, ocorrido na última lua-cheia do ano, quando se dá a morte do
touro. No rito, jovens levam água ao altar de Zeus Polieus, que será
usada para purificar o cutelo ou machado sacrificial; bolos de cevada
são colocados sobre o altar, enquanto touros são levados em procissão
ao local sagrado, em direção ao altar. O primeiro dos animais a comer
o alimento no altar é separado e levado ao sacrifício. Após sua morte,
dá-se início à refeição sacrificial, com a divisão da carne entre os convivas; a pele é recheada com palha. Inicia-se um julgamento, em que se
decide quem é o culpado pelo assassinato do animal e o réu é jogado
no mar. Esse rito tem suas origens no mito de Sópatro, um estrangeiro
que viveu em Atenas na época em que os homens eram vegetarianos.
Durante um sacrifício de vegetais, Sópatro colocou suas oferendas sobre um altar e um touro da redondeza as comeu. Enfurecido com o
animal, Sópatro mata-o com um machado. Porém, envergonhado por
sua atitude impiedosa, auto-exila-se em Creta. Após seu exílio, entretanto, uma enorme escassez assolou o país e, ao serem consultados,
os deuses disseram que apenas Sópatro teria como resolver a situação; o oráculo dizia ainda que o animal morto deveria ser ressucitado
na mesma festividade e que o culpado deveria ser julgado. Uma comissão ateniense vai em busca de Sópatro que, em troca da resolução dos
problemas, pede a cidadania ateniense. Ele acredita que se partilhar
de seu erro com os outros, sua culpa será diminuída. Então, durante a
reunião dos atenienses na festividade, ele manda que tragam um touro
parecido com o que havia matado, pede às jovens que busquem água
para a purificação do cutelo, amolado por outros atenienses, e abate
o animal, que foi cortado, esfolado e consumido por todos. Terminado
o festim, a pele do touro foi preenchida por feno e apresentada: um
simulacro do touro, o “touro ressucitado”. Iniciou-se o julgamento e
chegou-se à conclusão que o cutelo teria sido o responsável pelo as14 Ver também: GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. RJ: Bertrand Brasil, 3ª ed., 1997, p. 424, Sópatro; DURAND, op. Cit., cap. 2.
198 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
sassinato, sendo a seguir jogado ao mar. Dessa forma, o oráculo fora
cumprido: ao “ressucitar” o animal e condenar o culpado, a escassez
terminou. E o ritual do sacrifício foi instaurado em Atenas.
Parece-nos que o Pintor representa em seus vasos um momento específico dessa festividade: quando os touros estão soltos no
espaço sagrado, em redor do altar que contém as oferendas vegetais.
Nas imagens, os touros aparecem ao redor do altar, à frente, ao lado e,
à primeira vista, sobre o altar.
I. Animais acompanhados por figuras míticas
São 21 os vasos em que touros são acompanhados por figuras divinas: em 14 lécitos os animais estão acompanhados por personagens do séquito dionisíaco. Na enócoa Basiléia 197715, um touro é
acompanhado por Vitórias. No lécito Londres 1905.7-11.116 há uma
cena de procissão de figuras humanas encaminhando um touro ao altar da deusa Atena. Há ainda a enócoa Ferrara 19517, em que um pássaro sobre um lutério é acompanhado por Vitórias.
Na cena da enócoa Basiléia 1977, um touro é situado no eixo
central, ladeado por duas figuras femininas aladas – duas Vitórias. Dois
elementos vegetais sobrepostos reforçam a simetria e indicam o destino final do animal (vale lembrar que a presença dos vegetais é mais
um indicador de que um sacrifício será consumado).
A presença das duas figuras aladas propõe uma ligação do espaço icônico do sacrifício com o contexto agonístico e a palestra, indicado pela presença de uma coroa na mão da figura feminina que está à
esquerda. A da direita estende a mão sobre o animal, num gesto semelhante ao do condutor dos carneiros no lécito do Museu Nacional de
15 Basiléia - Mercado, Munzen und Medaillen A.G., 1977, n. 37; AB Ficha nº.
13595; DURAND, op. Cit., p. 93, fig. 18g.
16 Ver nota 6.
17 Ferrara, Museu Arq. Nacional 195, sem ficha no AB; Corpus Vasorum Antiquorum. Museo Archeologico Nazionale II (ITALY 48), por Stella Patitucci. Roma: L’Erma
di Bretschneider, 1971, pr. 7, figs. 1-2,5.
Volume 2
199
Atenas 1856818, um gesto tranqüilizador para o animal conduzido para
seu sacrifício. Porém, as Vitórias não são como os homens; condutoras
do animal, elas funcionam como elementos mantenedores da ordem
do rito e, na imagem, da simetria. Na enócoa de Ferrara, as duas divindades aladas são representadas em movimento, segurando coroas nas
mãos, em um esquema contextualizado no espaço sagrado, indicado
pela presença do lutério. Porém, o animal presente neste contexto é
um pássaro. Walter Burkert19 (1993:128) comenta que sacrifícios de
aves, sobretudo galinhas – em honra a Dioniso, Coré, Hermes e Asclépio – e, mais raramente gansos e pombos, são exceções, mas ocorrem,
parecendo-nos possível, portanto, entender esta cena como sacrificial.
O conjunto de vasos em que o animal é acompanhado por
componentes do séquito dionisíaco é bastante interessante: em 19 cenas, touros aparecem acompanhados por Mênades e Sátiros.
Hemelrijk20 comenta que, por volta de 500 a.C., esse tema
não é incomum e que figuras femininas – humanas ou divinas – montadas em touros é um tema antigo e muito frequente. As cenas são
comparadas às também populares cenas de Europa (no mito, Zeus,
apaixonado pela beleza de Europa, transforma-se em touro e seduz
a jovem21. Na iconografia, cenas de uma jovem montada em um touro22). Hemelrijk23 diz que o background para essas cenas é a antiga
crença da união entre os princípios masculino e feminino na natureza,
18 DURAND, op. Cit., p. 93, fig. 18a
19 BURKERT, Walter. Religião grega na época clássica e arcaica. Trad. M. J. Simões
Loureiro. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1993.
20 HEMELRIJK, op. Cit. p. 148.
21 GRIMAL, op. Cit, p. 161, Europa.
22 Em um levantamento feito no Arquivo Beazley na internet encontramos 21
cenas de figuras negras, em cujo esquema central há uma jovem montada em touro.
Há um problema interpretativo para a maioria das imagens e é comum encontrarmos
nas descrições “Europa ou Mênade montada em touro”. De artistas contemporâneos
ao Pintor de Gela, encontramos um vaso atribuído ao Pintor de Edimburgo (Boston,
Mus. of Fine Arts 76.42, BEAZLEY, John. Attic Black Figure Vases. Oxford, Claredon
Press, 1956, n. 478.5), um ao Pintor de Hémon (Atenas MN 492, HASPELS, C. H. E.
Attick Black-figured Lekythoi. Paris: E. de Boccard, 1936, n. 243.39), dois ao Pintor
de Atena (Londres B 644, HASPELS, op. Cit., n. 257.8 e Univ. de Mississippi 1977.3.73,
BEAZLEY, John. Paralipomena. Additions to Attic black-figure vase-painters and to Attic red-figure vase-painters. Oxford: Clarendon Press, 1971.265) e um ao Pintor de
Maratona (Nápoles RC 218, HASPELS, op. Cit., n. 223.33).
23 HEMELRIJK, op. Cit., p. 148
200 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
e que as imagens do Pintor de Gela podem ser entendidas como uma
vaga alusão a esses conceitos religiosos fundamentais: “seu significado pode ser algo como ‘o Bem-Aventurado montando o Touro-Dioniso’”. Dessa maneira, as Mênades montando em touros podem evocar
a união de Dioniso e Ariadne, o que explicaria a popularidade desse
tema e as similaridades com as cenas de Europa.
O lécito do Museu Britânico, Londres 1905.7-11.1, é muito importante no conjunto de vasos do Pintor de Gela, pois ele nos oferece
uma cena bastante interessante do contexto sacrificial em que o animal é inserido: o santuário de Atena.
Na cena, à direita e entre colunas, Atena está sentada em um
trono em gesto de libação – tem na mão direita uma fíala estendida
em direção às chamas do altar. Assim, a cena concretiza o santuário,
a estátua de culto e a presença divina na situação. Três personagens
avançam em direção ao altar: em frente a ele, a portadora do cesto
sacrificial, seguida de um homem com uma enócoa na mão direita e a
esquerda elevada, gesto comum para representação dos sacerdotes.
Enfim, ao lado da coluna que delimita o espaço do santuário, um touro
sendo conduzido por um homem.
A ordem representada demonstra que cada personagem possui lugar específico na procissão, todos desfilando em direção à divindade. “A serenidade do cerimonial é expressa nesta convergência ordenadora da construção icônica que, em torno do altar, e por intermédio do animal, vai permitir o contato entre homens e deuses”24.
II. Animais acompanhados por figuras humanas
Em seis lécitos do conjunto, os animais estão acompanhados de figuras humanas masculinas. A presença das figuras humanas
acompanhando os animais contextualiza a situação sacrificial.
Cada cena possui uma especificidade que reforça o contexto desse primeiro momento, anterior ao sacrifício: no lécito de Tubin24 DURAND, op. Cit., p. 91.
Volume 2
201
gen25 há o altar em chamas e, de cada lado, um homem e um touro,
o da esquerda ornamentado com a faixa cerimonial presa aos chifres;
no lécito de Atenas 18568, são carneiros os animais acompanhados
por dois homens cujo espaço é limitado por uma coluna à esquerda,
indicando a entrada ou a saída do lugar sagrado. Além disso, “a cena
se equilibra em torno dos gestos do personagem central: a deferência
religiosa da oração e do controle e suavidade do encaminhamento do
animal”26; no lécito de Tulane27, há uma figura masculina vestida e
coroada, também interpretada como o sacerdote, e há ainda o tocador
do duplo aulos. Nos outros dois lécitos, ex - Col. Sir. Henry Englefield
s/n (Fig. 1)28 e Catania 410929, a cena é simples e se limita a dois touros acompanhados por duas figuras masculinas.
Fig. 1. Lécito ex - Col. Sir. Henry Englefield s/n, dois touros acompanhados por
figuras masculinas.
Fonte: ENGELFIELD, 1848, pr. IX
25 Tubingen, Eberhard-Karls-Univ., Arch. Inst., 34.5738, HEMELRIJK, op. Cit. p.
142-3, figs. 44-7.
26 DURAND, op. Cit. p. 92.
27 Coleção da Universidade de Tulane, s/n; SHAPIRO, Harvey Allan (ed.). Art, Myth
and Culture. Greek Vases from Southern Collections.Tulane, 1981, p. 106, fig. 41.
28 Desconhecido (ex – Col. Sir. Henry Englefield); ENGELFIELD, H.; MOSES H.
(drawns and engravings). Vases from the Collection of Sir Henry Englefield. Londres:
Bohn, 1848, pr. IX.
29 Catania, Mus. Civ. Castello Ursino, Col. Biscari 4109, BARRESI, S. Vasi attici figurati vasi sicelioti. Collezioni del Museo Civico di Castello Ursino a Catania. Catania:
Giuseppe Maimone Editore, 2000, p. 32, n. 11.
202 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
III. Animais sozinhos
III.a. Dois touros ladeando o altar ou o lutério
Cinco lécitos30 compõem a série em que há a presença de
apenas dois touros de cada lado de um altar ou de um lutério, a bacia
lustral, esquema iconográfico que confirma a tendência do Pintor de
Gela a utilizar o princípio gráfico da simetria para exprimir o elemento
de ordem necessário ao espaço sacrificial.
O altar representa o contexto ritual e, graficamente, o eixo principal onde a cena se dá. A substituição do altar pelo lutério não causa
nenhuma perturbação no significado da imagem, uma vez que a bacia
lustral indica o mesmo contexto, porque a água é um elemento tão fundamental no ritual sacrificial quanto o sangue e a morte: “a promessa
desta morte no altar onde o sangue será coletado, encontra-se [representado pela] bacia lustral, um reservatório de agua lustral, justificando
a permutação da imagem sem alterar o senso sacrificial do conjunto” e
e porque “bem como a lustral, a água sacrificial é portadora da morte.
O lutério, como o bomos, é também um sinal espacial do sacrifício”31.
Um elemento presente em todas as cenas é a vegetação. No
caso desses vasos, as folhagens e árvores não significam apenas uma
decoração de preenchimento da cena, embora sua presença também
possua uma importância gráfica: aliada ao altar ou ao lutério, as plantas reforçam a simetria e o eixo central da cena. Devemos lembrar que
os vegetais fazem parte do sacrifício tanto quanto o altar, os animais e
os participantes do evento; foi por causa das oferendas vegetais, aliás,
que o primeiro touro foi morto.
A cena no lécito do Museu da Ágora P2506732 nos fornece
uma outra informação: o vegetal representado atrás do lutério não é
30 Lécitos: Amsterdam, Allard Pierson Museum, APM 8196, (ex-Col. Six 16), HASPELS, op. Cit. 209.96; Ágora P 24067, HEMELRIJK, op. Cit., p. 149, figs. 40-41; Basiléia - Mercado, Munzen und Medaillen A.G., 1975, DURAND, op. Cit., p 93, fig. 18f;
Amsterdam, Allard Pierson Museum, APM 268, HEMELRIJK, op. Cit. 118-120, figs. 1,
2, 3 6-9; Nápoles, Museu Arq. Nacional 81190 (H2462; M1001), HEMELRIJK, op. Cit.
p. 141, figs. 42-43.
31 DURAND, op. Cit., p. 21.
32 Atenas, Museu da Ágora P 24067, HEMELRIJK, op. Cit., p. 140, figs. 40-41.
Volume 2
203
uma planta qualquer; é uma palmeira. A palmeira nos dá a indicação
de contextos específicos: graças à sua ligação com o mito do nascimento de Apolo33, podemos sugerir que a ação nesta cena se passa em
um santuário ligado ao deus e, mais especificamente, no santuário de
Apolo em Delos.
III.b. De quatro a cinco touros ao redor de um altar
Em quatro vasos – duas enócoas Munique 182434 e Tessalônica 523235, o lécito Oxford 51436, no qual observa-se pássaros junto
aos touros, e uma das faces da ânfora Berlim F 188237 (Fig. 2) – são
representados quatro ou cinco touros ao redor do altar. Como citado
anteriormente, Durand contextualiza essas cenas na Bouphonia, no
momento em que os animais aproximam-se do altar, sozinhos.
A cena contendo vários animais ao redor do altar suscitou
uma série de questionamentos e interpretações, sendo o principal deles o significado dos animais pintados em branco nas duas enócoas e
na ânfora. A sugestão dada por Durand e, posteriormente, reafirmada
por Frontisi-Ducroux38 é a que mais nos satisfaz: a cor branca teria sido
utilizada para proporcionar o contraste do animal que passa à frente
do altar, que é pintado de negro. O uso da coloração mais clara seria
um artifício do Pintor para manter a sensação de movimento, quando
os touros passam ao redor do eixo principal da cena.
33 O mito conta que, grávida de Zeus, Leto percorreu o mundo inteiro em busca de
um local onde pudesse dar à luz aos seus filhos, Apolo e Ártemis. Hera, enciumada
com essa outra relação de seu marido, proibiu a Terra de acolher a família e Delos,
por ser uma ilha flutuante, não fixada em parte alguma, pôde acolher a grávida. Foi
lá que, por nove dias, Leto sofreu as dores do parto, abraçada a uma palmeira. Versos
89-116 d’O Hino Homérico a Apolo. Edição bilíngue, Trad., comentários e notas de
Luiz A. M. Cabral. Cotia; Campinas: Ateliê Editorial; Ed. da UNICAMP, 2004.
34 Munique, Antikensammlungen, 1824, HASPELS, op. Cit., 214:185.
35 Museu de Tessalônica 5232, DURAND, op. Cit., p. 96, fig. 22.
36 Oxford, Museu Ashmolean G.230 (V.514), HASPELS, op. Cit., 209:84; HEMELRIJK, op. Cit., p. 147, figs. 52-54.
37 Berlim, Antikensammlung F 1882, HASPELS, op. Cit., 213.178; HEMELRIJK, op.
Cit., p. 147, figs. 55-56.
38 FRONTISI-DUCROUX, Françoise. Quelques remarques sur le peintre de Gela.
I Vasi Attici ed Altre Ceramiche Coeve in Sicilia. Vol. I. Catania: Consiglio Nazionale
Delle Richerche. Centro di Studio Sull’Archeologia Greca, 1996: 191-199
204 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Se os animais passam ao redor do altar, e um animal recebe
tratamento diferenciado para dar a idéia de que passa à frente, não
é estranho perceber que o Pintor encontra outras soluções para representar a idéia de movimento: os touros que aparecem, à primeira
vista, sobre os altares, estariam na realidade passando por trás destes.
O artifício aplicado pelo Pintor é o de ocultar os cascos dos touros atrás
da parte superior plana do altar; não vendo os cascos, podemos supor
que estes estejam atrás da superfície. Isso mantém a idéia de movimento: os touros contornam o altar.
Essas imagens se opõem à ordenação da pompé; elas representam o momento anterior ao sacrifício, aquele em que apenas o animal possui a iniciativa e a indicação de sua própria morte. A morte não
nos é apresentada; ela não pode ser apresentada. Porém, essa série
de imagens demonstra como é possível graficamente destruir a ordem
sacrificial e simétrica que organiza o espaço do rito.
Fig. 2. – Ânfora Berlim, Antikensammlung F 1882. Quatro touros ao redor do altar.
Fonte: GERARD, 1840, IV, pr. 242.3-439
39 Disponível em: http://digi.ub.uni-heidelberg.de/diglit/gerhard1858bd4/0148?sid=625cfc0fe41b251fb17f76f076343752.
Volume 2
205
A proposta de Durand é bastante viável: “vemos, então, uma
verdadeira versão icônica do ritual que, além de toda a indicação realista, joga com as possibilidades gráficas para apresentar um tempo
fundamental da cerimônia ateniense, onde a desordem e o azar, podem ser integrados à economia geral do sacrifício. Essa série de imagens revela como na Bouphonia a perturbação da ordem é colocada
no ligar durante a organização do rito. À ordem sistemática se opõe
a desordem organizada na qual os homens têm o poder ; o poder de
matar sem jamais admitir que são eles que matam ”1.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os vasos aqui estudados compõem a maior série de vasos áticos atribuídos a um único artista, à sua maneira ou à sua oficina dedicados ao tema ‘animais em contexto sacrificial’.
As variações encontradas nas cenas nos levam a acreditar na
grande liberdade artística do Pintor e de seu conhecimento em relação
aos momentos desenvolvidos durante um ritual. Como Durand propõe, podemos observar essas cenas como verdadeiras versões icônicas do ritual, e considerá-las fontes importantes para o conhecimento
de determinadas festividades, como a Bouphonia, por exemplo.
Além disso, reforçamos a ideia de uma perspicácia e originalidade artísticas quando o artista procura resolver certas problemáticas
gráficas, como a indicação do movimento, de maneira bastante interessante: o uso da cor, das dimensões e da profundidade não são meros
truques artísticos. A preocupação com a simetria, que em um primeiro
momento pode ser observada apenas pelo lado técnico, transforma-se
num dado importante para as interpretações sobre a ordem e a organização do rito em si. Mais do que resoluções para o enquadramento
da cena na forma do vaso, esses artifícios nos levam a pensar em reais
problemáticas da transposição dos ritos para a imagética.
1 DURAND, op. Cit., p. 103.
206 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
O ABJETO NA HISTORIOGRAFIA BÍBLICA:
UMA AVALIAÇÃO LINGUÍSTICOANTROPOLÓGICA DA “FÓRMULADO MAL”
Fernando Candido da Silva2
Marcelo Neris Hoffmann3
[...]a razão por que os profetas perceberam e
ensinaram quase tudo por parábolas e enigmas e exprimiram sob forma corpórea todas as coisas espirituais: é que assim elas se
adaptam melhor à natureza da imaginação
(Baruch de Espinosa, 1670).
Diz-se, por vezes, que a Antropologia é a ciência do Outro. A
História, ao contrário, parece ser tradicionalmente a ciência do Mesmo. Verdade seja dita, entretanto: a historiografia está cada vez mais
sensível àquele olhar antropológico disposto a perscrutar grutas.4
Talvez, por isso, não aceitamos mais tão facilmente a tarefa linear, unidirecional e teleológica da constituição da História Mundial.5 Ou será
que os rastros – em nossa escrita histórica – sugerem apenas um raso
reconhecimento do Outro, ao deixar intacta a estrutura da Mesma
História Antiga? Como cruzar efetivamente o Outro com o Mesmo?
Em primeiro lugar seria imprescindível perguntar-se: quem é, afinal, o
Outro? E, talvez, ainda mais: qual o desejo do Outro? Tais questionamentos iniciais parecem importantes na medida em que almejamos,
2 Professor de História Antiga Oriental da Universidade Federal de Santa Catarina.
Doutor em Ciências da Religião/Estudos Bíblicos pela Universidade Metodista de São
Paulo. Pós-doutorado em História pela Universidade Estadual Paulista. Correio eletrônico:
[email protected].
3 Professor de História do Curso CPAM/Florianópolis e Bolsista PIBID-História
UFSC. Graduando em História – Bacharelado e Licenciatura – pela UFSC. Correio eletrônico:
[email protected].
4 GINZBURG, Carlo. Montaigne, os canibais e as grutas In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p.53-78.
5 Na área da História Antiga no Brasil, a crítica desta forma foi efetuada, em especial, por GUARINELLO, Norberto. Uma morfologia da História: as formas da História
Antiga, Politéia: História e Sociedade 3 (1), 2003, p.41-61.
Volume 2
207
sobretudo, uma oportunidade para avaliar as implicações (em especial, estéticas) do discurso sobre o Outro que, não necessariamente,
se constitui enquanto um diálogo com o outro.6 Contrariamente, ao
instituir a alteridade, cria-se um lugar de permissão para ela que, ao
mesmo tempo, fortalece o Mesmo. Se assim for, é a própria identidade
que parece estar mais profundamente em discussão.7
Gostaríamos de explorar essa questão a partir das contribuições de Judith Butler quanto às normas regulatórias. Segundo a filósofa, uma norma cultural – que jamais é um pré-dado essencial – só
chega a materializar-se mediante a performatividade, aquela reiteração da norma que, “ao adquirir o status de ato no presente, oculta
ou dissimula as convenções das quais ela é uma repetição.”8 Nada,
portanto, está fora do alcance performativo das normas culturais. Nesse aspecto, toda “assunção” é imposta por um aparato regulatório dissimulador de sua própria repetição: a identidade se configura justamente mediante a reiteração da regra, ao mesmo tempo em que toma
para si o status de normalidade. Há, entretanto, algo a mais nesse jogo
reiterativo: ele só se completa na construção forçosa de seu “exterior
constitutivo”9. Só sabemos o que é normal porque a regra estipula
também o que é anormal. Deste modo, toda regra cultural (i) possibilita certas identificações e (ii) impede outras identificações. É exatamente nesse impedimento que surge aquele signo do “inabitável”, a saber,
o abjeto. O que propomos aqui é que leiamos a conjunção da regra
e da alteridade desde esse prisma interpretativo. O que é, afinal, o
Outro? Precisamente o abjeto, posto que “o abjeto possui apenas um
qualidade de objeto – aquele de ser oposto ao Eu.”10
6 Confira CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
7 Para uma avaliação da relação visceral entre a Bíblia e a forma moderna da
identidade, confira SCHWARTZ, Regina. The Curse of Cain: the Violent Legacy of
Monotheism. Chicago: The University Chicago Press, 1997.
8 BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’ In:
LOURO, Guacira Lopes (ed.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p.167.
9 BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’ In:
LOURO, Guacira Lopes (ed.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p.155.
10 KRISTEVA, Julia. The Powers of Horror: an Essay on Abjection. Nova York: Columbia, 1982, p.1.
208 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Se toda essa construção teórica for realmente coerente, novas questões parecem surgir para uma escrita da história pré-ocupada
com o Outro (que, a essa altura, não será mais um outro). Em primeiro
lugar, seria necessária uma nova agenda historiográfica que abordasse,
sem constrangimentos, as normas culturais regulatórias e suas políticas de interpretação. Tal agenda crítica deveria romper, primeiramente, com o fetichismo do tempo. Em uma nova gramática temporal, passado-presente-futuro estariam mutuamente implicados e, nesse novo
espaço crítico, interrogações permanentes acabariam por encaminhar
imagens desestabilizadoras do passado a fim de “restituir a capacidade
de espanto e indignação que sustente uma nova teoria e uma nova
prática inconformista.”11 Se assim fosse, desvendar normas culturais
seria uma práxis sumamente contemporânea.12
De fato, não há nada de casual nas formas que usamos para
compreender o passado: as lentes hermenêuticas são também normas
regulatórias. Isso quer dizer, em termos pragmáticos, que se persistirmos em ler o Outro como Outro – em uma (mais ou menos) nova
aventura antropológica da História – estaremos obedecendo e contribuindo para com a performance da regra, do Eu, do Mesmo, do self e
sua forma. Aquele Outro que deveria estimular a descentralização da
identidade, ao contrário disso, a reforçará enquanto abjeção, enquanto esquisitice que possui um espaço anexo nos fundos da História. Para
romper com tal lógica viciada e constrangida pela regra, é preciso um
passo adiante. A abjeção não precisa servir de fronteira para a identidade; antes, pode perturbá-la tal qual “um inescapável bumerangue.”13
Eis duas implicações importantes dessa estratégia de leitura:
(i) promover o questionamento das forças normativas que se constroem mediante a violência do apagamento e (ii) proporcionar o retorno
11 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: por uma nova cultura
política. São Paulo: Cortez, 2008, p.82.
12 No campo dos estudos da Antiguidade, esse projeto foi contextualmente sustentado por FUNARI, Pedro Paulo. Poder, posição, imposição no Ensino de História
Antiga: da passividade forçada à produção de conhecimento, Revista Brasileira de
História 8 (15), 1988, p.262-264.
13 KRISTEVA, Julia. The Powers of Horror: an Essay on Abjection. Nova York: Columbia, 1982, p.1. Considere também para o que se segue BUTLER, Judith. Corpos
que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’ In: LOURO, Guacira Lopes (ed.). O
corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p.166.
Volume 2
209
do excluído – não como exterior constitutivo da acumulação citacional
performativa – mas como corpos que importam para uma desidentificação em prol de uma contestação verdadeiramente democrática
(demos + kratos). Para demonstrar a possibilidade desta agenda, enveredaremos mais especificamente pelas grutas da historiografia bíblica. A partir da avaliação do estado das normas regulatórias dos textos
da História de Israel (Josué-Reis), esperamos contribuir para com uma
política de interpretação que leve a sério a abjeção em favor de uma
escrita da história no presente que não esteja subordinada às normas
e sua performatividade. Mas antes de passar à tarefa, um último esclarecimento metodológico se faz necessário.
Nossa leitura histórica dos livros bíblicos se processará no nível formal dos textos. Procuramos não recorrer, portanto, aos simples
conteúdos textuais (informações, datas, personagens, contextos), pois
os conteúdos nunca são inocentes, ao estarem sempre encapsulados
por formas literárias precisas.14 Portanto, desejamos nos fixar nas formas como um importante exercício de reflexão metodológica. Toda a
agenda interpretativa em torno da norma e do abjeto antecede os meros conteúdos, uma vez que a forma articula, em si, relações sócio-históricas. Se assim for, então, é na própria linguagem que todo o jogo de
exclusão histórica se faz presente. Vejamos.
Os livros de Josué, Juízes, 1-2 Samuel e 1-2 Reis estabelecem
a grande narrativa da identidade histórica de Israel na Bíblia Hebraica. Martin Noth, desde meados do século XX, impôs para a academia
bíblica o termo Obra Historiográfica Deuteronomista para todo esse
conjunto textual usualmente chamado “Profetas Anteriores” na tradição judaica. Segundo o famoso exegeta e historiador alemão, esses
textos bíblicos estão articulados, em termos de linguagem, pelo estilo do Código Deuteronômico (Deuteronômio 12-26). A vantagem
desta proposta exegética está em sua análise formal integral de todo
um corpus textual. De fato, ao invés de fragmentar a atual coerência
narrativa dos livros sequenciais de Josué até Reis, Noth tenta explicar como e porque esses livros devem ser lidos em conjunto, afinal,
trata-se da “história do povo de Israel, segundo um plano único e
14 Disso, já em 1923, nos informava GUNKEL, Hermann. The Prophets as Writers
and Poets In: PETERSEN, David (ed.). Prophecy in Israel: Search for an Identity. Filadélfia/Londres: Fortress/SPCK, 1987, p.22-24.
210 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
com articulações apropriadas.”15 Mais recentemente, John van Seters também apostou na unidade formal desses livros enquanto novo
gênero literário historiográfico do mundo antigo: “o deuteronomista
pretende resgatar a identidade do povo – uma condição sine qua non
da escrita da história.”16
Como se nota, a Obra Deuteronomista pode ser lida como
uma obra historiográfica porque, em tese, reuniria antigas tradições
em uma engenhosa engrenagem que dota de sentido (teológico e cronológico) as experiências complexas de um povo. A pedra de toque de
tal engrenagem, seguindo Noth, seria o Código Deuteronômico que estipula a aliança (berit) entre Deus e Israel.17 Não por acaso, mesmo em
uma rápida leitura dos livros de Josué a Reis, podemos perceber que a
história de Israel é narrada – num hebraico fácil e repetitivo18 – desde
o ponto de vista da obediência do povo às normas do contrato/pacto com Deus. Segundo o Código Deuteronômico, é tal obediência que
garante a Israel a “eleição” e sua situação especial de “povo propriedade” (’am segulah) e/ou “povo santo” (’am qadosh). Toda a História,
portanto, está construída em formato retórico-pedagógico ou, como
diz Noth, “sua intenção era ensinar o verdadeiro sentido da História de
Israel.”19 Mas, afinal, o que é um “verdadeiro sentido”? Como a Obra
consegue instituir a identidade do “povo santo”? No plano formal da
Obra, onde estará aquele “exterior constitutivo” que delimita quem
pode e quem não pode ser Israel?
15 NOTH, Martin. O deuteronomista, Revista Bíblica Brasileira 10, 1993, p.29.
16 Em busca da história: historiografia no mundo antigo e as origens da história bíblica. São Paulo: Edusp, 2008, p.366. Outros que seguem o Einheitsmodell, ainda que
com divergências entre si, são HOFFMANN, Hans-Detlef. Reform und Reformen: Untersuchungen zu einem Grundthema der deuteronomistischen Geschichtsschreibung.
Zurique: Theologischer Verlag, 1980 e POLZIN, Robert. Moses and the Deuteronomist: A Literary Study of the Deuteronomic History. Bloomington: Indiana University
Press, 1980 (Parte I: Deuteronomy, Joshua, Judges).
17 Reservamos o termo “deuteronômico” para referir-se ao livro do Deuteronômio; já “deuteronomista” refere-se ao conjunto de Juízes-Reis.
18 Sobre esse estilo deuteronomista veja NOTH, Martin. O deuteronomista, Revista Bíblica Brasileira 10, 1993, p.20; WEINFELD, Moshe. Deuteronomy and Deuteronomic School. Winona Lake: Eisenbrauns, 1992, p.1.
19 NOTH, Martin. O deuteronomista, Revista Bíblica Brasileira 10, 1993, p.170.
Volume 2
211
Há muitos estudos sobre a “fórmula da aliança”.20 Em geral,
exegetas e historiadores se deixam levar pela forma da historiografia
bíblica e, sem avaliar o tom retórico da escrita da história, promovem
uma aliança com a identidade estipulada pelos textos. Não deveríamos
nos enganar: este procedimento hermenêutico também está ligado às
normas culturais do presente, em especial, pelo posicionamento religioso de muitos estudiosos bíblicos.21 Ao desejarem a identidade, a
normalidade, a eleição, o povo santo já no âmbito da subjetividade,
acaba-se por escrever a história de Israel em perfeita comunhão com a
forma dos textos bíblicos.22 Todavia, um olhar um pouco mais atento e
audacioso, repleto de interrogações permanentes, nos permite ir além
da forma: a identidade de Israel na Obra Historiográfica Deuteronomista é forjada, justamente, mediante a construção formal do abjeto
– aquele objeto oposto ao Eu. Será realmente possível retornar o abjeto, não apenas como Outro, mas como bumerangue perturbador da
repetitiva ordenação da História de Israel?
Para além do leitmotiv da aliança regulada por Profetas, toda
a Obra está recheada por textos marcados por aquilo que poderíamos
classificar como “fórmula do mal”23. Efetivamente, o próprio Código
Deuteronômico que guia a narrativa histórica de Israel já apresenta
uma preocupação histérica com atitudes descritas como “abominação” (to‘ebah) e “perversão” (ra‘).24 Não é de se estranhar, pois, que
a história normal do povo consagrado esteja igualmente delimitada
por fronteiras: o “mal” representa aquele espaço do absurdo, aquele
20 Em português, sugerimos RENDTORFF, Rolf. A “Fórmula da Aliança”. São Paulo:
Loyola, 2004.
21 Confira GARBINI, Giovanni. History and Ideology in Ancient Israel. Nova York:
Crossroad, 1988, p.2-3.
22 Talvez o exemplo mais caricato desse procedimento ainda esteja em ALBRIGHT,
William. From the Stone Age to Christianity: Monotheism and the Historical Process.
Baltimore: The John Hopkins Press, 1957.
23 Veja Juízes 2,11; 3,7.12; 4,1; 6,1; 10,6; 13;1; 1Samuel 12,17; 15,19; 2Samuel
11,27; 12,9; 1Reis 11,6; 14,22; 15,26.34; 16,7; 16,19.25.30; 21,20.25; 22,53; 2Reis
3,2; 8,18.27; 13,2.11; 14,24; 15,9.18.24.28; 17,2.17; 21,2.6.15.16.20; 23,32.37;
24,9.19.
24 Confira CANDIDO DA SILVA, Fernando. An Abominable and Perverted Alliance?
Toward a Latin-American Queer Communitarian Reading of Deuteronomy In: BRENNER, Athalya & Gale YEE (eds.) Exodus and Deuteronomy. Minneapolis: Fortress
Press, 2012, p.220-234.
212 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
lugar demarcado para efeitos pedagógicos do que se compreende a
verdadeira história, o verdadeiro caminho do povo de Deus. Toda a
coerência formal da historiografia bíblica está, portanto, calcada na
norma da aliança do povo santo com Yhwh e esta, em si, é forjada
mediante a construção de seu abjeto. Se o ideal de santidade exige
uma totalidade, unidade, integridade e perfeição25, parece que tudo
aquilo que não se encaixa na totalidade será excluído para demarcar
seus próprios limites.
A partir desta abordagem, é realmente curioso constatar que
a tão recorrente fórmula “fez o mal aos olhos de Yhwh” – presente na
historiografia profética dos escribas assim chamados deuteronomistas
– seja simplesmente compreendida, em termos linguístico-antropológicos, como “uma expressão de desaprovação que descreve condutas
religiosas e morais inerentemente erradas.”26 Ao rejeitar a premissa
religiosa da sacralidade do Texto, seria preciso avaliar, antes, o modo
como o mal é literariamente construído para, posteriormente, perguntar-se: quem representaria, no processo de escrita da história de Israel,
os olhos regulatórios de Yhwh? Ao que parece, a construção do mal na
historiografia bíblica precisa ser urgentemente revisada enquanto performance textual, afinal, foi sob a pena precisa dos escribas deuteronomistas que a história de Israel se tornou Profecia (e não Democracia).27
Os textos coroados pela fórmula do mal estão inseridos num
contexto muito preciso da vida econômica e política hebraica e, aqui,
cabe à História desconstruir paradigmas sacralizados por uma historiografia preguiçosa e/ou mal-assombrada – norteada pela santidade
travestida de imparcialidade acadêmica e histórica dos textos deutero-
25 Veja DOUGLAS, Mary. The Abominations of Leviticus In: CARTER, Charles Carter
& Carol MEYERS (eds.). Community, Identity and Ideology: Social Science Approach to
the Hebrew Bible. Winona Lake: Eisenbrauns, 1996, p.130.
26 DOHMEN, C. r‘‘ In: BOTTERWECK, G. Johannes, RINGGREN, Helmer & Heinz-Josef FABRY (eds.). Theological Dictionary of the Old Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 2004, v.13, p.564.
27 Lembremo-nos de que o encontro entre Profecia e Democracia não promete
ser pacífico, afinal, ‘a autoridade é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe
igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso’ (ARENDT, Hanna. Entre o passado e o
futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.129).
Volume 2
213
nômico-deuteronomistas.28 Assim sendo, cabe contextualizar o que é
hebreu/hebraico, rapidamente, nos contextos geopolíticos e econômicos do período de redação do Antigo Testamento/Bíblia Hebraica e, a
partir desta premissa, averiguar quais as conexões lógicas e estéticas
de sua escrita que conectam seu conteúdo, nos Profetas Anteriores,
à realidade social, política e geográfica do período em que os textos
foram, aparentemente, produzidos.
O período de articulação dos textos, que aqui fazemos objeto
de estudo, parece ser o mesmo dos famosos imperadores imortalizados por Hollywood, Xerxes I (na interpretação de Rodrigo Santoro) e
Dario I (na interpretação de Yigal Naor), bem como alguns de seus antecessores de linhagem imperial, Bardyia e Cambises II.29 O império
Aquemênida abrangia mais de meia dezena de milhões de quilômetros quadrados entre Ásia, África e Europa, e o território denominado
Yehud pertencia a ele. Como não poderia ser diferente, suas populações estavam subjugadas como súditos pertencentes a uma satrapia
persa. As implicações de maior peso são tributárias e culturais, haja
visto que é nesse período que camadas específicas dessas populações
(Homens da Terra) se organizam na formação de um Estado regulador,
que serviu como centralizador político-tributário da vida dos pastores-agricultores em função das demandas imperiais do seu dominador.30
28 Um exemplo de desconstrução paradigmática é a divisão da História de Israel
em “uma história normal” e “uma história inventada”. Confira LIVERANI, Mario. Para
além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Paulus/Loyola, 2008.
29 O problema da localização da Obra Deuteronomista (ou Profetas Anteriores)
promove um constante debate entre seus estudiosos. Curiosamente, ao que parece,
tais debates acerca do contexto material de produção do texto são ainda dependentes da própria exegética do texto. Argumentos diacrônicos sempre serão levantados
para equacionar o tempo da narrativa com o tempo da narração. Sem necessariamente desistir de tais argumentos, optamos pela sincronia, nesse estudo em particular, para expor o problema histórico da literatura bíblica em sua forma final. Para
o problema exegético, veja SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa In: SIMIAN-YOFRE, Horácio (ed.). Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000,
p.123-148. Para o problema da localização da Obra, sugerimos que considerem,
entre tantos títulos, as argumentações de PERSON Jr., Raymond. The Deuteronomic
School: History, Social Setting and Literature. Atlanta: SBL, 2002.
30 Os efeitos identititários desta formação cultural imperial estão devidamente
anotados por BERQUIST, Jon. Constructions of Identity in Postcolonial Yehud In: LIPSCHITS, Oded & Manfred OEMING (eds.) Judah and the Judeans in the Persian Period.
Winona Lake: Eisenbrauns, 2006, p.53-66.
214 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Desfeito o crasso equívoco da historiografia que, de modo insistente, interpreta literalmente – eis a assombração – os textos bíblicos quando se compromete com a empresa da escrita da história de
Israel, a pergunta que norteia este estudo passa a ser qual a função
da literatura no seu exato tempo e contexto sócio e geopolítico? A resposta para tal questionamento, descobrimos, deve ser dotada da capacidade que perdemos com o fim da inocência, que nos é tão comum
quando crianças: a simplicidade e objetividade na hora de perguntar.
A função retórica de escrever um trecho literário com uma história
simples, em que uma personagem sofre um revés por não observar
uma regra básica é, nada mais nada menos que, uma clara lição moral.
Ao lermos os livros do(s) deuteronomonista(s) como um compilado
de lições morais, interligadas pela vontade de Yhwh sob uma sucessão cronológica de linhagens reais, nos deparamos com uma resposta tão simples como o questionamento. A lição moral, absorvida pela
compreensão de que quebrar a aliança com Deus resulta em maldição
(Deuteronômio 28,15-45), é a de que devemos obedecer seu simples
ensinamento/lei (torah): “Eu sou Yhwh teu Deus... Não terás outros
deuses diante de mim” (Deuteronômio 5,6-7).
Daqui em diante torna-se complexa a rede perguntas e respostas que se encadeiam em torno do castigo pela não observância
da regra. A regra determina a proibição do politeísmo. Mas porque
tal mandamento se faz necessário? Assim o seria devido ao momento de produção textual, no qual os supostos cumpridores da regra receberam um território, centralizado no imperador, para comandar.31
Partindo do pressuposto de que Deus não existe como elemento material, receber um presente Dele, nas linhas bíblicas, pode representar
a insanidade de quem escreve ou, exatamente ao contrário, a lógica
de uma retórica das vontades de uma deidade.32 Já que de loucos,
31 Confira FRIED, Lisbeth. You Shall Appoint Judges: Ezra’s Mission and the Rescript of Artaxerxes In: WATTS, James (ed.). Persia and Torah: the Theory of Imperial
Authorization of the Pentateuch. Atlanta: SBL, 2001, p.63-89.
32 A rigor, essa argumentação deveria ser a base da crítica bíblica, ao menos desde
Baruch de Espinosa e seu Tractatus theologico-politicus, publicado de forma anônima em 1670. Confira ROCHA, Ivan Esperança. O dinamismo da hermenêutica bíblica
In: Práticas e representações judaico-cristãs: exercícios interpretativos. Assis: FCL/
UNESP, 2004, p.20.
Volume 2
215
acreditamos, nada tinham o escribas vétero-orientais33, que propósito
é este, como surge e em que resulta são questões que podem ser desvendadas a partir da dissecação dos componentes literários das lições
morais encadeadas na formatação bíblica.
Fantasiada de profecias, as mensagens contidas nesses textos
(ainda) carecem de uma avaliação plenamente secular, sem o comprometimento com o submisso respeito divino, que norteia, tradicionalmente, os estudos bíblicos. E sendo texto, estes devem ser avaliados
como tal a fim de se trazer à superfície o objeto e o abjeto como componentes literários, dentro das possibilidades que cabem à Teoria Literária. Passemos, pois, a um exercício concreto acerca da forma profética que envolve a “fórmula do mal” na Obra Deuteronomista. Enquanto
estudo de caso, poderá 1Reis 14,1-19 ser enquadrado na análise literária segundo a ótica “ocidental”?
O primeiro passo é identificar se há e quais são os paralelos
entre a perícope selecionada e a literatura Ocidental. O segundo passo
constitui-se em uma análise das estruturas literárias, na referida passagem, por elas mesmas. Como diria Robert Alter, “o que precisamos
compreender melhor é que a visão religiosa da Bíblia adquire profundidade e sutileza justamente por ser apresentada mediante os mais
sofisticados recursos da prosa de ficção.”34 Assim sendo, faz-se necessário um desmembramento e dissecação das técnicas de escrita na
antiguidade, tomando como base a própria escrita deuteronomista35
e sua necessidade de concatenar ideias em uma linearidade histórica,
numa linha sucessória de eventos sincronizados pelo projeto literário.
Parece ser justamente por meio deste projeto sincrônico que os ele33 Sobre o modo de produção das escolas de escribas no Antigo Oriente e sua
relevância para a compreensão da formação literária bíblica, veja TOORN, Karel van
der. Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Cambridge: Harvard University Press, 2007. Para a atuação de escribas em Yehud veja, sobretudo, ZVI, Ehud Ben.
The Urban Center of Jerusalem and the Development of the Literature of the Hebrew
Bible In: AUFRECHT, Walter at al (eds.) Urbanism in Antiquity: from Mesopotamia to
Crete. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, p.194-209.
34 A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p.42.
35 A fraseologia deuteronomista foi anotada, em especial, por WEINFELD,
Moshe. Deuteronomy and the Deuteronomic School. Winona Lake: Eisenbrauns,
1992, p.320-359.
216 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
mentos que compõem a perícope como uma história independente
pode tornar-se, por fim, uma lição moral para a história de Israel.
Os recursos da escrita deuteronomista devem ser o ponto de
partida para a leitura histórica dos textos bíblicos. E sendo Yhwh apenas uma lenda hebraica, apenas uma entre tantas daqueles povos da
satrapia de Yehud36, é preciso entender qual a lógica que há em balizar
a própria história – enquanto fundamento e origem de si mesmo numa
espécie de conjunto proto-nacional – pelas vontades de uma deidade
extremamente passional. É imprescindível identificar os procedimentos e regras que normatizam a escrita desses livros para, depois, entendê-los como parte de um projeto que, aqui no nosso limite laico,
não é divino, mas demasiado humano para que não se consiga identificar suas entrelinhas.
A teoria do Monomito ou Jornada do Herói nos informa que
uma história está seccionada em Partida (ou Separação), Iniciação e
Retorno.37 Na partida, o Herói sai do seu cotidiano e sua rotina é quebrada, ao sair de seu habitat, de seu cenário. A Iniciação é recheada
por aventuras em busca de solução, enquanto o Retorno revela-se no
acúmulo de soluções e/ou poderes advindos do desenrolar da história. Com relação à limitação temporal dessas ações, no caso da Bíblia
Hebraica, como a cronologia é limitada ao desenrolar dos próprios empreendimentos, pode ser classificada como diegética: a estória é circunscrita à realidade exclusiva do conto dramático e, recorrentemente
trágico, no nosso caso, a perícope de 1Reis 14,1-19. Os gêneros com
os quais podemos classificar, tanto a seção como todo o Livro dos Reis,
são discutíveis, mas considerando que a definição para o gênero Épico
é de um acontecimento grandioso e dramático, que implica em mudanças históricas ou evidencia-se como tal por sua relevância dentro
do texto, tomaremos aqui o Livro de 1Reis como modelo para averiguarmos a pertinência das interrogações.
Ainda discutindo a Estrutura Narrativa, temos nos estudos dos
Contos de Fada ou Contos de Magia de Vladimir Propp, uma série de
36 Considere GRABBE, Lester. Judaic Religion in the Second Temple Period: Belief
and Practice from the Exile to Yavneh. Londres: Routledge, 2000.
37 Confira CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997, p.30-186.
Volume 2
217
funções38 nas quais as personagens enquadram-se recorrentemente39, e que podem ser observadas na perícope selecionada. Ao assim
demonstrar a versatilidade da narrativa deuteronomista, espera-se explorar a hipótese de que esses textos bíblicos podem ser apreciados
enquanto contos, que como tal, possuem uma função pedagógica e são
recorrentes, nessa formulação estruturalista, em sociedades distintas
em tempo e espaço. Em Aristóteles40, por exemplo, as similaridades
continuam facilmente desnudas, quando tomamos as divisões em Premissa (ou Reconhecimento, quando a ignorância é substituída pelo conhecimento, um amigo torna-se inimigo), Desmedida (ação equívoca
que desencadeia uma peripécia), Peripécia (mudança em um ou mais
paradigmas do protagonista, sai da felicidade à infelicidade) e um Clímax/Reviravolta. Esta última encaminha a catástrofe que, por sua vez,
direciona-se à catarse. A limpeza (katharós), em Aristóteles, é a finalidade da tragédia, seu pleno êxito. Se os livros da Bíblia Hebraica foram
escritos por escribas profissionais, com função política, ou outras mais
que aqui buscamos elencar, será possível adequar tal modelo formal
para uma nova compreensão das funções dessas linhas, dita, sacras?
Não encaixaremos forçosamente nossa perícope e seus
personagens em todos os modelos acima apresentados, mas servirão
eles para identificar, minimamente, os componentes literários
da narrativa. Para uma análise do conteúdo bíblico, vejamos
primeiramente se há e quem constitui Protagonista, Antagonista,
Problemática, bem como qual é o Enredo dos Heróis e Anti-heróis,
Cenário e o Narrador.41 Segundamente, deveremos analisar como um
38 “Por função compreende-se o procedimento de um personagem, definido do
ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação” (PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.22).
39 Quais sejam, segundo Propp: afastamento (partida ou morte de alguém); proibição (herói recebe proibição ou recebe ordem de fazer algo); transgressão (transgressão da proibição e/ou execução da ordem); interrogação (malfeitor questiona
sobre herói); obtenção de informações (malfeitor recebe informações); persuasão
pelo malfeitor (malfeitor engana a vítima); herói reage ante a proposta do malfeitor
(vítima é enganada) e mais 31 funções que podem ou não estar presentes. Confira
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense, 2006,
p.26-62.150-156.
40 ARISTÓTELES. Poética. Tradução e comentários de Eudoro de Souza. Brasília:
Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1998.
41 No campo dos estudos bíblicos é crescente o número de estudos narrativos.
218 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
todo as passagens contidas no livro de Reis e definir qual é a forma
que os escribas bíblicos utilizaram para fornecer coerência às estórias
a fim de tornar séculos de tradição oral em um texto uniformemente
conciso e coeso.
Neste texto estão elementos que o torna ordinário como literatura, mas a forma como os elementos são apresentados pelo escritor, qual o papel trocado que as personagens assumem, acaba por lhe
oferecer uma singularidade literária que, em si mesma, na perícope,
não representa algo grandemente diferenciado do modelo ocidental.
Porém, avaliado dentro do livro de Reis é emblemático. Temos o narrador, que apresenta cinco personagens, um rei, Jeroboão; uma esposa
do rei (que não é necessariamente uma rainha); um herdeiro do trono,
acamado à espera da morte, Abias; um profeta interlocutor de Javé e
arauto da ascensão real, Aías; e um Senhor, Deus, que fala, de algum
modo, diretamente com o profeta.
O narrador apresenta dois cenários, o ambiente familiar real,
tomado pelo presságio de morte, e a casa do profeta. Também temos
o desafio, saber pela boca do profeta, pago com alguns víveres, qual o
destino do enfermo herdeiro da realeza. Mas ninguém pode saber que a
mulher do rei está em busca de profecias, uma condição para que ocorra
o desenvolvimento do problema. Disfarçada, chega à casa de Aías e este,
mesmo cego, identifica a mulher, ao mandar um recado do próprio Deus
(v.6-11), que deverá ser repassado ao marido: “fizeste mais mal que todos os teus antecessores” (v.9). Dentre os erros de Jeroboão destaca-se
que ao transgredir a lei, fez o povo todo pecar junto com ele. E destilada
a ira divina, pela boca do profeta cego, é dada a sentença final: “Quando
pisares na tua cidade teu filho doente morre” (v.12).
Faltam elementos nessa passagem, como o retorno, a solução
do problema, o acúmulo de poder. Enfim, temos um rei que precisa
de um sucessor e este é negado através da morte de seu filho. Não há
solução, pois quem a daria, o profeta, traz uma mensagem de desgraça.42 Ora, mas se houver realmente algum paralelismo entre a escrita
Uma ótima síntese de diferentes modelos pode encontrar-se em SKA, Jean Louis.
“Our Fathers Have Told Us”: Introduction to the Analysis of Hebrew Narratives. Roma:
Pontifício Instituto Bíblico, 2000.
42 Para as típicas formas literárias proféticas, consulte WESTERMANN, Claus. Basic
Forms of Prophetic Speech. Louisville: Westminster/John Knox Press, 1991, p.90-128.
Volume 2
219
bíblica e a escrita clássica43 e romântica44, não deveríamos desistir
tão facilmente de procurar outras personagens e eventos. Se for considerada a possibilidade dessas partes ocultas ou subtraídas existirem
formalmente no texto, então, estamos observando com a ótica equívoca. Nos textos deuteronomistas, quem conduz a história é Deus, não
são reis ou profetas. Então, quem deveria percorrer a saga não é o rei
Jeroboão, ou Davi, ou Salomão ou qualquer outro do livro de Reis; o
herói parece ser o próprio Yhwh, que tem por desafio estabelecer, por
meio de demarcação, um reino terreno. Para arregimentar seus representantes lhes presenteia com a realeza. Os súditos também são seus
comensais. O único pagamento é o fiel cumprimento de leis que, entre
outras, proíbem a adoração de outros deuses. O desafio de Yhwh, o
problema que este enfrenta é, justamente, a adoração a outros deuses.
O Deus, que se intitula o único entre outros vários, tem que enfrentar
a desobediência e a falta de pagamento por presentes tão grandiosos,
como uma terra fértil e um governo centralizado. A solução está em
uma punição exemplar e este zurzir45 trata-se do acúmulo de poder,
tão característico das narrativas, como o conto. Há apenas uma redenção: basta matar o rei contraventor e todos os seus súditos, para que
as gerações futuras saibam o valor dessas terras, tão caras a todos.
Se avaliarmos a perícope por ela mesma, o remédio foi dado,
o povo contraventor se extinguiu e naquelas pastagens, cidades e estados se erguerão novos e verdadeiros adoradores de Yhwh. Estarão todos remediados desse mal tão simples. Mais adiante, no mesmo capítulo, outro rei – Roboão de Judá – é flagrado como adorador de outros
deuses. Este último monarca não consultou profetas, mas o resultado,
mesmo que não tenha sido anunciado, foi a destituição financeira (cf.
1Reis 14,26), não pelas mãos de um genocídio ávido, generalizado e
sem sentido, mas intermediado por um rei estrangeiro, outro adorador
qualquer que vem dum grande reino do extremo sul (1Reis 14,25).
O narrador onipresente apresenta o anti-herói na forma de
um rei ordinário que, por motivos não declarados, acaba por adorar
43 Tal escrita é marcada pela inspiração dos deuses, pelo universalismo e ‘nacionalismo’. Veja MONTEIRO, Clóvis. Esboços de História Literária. Rio de Janeiro: Livraria
Acadêmica, 1961, p.31-39.
44 De romance, ao designar composição em prosa ou composição popular. Confira MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
45 Maltratar, castigar, repreender, punir severamente, castigo que pode ser físico.
outros deuses que não o Uno. Apresenta o herói Yhwh – essa deidade que perde seu rumo graças aos antagonistas – e um conjunto de
adoradores politeístas que juntos formam uma nação e um reinado,
centralizados num Estado burocrático (1Reis 4,7-20.5,1-5), que foi presenteado pelo próprio herói! O curioso e singular é que o protagonista
formal, o rei, parece ser também o anti-herói. É na tragédia da morte
de seu filho que a história se centra: da saga, da viajem à cidade de Siló
(morada do profeta), o herói oculto, Deus, entra como um coadjuvante
através da fala de outro coadjuvante, o cego interlocutor. Talvez por
essas trocas de categoria, o texto bíblico pareça confuso para o leitor
ocidental. Apenas com a tradução dos estilos é possível discernir a formatação profética da formatação romântica46.
Quanto ao drama em si, pela lógica narratológica, temos algumas catarses, purificações purgatórias que marcam passagens. O rei
tem o filho acamado, a esposa tem sua ilusão de ótica desfeita por um
cego, o herdeiro morre, Yhwh não foi obedecido e Yhwh tem que punir
com a morte todos que um dia beneficiou com seus poderes. O Clímax
está no desmascaramento tardio do descumprimento generalizado de
um simples pedido, de uma lei clara e monolítica, “serei o único deus
adorado”. Reis e camponeses falharam nessa simples Premissa que
culmina na Desmedida politeísta, a ação equívoca. A “idolatria” causa
uma mudança drástica no cotidiano: a doença do herdeiro, que denominamos Peripécia. Esses últimos quatro elementos, necessariamente, na lógica estruturalista acima elencada, culminam numa Reviravolta. Frente a essa teoria, que busca um padrão de construção literária,
é notória, novamente, a originalidade da escrita deuteronomista: a
revanche não pertence ao protagonista declarado, mas ao herói/protagonista oculto.
A presença de heróis e anti-heróis num mesmo conto, numa
mesma narrativa torna a leitura confusa, mas reserva para si o enigma
dessa identidade ocultada pela presença de um falso herói, que vem
a tornar-se um verdadeiro antagonista com suas práticas transgressoras. Essas trocas de categoria servem para mascarar a verdadeira
mensagem, declarada no livro de 1Reis como um todo: rebeldes serão
46 Aqui entendemos o romântico como um encadeamento literário numa sequência lógica, ordenada ou não, de eventos ligados a uma grande problemática, normalmente declarada.
Volume 2
221
punidos.47 As técnicas redacionais que mascaram essas trocas caracterizam o texto com base nele mesmo. Há sincronia entre as histórias
e suas consequências, entre a fala do narrador e os mecanismos estéticos que tornam histórias de reis distintos em apenas uma história bem
mais longa, a saber, a história de reis que viveram às margens da Lei.
Os textos recorrerem à ideia de castigos fulminantes para os transgressores, deliberadamente criminosos ou apenas cúmplices.
Quadro1: Tabela de Elementos Componentes da Perícope
Elemento da Composição
PERSONAGEM
(declarada)
PERSONAGEM
(oculta)
Herói
Profeta Cego (intermediário)
Yhwh
Anti-herói
Rei
Profeta Cego
Protagonista
Rei/Mulher
Realeza e Povo
Antagonista
Javé
Rei Politeísta
Coadjuvante
Filho acamado
Mulher/Filho
Cenários
Corte e Siló
Reino herdado de Davi
Deuteragonista
Mulher
Não há
Tritagonista
Profeta Cego
Não há
Mudança de Paradigma
Morte iminente do herdeiro
Rei consulta profeta sobre morte
do filho
Desafio/Problema
Consultar o profeta
Adoção do Politeísmo
Reviravolta
Rei culpado pela doença
Demonstrar insatisfação
Desfecho(Catástrofe)
Ritual fúnebre seguido de
Genocídio
Genocídio/Limpeza Étnica
Como é possível ver na tabela acima não há paralelos, exceto
pelo cenário, em que os dois primeiros estão contidos no segundo. Todavia, se reagruparmos as personagens de acordo com a sua representatividade, obtemos uma nova configuração para a possível mensagem
47 A História Deuteronomista segue, assim, o contrato firmado entre Deus e Israel
no Deuteronômio. Sendo sua mensagem central a obediência, a rebeldia deverá ser
incisivamente denunciada e punida. Neste aspecto, a retórica deuteronômica não
chega a ser inovadora, sendo os antigos tratados imperiais vétero-orientais sua possível inspiração. Veja McCARTHY, Dennis. Treaty and Covenant: a Study in Form in
the Ancient Oriental Documents and in the Old Testament. Roma: Pontifício Instituto
Bíblico, 1981.
222 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
ocultada da narrativa declarada. É preciso identificar qual a nova função que cada uma assume, pois suas finalidades estão entre as duas
concepções literárias, isto é, cada elemento serve para mais de um
propósito, ou perde seu valor protagonizante na trama.
Se lermos horizontalmente, dando medida de igualdade entre
a segunda e terceira coluna da tabela, o Profeta Cego passa a representar Yhwh, enquanto elemento centralizador da história. Mas também
representa o Rei, enquanto anti-herói. Tanto o rei, quanto escravos,
descendentes, homens livres e a mulher protagonizam o desafio e a
reviravolta – respectivamente, ser adorado como deus único e punir
os infratores. Com essas associações, perdem valor os coadjuvantes,
os deuteragonistas e tritagonistas: frente ao desfecho, todos morrem.
Sobram como vínculo único entre a narrativa oculta e a declarada dois
personagens opostos que rivalizam, através da ira e da falta de gratidão. Neste jogo estilístico, em que fatores desconhecidos pelo leitor balizam as funções das personagens, as suas inutilidades na trama
justificam uma completa aniquilação catártica. Trata-se de um duelo
entre Herói e Antagonista, dinastia e Yhwh; só há um futuro que comporta ambos: o porvir. Emerge a questão, dentro dessa lógica literária,
de qual seria a representatividade da dissociação, como elemento da
trama, entre Yhwh e Rei politeísta. Esta é representada pelo queixoso,
através da fala do profeta cego:
“Porquanto te levantei do meio do povo, e te fiz príncipe sobre o meu povo de Israel, e tirei o reino da casa de Davi, e te
entreguei, e tu não foste como Davi, meu servo, que guardou os meus mandamentos e andou após mim de todo o
seu coração, para fazer somente o que parecia reto aos meus
olhos; antes, fizeste o mal, pior do que todos os que foram
antes de ti, e fizeste outros deuses e imagens de fundição,
para provocar-me à ira, e me viraste as costas [...]”48
Deus “rasga” o reino de Davi, um servo exemplar, com o propósito de presentear Jeroboão. Mas este último não foi como o pai de
Salomão, um modelo de boa conduta e gratidão. A solução é eliminar
todo e qualquer descendente, todo e qualquer súdito ou escravo, den48 1Reis 14,7-9 seguindo a tradução de FRANCISCO, Edson Faria. Antigo Testamento Interlinear Hebraico-Português. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2014.
Volume 2
223
tre outros castigos. A resultante dessa ação divina é que, não havendo herdeiro, o trono fica vago. Yhwh, em sua cólera, comunica que
providenciará outro monarca ao passo que destituirá as propriedades
da linhagem de Jeroboão, repassando para povos da região do [rio]
Eufrates (v.14-15).
Em toda essa amarração literária, há uma recorrência estilística, uma fórmula literária que, repetidamente, comunica a inconformidade entre a lei e seu cumprimento. Para além de nossa perícope,
esta aparece nas formas negativa, “Acab, filho de Amri, fez o mal aos
olhos de Yhwh” (1Reis 16,30) e positiva, “fazendo somente o que é
reto aos meus olhos” (1Reis 14,8). Eventualmente, ainda, são seguidas
de uma confirmação, de uma fórmula redundante, ao demonstrar que
o atual rei conseguiu o recorde de ser pior do que todos os anteriores
na empresa de adotar o monoteísmo. Referimo-nos, por exemplo, à “e
cometeu ainda outros pecados, irritando Yhwh, Deus de Israel, mais
que todos os reis de Israel que o precederam” (1Reis 16,33) e “...mais
do que todos os seus antecessores” (1Reis 16,30).
Cada vez que é recitado o comunicado – “fez mal aos olhos
de Yhwh” – está se reiterando as leis que fundamentam o convívio
entre os “filhos de Israel”49. Entretanto, ao que parece, justamente
a fórmula garante espaços de conflito no interior do projeto literário
deuteronomista. Independentemente de que categoria social está ali
(no texto) representada, há uma divergência entre projetos organizacionais que se faz visível, em especial, nas passagens da Obra marcadas pela “fórmula do mal”. Diante do constante descumprimento da lei
(torah) do contrato (berit), aparece Yhwh, ultrajado pela infidelidade
e, portanto, em pleno direito de esterilizar Israel.50 Assim sendo, es49 O masculino plural deve ser compreendido em seu sentido preciso, afinal, linguisticamente as mulheres não parecem ser endereçadas pela Lei e, portanto, desempenham um Outro papel na História de Israel. Para o primeiro problema, confira
BRENNER, Athalya. The Decalogue – Am I an Addressee? In: BRENNER, Athalya & Gale
YEE (eds.) Exodus and Deuteronomy. Minneapolis: Fortress Press, 2012, p.197-204.
Para as mulheres nos Profetas Anteriores, sugerimos REINHARTZ, Adele. Mulheres
anônimas e o colapso da monarquia: um estudo de técnica narrativa In: BRENNER,
Athalya (org.). Samuel e Reis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas,
2003, p.55-84.
50 Lembremo-nos de que a ‘esterilidade’ é justamente um dos temas centrais das
narrativas de Israel, em especial, dos impasses de seus primórdios. Veja CHWARTS,
224 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
tes textos históricos parecem ter sido redigidos, especificamente, para
concatenar abjeções dispersas no tempo, dando-lhes unidade sob a
norma profética. Devemos compreender, portanto, os elementos textuais da perícope e do próprio Livro de 1Reis, aqui elencados no modelo literário ocidental (romântico/épico/trágico/dramático/fabuloso),
como determinados por um grandioso projeto político-literário que
une histórias de realezas com projetos dinásticos divergentes a fim de
propor um sentido único para a História de Israel.51 As trocas de categoria das personagens que compõem os contos ficam ocultadas pelo
foco do leitor ocidental, que busca similaridade numa leitura que carrega a singularidade do seu projeto oculto e do seu projeto declarado
na complexidade estilística e conceitual apresentada como um mero
relato de um narrador onisciente.
O Senhor, Deus de Israel, descrito nos textos deuteronomistas,
não parece ser uma metáfora representativa de realezas e dinastias
que possam ter contratado o serviço de algum especialista da arte literária – seus profetas; nem mesmo poderiam ser os súditos ou o Povo
da Terra52, ainda menos os cativos de reis e nobres. Não é, tampouco,
o zurzir imperial dos Aquemênidas53 (ou da Assíria, aquele estereótipo imperial original da narrativa deuteronomista54), opressores que
mantém uma aliança fiscal entre tributário e tributador de uma terra
Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia Hebraica. São Paulo: Humanitas, 2004.
51 Hans Walter Wolff apontou exemplarmente para a forma profética da historiografia deuteronomista: “A história é entendida como a realização da palavra de
Deus que os profetas proclamaram (...) É consenso geral de que é muito importante
descobrir o querigma de DtrH. Antes de mais nada porque esta obra é filha da profecia. Com a habitual urgência profética ela quer transmitir uma mensagem” (O querigma da Obra Histórico-Deuteronomista In: BRUEGGEMANN, Walter & Hans Walter
WOLFF. O dinamismo das tradições do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1984,
p.100). Veja também GONÇALVES, Francolino. Concepção deuteronomista dos Profetas e sua posteridade, Didaskalia 33 (1-2), 2003, p.92-96.
52 Povo da Terra (Proprietário) ou Povo Que Trabalha na Terra (Camponês/arrendatário), no hebraico bíblico. Sobre esta ambiguidade, veja HAHN, Noli. “Povo da
Terra” e “Meu Povo” à luz de Miqueias, Estudos Bíblicos 44, 1994, p.47-52.
53 Inclusive, com a Onipresença dos OLHOS E OUVIDOS DO REI, uma rede estatal de espionagem e fiscalização administrativa, tributária e social, que controlava e
vigiava dos gastos públicos até a opinião pessoal dos súditos a respeito do império.
54 Para o problema diacrônico da Assíria na Obra, confira RÖMER, Thomas. Dal
Deuteronomio ai libri dei Re: introduzione storica, letteraria e sociologica. Turim:
Claudiana, 2007, p.67-101.
Volume 2
225
fértil, “prometida”, entretanto, consignada à subserviência hebraica,
que teve sua homogeneidade etnográfica, forçosamente, construída
nesses textos. Essa aliança repetidamente rompida, como ilustra o sincronismo literário dos Profetas Anteriores, mantém íntima relação fideicomissa entre aquele que escreve e aquele que um dia, quiçá, lerá.
Como possível exceção à tradição jurídica testamentária, o
texto deuteronômico/deuteronomista é um legado destinado a quem
ainda não existe e, por confiança no porvir, é depositado nas mãos
de quem um dia transmitirá ao herdeiro (Deuteronômio 6,4-9.2025; 11,18-21; compare com Juízes 2,6-20). A mensagem (profética)
transmitida é a história bíblica unificada pela vontade condutora de
um deus, a herança é a estabilidade nas relações de (re)produção e
os herdeiros parecem ser os próprios escribas que, para sempre, hão
de sustentar – retoricamente – a linhagem real de um Estado teocrático.55 Yhwh, como recurso estilístico, burocrático, espiritual, poético,
político e religioso é, então, o esforço compilatório dos escribas a serviço de uma equação que soma a fiscalização de sistemas tributários
continentais com demandas de oligarquias locais, através de uma poética matematicamente estruturada no enredo dramático da jornada
bíblica, nascida nas imemoriais areias do tempo. Deus é o suor de seu
mediador, o Escriba.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para encerrar, vale a pena perguntar-se pela eficácia de tal
método de leitura. Ora, porque insistir em ler documentos tão viciados,
textos que escondem as múltiplas práticas sociais e, assim, impossibilitam uma reconstrução plena e justa da historiografia moderna? Porque não desistir do texto bíblico e, simplesmente, lidar com a arqueologia, tão mais próxima das grutas e suas expressões supostamente
menos formuladas da vida cultural? Simplesmente porque enquanto
55 Sobre o desenvolvimento das retóricas imperiais no Antigo Oriente Próximo,
veja KATZ, Ronald. The Structure of Ancient Arguments: Rhetoric and its Near Eastern
Origin. Nova York: Shapolsky, 1986.
226 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
a arqueologia operar sozinha haverá uma profunda dicotomização da
antiga realidade de Israel. Historiadores atentos apenas aos artefatos
arqueológicos descreverão um passado popular, repleto de esquisitices que nada tem a ver com a história do Israel bíblico.56 Novamente
cairemos no engodo da ciência do Outro: um Israel aqui, outro acolá;
um lugar confortável para o popular que também o coloca em seu devido lugar. Sinalizamos, pois, que o problema não é o dado em si, mas
a hermenêutica operada pelo historiador. Se o Outro não deixar de
ser Outro para se tornar o Mesmo – se o mal não virar santidade, nos
termos bíblicos – não teremos condições (i) de criar imagens desestabilizadoras do passado, (ii) de compreender o imperativo ético do
presente e muito menos (iii) de imaginar um futuro de solidariedade e
emancipação social.
56 Para o problema da desidentificação arqueológica da História de Israel da literatura bíblica, veja THOMPSON, Thomas. Text, Context and Referent in Israelite Historiography In: EDELMAN, Diana (ed.) The Fabric of History: Text, Artifact and Israel’s
Past. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991, p.66-92.
Volume 2
227
SUETÔNIO E A REPRESENTAÇÃO
DO NASCIMENTO APOLÍNEO DO
PRINCEPS AUGUSTO
Carlos Eduardo da Costa Campos 1
Um elemento essencial para os pesquisadores de Estudos
Clássicos a ser problematizado é a produção literária efetuada por
autores antigos, tanto gregos quanto romanos. Convergimos com
John Marincola2 sobre os rigores metodológicos que o pesquisador contemporâneo deve deter ao abordar uma documentação tão
ampla e diversa temporalmente, como a literatura antiga, em suas
pesquisas. Dessa forma, os escritos literários que sobreviveram da
Antiguidade também devem ser refletidos e problematizados quanto
às representações que os mesmos contêm sobre tal época, pois não
representam a sociedade em sua plenitude. Tais visões são inerentes
a alguns grupos ou sujeitos que integravam a sociedade em particular. Outro ponto que podemos apontar em nosso estudo é que a
literatura latina, nosso objeto de reflexão, contém uma vasta gama
de discursos e representações sobre o comportamento de diversos
atores políticos, os quais permearam a memória social3 de Roma.
Um tema contido no corpora documentais da literatura latina que
nos intriga para investigação são as práticas político-religiosas roma1 Prof. Doutorando Carlos Eduardo da Costa Campos – PPGH/UERJ. Bolsista Capes. Membro dos laboratórios: ATRIVM-UFRJ, GEMAM/UFSM e LECA/UFPel.
2 MARINCOLA, John. Introduction. In:_____. A Companion to Greek and Roman
Historiography. Vol.:1. Oxford – UK: Blackwell Publishing Ltd, 2007, p.1-10.
3 Para Michael Pollak, a memória é ao mesmo tempo individual, do ponto de vista
pessoal, e coletiva, do ponto de vista do grupo, definindo o que é comum a esse
grupo e o que o diferencia de outros. Essa memória é o que permite fundamentar e
reforçar os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais. A memória
deve ser entendida também, ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social,
construída a partir de um fenômeno coletivo e submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, vol. 2, (3): 3-15, 1989;
_____. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Fundação
Getúlio Vargas, vol. 5, (10):200-212, 1992.
Volume 2
229
nas em relação à legitimidade dos principes de Roma. Questão essa
a qual debateremos no decorrer deste texto.
O cenário cultural romano da República Tardia (século I A.E.C.)
ao século II E.C. nos instiga por ser uma fase caracterizada por uma
intensa atividade literária por parte de suas figuras públicas, as quais
buscavam projetar as suas reputações divulgando seu estilo, sua erudição e suas realizações. Nesse período de transição, transformações
e algumas acomodações políticas entre os personagens públicos de
Roma, chama-nos atenção o princeps Caio Júlio César Otaviano Augusto (27 A.E.C. - 14 E.C.). Selecionamos o referido magistrado por sua
proeminência política e cultural para Roma e o Mediterrâneo Antigo,
assim como a sua perenidade no imaginário social do Ocidente. Para
fundamentarmos nossa perspectiva, tomaremos como base a documentação literária de Vida do Divino Augusto (Vita Diui Augusti), de
Caio Suetônio Tranquilo (II E.C.), devido ao fato de esse autor elaborar um amplo conjunto de representações sobre o filho de Júlio César
como um exemplum de uir bonus e optimus princeps (bom cidadão e
ótimo governante) para a sociedade romana. Segundo Philip Stadter, o
uso da Biografia Histórica feita por Suetônio foi uma escolha do autor,
por esta ser um instrumento que lhe possibilitava uma melhor forma
de narrar os acontecimentos do sistema do principado4. Assim nos
indagamos sobre algumas seleções de Suetônio, como: Quais as características que podemos evidenciar da obra Vida do Divino Augusto, de
Suetônio? Quais as suas possíveis intencionalidades perceptíveis em
seus escritos? Quais as construções efetuadas pelo autor para elaborar uma imago principis que fosse divinizada? Esses são os pontos que
norteiam os nossos debates neste artigo.
4 STADTER, Philip. Biography and History. In: MARINCOLA, John. A Companion to
Greek and Roman Historiography. Vol.:2. Oxford – UK: Blackwell Publishing Ltd, 2007,
p.528-540.
230 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
I. Biografia e o período do principado romano
Notamos que a partir do Principado5 de Augusto, acentuou-se nos trabalhos dos biógrafos latinos e os de matriz cultural helênica
o elogio às figuras dos grandes políticos, com ênfase na representação6 dos principes romanos. José Brandão frisa que essa forma de
produção biográfica foi o viés “[…] mais indicado para historiar o governo de Roma imperial, em que havia concentração das instituições
do Estado na pessoa do imperador: pelo que [...] – as virtudes e os vícios – se refletem na condução da história”7. Assim, compreendemos
a biografia8, no período do principado romano, como um conjunto de
relatos sobre personalidades ilustres, as quais permearam a memória
social de Roma. Ademais, ressaltamos que as fronteiras entre a vida
pública e privada, no Mundo Antigo, são tênues e esses cidadãos de
destaque, como Augusto, eram intensamente expostos em suas respectivas comunidades tanto em formas de exaltação como também de
críticas sociais. O que possibilitava o fornecimento de inúmeros materiais para os escritos biográficos e historiográficos, por exemplo. No
caso da biografia, ela apresentava o estilo de vida que determinado
5 Novo sistema político de governo engendrado por Augusto, no qual ele, enquanto princeps (primeiro entre os cidadãos), detinha o poder de comando da sociedade romana, mediante a elaboração de uma ampla rede de colaborações sociopolíticas, assim como de discursos e representações. Maiores informações veja: HAZEL,
John. Who’s who in the Roman World. London and New York: Routledge, 2001, p.337.
6 As representações são construções elaboradas acerca de um sujeito, um grupo
e/ou um objeto no intuito de interpretar/explicar as práticas desempenhadas em
um meio social. Todavia, as representações desenvolvidas em uma sociedade não
são neutras e correspondem aos interesses dos grupos que as elaboraram. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979, p. 382-3.
7 BRANDÃO, José Luis Lopes. Suetônio e os Césares – Teatro e Moralidade. Ed.
CECH: Coimbra, 2009, p.24.
8 Concepção formulada a partir de MADELÉNAT, Daniel. La biographie. Paris: PUF
– Littératures modernes,1984, p.32-41; MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas
da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC, 2004, p.12-4; SCHMIDT, Benito Bisso.
História e Biografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos
Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda., 2012, p.195; STADTER,
Philip. Biography and History. In: MARINCOLA, John. A Companion to Greek and Roman Historiography. Vol.:2. Oxford – UK: Blackwell Publishing Ltd, 2007, p.528-540;
Volume 2
231
personagem histórico deteve, com isso euforizando9 ou disforizando10 o caráter do sujeito, os seus feitos e conquistas. Contudo, essa
construção biográfica poderia variar em aspectos de forma, estilo e até
mesmo de conteúdo, pois não podemos esquecer das intencionalidades relativas a cada biógrafo.
Seguindo a perspectiva acima, vemos a biografia como um
dos variados instrumentos culturais que possibilitava as gerações posteriores conhecerem certos homens, que por seus feitos e glórias foram selecionados pelos segmentos dirigentes para uma imortalização
na memória social romana. Com esse ato de preservação da trajetória
pública de um sujeito, evitava-se o seu silenciamento e/ou esquecimento diante do tempo, um fato que driblava vitoriosamente a própria
ação da morte física e social11. Logo, temos como perspectiva que a
produção biográfica em Roma fornecia um conjunto de exempla, pois
ela produzia um efeito pedagógico, ensinando aos cidadãos os modelos de comportamento esperados pela sociedade de um princeps,
assim como daqueles que assumiam funções na magistratura local e
na administração imperial12. Endossando nossa assertiva, recorremos
até a Plutarco13, pois este salientou que, em seus escritos biográficos,
buscava expor os vícios e as virtudes de determinados homens e assim
9 A partir de Algirdas Julien Greimas e Joseph Courtés, o ato de euforizar consiste
na valoração positiva de um sujeito ou objeto de interesse, por meio da exaltação no
âmbito discursivo. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979, p. 170.
10 Algirdas Greimas e Joseph Courtés esclareceram que o ato de disforizar reside
na valorização de um microuniverso semântico, cujo propósito seria desqualificar
práticas políticas, culturais e sociais de um dado grupo de sujeitos. Idem, p.130.
11 Concepção fundamentada a partir de: ASSMANN, Jan. Para Além da Voz, Para
Além do Mito. In: Revista Humboldt, ano 45, 2003, p.5-9 e POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio
Vargas, vol. 2, (3), 1989, p.3-15.
12 Nossa visão se aproxima de Luis Filipe Bantim de Assumpção, ao tomar este escrito plutarquiano como base de suas concepções sobre a biografia antiga, conjetura
que no Mundo Antigo: “[...] a biografia traçava a trajetória de vida de homens proeminentes, no intuito de enfatizar os seus feitos político-militares e estabelecer modelos
de conduta moral e social”. ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de. Antigas críticas e novas
perspectivas sobre a biografia – um estudo de caso sobre Xenofonte (V a.C.). In: NETO,
José Maria Gomes. Antigas Leituras – Volume II. Recife: EDUPE, 2015. (No prelo)
13 PLUTARCH. Plutarch’s Lives. Vol. 7. Trans.: Bernadotte Perrin. London: William
Heinemann Ltd., 1919.
232 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
pretendia que os seus interlocutores agissem em conformidade aos
ensinamentos políticos, sociais e militares os quais eram transmitidos
para a sociedade (PLUTARCO, Vida de Alexandre, 1.2)14.
II. Os escritos biográficos de Suetônio e Augusto
como exemplum
Nesse contexto de escritos biográficos, a produção literária
de Caio Suetônio Tranquilo (século II E.C.) intitulada Vida dos Doze
Césares (De Vita Caesarum) nos instiga, por seus minuciosos detalhes
sobre a trajetória dos imperadores. Para Antonio R. de Verguer, comentador da referida obra, tal produção é constituída de oito livros
completos. Verguer frisa que os livros seguem a seguinte organização:
I – Júlio Cesar; II- Augusto; III – Tibério; IV – Calígula; V – Cláudio; VI –
Nero; VII – Galba, Otão, Vitélio; VIII – Vespasiano, Tito e Domiciano.
O texto tem como objetivo central a descrição de informações relati14 Em muitos casos esses modelos de comportamentos políticos permearam as
gerações posteriores, assim atravessando séculos. Para Susana Marques Pereira, é
possível notarmos na sociedade portuguesa do século XVI um uso de elementos do
exempla romano, para comparar os feitos e ações da aristocracia. A autora ressalta
que Manuel da Costa, um famoso jurista e poeta português do Renascimento, foi responsável por produzir dois epitalâmios de tema nacional em latim sobre o teor acima
exposto. Para a autora, o tom de escrita de Manuel da Costa era encomiástico, com
isso o referido poeta cantou as núpcias do infante D. Duarte com D. Isabel de Bragança, em 1552, e um ano depois, o matrimônio do príncipe João, herdeiro de D. João
III, com a princesa Joana de Castela. Nesse contexto, uma retomada de elementos
clássicos são produzidos. Segundo Pereira, havia uma euforização da proeminente
família real da noiva, na ilustre figura do imperador Carlos V, seu pai. Logo, uma narrativa de suas conquistas e façanhas foi produzida para exaltar sua imagem real. Para
a autora, tais feitos do soberano de Castela são laudatoriamente comparados a um
exemplum da história de Roma, ou seja, o ordenador social e estabelecedor das fronteiras do princeps Augusto, com o qual o monarca Carlos V é identificado. Um modelo de conduta e ação, que os novos governantes deveriam ter como base. PEREIRA,
Susana Marques. Motivos clássicos na poesia novilatina em Portugal – Manuel da
Costa. In: SILVA, Maria de Fátima Sousa; AUGUSTO, Maria das Graças de Moraes. A
recepção dos clássicos em Portugal e no Brasil. Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra, 2015, p.161-172.
Volume 2
233
vas ao âmbito público e privado dos personagens. Sendo assim, em
Suetônio encontramos temas frequentes como: a matriz familiar e os
seus ancestrais; a forma e o local do nascimento, que era acompanhado por inúmeras qualidades de presságios sobre o sucesso sujeito; a
infância; o começo de sua vida pública, além de aspectos relevantes
do governo; as construções e os jogos efetuados; as relações familiares e questões de vida privada; o contexto da morte. Segundo Verguer15, há um consenso histórico em se aceitar como o período de
publicação dos livros, os anos de 119 a 120, momento do governo do
princeps Adriano (117 – 138).
Um ponto a ser ressaltado sobre Suetônio é que o autor não
emprega a mesma forma de escrita biográfica em todos os seus livros.
Assim, as produções variam em estilo e forma de acordo com as suas
preferências e intencionalidades para composição, como foi pontuado
por Antonio R. de Verguer16. Cotejando os apontamentos de Verguer
com José L. Brandão, evidenciamos que os livros de Suetônio têm atributos laudatórios17, por exemplo, no que tange às descrições referentes à Vida de Germânico; no começo da Vida de Calígula; na parte inicial da Vida de Cláudio; bem como no modo com que inicia a Vida de
Tito. Para Brandão, outro elemento constituinte desse mosaico de es15 O tema tornou-se polêmico entre os anos 60 e 70, do século XX, no que tange
ao período de produção da obra. G. W. Bowersock sustentava que as seis últimas
biografias (Galba – Domiciano) foram escritas durante o governo de Trajano. Tal hipótese foi refutada, posteriormente, por especialistas como K. R. Bradley, através de
amplos estudos literários e linguísticos. Para Maiores informações vide: BOWERSOCK, G. R. Suetonius and Trajan - Hommages a Marcel Renard. Bruxelas: J. Bibauw
(Collection Latomus, 101), 1969, p. 119-125; BRADLEY, K. R. The Composition of Suetonius’ Caesares again. Journal Indo-European Studies, vol.:1, 1973, p. 257-263; DE
VERGUER, Antonio Ramirez. Introduction. In: SUETONIO. Vida de los Doce Cesares.
Trad.: Rosa Maria Cubas. Madrid: Editorial Gredos, 1992, p.20-4.
16 DE VERGUER, Antonio Ramirez. Introduction. In: SUETONIO. Vida de los Doce
Cesares. Trad.: Rosa Maria Cubas. Madrid: Editorial Gredos, 1992, p.20-4.
17 A historiografia nos aponta que, quando um aristocrata falecia, era costume
chamar um orador para a realização do cerimonial, que consistia em proferir um discurso, no qual as glórias e honras do morto se uniam às de seus antepassados. Vide:
BRANDÃO, José Luis Lopes. Suetônio e os Césares – Teatro e Moralidade. Ed. CECH:
Coimbra, 2009, p.21; HAMILTON, Nigel. Biography, a brief history. Harvard: University Press, 2007, p.11; MADELÉNAT, Daniel. La biographie. Paris: PUF – Littératures
modernes,1984, p.39.
234 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
tilos e formas de escrita biográfica foi a concepção de felicitas18 como
um atributo que, desde o início, se manifesta nas vidas dos bons imperadores – como Augusto, Vespasiano ou Tito – e a de infelicitas19 nas
de que ele considera como maus governantes – Nero. Essa perspectiva
de Suetônio se materializa quando observamos os seus apontamentos
sobre como os deuses abençoaram os bons com uma “boa morte” e
puniu os maus com uma morte descrita como terrível e solitária.
Ademais, ao confrontarmos os estudos produzidos por Antonio R. de Verguer, Catharine Edwards e José L. Brandão20, verificamos
que estes convergem ao indicarem que a principal intenção de Suetônio era a elaboração de um modelo de optimus princeps, em muitos
casos tomando como exemplo o Panegírico de Trajano – de Plínio o
Jovem – e as Res Gestae – de Augusto. Vale ressaltar que para Suetônio o princeps ideal era Augusto, cuja biografia é a mais completa
e extensa dentre as que foram produzidas pelo autor. Questão essa
que nos intriga, afinal, tal construção discursiva da imago principis augustana foi consolidada e apropriada por várias gerações de escritos
latinos e gregos, desde sua morte em 14 E.C.
Ao frisarmos que os biógrafos tomavam Augusto como um
exemplum, evidenciamos que havia um interesse em criar um modelo
de comportamento, o qual deveria ser emulado pelos seus sucessores.
Logo, pensamos na terminologia latina aemulatio para refletir a elaboração de uma imago principis augustana que foi representada pela
documentação que estamos abordando. Ao consultarmos o Oxford Latin Dictionary, The Oxford Classical Dictionary e A Latin Dictionary21
18 Felicidade, prosperidade, ventura que são concedidas pelos deuses à vida dos
homens por eles agraciados. SARAIVA, F. R. dos Santos. Dicionário Latino – Português: Etimológico, Prosódico, Histórico, Geográfico, Mitológico, Biográfico, etc. Rio
de Janeiro: Livraria Garnier, 2006, p. 478;
19 Infortúnio, desgraça, infelicidade que são fornecidas pelas divindades para os
sujeitos que rompem com a pax deorum, por possuírem ações consideradas como
ruins e que se configuram como ímpios. Ibidem, p. 602;
20 BRANDÃO, José Luis Lopes. Suetônio e os Césares – Teatro e Moralidade. Ed.
CECH: Coimbra, 2009, p.15-28; DE VERGUER, Antonio Ramirez. Introduction. In: SUETONIO. Vida de los Doce Cesares. Trad.: Rosa Maria Cubas. Madrid: Editorial Gredos,
1992, p.20-4; EDWARDS, Catherine. Introduction. In: SUETONIUS. Lives of the Caesars. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. VII-XXX.
21 GLARE, P.G. W. Oxford Latin Dictionary. Oxford: Claredon Press, 1968-1982,
p.64; HORBLOWER, S.; SPAWFORTH, A. The Oxford Classical Dictionary. Oxford: OxVolume 2
235
pontuamos que a aemulatio pode ser entendida como uma emulação,
bem como um esforço de forma contínua, cuja finalidade seria igualar
um sujeito com outro ser ou alguma coisa. Com isso, à medida que
Suetônio argumenta sobre as características do governo augustano e
a personalidade virtuosa do princeps, com uma evidente euforização,
esse escrito promove uma nítida emulação a qual os principes contemporâneos e posteriores deveriam igualar-se e até mesmo superar.
Nathália Frazão José22 ressalta que a construção suetoniana
de uma “imagem augustana”, como o defensor de Roma, ratificava o
sistema político do Principado Romano, no qual o princeps Adriano era
o governante e um dos patronos23. Mediante leituras sobre Georges
Balandier24, notamos que por meio da literatura é possível efetuar,
em muitos casos, jogos políticos sobre figuras de destaque, com a
intencionalidade de edificar e consolidar os mais diversos regimes ao
longo da história. Em nosso caso, o que percebemos historicamente é
a formulação de uma densa rede discursiva, a qual se torna ao mesmo
tempo sutil e poderosa, por promover um conjunto de interconexões
entre o “passado de Augusto” e o “presente de Adriano”25. Catherine Edwards26 ressalta que a forma e o estilo de escrita de Suetônio
apenas obtiveram êxito devido ao contexto histórico favorável às atividades literárias em prol da dinastia antonina. Assim, o autor, no começo de seus escritos da Vida do Divino Augusto27, nos revela o modo
ford University Press, 1996; LEWIS, Charlton T.; SHORT, Charles. A Latin Dictionary.
Oxford: Clarendon Press, 1958, p.55.
22 JOSÉ, Natália Frazão. A construção da imagem do imperador Augusto nas obras
de Veléio Patérculo, Plutarco e Suetônio. Dissertação de Mestrado em História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011,p. 64-7.
23 Protetor ou defensor de outro cidadão. SARAIVA, F. R. dos Santos. Dicionário
Latino – Português: Etimológico, Prosódico, Histórico, Geográfico, Mitológico, Biográfico, etc. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2006, p. 854;
24 BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: Ed. UnB, 1982, p.64-5.
25 CIZEK, Eugen. Structures et idéologie dans << Les vie des douze Césars>> de
Suétone. Paris: Les Belles Lettres, 1977, p. 121-124; 181-189.
26 EDWARDS, Catherine. Introduction. In: SUETONIUS. Lives of the Caesars. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. XIX-XX.
27 Sobre a obra de Suetônio que foi a base de nosso estudo, vide: SUETÔNIO. Vida
do Divino Augusto. Tradução: Matheus Trevizam, Paulo Sérgio Vasconcellos, Antônio
Martinez Rezende. Belo Horizonte – Mg: Ed. UFMG, 2007.
236 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
como operacionalizou esse livro: “Exposto essa espécie de resumo de
sua vida, tratarei de suas partes isoladas e não cronologicamente, por
itens, para que possam ser mais distintamente enunciadas e conhecidas” (Vida do Divino Augusto, IX). Com esse intuito, Suetônio demonstra o seu objetivo de fazer conhecer os mais diversos aspectos que
integraram a vida de Augusto.
Contudo, aqui nos interessa analisar como Suetônio construiu
a figura de Augusto, especificamente. Assim, convergimos com Raoul
Girardet, por esse último destacar que um mito político é composto de
homens, os quais se encontravam inseridos em certo espaço geográfico e em certa fase do tempo. Para Girardet, tais homens perpassaram
por construções discursivas sobre a sua trajetória política; em muitos
casos, conferindo-lhes vinculações com a esfera do sagrado. Quanto
mais um mito político ganha amplitude “[...] mais ele se estende por
um largo espaço cronológico e se prolonga na memória coletiva, mais
se deve esperar, aliás, ver os detalhes biográficos, as características físicas ganhar importância28”. Afinal, os discursos com conotações míticas são portadores de diversos significados, como Roland Barthes29
ressaltava em seus escritos. Ponto esse que se torna pertinente para a
análise sobre as representações de Otávio Augusto.
Em Balandier30, notamos que os mitos políticos são reveladores do contexto social em que são produzidos. Tendo em vista que
estes discursos atuam como mensagens formuladas por meio de uma
linguagem, sendo esta dotada de intencionalidade e intrinsecamente
relacionada a um sujeito ou grupo social. Nessa perspectiva, um discurso está atrelado a diversos interesses pessoais, de tal maneira que
a ação discursiva não deve ser pensada de forma simplista, devido à
mensagem contida em seu conteúdo31. Precisamente, essa visão pode
ser materializada em Suetônio, pois é possível notarmos características de Augusto que são reforçadas através dos mais singelos gestos,
assim como expressões corporais que são evidenciadas para exaltar
sua imagem e construí-la como algo poderoso.
28 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo. Companhia das letras.
1987, p. 81-2.
29 BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2007, p.219.
30 BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: Ed. UnB, 1982, p.64-5.
31 GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979, p. 125-30.
Volume 2
237
Nos escritos suetonianos vemos, por exemplo, as descrições
de atributos políticos que eram vitais para Roma. Destacamos, sobretudo, o ponto da virilidade romana – por ser um quesito fundamental
em um meio social falocrático. Ademais, podemos acrescentar o fulgor
divino em suas expressões, como vemos a seguir:
Desfrutou de rara beleza e foi bastante atraente ao longo de
toda sua vida. Contudo, prescindiu de qualquer adorno e a
tal ponto era descuidado com os cabelos que se prestava às
pressas e ao mesmo tempo aos cuidados de vários barbeiros,
e raspava ou aparava a barba enquanto lia ou mesmo escrevia algo. Tinha as feições tão tranquilas e serenas quando falava ou se calava, que um dos nobres gauleses declarou aos
companheiros ter sido de tal modo inibido e abalado por sua
presença que, ao ter-se aproximado dele a pretexto de conversar, não o lançou de um precipício durante a travessia dos
Alpes como determinara fazer. Tinha os olhos claros e brilhantes: chegava mesmo a desejar que se julgasse haver neles uma espécie de força divina, e alegrava-se caso, a alguém
que o olhasse mais fixamente, fizesse baixar o rosto como
que diante do brilho do sol. Mas durante a velhice, enxergou menos com o olho esquerdo. Seus dentes eram espaçados, pequenos e desiguais; os cabelos, levemente anelados
e alourados; as sobrancelhas unidas; as orelhas, de tamanho
médio; seu nariz, mais saliente no alto e menos embaixo; sua
tez era intermediária entre morena e alva; sua estatura, baixa; (Vida do Divino Augusto, LXXXIX);
Tomando como base os escritos de Jean-Paul Thuillier32, evidenciamos que o belo homem em Roma não era aquele detentor de
expressões efeminadas. Para o autor, os traços másculos, o preparo
físico e a postura para se expressar eram elementos que integravam a
concepção de beleza e de virilidade masculina, as quais eram inerentes ao adulescens33 da aristocracia romana. Tais atributos denotavam
32 THUILLIER, Jean-Paul. Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus. In: VIGARELLO,
Georges. História da Virilidade. 1- A invenção da virilidade da Antiguidade às Luzes.
Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2012, p.71-124.
33 Fase que se iniciava após o ritual do tirocinium fori (entre os 14 e 17 anos), um
novo estágio iniciava-se para o agora cidadão, a adulescentia romana, que se estendia até os vinte e sete anos. Esse estágio é vital não somente para o aprendizado da
238 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
também que o jovem estava apto para as investidas no campo da guerra. Marco Túlio Cícero relaciona a beleza com a dignitas34 de um cidadão romano: “[...] a dignidade do aspecto físico deve ser salvaguardada pela qualidade da cor e esta cor pelos exercícios do corpo[...]35”.
Logo, pelo preparo físico do corpo e pela coloração da pele refletindo a
exposição ao sol em atividades atléticas, os uiri Romani eram construídos como modelos de beleza, em detrimento do que era considerado
como “não masculino”. O efeminado era aquele sujeito de coloração
alva, corpo delicado e incapaz para a atividade militar, com a voz fina e
sem postura para o exercício da oratória. Suetônio deixa transparecer
que Augusto era um modelo de beleza masculina entre os romanos da
época por deter todos os elementos inerentes ao uir bonus.
Um ponto que devemos salientar reside nas bases que Suetônio provavelmente utilizou-se para a construção de seus discurso sobre o princeps Augusto, tão distante espacialmente dele. De imediato,
ressaltamos que o referido biógrafo possuía acesso às fontes para sua
pesquisa e escrita, devido ele ter sido funcionário da biblioteca imperial
e assessor de correspondências de Trajano e Adriano até sua demissão
em 121/2 E.C. Ainda assim, é um fato que grande parte da Vida de Augusto é feita sem identificações diretas desses documentos, um ponto
que, para Eugen Cizek e David Wardle36, demonstra o próprio peso que
retórica e da oratória, mas também para execução dos discursos pelos rapazes que
integravam a aristocracia romana. Logo, um cidadão ativo necessitava expressar-se e
portar-se de forma marcante na vida pública, pois lhe caberia, no futuro, a ocupação,
no cursus honorum das altas magistraturas, culminando com a obtenção do acesso
ao Senado. Ver: CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. O forum romanum e a formação
social do vir bonus: O caso de Caio Otávio. Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 4, p. 138-155, 2014.
34 Segundo Maria Helena da Rocha Pereira, a dignitas se aproxima da noção romana de honor. Tendo em vista que as duas concepções morais romanas se vinculam ao
cenário político e público. Ao relacionar a visão de Pereira com os escritos de Marco
Túlio Cícero, em Cartas aos Amigos (IV, 14.1) e Da Invenção (II, 166), compreendemos
a dignitas como o prestígio político, proeminência e mérito que um cidadão poderia
alcançar em autoridade e respeito, no cursus honorum sobre os demais. PEREIRA,
Maria Helena da Rocha. Estudos da História da Cultura Clássica. Volume II – Cultura
Romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 350-381.
35 Vide: Marco Túlio Cícero, Dos Deveres, I, 36,130.
36 CIZEK, Eugen. Structures et idéologie dans << Les vie des douze Césars>> de
Suétone. Paris: Les Belles Lettres, 1977, p. 44-48; WARDLE, David. Introduction. In: SUETONIUS. Life of Augustus - VITA DIVI AUGUSTI. Translated with Introduction and HisVolume 2
239
os anais detinham na produção de Suetônio. Contudo, podemos afirmar
que ele não se limitou a esse único tipo de fonte de dados. Desse modo,
através de uma leitura da fonte, percebemos que Suetônio também cita
outro conjunto de informações da época do princeps Augusto, as quais
também poderiam ser oriundas de histórias orais, escritas, construções
e inscrições que eram anteriores a ele. Tristan Power argumenta que
entre essas fontes operacionalizadas por Suetônio, as Res Gestae Diui
Augusti exerceram uma forte influência em sua forma e estilo de representar os feitos do princeps37. Ademais, no caso da literatura latina,
David Wardle aponta que a Vida dos Doze Césares revela um fascínio de
Suetônio por leituras oriundas do período da República e o começo do
Principado de Roma. Alguns desses autores, no que tange à Vida do Divino Augusto, são: Cássio de Parma (IV), Aquílio Níger (XI), Júlio Saturnino (XVII), Valério Messala (LXXIV), Cornélio Nepos (LXXVII), Júlio Maratos (LXXIX;XCIV), Asclepíades de Mendes (XCIV) e C. Druso (XCIV), bem
como uma menção de Cremúcio Cordo (XXXV) Também, cabe ressaltar
que, no campo da produção literária escrita e da cultura material, há
um grande problema para localizarmos alguns desses materiais, haja
visto que muitos deles não sobreviveram ao tempo e com isso gerando
dificuldades para confrontarmos certas informações.
Dos autores que Suetônio mobilizou em sua obra dois deles
nos chamam atenção pela descrição que fazem de prodígios e manifestações do plano sagrado em relação a Augusto. São eles Asclepíades de Mendes e Júlio Maratos, os quais não temos muitas evidências
históricas. No que tange a Asclepíades, sabemos que este foi autor das
Theologoumena, os quais são considerados trabalhos de cunho religioso. O autor seria um egípcio, que possuía, de acordo com o Suda38
(Ἡράϊσκος), um profundo conhecimento da teologia egípcia, compondo hinos aos seus deuses nativos. De acordo com William Smith e David Wardle39, parece haver pouca dúvida de que este Asclepíades é o
torical Commentary: D. Wardle. Oxford – UK: Oxford University Press, 2014,p. 18-28.
37 POWER, Tristan. Introduction: Originality of Suetonius. In:_____;GIBSON, Roy.
Suetonius the biographer. Oxford – UK: Oxford University Press, 2014, p.1-20.
38 Para cotejamento de dados veja a entrada Ἡράϊσκος do Suda Online, disponível em: http://www.stoa.org/sol-bin/search.pl?search_method=QUERY&login=guest&enlogin=guest&page_num=1&user_list=LIST&searchstr=heraiskos&field=any&num_per_page=25&db=REAL Acessado em: 24/01/2016.
39 Vide maiores informações, no verbete Asclepíades disponível em:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999
240 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
mesmo citado em Suetônio (Vida do Divino Augusto, XCIV). Outra convergência entre Smith e Wardle é a de Asclepíades ser contemporâneo
de Augusto e assim relatando algumas questões que envolviam a gestação do princeps. Indicamos que Suetônio pode chamar Asclepíades de
Mendes como referência à cidade de origem do escritor no Egito.
Segundo o historiador Christopher Smith40, Júlio Maratos
foi um liberto da Domus Augusta. Além disso, ele mantinha possíveis
contatos com Augusto, pois seria assistente do próprio princeps, como
podemos observar em estudos de fragmentos contidos no livro The
Fragments of the Roman Historians (2013). Podemos tecer uma suposição de que Júlio Maratos foi um uerna, ou seja, um escravo criado na
casa imperial, e que possuía uma inserção com a família do princeps41.
Na perspectiva de Smith, os escritos de Maratos foram elaborados em
período posterior à morte de Augusto, como uma forma de preservação da memória, assim retratando o nascimento e a aparência do seu
antigo senhor.
Em linhas gerais, percebemos que Suetônio se fundamentou
na maior parte de relatos possíveis para a construção de sua biografia
de Otávio Augusto. Entre esses antigos autores clássicos, Júlio Maratos
e Asclepíades de Mendes foram fundamentais para a construção do
nascimento divino de Augusto, como veremos a seguir.
III. Suetônio e o nascimento mítico de Otávio Augusto
Ao nos debruçarmos sobre as práticas religiosas e os discursos
míticos elaborados por Suetônio, foi possível averiguar uma pluralida42
.04.0104%3Aalphabetic+letter%3DA%3Aentry+group%3D48%3Aentry%3Dasclepiades-bio-7 Acessado em: 24/01/2016.
40 SMITH, Christopher. 65 – Julius Marathus. In: CORNELL, T. J. The Fragments of
the Roman Historians. Vol.:1. Oxford-UK: Oxford University Press, 2013, p.484.
41 ALFOLDY, Géza. A História Social de Roma. Lisboa – Port.: Editora Presença,
1989, p.27; RAWSON, Beryl. Children and Childhood in Roman Italy. Oxford – UK:
Oxford University Press, 2003, p.255-256.
42 Convergimos com Paul Cartledge e Luis Filipe Bantim de Assumpção ao concebermos o discurso mítico como um instrumento vital para se ratificar e justificar
a genealogia de um grupo, sendo esta uma maneira de garantir a autoridade e o
Volume 2
241
de de menções instigantes que se encontram expostas na Vida do Divino
Augusto. Segundo Moisés Antiqueira43, a pietas de Augusto pode ser
concebida como uma virtude, concretizada na devoção de um cidadão
para com os deuses, a família e aos cultos ancestrais em ações que assegurassem a pax deorum (paz com os deuses). No caso dos magistrados
e sacerdotes, a prática dos rituais deve ser exaltada de forma intensa e
constante, afinal, eles são os representantes do elo entre os sujeitos, a
família, a comunidade, Roma e os deuses. Ressaltamos que em muitos
casos os dirigentes, a fim de se manterem na hierarquia social romana,
valiam-se dos desígnios de ordem divina para assegurarem a sua posição na sociedade, como o mítico rei sabino Numa Pompílio e o princeps Augusto. Assim, na historicidade política romana, os governantes
e magistrados também eram responsáveis por garantirem a segurança
religiosa da coletividade junto aos deuses. Endossamos a assertiva com
uma citação de Suetônio, na qual o autor evidencia que Augusto: “Edificou muitas obras públicas, dentre as quais as principais são o fórum com
o templo de Marte Vingador, o templo de Apolo, no Palatino e o templo
de Júpiter Tronante no Capitólio” (Vida do Divino Augusto, XXIX). Ainda
no âmbito templário vemos a descrição de que o princeps:
Refez velhos templos desmoronados por sua antiguidade ou
destruídos por algum incêndio e ornou-os e a outros com doações riquíssimas, chegando a empregar dezesseis mil libras
(medida correspondente em peso a 327 gramas44) de ouro,
gemas e pérolas no valor de cinqüenta milhões de sestércios no
santuário de Júpiter Capitolino (Vida do Divino Augusto, XXX).
lugar que os sujeitos ocupavam em uma sociedade. Nesse contexto, o mito é capaz
de reforçar a identidade existente entre os membros de um dado segmento social,
justificando práticas, ações, valores e posições políticas. Ver: CARTLEDGE, Paul. The
Greeks – A Portrait of Self and Others. Oxford; New York: Oxford University Press,
1993.p.23-6. ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim. Discurso e Representação sobre as práticas rituais dos esparciatas e dos seus basileus na Lacedemônia, do século V a.C..
Dissertação apresentada, como requisito para a obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014, p.109-11.
43 ANTIQUEIRA, Moisés. O escudo da virtude e a ideologia do principado de augustano. Revista de História e Estudos Culturais. Jul, Ago, Set – 2008. Vol 5, Ano V,
2003, p.1-12.
44 Valor que corresponde a uma libra.
242 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Dessa forma, a constante pietas augustana era um ponto que
integrava o programa político do princeps, por legitimar a sua boa gestão diante dos demais cidadãos. As construções templárias transformavam-se em um testemunho concreto de sua busca da pax deorum
para Roma. As ações religiosas augustanas, como o responsável pela
religio45 romana, também foram ressaltadas pelo autor. Suetônio denota que após um amplo período de descaso dos magistrados anteriores a Augusto, este, almejando restabelecer a ordem social e religiosa,
procurou restaurar: “[...] algumas antigas cerimônias paulatinamente
abolidas, como o augúrio da saúde, o flaminado de Júpiter, a festividade
lupercal (festividade realizada numa gruta no Palatino), os jogos seculares e compitais” (Vida do Divino Augusto, XXXI). Suetônio transparece
que Augusto conseguiu fundir o período de estabilidade social romana
com um período de paz com os deuses, que foi instituído a partir do
princeps como a interseção entre as esferas sagrada e profana.
Esses apontamentos religiosos expressam a preocupação de
Suetônio em relatar o valor da defesa augustana do mos maiorum46
junto às novas instituições políticas que emergiam com o principado.
Segundo Christoph Hesse47, Augusto deteve como sua principal base
de sustentação no poder o uso das práticas religiosas. Convergindo
com Hesse, frisamos que Augusto se valeu de um amplo conjunto de
táticas para o controle religioso de Roma, integrando-se assim aos colégios sacerdotais e promovendo antigas cerimônias para os deuses
que estavam silenciadas. O poder augustano acabou por ressignificar
os símbolos romanos para fortalecer a sua legitimidade, sobretudo
através de diversas formas de discurso e de representações na me45 Terminologia que consideramos polissêmica em Roma, para se tratar dos cultos, das práticas e cerimônias religiosas. SARAIVA, F. R. dos Santos. Dicionário Latino
– Português: Etimológico, Prosódico, Histórico, Geográfico, Mitológico, Biográfico,
etc. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2006, p. 1018.
46 O mos maiorum pode ser compreendido como o conjunto de costumes e valores tradicionais, passados pelos ancestrais, que deveriam ser preservados para a manutenção da estabilidade social e identificação do ser romano. BUSTAMANTE, Regina
M. da Cunha. Práticas Culturais no Império Romano: Entre Unidade e a Diversidade.
In: SILVA, Gilvan Ventura da & MENDES, Norma Musco (org.) Repensando o Império
Romano – Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural. Rio de Janeiro: Mauad:
Vitória, Es:EDUFES, 2006, p.112.
47 HESSE, Christoph. Religio im ersten Prinzipat als Instrument Augusteischer
Machtpolitik. München: Grin Verlag, 2011.
Volume 2
243
mória social romana como, por exemplo, as moedas, os templos, as
esculturas e a literatura.
Suetônio, valendo-se dos indícios documentais, demonstra
que o sucesso de Augusto em promover tais modificações político-religiosas em Roma vinculava-se ao próprio nascimento do princeps. O
teórico Georges Balandier48 argumenta que muitos sujeitos legitimavam seu poder através de processos relacionados às circunstâncias e
aos acontecimentos que se fizeram presentes na sua origem. Isso se
deve ao uso de uma ampla gama de imagens, símbolos e modos de
agir que possibilitam uma construção e reconstrução idealizada de um
personagem, a serviço dos interesses do poder vigente. Essas ações
geram e asseguram ao detentor do poder uma herança em sua trajetória política. Tal proposta pode ser endossada a partir da menção
de Suetônio: “[...] por termos tocado nesses assuntos, não há por que
calar os incidentes que lhe sobrevieram antes do nascimento, nesse
mesmo dia ou mais tarde, pelos quais se poderia esperar ou perceber
sua grandeza futura e sua contínua ventura” (Vida do Divino Augusto, XCIV). Imersos nessa ótica, o discurso mítico nos fornece o traçado
de uma inevitabilidade para o sucesso de nosso personagem Augusto,
transformando-o em um mito político para Roma.
O autor prossegue pontuando que:
Há muito, tendo sido atingida uma parte do muro de Velitras por um raio, foi predito que um dia um cidadão do lugar haveria de tomar o poder; confiando nesse augúrio, os
veliternos lutaram desde essa ocasião e em seguida, com
muita frequência e quase até sua destruição, contra o povo
romano; mais tarde, finalmente se manifestou por indícios
que aquele presságio profetizava o poder de Augusto (Vida
do Divino Augusto, XCIV).
Essas descrições revelam e/ou simbolizam questões religiosas
que confiavam a Augusto a função de ordenador do caos social que
Roma vivenciava no século I A.E.C.49. Nessa perspectiva, entendemos
48 BALANDIER, Georges. O poder em Cena. Brasília: Ed. UnB, 1982, p.07.
49 Sobre o tema, recomendamos as produções de: STEEL, Catherine. The End
of the Roman Republic – 146 to 44 BC. Conquest and Crisis. Edinbugh: Edinburgh
University Press, 2013; RAAFLAUB, Kurt A.; TOHER, Mark; BOWERSOCK, G. W. (org).
o raio como um dos atributos do rei dos deuses romanos, Júpiter, que
demarcaria em Velitras o local de nascimento do homem que seria
capaz de organizar e governar “toda a Terra” através do desígnio dos
deuses. Para ampliar a ancestralidade divina de Augusto, Suetônio ressalta que havia discursos míticos em Roma que atribuíram ao princeps
uma linhagem olímpica.
Dessa maneira, o biógrafo, empregando recursos documentais de sua época, ressalta que:
Segundo Júlio Márato, poucos meses antes de seu nascimento deu-se às claras um prodígio em Roma, pelo qual se inferia
que a natureza estava prestes a dar à luz o rei do povo romano. [...] O Senado, atemorizado, determinou que nenhum
menino nascido naquele ano fosse criado; os que tinham
esposas grávidas, pois todos o esperavam para si, cuidaram
para que esse decreto senatorial não fosse apresentado ao
templo de Saturno50 (Vida do Divino Augusto, XCIV).
Notamos uma tensão nesse discurso no que tange ao nascimento daquele que concentraria todas as formas de poder em Roma.
Ao cotejarmos a literatura romana de Marco Túlio Cícero (Tratado da
República), percebemos críticas ao modelo dos governos monárquicos. Segundo Marco Antônio C. Collares51, tal obra expressa a necesBetween Republic and Empire: Interpretations of Augustus and His Principate. California - USA: University of California Press, 1993; BRUNT, P.A. The Fall of The Roman
Republic and Related Essays. Oxford: Clarendon Press, 1988; _____. Social Conflicts
in the Roman Republic. New York: The Norton Library, 1971; WISEMAN, T.P. Roman
Republic – Political Life. 90 BC-AD 69. Exeter: University of Exter Press,1985; BEARD,
Mary and CRAWFORD, Michael. Rome in the Late Republic: Problems and Interpretations. London: Duckworth, 1985.
50 Segundo Eric Orlin e Jhon Stamper, as evidências arqueológicas apontam que
o templo de Saturno teria sido construído em Roma, entre 501 e 493 A.E.C. O mesmo ocupava uma área importante do fórum e tinha nítida associação com a história
da República, por seu processo de consolidação como edifício religioso. ORLIN, Eric.
Temples, religion, and politics in the Roman Republic. Boston - USA: Brill Academic
Publischers, 2002, p.22,199; STAMPER, John. The Architecture of Roman Temples:
The Republic to the Middle Empire. Cambridge – UK: Cambridge University Press,
2005, p.36-37.
51 COLLARES, Marco Antônio Correa. As representações da sociedade romana
em Cícero e Tito Lívio. Revista história e-história – UNICAMP, 2013. Acessado em
27/10/2015 e disponível em: http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?Volume 2
245
sidade de se produzir “[...] exemplos de harmonia e ordem em meio
aos conflitos sócio-políticos de seus respectivos contextos. Com isso,
vinculam-se à defesa de um ideal de concórdia enquanto valor a ser
constantemente alcançado pelos romanos frente aos riscos de desagregação da República”. Isto é, a concórdia do sistema republicano deveria ser promovida como um mecanismo de segurança para a libertas
dos cidadãos. Vemos o temor nos escritos de Cícero de uma possível
ruptura da concordia, pois o grande orador romano demonstra que
numa monarquia os cidadãos se encontram à margem das tomadas de
decisões sobre os interesses públicos (Cícero, Tratado da República, I.
42-43). Desde o final da monarquia etrusca, os romanos nutriam em
seu cotidiano uma acentuada repulsa ao modelo de regime monárquico, por esse ser compreendido como despótico e arbitrário às coisas
públicas. Sob esse regime, os cidadãos se encontrariam submetidos
aos arbítrios e desejos de um único homem, ou seja, a concordia devia
ser uma meta para a República, pois era o elemento que mantinha:
A unidade de todos, da plebe, tribunos e senadores, é possível e a sua ausência acarreta perigos à República. Pois bem,
percebe-se que esta concordia não existe no momento e
sabemos que seu restabelecimento traria mais sabedoria e
felicidade para todos, assegurando a paz, o bem comum e a
estabilidade (Cícero, De República, I. 19).
Desse modo, ao retomarmos o discurso mítico de Suetônio sobre o ano de nascimento de Augusto e cotejarmos com os escritos de
Marco Túlio Cícero, em nossa perspectiva, percebemos um recorrente
embate do Senado contra a possibilidade de emergência de um futuro
governante, quem viesse a romper com as tradições políticas republicanas. Ou melhor, havia uma analogia aos próprios combates vivenciados contra a centralização do poder em Roma, no século I A.E.C.
Prosseguindo em nossa análise do discurso sobre os escritos
de Suetônio, verificamos que:
Nos livros sobre as coisas divinas, de Asclepíades de Mendes, refere-se que Átia, tendo-se dirigido no meio da noite
ao templo consagrado a Apolo e feito baixar sua liteira, cochitb=professores&id=158
246 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
lara enquanto as outras matronas dormiam (Vida do Divino
Augusto, XCIV).
De imediato o discurso elaborado pelo biógrafo se torna instigante no que tange às questões religiosas, uma vez que verificamos
a concepção de um grupo romano, o qual Suetônio integrava, que
compreendia os templos por sua conotação sagrada, a função de local
de refúgio e consequentemente proteção para os cidadãos. Tanto que
teria sido nesse espaço sagrado dedicado a Apolo que as matronas da
cidade de Velitras se refugiaram durante a gestação dos seus filhos,
tendo em vista que nos templos não poderia haver chances para a profanação e/ou derramamento de sangue52, elementos esses considerados indignos e perigosos para os cidadãos romanos contra os deuses.
Essas medidas eram passíveis, até mesmo, de acusação pelo crime de
impiedade, uma vez que essas ações violavam a pax deorum e conspurcavam as determinações dos deuses para com os homens. Nesse
viés, os templos configuram-se como locais onde a conexão entre o
humano e o divino era estabelecida, através de uma variedade de práticas rituais e de oferendas votivas.
Prosseguindo com o discurso mítico de Suetônio, outro elemento nos chama atenção sobre o ato de fecundação de Augusto. O
autor argumenta que: “[...] de repente, uma serpente arrastou-se sorrateiramente para junto dela, tendo-se afastado pouco depois, e ela
despertou e se purificou como se tivesse tido contato com o marido”
(Vida do Divino Augusto, XCIV). Vemos nesse fragmento uma menção
ao momento de concepção de Augusto por Átia e Apolo. Mediante
leituras que efetuamos sobre o retórico Cláudio Eliano53, percebemos que as serpentes têm uma longa historicidade junto ao âmbito
religioso de Roma. Afinal, elas já integravam os cultos religiosos desde a fundação da cidade de Lavínio por Eneias (História dos Animais,
XI, 16). Eliano também argumenta que a serpente é um animal de52 BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. Bellum Iustum e a Revolta de Tacfarinas.
In: CARVALHO, Maria Margarida de. [et al.]. História Militar do Mundo Antigo – Guerras e Representações. Vol. 2. São Paulo: Annablume; Fapesp; Campinas: UNICAMP,
2012, p.210.
53 CLAUDIO ELIANO. Historia de los animales: Libros IX-XVI. Trad.: José María D.
Lopez. Madrid: Editorial Gredos, 1984.
Volume 2
247
dicado a Apolo, que para além dos presságios sobre o futuro, também representa a cura de enfermidades por essa divindade (História
dos Animais, XI, 2). Tal vinculação do réptil com Apolo possivelmente
reside nos discursos míticos sobre a fundação do oráculo de Delfos,
bem como na trajetória do seu próprio nascimento , marcado pela
perseguição dos monstros enviados por Hera contra a deusa Leto (Hinos Homéricos Apolo, 3. v. 300-370)54. Logo, cotejando os escritos
de Cláudio Eliano, os Hinos Homéricos para Apolo e o discurso mítico
forjado por Suetônio, conjeturamos que a serpente foi um recurso
linguístico utilizado para explicar a cópula de Átia com o “deus arqueiro”. Suetônio também busca construir “ares” de uma relação legítima
entre os amantes, quando o mesmo menciona que, após tal ato, Átia
fez os ritos de purificação, como se tivesse contraído intimidades com
seu próprio marido (Caio Otávio).
Suetônio demarca que após o ato da concepção, um sinal
se fez presente no corpo de Átia, o que pode denotar a marca da
consumação e proteção do futuro governante romano. A assertiva
pode ser vista no seguinte trecho: “Imediatamente, fez no corpo dela
um sinal semelhante a uma serpente pintada que jamais pôde ser apagado, de modo que, daí em diante e para sempre, haveria de abster-se
dos banhos públicos” (Vida do Divino Augusto, XCIV). Provavelmente
o resguardo dos banhos está ligado ao sigilo da paternidade divina do
futuro Caio Otávio Turino. Em decorrência dos cuidados da gens Otávia, Suetônio descreve que: “[...] tendo Augusto nascido nove meses
depois, foi, por isso, considerado filho de Apolo” (Vida do Divino Augusto, XCIV). Tal descrição evidencia uma intencionalidade do autor
em associar as relações entre Augusto e Apolo, desde o momento de
seu nascimento em 63 A.E.C. Sobre essa questão, não temos evidências históricas além dos autores posteriores, que escreveram sobre o
mesmo episódio. Nosso biógrafo pontua que: “A mesma Átia, antes de
dar à luz, sonhou que suas entranhas tinham sido levantadas até os
astros e espalhadas por todo o âmbito das terras e do céu. Otávio [pai]
sonhou ainda que o fulgor do sol saíra do útero de Átia” (Vida do Divino Augusto, XCIV). Nesse excerto, interpretamos que o momento do
54 HINOS HOMÉRICOS. Trad.(et. al.): Wilson Alves Ribeiro Junior. São Paulo: Ed.
UNESP, 2010.
248 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
parto está repleto de ações extraordinárias, o que legitima esse nascimento como de um ser divino que viria a ser o intermediário entre
os deuses e os homens. Um filho legítimo de Apolo foi construído pelo
discurso mítico de Suetônio, legitimando assim a função do optimus
princeps como verdadeiro guardião e protetor dos cidadãos romanos.
Entretanto, quais as atribuições de Apolo para tal conexão
com a paternidade de Augusto? Fritz Graf55 pontua que devemos expandir nossas perspectivas sobre as matrizes culturais de Apolo. Essa
divindade era o resultado de múltiplos sincretismos culturais, um fator
que inviabiliza, em certa medida, limitarmos as qualidades e atributos
desta divindade, assim como estipularmos a região da Hélade como
única área de culto. Luis Filipe Bantim de Assumpção56 destaca que
esse “multiculturalismo” vinculado ao deus Apolo foi ratificado à medida que o culto apolíneo estendeu-se pelas sociedades mediterrâneas.
Dessa maneira, concebemos Apolo como uma divindade mediterrânea
tanto pela centralidade que seu oráculo desempenhava no imaginário
social da Antiguidade, quanto por sua função de legitimar linhagens de
governantes, assim como por ratificar as prerrogativas político-religiosas dos mandatários de Esparta, Atenas e na própria Roma57.
No que tange à associação de Augusto com Apolo em Roma,
pontuamos que ela foi tão profunda a ponto de se falar em uma política apolínea augustana, na ótica de Henriette Kunz58. Dessa maneira, Augusto promoveu uma massiva produção de representações que
atrelavam a sua figura com a de um descendente olímpico, tendo a sua
soberania assegurada pelos deuses, como vemos nos estudos de Paul
Zanker59. No ano de 28 A.E.C., por exemplo, Augusto construiu o tem55 GRAF, Fritz. Apollo. London; New York: Routledge, 2009.p.104.
56 ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim. Discurso e Representação sobre as práticas
rituais dos esparciatas e dos seus basileus na Lacedemônia, do século V a.C.. Dissertação apresentada, como requisito para a obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2014, p.155.
57 Idem; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. A estrutura de atitudes e referências
do imperialismo romano em Sagunto (II a.C. – I d.C.). Rio de Janeiro: UERJ/NEA, 2014.
58 KUNZ, Henriette. Die Religionspolitik Des Augustus. München: Grin Verlag,
2006, p.14.
59 ZANKER, Paul. The Power of Images in the Age of Augustus. Michigan – USA:
The University of Michigan, 1988.
Volume 2
249
plo de Apolo, no Palatino, colocando-se como a interconexão entre os
mortais e os desígnios do deus. Elemento novamente ratificado quando, em 12 A.E.C., Augusto depositou os livros sibilinos em seu templo
de Apolo e se configurou como aquele que detinha o monopólio para
interpretá-los. Tal menção pode ser averiguada nesse trecho: “[...] apenas conservou os Sibilinos, tendo feito mesmo esses passar por uma seleção. Ele os encerrou em dois armários dourados sob a base da estátua
de Apolo Palatino” (Vida do Divino Augusto, XXXI).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, a emergência da produção biográfica em Roma relaciona-se com um contexto histórico marcado pelas lutas políticas,
repletas de personagens fortes e concorrentes, como vemos desde
o tempo de Cornélio Nepos (I A.E.C.). Desse modo, convergimos com
Catharine Edwards e José L. Brandão quanto à relevância que os estudos biográficos, como de Suetônio, têm sobre o imaginário em torno
das práticas sociais, políticas e culturais dos governantes ou grupo de
sujeitos, na época imperial. Nessa perspectiva, a biografia augustana
elaborada por Suetônio evidencia fatos de como o princeps assumiu
a centralidade no pensamento político romano, ao passo em que foi
considerado como um modelo de governante.
Vale ressaltar que entre as virtudes augustanas para o governo, a sua constante pietas para a preservação da religio romana
e, assim, a obtenção da pax deorum foram chaves centrais da política
de Augusto, como evidenciado na obra de Suetônio. Com isso, a construção discursiva para a legitimação política augustana foi a linhagem
olímpica, como filho de Apolo, um tipo de discurso e representação, os
quais eram pertinentes para o homem que almejou consagrar-se como
o ordenador do mundo frente ao momento de caos que foi vivenciado
em Roma, no século I A.E.C. Logo, ao analisarmos a elaboração desses
discursos míticos, não os vemos como meras narrativas, sem qualquer
conexão com o presente vivenciado por um personagem, pois as
mesmas fornecem bases de consolidação do poder, em muitos casos,
250 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
capazes de transformar – na memória social – um homem em um ser
divino. Em nossa perspectiva tal centralidade objetivava estabelecer
um exemplum de optimus princeps, com o qual se poderia comparar
os demais imperadores.
Volume 2
251
ASPECTOS RELIGIOSOS E CORPORAIS
NAS DEFIXIONES NORTE-AFRICANAS
(SÉC. III-IV)
Natan Henrique Taveira Baptista1
No presente estudo, temos por objetivo compreender a manipulação mágica do corpo atlético do auriga no contexto das relações
de poder que se estabeleceram no cotidiano de duas das maiores cidades norte-africanas. Intentamos analisar, de modo a cumprir nosso objetivo, as questões lúdicas corporais por intermédio dos conflitos entre
aurigas, também chamados de agitatores, e torcedores das factiones
no espaço urbano do circo de Cartago e Hadrumeto através dos discursos mágicos religiosos presentes nas tábuas execratórias ou defixiones.
Sendo assim, para este trabalho, cotejaremos dados de quatro defixiones de nosso conjunto total de dez tábuas execratórias.
***
A natureza da fonte epigráfica selecionada é conhecida, na
literatura luso-brasileira, como tábua execratória ou tábua de esconjuro.2 Ela se inscreve nas denominadas inscrições epigráficas, pois são
registros arcaicos, ora denominados epígrafes (do grego, ἐπιγραφή,
epigraphē: inscrição), gravados em matérias sólidas – tais como pedras, madeira, metais, couro, estanho, terracota ou ossos. As tábuas
1 O autor é mestre pelo Programa de Pós-graduação em História, área de concentração em História Social das Relações Políticas, da Universidade Federal do Espírito
Santo e membro do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano – Seção ES.
Docente do Instituto Federal do Espírito Santo. Contato:
[email protected].
2 Não podemos deixar de citar que a grande quantidade de pesquisas utilizando
as fontes epigráficas deve-se principalmente à publicação dos extensos dezessete
volumes que, reunidos, compõem o Corpus Inscriptionum Latinarum (1847 [vol. 1]
– 2003 [vol. 17]). Estes que ainda hoje continuam sendo reeditados, com novas informações em função das descobertas arqueológicas, pela Berlin-Brandenburgische
Akademie der Wissenschaften.
Volume 2
253
execratórias também são conhecidas, em língua latina, como tabellae
defixionum ou somente defixio(nes) (defixio do verbo defigere: prender ou atar); em grego, como κατάδεσμος, /katadesmós/ (do verbo
κατάδεσ: amarrar ou imobilizar); e ainda, na literatura anglo-saxã,
como curse tablets (tábuas de maldição, em tradução literal do inglês).
Já no idioma germânico, o vocábulo empregado é fluchtafel (tela de
malefício, em tradução literal). As defixiones podem ser conceituadas
como maldições com o objetivo de interferir nas ações ou condições
de pessoas e/ou animais, a fim de obter vantagens, improváveis ou
ilícitas, por meios sobrenaturais, através de agentes espirituais conscientes, sejam eles divinos ou demoníacos.3 Sobre o idioma de escrita
desses textos, verificamos o uso ou do grego ou do chamado latim
vulgar, o que fez com que as defixiones se tornassem a fonte preferencial para o estudo da língua falada na Antiguidade. Suas fórmulas nos
informam sobre as crenças religiosas, as práticas mágicas, a língua, a
educação, a vida pública e demais assuntos privados e, o mais expressivo, sobre a condição social dos litigantes e o que os levava a recorrer
às práticas mágicas. Acrescentamos que os autores das defixiones por
nós analisadas são desconhecidos, provavelmente libertos, escravos,
pequenos comerciantes e também membros de estratos superiores;
e é através da redação das tábuas e das imagens nelas inscritas que
intentamos recuperar a representação que estas personagens sociais
possuíam do corpo atlético masculino dos aurigas nas cidades africanas do Império Romano, pois, em nossa opinião, as defixiones são uma
fonte adequada ao estudo das paixões cotidianas dos romanos, pois
estas “[...] vêm até nós em grande parte não mediadas por filtros externos; ao contrário dos antigos textos literários, elas são desprovidas
das distorções introduzidas por fatores tais como educação, classe social ou status, e gêneros literários e tradições. Acima de tudo, elas são
intensamente pessoais e diretas”.4
3 JEANNERET, Maurice. La langue des tablettes d’exécration latines. Paris: Neuchâtel, 1918, p. 4; SILVA NETO, Serafim da. Três inscrições sobre latim vulgar. Humanitas (Coimbra), n. 2, 1948, p. 70; RIBEIRO, Artur. As tabellae defixionum: características e propósitos. Revista Portuguesa de Arqueologia (Lisboa), v. 9, n. 2, 2006, p. 239.
4 GAGER, John Goodrich. Curse Tablets and Binding Spells from the Ancient
World. New York: Oxford University, 1992, p. v.
254 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
As tábuas execratórias foram utilizadas para múltiplas finalidades. Maurice Jeanneret divide-as, em função de suas motivações principais,5 em quatro grupos: i. amatoriae: fórmulas mágicas envolvendo
situações passionais ou amorosas entre amantes de mesmo sexo ou
não; ii. iudiciariae: imprecação de defesa ou ataque em processos jurídicos; iii. in fures: desejo de vingança em várias situações cotidianas;
e, as trabalhadas no presente estudo, iv. ludicrae: envolvendo ações
lúdicas nos jogos do circus e anfiteatros: os chamados ludi, que levavam os litigantes a amaldiçoarem as facções rivais ou ainda os próprios
gladiadores ou aurigas, ou seja, as nossas defixiones.6 As tabellae defixionum têm sido definidas, de maneira geral, como “placas de chumbo
inscritas, em forma de pequenas chapas, com o objetivo de influenciar,
por meios sobrenaturais, as ações ou condições de pessoas ou animais
contra a sua vontade”.7 As defixiones eram normalmente inscritas em
folhas de metal, principalmente de chumbo, apelando-se a uma divindade ou força sobrenatural, em sua maioria ctônica, para infligir danos
físicos e/ou mentais às vítimas do feitiço. Quase todas elas são direcionadas para criaturas vivas, embora haja alguns exemplares que têm
5 JEANNERET, M., op.cit., p. 5.
6 Para compor o corpus que utilizamos na dissertação selecionamos dez tábuas
execratórias do compêndio elaborado por Auguste Marie Henri Audollent, em 1904,
intitulado Defixonum tabellae: Quotquot innotuerunt tam in Graecis Orientis quam in
totius Occidenti partibus praeter Atticas in ‘Corpore Inscriptionum Atticarum’ editas
(em tradução literal, Tábuas execratórias: todas as que foram encontradas tanto no
Oriente grego como em todas as partes do Ocidente, exceto as provenientes da Ática
publicadas no ‘Corpus Inscriptionum Atticarum’). Esta obra ainda é a maior coleção
de tábuas de esconjuro da atualidade. Nela, existem quarenta e três tábuas referentes aos ludi circenses em Hadrumeto e Cartago, sendo vinte e nove originárias
da primeira e quatorze da segunda. Selecionamos, assim, uma amostragem de mais
ou menos vinte por cento, ou seja, quatro de origem cartaginesa – uma bilíngue
greco-latina (DTAud. 233) e três em língua grega (DTAud. 237; DTAud. 241; DTAud.
242) – e seis de Hadrumeto, sendo cinco em latim (DTAud. 275; DTAud. 278; DTAud.
284; DTAud. 286; DTAud. 289) e uma bilíngue (DTAud. 295). Estas foram escolhidas
pelo fato de, em nossa opinião, representarem melhor o uso do corpo na magia, bem
como nos dão melhores condições de analisar os verbos utilizados pelos litigantes.
Além disso, são mais completas e mais extensas, contendo inclusive uoces mysticae,
charaktêres e imagens como propulsores e potencializadores da ação mágica. Nesse
estudo específico cotejaremos aspectos de somente algumas delas em função do
espaço reduzido e do objetivo aqui proposto.
7 RIBEIRO, A., op.cit., p. 239.
Volume 2
255
como alvo objetos inanimados, como banhos públicos, os portões de
Roma ou a própria Península Itálica.8 Seja como for, todas conjuram
vingança ou empreendem um ataque de natureza preventiva.
As maldições eram, basicamente, compostas da mesma forma. Em termos materiais, assumem a forma de pequenos pedaços irregulares de metal, em sua maioria placas finas de chumbo ou zinco, que
eram rabiscados e em seguida enrolados, dobrados e perfurados por
pregos. A escolha do chumbo apresentava tripla razão simbólica. Em
primeiro lugar, o metal era dedicado a Saturno, o deus-titã hostil aos
homens. No norte da África, acreditava-se que, mediante a associação
de Saturno com o deus autóctone africano Ba’al Hammon, aumentava-se a eficácia da magia.9 Em segundo lugar, a folha de chumbo podia
ser facilmente dobrada ou enrolada (como ocorria frequentemente na
forma de pequeno volume). Por fim, o chumbo era também uma substância que poderia ser facilmente roubada, pois algumas receitas para
defixiones recomendam àqueles que não pudessem comprar chumbo
que o roubassem das tubulações de água das proximidades.10
Devemos ter em mente, também, que a decalagem temporal
pode ter distorcido o registro arqueológico em favor do chumbo. Outras substâncias, como o papiro ou a cera, poderiam ter sido tão populares quanto o metal na elaboração dos feitiços. Outra razão para o uso
recorrente do chumbo se conecta com o simbolismo análogo entre o
metal e a pessoa a amaldiçoar. O chumbo é um metal fosco, sem brilho
e gelado; sua cor, acinzentada, características análogas às da vítima.11
Importa ressaltar, como o faz Arthur Ribeiro, que “[...] enquanto o ouro
e a prata eram geralmente reservados para magias de cura médica ou
amuletos de proteção, o chumbo era o suporte principal das tabellae
defixionum”.12 Verifica-se então a contraposição entre o bem e o mal
até na escolha dos metais.
8 GAGER, J. G. op.cit., p. ix; 21-22; 171-174.
9 TILLEY, Maureen A. Regional varieties of Christianity in the first three centuries:
North Africa. In: MITCHELL, Margaret M.; YOUNG, Frances M. (eds.). The Cambridge
History of Christianity. Vol. I: Origins to Constantine. Cambridge: Cambridge University, 2006, p. 385.
10 GAGER, J. G. op.cit., p. 4.
11 RIBEIRO, A., op.cit., p. 242.
12 Ibid., p. 242.
256 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Segundo especialistas como Gager e Faraone,13 as placas execratórias empregam as fórmulas mágicas classificadas como similia similibus, ou seja, um tipo de magia simpática.14 De acordo com Lopéz
Jimeno, as fórmulas mágicas,
Obedecem ao desejo de prejudicar e causar males diversos a
um inimigo, se inserindo, dessa maneira, no contexto da magia negra. Comparado com os famosos Papiros Mágicos, que
se compõem como manual com receitas variadas para todo
tipo de encantamentos e feitiços, as defixiones são a prova
incontestável do exercício das ditas recomendações teóricas
concretamente as que se referem às práticas maléficas.15
Em geral, as defixiones são encontradas dentro de túmulos ou
covas. Porém, já se teve notícia de defixiones descobertas nas paredes
de templos ou no fundo de poços. Já os feitiços com os quais trabalhamos, ou seja, aqueles destinados aos aurigas, eram amiúde enterrados
ou no perímetro do circo ou em necrópoles próximas. Por vezes foram
descobertas defixiones junto com pequenos bonecos (erroneamente
referidos como bonecos de vodu) que também poderiam ser perfurados por pregos. As figuras se assemelhavam ao destinatário do feitiço, trazendo não raro os pés e mãos atados. O uso da figura possuía
um significado simbólico para os autores das tabuinhas, pois visava a
adicionar dor e miséria ao feitiço. Nem todas as maldições incluíam
um nome pessoal, mas, em especial no período romano, as defixiones
costumavam ser preparadas com antecedência por uma categoria pro13 GAGER, J. G. op.cit.; FARAONE, Christopher Athanasious. Ancient Greek Love
Magic. Cambridge: Harvard University, 1999.
14 A Antropologia considera o pensamento mágico desse tipo através da compreensão da causa e efeito psicológico, pois esse tipo de magia baseia-se na crença
metafísica de que semelhante afeta semelhante. Foi a base da maioria das formas de
adivinhação. Foi também a base de práticas como espetar agulhas em figuras representando inimigos, como é executado na associação corpo e boneco na prática vodu.
Magia simpática foi também provavelmente a base de noções como o de karma e
de sincronicidade, assim como comer o coração de um inimigo vencido para obter
seu poder ou comungar para unir o participante à divindade. FARAONE, Christopher
Athanasious; OBBINK, Dirk (Dirs.). Magika Hiera: Ancient Greek Magic and Religion.
Oxford: Oxford University, 1991, p. 5 e ss.
15 LOPÉZ JIMENO, Amor. La finalidad de las tablillas mágicas de maldición (defixiones). Estudios clásicos, t. 39, n. 112, 1997, p. 25.
Volume 2
257
fissional específica, a dos magoi ou mathematikoi (mathematici), com
uma lacuna para inserção dos nomes fornecidos pelos clientes.16 A
existência, sob o Império, de magos profissionais está suficientemente
estudada e demostrada.17
As defixiones conjuravam a vitória de um atleta mediante a
eliminação do oponente e objetivavam interferir no resultado final das
competições. Entendemo-las como um recurso simbólico de transferência de potencialidades de um indivíduo para o outro, evocando-se
a ajuda de entidades sobrenaturais conscientes, a quem esses feitiços
eram dirigidos. Como dito, o ponto almejado da magia era o corpo
do auriga – os membros inferiores e superiores, ou até mesmo o seu
fôlego, além da velocidade, do poder, da potência erótica, do apelo
irresistível, da beleza, da força e do vigor que serão objetos de fascínio
e inveja dentro do ambiente citadino. Assim, o corpo é transformado
num bem a ser perseguido, como vemos no seguinte exemplo de uma
tábua opistógrafa cartaginesa bilíngue, aproximadamente do séc. III:
ET DEMONES INFERNALES OBλIGA-12
TE ILLIS EQVIS PEDES NE CVRRERE
POSSINT, ILLIS EQVISQVORVM NOMINA HIC SCRIPTA ET DEMANDATA15
HABETIS, INCLETVM NITIDVM PATRICIOV NAUTA σ̣ι.ουν̣[—]α̣α ταχαρχην;
OBLIGATE ILLOS NE CVRRERE POSSIT CRASTINI ET PERENDINIC CIR[CENS]IBVS19
16 “O termo magos [a etimologia da palavra magia, provém da língua persa, magus ou magi, que significa sábio] e os seus derivados mageia, magikos, mageuo testemunhados já no V séc. a.C. reportam-se ao mundo religioso persa-armênio; aqui
os magos representam o máximo grau da hierarquia sacerdotal e estão em estreito
contato com a corte”. In: SANZI, Ennio. Cultos orientais e magia no mundo helenístico-romano: modelos e perspectivas metodológicas. Fortaleza: EdUece, 2006, p. 58.
“No latim, os termos saga (bruxa), ueneficus (pessoa que usa venenos) e, mais tarde, maleficus (pessoa que faz o mal) servem ao mesmo propósito de descrição de
práticas não reconhecidas pela maioria culturalmente dominante” (SILVA, Francisco
Santos. A religião do Outro. Veredas da História, a. 3, n. 2, 2010, p. 4. Cf. GRAF, Fritz.
Theories of Magic in Antiquity. In: MIRECKI, Paul; MEYER, Marvin (Ed.). Magic and
ritual in the Ancient World. Leiden: Brill, 2002, p. 92-104.
17 LOPÉZ JIMENO, A. op.cit.; JORDAN, David R. Defixiones from a Well near the
Southwest Corner of the Athenian Agora. Hesperia, n. 54, 1985, p. 198-252.
258 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
E, demones infernais, amarrem os pés daqueles cavalos que eles não possam
correr, aqueles cavalos que os nomes aqui inscrevo e demando,
Incletus, Nitidus, Patricius, Nauta, si.oun [--] aa, tachaocheu [Começo Rápido,
nome próprio];
Amarrem eles para que eles não possam correr amanhã ou no dia depois de amanhã no circo.18
Os textos das defixiones geralmente são dirigidos aos deuses
infernais ou ctônicos, que pelas suas conexões com a terra e com o
submundo, são as divindades preferidas – como Plutão, Hades, Mercúrio, Hermes, Hécate, Gaia, Deméter e Perséfone –, por vezes através
da mediação de uma pessoa morta, provavelmente o cadáver em cujo
túmulo fora depositada a magia.19 Eram as almas de mortos (nekudaimones em grego) comumente invocadas pelos autores dos feitiços; os
candidatos preferenciais eram aqueles que tinham morrido de maneira prematura ou violenta, pois se acreditava que estes se encontravam
em um estrato intermediário entre os vivos e os mortos, vagando em
um clima inquieto e vingativo perto do corpo, o que os tornava suscetíveis à prática da maldade. As pessoas consideradas como mortas
antes do tempo seriam, por exemplo, as mulheres falecidas no parto,
as crianças mortas, os indivíduos assassinados e os suicidas, tomados
assim como agentes espirituais conscientes do rito mágico.20 Segundo
Lopéz Jimeno,21 percebe-se que “[…] pela lei de associação mágica,
revela o desejo do autor de arrastar a sua vítima para tumba, e por
consequência, para morte”. Isso se exemplifica em alguma de nossas
defixiones que foram encontradas perto de túmulos de pessoas mortas
18 Anverso da tábua opistógrafa cartaginesa bilíngue, aprox. séc. III – 5,8 x 8 cm: DTAud.
295; DTGag. 11, grifo nosso. In: AUDOLLENT, Auguste Marie Henri. Defixonum tabellae:
Quotquot innotuerunt tam in Graecis Orientis quam in totius Occidenti partibus praeter
Atticas in Corpore Inscriptionum Atticarum editas. Paris: A. Fontemoing, 1904.
19 LOPÉZ JIMENO, A. op.cit., p. 25.
20 CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. As Tabellae Defixionum de Sagunto: as práticas da magia e as interações culturais na Península Ibérica (séculos I e II d.C.). 2009.
84 f. Monografia (Bacharel em História). Rio de Janeiro: Departamento de História,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
2009, p. 20-21.
21 LOPÉZ JIMENO, A. op.cit., p. 30.
Volume 2
259
prematuramente, como fica claro na DTAud. 295; DTGag. 11 (ambas
aproximadamente do séc. III): “Deixá-lo morrer e cair, assim como você
permanece [aqui] prematuramente morto”, e na DTGag. 06; DTAud.
286 (aproximadamente do Séc. IV): “[...] a partir desta hora, a partir de
hoje, eles não podem comer, beber ou dormir; em vez disso, a partir
da [abertura] dos portões que eles possam ver os demônios [daqueles]
que morreram prematuramente, espíritos [daqueles] que morreram
violentamente [...]”.22
As pesquisas têm demonstrado que o local de depósito das defixiones era quase tão importante quanto os próprios textos. Sua força
só poderia ser desencadeada quando enterradas no túmulo, lançadas
em poços ou postas em lugares próximos aos da vítima. Novamente
evocamos aqui as maldições enterradas no próprio circo ou num cemitério próximo. No caso de Cartago, foram encontradas defixiones
enterradas aos pés da parede do podium e num cemitério de funcionários situado a norte do anfiteatro.23 Os espaços circenses, como o
pódio, teriam sido perfeitos devido à sua proximidade com o cemitério
e com o anfiteatro, onde mortes violentas e intempestivas eram abundantes e onde se acreditava que espíritos de mau agouro, impetuosos
e insatisfeitos com sua atual condição, se faziam presentes.
Por vezes, esses espíritos irão figurar no próprio texto mágico,
o que retrata outra característica relevante e ao mesmo tempo elucidativa: a presença, nas defixiones, de imagens. Muitas vezes, esses
desenhos foram acrescentados ao texto como elementos capazes de
reforçar o feitiço. Nas fórmulas mágicas estudadas, isso ocorre em três
ocasiões: DTGag. 05, 12 e 14.24 Na primeira, existe a representação
de cobras picando cavalos; na segunda, túmulos de indivíduos quaisquer, incluindo um ser com cabeça equina; e finalmente, o terceiro,
apresenta figuras mumificadas, provavelmente representando o alvo
do feitiço, no caso, um cocheiro rival. Existem também representações
de cabeças e corpos, contendo círculos comumente usados para fixar
o alvo. Cordas e correntes são também utilizadas para demonstrar processos de vinculação mágica.25 Vejamos um caso de perto.
22 GAGER, J. G. op.cit., p. 57-65 ; AUDOLLENT, A. M. H., op.cit., p. 440 e ss.
23 Ibid., p. 19.
24 GAGER, J. G. op.cit., p. 57-74.
25 GAGER, J. G. op.cit.; p. 52 ; AUDOLLENT, A. M. H., op.cit.; p. 440; HERON DE VILLEFOSSE, Antoine. Tabella devotionis découverte à Hadrumète. Comptes rendus des
Fig. 1: Tábua opistógrafa hadrumentina, DTAud. 286; séc. III, 11 x 8-9 cm.
Fonte: Héron de Villefosse (1892, p. 226-227).
séances de l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, a. 36, n. 4, 1892, p. 226-227.
Volume 2
261
A DTAud. 286 é uma tábua opistógrafa, ou seja, que apresenta
ambos os lados grafados, de origem hadrumetina e provavelmente do
século terceiro, de aproximadamente 12,2 x 9,3 cm de diâmetro, contendo uma figura mágica representada em cima de um barco, trajando
uma tanga triangular. A tábua foi encontrada em 1892, por dois militares franceses, Choppard e Hannezo, e alguns escavadores tunisianos,
na necrópole romana próxima ao circo de Hadrumeto. Essa tábua é um
exemplo perfeito, pois muitas defixiones encontradas posteriormente (286 até 295) possuem partes iguais a dela. O que comprova que
existia um modelo anterior comum, possivelmente em uma casa de
venda, onde se poderia escolher partes de encantamentos para compor verso e anverso da defixio comprada. Assim, existem fatores que
aludem e corroboram a existência de venda dessas magias, por exemplo, a DTAud. 289, que tem a frente igual a DTAud. 286, porém tem o
verso diferente.
No exemplo, lemos a imprecação no anverso: as palavras gravadas no lado esquerdo da placa tem seu conteúdo ainda desconhecido (CVIGEV, CENSEV, CINBEV, PERFLEV, DIARVNCO, DEASTA, BESCV,
BEREBESCV, ARVRARA, BAζAGRA) e, provavelmente, devem possuir
um caráter mágico calcado na aliteração, na rima e na palindromia. Já
os termos noctivagus; tiberis e oceanus fazen menção aos seres que
perambulam pela noite. Há também a menção ao Tibre, rio divinizado,
e ao Titã-fundamental Oceano. Oceano seria o imenso rio que cercaria a Terra, personificado pelo Titã de mesmo nome, filho de Urano e
Gaia, um deus com o corpo formado por um torso humano, mas com
garras de caranguejo, chifres, uma longa barba e cauda de serpente.26.
Na mitologia, Oceano representava apenas as águas desconhecidas do
Atlântico (também chamado de Mar Oceano), enquanto Netuno reinava no Mediterrâneo. Na maioria das versões mitológicas sobre a Titanomaquia (ou guerra entre os Titãs e os Deuses Olímpicos), Oceano,
tal como Prometeu e Têmis, não se juntaram aos seus irmãos contra os
Olímpicos, tendo se mantido afastados do conflito, sendo por isso vistos como apoiadores das divindades olímpicas pós-conflito.27 Já Tiber
26 ALDINGTON, Richard; AMES, Delano. New Larousse Encyclopedia of Mythology.
New York: The Hamlyn Publishing Group, 1968, p. 225; LIPKA, Michael. Roman Gods:
A Conceptual Approach. Leiden: Brill, 2009, p. 98.
27 LIPKA, M. op.cit., p. 98 e ss.
262 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
ou Tibre teria sua importância e glória advindas da ascendência, pois
era filho de Jano, divindade associada às portas (entrada e saída), bem
como às transições. Com sua face dupla também simbolizaria o conhecimento do passado e do futuro.28
Tão importante quanto a imagem é a expressão, ANIMO
ARAITTO, grafada no peito da imagem humanoide. Enquanto o significado da palavra araitto nos foge, devido à sua origem egípcia;29
animo apresenta função dupla. Como termo no ablativo e dativo, exprime uma lógica associativa, ‘com o espírito’ ou ‘para o espírito’. Já
como verbo conjugado na primeira pessoa do singular significa ‘eu
trazendo a vida, dando vida, inspirando’ ou ‘eu dando particular disposição para uma mente, incitando algo para’. O destaque é a lógica
do desejo de destruição do corpo e do espírito de quatro cocheiros
inimigos e seus cavalos pertencentes as factiones verde e branca,
enumerados no texto mágico, enquanto a magia era dirigida ao demônio desenhado ali, ou seja, a alma de um falecido tomado pela
morte antes do tempo pelas águas.
Villefosse é responsável pelo relato da descoberta e pela primeira interpretação dessa imagem, em 1892.30 Como essa defixio,
foram encontradas outras oito nas Gálias e duas, encontradas em um
poço, em Roma. Para ele, trata-se de um gênio ou demônio antropozoomórfico, com cabeça de galo segurando uma tocha. A imagem
seria um taraxippos, um gênio demoníaco que, na mitologia norte-africana, tinha como passatempo preferido assustar os cavalos. Porém,
segundo os organizadores do Catálogo Alaoui (Catalogue des Musées
et Collections archéologiques de l’Algerie et de la Tunisie – Musée
Alàoui, 1897), Henri de La Blanchère e Paul Gauckler, e apoiado por
Richard Wünsch (1897; 1900), no entanto, a figura deve ser associada
ao deus egípcio Seth.31
28 LIPKA, M. op.cit. p. 50; ALDINGTON, R.; AMES, D., op.cit., p. 85.
29 GORDON, Richard. Competence and ‘Felicity Conditions’ in two Sets of North
African Curse-Tablets (DTAud. 275-85; 286-98). MHNH: Revista Internacional de Investigación sobre Magia y Astrología Antiguas, v. 5, 2005, p. 61–86; GORDON, Richard. Shaping the Text: Innovation and Authority in Graeco-Egyptian Malign Magic.
In: HORSTMANSHOFF, Manfred H. F. J., et al (Eds.). Kykeon: Studies in honor of Hendrik Simon Versnel. Leiden: Brill, 2002, p. 69-111.
30 HERON DE VILLEFOSSE, A. op.cit., p. 226-227.
31 LA BLANCHERE, Henri de; GAUCKLER, Paul (Orgs.). Catálogo Alaoui ; Catalogue
Volume 2
263
Seth (ou Set) era o deus egípcio da violência e da desordem,
da traição, do ciúme, da inveja, dos animais e serpentes. Seth representa a encarnação do espírito do mal e o contraponto de seu irmão,
Osíris, o deus civilizador. Na mitologia, Seth teria rasgado o ventre de
sua mãe, Nut, com as próprias garras ao nascer. Invejoso, fazia de tudo
para conseguir o controle dos deuses e assumir o lugar de seu irmão,
Osíris. Seth teria auxiliado Rá em sua luta contra a serpente Apófis (o
próprio caos) no barco solar. Nesse sentido, seria originalmente um
deus bom que foi persuadido e tornou-se mal.32
A cabeça da figura humanoide contida na defixio é encimada
por chamas. No braço esquerdo, segura uma haste em cuja extremidade
há, possivelmente, um cálice de fogo, símbolo da justiça na Antiguidade, em associação com as forças ctônicas. No braço direito porta uma
hídria, vaso de cerâmica usado para guardar água. A hídria diferencia-se da ânfora por ter um gargalo menor e possuir três alças: um par
nas laterais e uma grande alça vertical, na parte posterior. Ela facilitava
mergulhar o vaso n’água e levantá-lo até a cabeça, enquanto que as
outras alças ajudavam no equilíbrio. Porém, esse desenho pode ser
também uma Ankh, conhecida também como cruz ansada, o símbolo
da vida eterna na escrita hieroglífica egípcia. Os egípcios usavam-na
para indicar a vida após a morte.33 Nenhuma de nossas percepções
sobre essas imagens é definitiva, uma vez que, enquanto as imagens
possuem características polissêmicas para os nossos olhos contemporâneos, essa mesma imagem era facilmente identificada no mundo
romano. A dificuldade gerada para nós é em função das dificuldades
interpretativas próprias do afastamento temporal e cultural.
des Musées et Collections archéologiques de l’Algerie et de la Tunisie: description
de l’Afrique du Nord entreprise par ordre de M. le ministre de l’instruction publique
et des beaux-arts. Préface de René Louis Victor Cagnat. Paris: Ernest Leroux, 1897;
WÜNSCH, Richard. Neue Fluchtafeln. Rheinisches Museum, v. 55, p. 232–271, 1900;
WÜNSCH, Richard. Sethianische Verfl uchungstafeln aus Rom. Leipzig: Teubner, 1898.
32 WALLIS BUDGE, E. A. Egyptian Magic: late keeper of the Egyptian and Assyrian
antiquities in the British Museum. London: Kegan, Paul, Trench and Trübner & Co.,
1901, p. 187; PINCH, Geraldine. Egyptianmyth: a very short introduction. Oxford: Oxford University, 2004. p. 10-21; SHAW, Ian. Ancient Egypt: a very short introduction.
Oxford: Oxford University, 2004, p. 116 e ss.
33 PINCH, G. op.cit., p. 5; SHAW, I., op.cit., p. 85.
264 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Segundo Irena Radić-Rossi e György Németh,34 levando-se
em consideração que esta é uma representação simpatética da vítima do feitiço, não temos uma hídria e sim um castiçal, não um cálice
de fogo, mas uma tocha, objetos usados no cotidiano, inclusive nos
rituais religiosos e nas atividades noturnas. A tocha era atributo das
divindades helênicas, mesmo daquelas associadas à luminosidade,
embora seu uso seja mais frequente no caso dos deuses noturnos e
do submundo, principalmente o Eros fúnebre. Em urnas domésticas e
tumulares, temos seres do submundo segurando tochas, o que nos sugere que seu significado simbólico esteja ligado ao nascimento de uma
pessoa, acontecimento que culmina com a morte e a viagem ao submundo, sob a tutela das divindades ctônicas. As crianças costumavam
ser guiadas pelo Eros fúnebre, muitas vezes representado em sarcófagos portando uma tocha invertida. Já no verso de outra defixio lemos:
ADIVRO TE DEMON QVICVNQVE ES ET DEMANDO TIBI EX ANC (H)ORA EX ANC DIE EX OC MOMENTO VT EQVOS
PRASINI ET ALBI CRVCIES 5
OCIDAS(,) ET AGITADORE(S) CLARVM ET FELICE[M] ET PRIMVLVM ET ROMANVM OCIDAS
COLLIDA(S) NEQVE SPIRITVM
ILLIS LERINQVAS (RELINQVAS) (;) ADIVRO TE 10
PER EVM QUI TE RESOLVIT
TEMPORIBUS DEVM PELA[G]ICVM AERIVM ιαω ιαςδαω
οοριω.α̣ηια
Eu te conjuro, demônio, quem
quer que você seja e ordeno a ti
que a partir desta hora, a partir deste
dia, a partir deste momento torture e
mate os cavalos dos verdes e brancos, mate e
esmague os corredores Clarus,
Félix e Primulus e Romanus,
34 RADIĆ-ROSSI, Irena. Rimski svijećnjak iz podmorja Palagruže. Vjesnik Arheološkog muzeja u Zagrebu, 3.s., 35, p. 173-189, 2002; NÉMETH, György. Supplementum Audollentianum. Budapest: Kódex Könyvgyártó, 2013.
Volume 2
265
faça-os perder a alma; Eu te conjuro,
pela divindade do mar e do ar [Netuno Pelágico]
que retribui no tempo certo. iao iasdao
oorio aeia”.35
Nesse caso, a tarefa do demônio é realizar a mediação com
os deuses, esse agente secundário é provavelmente o mesmo que lhe
tirou a vida e, por isso, com ímpeto perfeitamente vingativo para ouvir
a petição dirigida a ele, buscando como objetivo a destruição do corpo
e do espírito, que está enfatizado o seu papel simbólico. Era comum
que, para se proteger contra estes feitiços, os aurigas, recorressem a
outros encantamentos, como sinos pendurados no peito do cavalo,
prática atestada em vários mosaicos. Amuletos também poderiam ser
empregados pelos cocheiros com o intuito de se defender. Enquanto
a maioria dos amuletos romanos tinha a intenção de esconjurar todos
os males, pelo menos um, dentre os descobertos, foi projetado especificamente para proteger o seu usuário de defixiones.36 O recurso à
magia apotropaica parece ter sido comum entre profissionais cujo trabalho envolvia grande risco. Os aurigas buscavam assim proteger o seu
corpo e, no caso de um acidente capital, garantir o conforto da alma.
Um exemplo disso eram os condutores que professavam a sua fé em
Cristo, apesar da condenação incondicional dos Padres da Igreja aos
ludi, uma invenção de Satanás.
Mediante a análise do discurso pagão tradicional a partir do
texto epigráfico mágico, é possível captar o reverso da representação
que exaltava o corpo atlético como um vetor de beleza e fama. No que
concerne ao discurso pagão, a materialidade do corpo, a sua estrutura, as suas práticas e os seus usos estavam intrinsecamente ligados ao
estilo de vida urbano, afinal, “no mundo pagão, o corpo pertencia à
cidade [...]”.37 Assim, as práticas mágicas que permeavam o cotidiano
citadino tinham como alvo a imprecação do corpo, que se esperava ser
atlético, corpo este convertido em objeto do desejo e glória na cidade.
Nas tábuas execratórias, o alvo predileto era o corpo do auriga, já que
35 Verso da tábua opistógrafa cartaginesa bilíngue, aprox. séc. III – 5,8 x 8 cm:
DTAud. 295; DTGag. 11, grifo nosso. In: GAGER, J. G. op.cit., p. 57-65 ; AUDOLLENT, A.
M. H., op.cit., p. 440 e ss.
36 GAGER, J. G. op.cit., p. 47; 154; 219.
37 SENNET, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio
de Janeiro: Record, 2003, p. 114.
266 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
o físico exposto na arena era objeto de admiração e também de inveja,
pois, a “[...] beleza viril era um sinal de valor moral. Saúde mental, ética
e robustez [...]. O corpo masculino, a beleza e a moral são ligados mais
uma vez, juntos, eles simbolizam ‘coragem viril’ e ‘espírito viril’”.38
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos que a prática da magia seja híbrida por excelência, conjugando elementos romanos, gregos, egípcios, bem como judaico-cristãos. É assim que o espaço mágico, textual e imagético, se torna
um locus de religiosidades fluidas e de crenças diversas, um texto que
se encontra na convergência do cotidiano. Sendo assim, defendemos
que o uso da magia ultrapassava as fronteiras religiosas e sociais, em
conformidade com o caráter heterogêneo do próprio Império Romano.
O objetivo maior pelo qual elementos heterogêneos eram colocados a
dialogar era a solução da desordem simbólica dentro do espaço lúdico.
Afinal, em função da natureza altamente competitiva das corridas de
carros, os conflitos habituais entre os aurigas e entre os seus admiradores, que levavam a desordem social, deveriam ser, de alguma forma,
solucionados. Relacionamos a esse aspecto o estudo da intervenção
mágica inscrita nas tábuas execratórias, pois as entendemos como um
dos mecanismos utilizados para reestruturação da ordem dentro da
cidade – já que a paixão dos romanos pelos jogos tornava os circos em
loci de comportamento transgressor. A magia era um recurso poderoso empregado pelo homem antigo na tentativa de se equiparar ou de
sobrepujar os adversários, obtendo justiça ou reequilibrando-a, pois
aqueles que faziam uso da magia, dela esperavam obter favores das
potestades sobrenaturais, em particular a Vitória sobre a Fortuna. Era
também aquela que imporia limites, que redisciplinaria a ordem social
e universal, funcionando, assim, como uma ferramenta de distanciamento, permitindo ao autor escapar da culpabilidade de sua ação, atribuindo-a ao destino ou à vontade dos deuses.
38 MOSSE, George Lachmann. The image of man: the creation of modern masculinity. New York: Oxford University, 1996, p. 41.
Volume 2
267
DAS COMUNIDADES À ROMA: O
FEMININO NAS COMUNIDADES
GNÓSTICAS E O PROCESSO DE
SEGREGAÇÃO SEXUAL ENTRE OS
PROTO-ORTODOXOS (SÉCULOS I-IV)
Roberta Alexandrina da Silva1
Durante o século I e.c.2, em especial nas primeiras décadas,
surge no Império Romano, advindo do judaísmo, um movimento que
se difundiu rapidamente - embora não em grande número no meio das
cidades do Oriente -, denominado, a posteriori, de cristianismo. Em
seus momentos iniciais não sobressaia entre os muitos outros cultos
‘orientais’ levados de um lugar para outro por imigrantes e comerciantes. Com isso, se justifica a sua não importância ou até mesmo desconhecimento de muitos dos escritores da época.
Não obstante, esse cenário se transforma e em séculos posteriormente ganha força, se separa das comunidades judaicas que lhe
deram origem, lhe sendo até mesmo hostis, e se torna dominante do
Império Romano e obtém proteção imperial.
Portanto, a partir disto se percebe que os primórdios do cristianismo se tornam uma seara complicada, em que pulularam movimentos díspares que possuíam múltiplas teologias. Nesse sentido, o
que se define por ortodoxia, na realidade seria um encaminhamento de um grupo cristão vitorioso que suplantou as memórias e lembranças dos demais grupos3. Com a descoberta da Biblioteca de Nag
1 Docente da Faculdade de História da cátedra de História Antiga e Medieval pela
Universidade Federal do Pará, campus Universitário de Bragança. Docente do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia e Professora associada
do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano – LEIR/UFES.
2 As abreviaturas a.e.c. (antes da era comum) e e.c. (era comum) serão utilizadas
durante o artigo como alternativa para os mais publicamente usados a.C. (antes de
Cristo) e d.C. (depois de Cristo).
3 Compartilho da acepção do estudioso Barth Ehrman, na obra Evangelhos Perdidos, onde define ortodoxia como um grupo de cristãos que venceram os primeiros
Volume 2
269
Hammadi4, em 1945, ampliou-se a percepção acerca da pluralidade
de grupos no movimento cristão em seus primórdios5.
Até as últimas descobertas arqueológicas da Biblioteca de Nag
Hammadi, conhecíamos estes sistemas filosófico-teológicos através
dos Padres da Igreja (sobretudo dos heresiólogos6, isto é, que viam
nos vários gnosticismos uma heresia). Durante muito tempo, mas, sobretudo nos séculos XIX e XX, alguns estudiosos julgaram estes Padres
da Igreja como autores pouco recomendados no estudo do gnosticismo uma vez que partiam do pressuposto da heresia dos gnósticos a
evitar pela Igreja ortodoxa.
conflitos e estabeleceram suas visões como dominantes por volta do século IV; não
apenas nos deram os credos que foram transmitidos da antiguidade, mas também
decidiram quais livros pertenceriam às Escrituras. Uma vez vencido, se auto rotularam de ‘ortodoxos’, aqueles que tem a crença correta, e marginalizaram seus oponentes como hereges, e os textos produzidos por eles como ‘heréticos’. Com isso, é
pertinente denominar esses cristãos de proto-ortodoxos e não de ortodoxos, porque
a institucionalização durante o I até meados do IV ainda não era completa. EHRMAN,
B. Os Evangelhos Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não chegamos a Conhecer. Tradução de Eliziane Andrade Paiva. Rio de Janeiro: Record, 2008
4 A lista dos textos por ordem em que se encontram nos treze códices: Códice I:
A Prece ao Apóstolo Paulo, O Apócrifo de Tiago, O Evangelho da Verdade, O Tratado
sobre a Ressurreição, O Tratado Tripartido; Códice II: O Apócrifo de João (versão longa), O Evangelho de Tomé, O Evangelho de Filipe, A hipóstase de arcontes, O Escrito
sem título, A Exegese da Alma, O livro de Tomé; Códice III: O apócrifo de João (versão
breve), O Livro Sagrado do Grande Espírito invisível, Eugnosto, o bem aventurado, A
Sabedoria de Jesus Cristo, O diálogo do Salvador; Códice IV: O apócrifo de João (versão longa), O Livro Sagrado do Grande Espírito invisível; Códice V: Eugnosto, o bem
aventurado, O apocalipse de Paulo, O (primeiro) apocalipse de Tiago, O (segundo)
apocalipse de Tiago; Códice VI: Os atos de Pedro e dos doze apóstolos, O Trovão,
mente perfeita, O autêntico logos, O conceito do nosso grande poder, A república de
Platão (588A-589B), A Hebdômada e a Enêada, A oração de ação de graças, Alcelpius;
Códice VII: A Paráfrase de Sem, O Segundo Tratado do Grande Set, O Apocalipse de
Pedro, Os Ensinamentos de Silvano, Os Três Marcos de Set; Códice VIII: Zostrianos, A
Carta de Pedro a Filipe; Códice IX: Melquisedeque, Nórea, O Testemunho Verdadeiro;
Códice X: Marsánes; Códice XI: A Interpretação da gnose, A exposição valentiniana,
Allógenes, Hypsifrone; Códice XII: As Sentenças de Sextus, O Evangelho da Verdade,
Fragmentos; e, Códice XIII: Protenóia Trimórfica.
5 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento: História e Literatura do Cristianismo.Vol.2. Trad. Luís Euclides Calloni. São Paulo: Paulus, 2005, p. 243.
6 Podemos destacar alguns dos heresiólogos antes do Concílio de Nicéia, dentre
estes temos Irineu de Lyon (140-202), Tertuliano (155-222), Clemente de Alexandria
(150-215), Hipólito de Roma (170-235), Orígenes (185-254), Cipriano de Cartago
(200-258).
270 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Foi com o imperador romano Constantino, que houve a definição de um cânone das Escrituras e a organização de uma Igreja, com
ortodoxia e doutrina, atacando, portanto, as escolas gnósticas e seus
livros e destruindo mosteiros e bibliotecas. Para Ramsay MacMullen,
o Credo de Nicéia, aprovado pelos bispos e ratificado por Constantino,
tornou-se a doutrina oficial que todos os cristãos deviam aceitar para
participar da santa igreja reconhecida pelo imperador, a ‘igreja católica’, comunidade tendo a sua sede a cidade de Roma. E, um ano antes
do Concílio de Nicéia (325 e.c.), Constantino tentou encerrar por decreto as ‘assembleias gnósticas’7. De acordo com Elaine Pagels, Constantino ordenou que todos os ‘heréticos e cismáticos’ deixassem de se
reunir, mesmo em residências particulares e entregassem aos católicos
as congregações e todas as propriedades que possuíssem8.
Compartilho da assertiva de Elaine Pagels de que os estudos
sobre o gnosticismo estão apenas começando.
No entanto, aqueles que consideravam o gnosticismo como
heresia estavam adotando – de forma consciente ou não –
o ponto de vista desse grupo de cristãos que se autodenominavam cristãos ortodoxos. Herege pode ser qualquer um
de cuja aparência alguém não goste ou denuncie. Segundo
a tradição, herege é aquele que se desvia da verdadeira fé.
Mas o que define a ‘verdadeira fé’? Quem a denomina? E por
que razões?9
Portanto, partindo do pressuposto que temos uma gama variada de grupos cristãos neste momento inicial do cristianismo primitivo, em especial pré-nicénico, poder-se ter outras realidades e discursos
de como esses ditos ‘hereges’ compreendiam os papéis sexuais dentro
de suas comunidades - que se localizavam em vários centros urbanos
do Império -, através de alguns escritos deles e de alguns heresiólogos.
7 MACMULLEN, R. Christianizing the Roman Empire: A.D. 100-400. New Haven;
London: Yale University Press, 1984, p.54.
8 PAGELS, E. Os Evangelhos Gnósticos. Tradução de Marisa Motta. Rio de Janeiro:
Ed. Objetiva, 2006, p.180.
9 Ibidem, p. XXIII-XXIV.
Volume 2
271
I. Moral ‘Propriamente’ Cristã? O Processo do
Pastorado nas Comunidades Proto-Ortodoxas
Com o cristianismo, vimos se inaugurar lentamente, progressivamente, uma mudança em relação às morais antigas, que
eram essencialmente uma prática, um estilo de liberdade
[grifo meu]. Naturalmente, havia também certas normas de
comportamento que regravam a conduta de cada um. Porém, na Antiguidade, a vontade de ser um sujeito moral, a
busca de uma ética da existência eram primeiramente um
esforço para afirmar a sua liberdade e para dar à sua própria
vida uma certa forma na qual era possível se reconhecer, ser
reconhecido pelos outros e na qual a própria posteridade podia encontrar um exemplo [...]. Da Antiguidade ao cristianismo, passa-se de uma moral que era essencialmente procura
de uma ética pessoal a uma moral como obediência a um
sistema de regras [grifo meu]10.
Foi na Antiguidade Clássica, entre os gregos e os romanos,
que Michel Foucault se depara com morais onde se evidenciam outros
modos de constituição da subjetividade, - as “estéticas” ou “artes da
existência” -, estilos de vida em que a preocupação maior é da ordem
da ética e da liberdade. Prossegue, ao afirmar quer foi no cristianismo
que houve o processo de uma formação sistemática de regras, no qual
ocasionou uma moral que valorizava uma renúncia de si11.
Para Michel Foucault, os primeiros autores cristãos teriam tomado empréstimo de uma moral pagã, já debatida por alguns filósofos
e médicos na Antiguidade12. Outrossim, que a moral cristã não passa
10 FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Coleção de Ditos e Escritos, vol.
V. 2ª Edição. Organizador Manoel da Motta. Tradução de Elisa Monteiro e Inês A. D.
Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p.289-290.
11 Idem.
12 ‘A desconfiança face aos prazeres, insistência sobre os efeitos de seu abuso
para o corpo e para a alma, valorização do casamento e das obrigações conjugais,
desafeição com relação á significações espirituais atribuídas ao amor pelos rapazes:
existe no pensamento dos filósofos e dos médicos, no decorrer dos dois séculos,
toda uma severidade da qual testemunham os textos de Soranus e do Rufo de Éfeso,
de Musonius ou de Sêneca, de Plutarco assim como de Epicteto ou de Marco Aurélio.
Aliás, constituem um fato os autores cristãos tomarem dessa moral, empréstimos
272 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
de um fragmento da ética pagã introduzido no cristianismo, mas que
propôs um novo modelo de concepção de si13. Seria esse o período
que se constava uma evolução de uma concepção de família, monogamia, comportamentos sexuais aceitáveis e fidelidade entre as pessoas
casadas. Contudo, foi no cristianismo que houve o processo de uma
formação sistemática de regras, que ocasionou uma moral que valorizaria uma renúncia de si.
O cristianismo trouxe novas técnicas para impor a moral e um
conjunto de imperativos e proibições que determinariam as relações
e a sexualidade. Michel Foucault enfatiza, através da opinião do historiador Peter Brown, que se deve compreender a mudança que ocorreu
na sexualidade
Recentemente, o professor Peter Brown me declarou que
em sua opinião, nossa tarefa era entender o que aconteceu
para que a sexualidade tenha se transformado, nas culturas
cristãs, no sismógrafo de nossa sexualidade. É fato, e um fato
misteriosos, que nessa infinita espiral de verdade e de realidade de si, a sexualidade tenha tido, desde os primeiros
séculos da era cristã, uma importância considerável; e uma
importância que não parou de aumentar14.
Peter Brown argumenta, compartilhando da mesma acepção
de Michel Foucault acima, que a ascensão do cristianismo não inovou
maciços – explícitos ou não [grifo meu]; e a maior parte dos historiadores atuais
concordam em reconhecer a existência, o vigor e o reforço desses temas de austeridade sexual numa sociedade na qual os contemporâneos descreviam, freqüentemente para reprová-los, a imoralidade e os costumes dissolutos’. FOUCAULT, Michel.
História da Sexualidade: Cuidado de Si. Vol.3. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e revisão de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005, p. 45.
13 ‘Isso significaria que o cristianismo não alterou o estado das coisas? Os primeiros
cristãos foram os instigadores de numerosas mudanças, senão no código sexual pelo
menos nas relações que cada um mantém a respeito de sua atividade sexual. O cristianismo propôs um novo modelo de concepção de si como ser sexual’. FOUCAULT, M.
Ética, Sexualidade, Política: Coleção Ditos e Escritos. Volume 5. 2ª edição. Organização
e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Tradução de Elisa Monteiro e Inês
Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 98.
14 Idem.
Volume 2
273
em matéria de moral dentro do mundo greco-romano15. E, muito do
que é reivindicado como ‘cristão’ na moral das primeiras igrejas foi, na
realidade, uma moral distintiva de um fragmento da sociedade romana.
Desde a época de Augusto, que se percebe uma mudança de
ótica ao valorizar a imagem do casal e uma moral sexual. Segundo Géraldine Puccin-Delby16 foi com Augusto que, e posteriormente, Domiciano e os Severos, houve uma política em ‘corrigir os costumes’. Com
as três leis como Iuliae de abulteriis coercendis, de maritandis ordinius
– promulgada em 18 a.e.c. – e a Papia Poppaea – de 9 a.e.c. – Augusto
revoluciona o direito da família romana.
Paul Veyne define que no século I século a.e.c., ao casar-se um
homem romano devia se considerar um cidadão que cumpriu todos os
seus deveres cívicos; não obstante, no século I e.c., se muda de parâmetros e o matrimônio se torna algo salutar, em que este devia se considerar
um bom marido e respeitar oficialmente sua esposa. Para Veyne17, houve
um processo de interiorização da moral do casamento monogâmico.
Por conseguinte, quando surge o cristianismo dentro das estruturas do Império Romano, principalmente nos centros urbanos, vimos uma ‘apropriação’ de uma certa moralidade debatida. Os cristãos
praticaram uma moral sexual austera, reconhecível e aceita pelos pagãos, estabelecendo uma renúncia sexual completa para alguns, ênfase na harmonia conjugal e severa desaprovação para o segundo casamento. Portanto, para manter e sustentar essa moralidade dentro das
comunidades cristã a figura do bispo se torna fundamental.
Michel Foucault menciona que no cristianismo a existência
de um mecanismo de poder distintivo como o pastorado, foi uma categoria peculiar e singular de indivíduos que desempenharam dentro
das comunidades cristãs o papel de condutores e guias em relação
aos outros indivíduos. Segundo Foucault seria incongruente existir na
Antiguidade helênica e latina uma categoria de certos indivíduos que
15 BROWN, P. R. L. A Nova Antropologia. In: VEYNE, P. (org.) História da Vida Privada:
Do Império Romano ao Ano Mil. Volume 1. Coleção Dirigida por Georges Duby e Philipe
Ariès. Tradução de Hildegard Friest. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.250-1.
16 PUCCINI-DERBEY, G. A Vida Sexual na Roma Antiga. Tradução de Albuquerque
Marques. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2010, p.70.
17 VEYNE, P. Sexo e Poder em Roma. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p.192.
274 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
pudessem desempenhar esse papel de pastores em relação às outras
pessoas, dirigindo-as em todos os momentos de suas vidas, cerceando
a sua liberdade e exigindo obediência18.
Portanto, a figura do bispo, diácono e presbítero representam
o mecanismo de poder do pastorado, onde concebem uma condição,
um status particular, de aceitarem a obrigação de garantir um certo
número de encargos para comandarem as comunidades cristãs. Foucault afirma que “através da organização do pastorado na sociedade
cristã, a partir do século IV d.C., e mesmo no século III, desenvolveu-se um mecanismo de poder muito importante para toda a história do
Ocidente cristão e, particularmente, para a história da sexualidade19”.
A ascensão do bispo como uma figura de liderança e de centralização, também, estabeleceu a delimitação de espaços e um processo de hierarquização que está atrelado à uma divisão sexual no ofício e na organização dentro das comunidades cristãs.
O processo de delimitação dos papéis sexuais dentro das comunidades cristãs nos três primeiros séculos, principalmente as proto-ortodoxas, nos mostram uma hierarquização e segregação das
mulheres ao ofício destas comunidades cristãs20. Nesse sentido, compreendo que o processo de segregação recai num debate de gênero,
onde o masculino e o feminino são constructos sociais e culturais, na
medida que estabelece as atribuições de papéis sexuais e a distribuição de competências entre os gêneros, questões que envolvem honra
e vergonha. Honra era o equivalente à reputação sendo que vergonha
era a preocupação com a reputação, uma sensibilidade para com ela e,
também, para a opinião dos outros. Ou seja, seria o outro – podendo
ser um grupo, uma sociedade ou qualquer entidade - que determinaria
para o indivíduo valores como honra e vergonha. Nesta divisão sexual
do trabalho, honra era considerada um aspecto da natureza masculina
18 FOUCAULT, M. Ética, Sexualidade, Política: Coleção Ditos e Escritos. Volume 5.
2ª edição. Organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Tradução de
Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2006, p. 65.
19 Ibidem, p. 67
20 ALEXANDRINA SILVA, Roberta. A Ambiguidade da Ordenação Feminina: Mulher
e Subjetividades nas Comunidades Paulinas nos Dois Primeiros Séculos. Tese defendida em 2010 sob a orientação do Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese e Pedro Paulo
Abreu Funari. Campinas/SP: UNICAMP, 2010, 323p.
Volume 2
275
expressa no desejo natural da agressividade sexual. Vergonha, era definido para a mulher, indicando passividade, subordinação e exclusão
no espaço doméstico21.
Portanto, é nestas significações que se explica as atribuições
dadas ao homem e sua supremacia nas tarefas rituais, desde os primórdios do cristianismo; tanto que hierarquização e definições dos papéis sexuais caminham juntos na constituição eclesial.
A lermos alguns documentos do corpus paulinum, se observa um discurso que reforçou os limites estritos impostos às mulheres,
numa argumentação conectada à submissão religiosa familiar. Nesse
sentido, os preceitos contidos nos versículos de 1 Cor 14, 34-3522 e nos
preceitos de 1 Tm 2,11-1423 afirmam comportamentos que foram perpetrados dentro das comunidades.
A legitimação da constituição eclesial se estabelece através de
vários códigos morais e sexuais, que ao mesmo tempo definiria formas
de cristianismo que se contrapunham, como os proto-ortodoxos e os
gnósticos. Nesse sentido, um ponto a se destacar está na supremacia
da cidade de Roma, capital do Império, onde a Igreja se fundamentou
e legitimou seu corpus eclesiástico.
II. Maria Madalena e Pedro: Duas Tradições
Apostólicas
A diferença crassa dos gnósticos com os outros cristãos ao
longo da história do cristianismo se deve, principalmente, no quesi21 C.f. PERISTIANY, J. G., Honra e Vergonha: Valores das Sociedades mediterrâneas.
2ª edição. Tradução de José Cutileiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1971.
22 ‘Estejam caladas as mulheres nas assembleias, pois não é permitido tomar a
palavra. Devem ficar submissas, como diz a Lei. Se desejam instruir-se sobre algum
ponto, interroguem os maridos em casa; não é conveniente que a mulher fale nas
assembleias’.
23 ‘Durante a instrução a mulher conserve o silêncio, com toda a submissão. Não
permito que a mulher ensine, ou domine o homem. Que conserve, pois o silêncio.
Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas
a mulher que, seduzida, caiu em transgressão’
276 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
to de que os cristãos de tradição ortodoxa, como católicos e protestantes, esperam que suas revelações se confirmem a partir de uma
tradição apostólica. O cristão ortodoxo acredita na verdade única dos
apóstolos, e não aceita nenhum outro evangelho a não ser os quatros
do Novo Testamento, servindo como diretriz e cânone para determinar
sobre todas as doutrinas e práticas futuras.
Com isso, uma das questões importantes sobre os gnósticos
é que estes afirmam que recebem de personagens externos aos dozes
apóstolos, como Maria Madalena, Paulo e Tiago. Alguns insistem que
o grupo dos doze não receberam a gnosis, mesmo depois de ter aparecido para eles depois da ressurreição.
As narrativas neotestamentárias deram margem para várias
interpretações, sendo que os escritos acerca da ressurreição se tornaram um fator político essencial e, concebido por dois personagens, que
de uma certa forma representariam dois tipos de cristianismo, Pedro e
Maria Madalena. Entretanto, o que foi legado por uma tradição seria
que a ressurreição foi o ponto crucial para a legitimação de Pedro e, de
acordo com o Evangelho de João (21, 15-19), Jesus o incumbiu deste
cargo depois de sua morte. Neste caso a ressurreição de Jesus tem
um caráter político essencial no estabelecimento de uma tradição que
traça Pedro como a primeira testemunha, e, portanto, líder de direito
da Igreja, e, consecutivamente, no estabelecimento na sucessão apostólica sendo representados em seus três níveis hierárquicos: bispos,
padres e diáconos.
A ortodoxia que apoia Pedro como a primeira testemunha da
ressurreição de Jesus, é mantida até hoje na figura do papa; contudo,
um ponto a se considerar sobre isso consiste numa irregularidade de
entendimento, pois tanto os Evangelhos de João (20,11-18) e de Marcos (16,9-11) são unânimes ao afirmarem que Maria Madalena, e não
Pedro foi a primeira testemunha24. No entanto, durante o segundo
e terceiro século, houve alguns grupos cristãos, em especial os proto-ortodoxos, que reclamavam a autoridade de Pedro e marginalizava o
papel feminino representado por Maria Madalena, e outros reivindicavam o seu protagonismo.
24 ALEXANDRINA SILVA, Roberta. “Afasta-se, Maria de nós, pois as mulheres não merecem a vida”: Heterodoxia e Ortodoxia nos Inícios do Cristianismo. In: RAGO, M.; FUNARI, P. P. A., Subjetividades Antigas e Moderna. São Paulo: AnnaBlume, 2008, p.126.
Volume 2
277
Consequentemente, a imagem de Maria Madalena foi se
transformando, de um discurso que a lobrigava como uma apóstola
para outro que a encarava como uma prostituta arrependida. A primeira ocasião onde ocorre o discurso em que se mescla a imagem de
Maria Madalena com uma prostituta foi proferido pelo papa Gregório
Magno em 591. Na sua trigésima terceira Homilia, sobre a história da
unção de Jesus, Lc 7, o papa fez a seguinte declaração:
Aquela que Lucas chama de pecadora, que João chama de
Maria, cremos que seja a Maria da qual se expulsaram sete
demônios, de acordo com Marcos. E o que esses sete demônios significam, se não todos os vícios? (...) Fica claro, meus
irmãos, que a mulher antes usava o unguento para perfumar
sua própria pele para os atos proibidos. O que ela antes usava de forma escandalosa, agora oferece a Deus em louvor25.
Mesmo que o interesse por uma Maria Madalena ‘história’ ou
‘real’ tenham base em indícios frágeis, todavia, passou somente a ser
lembrada como uma prostituta e sua importância como testemunha
na ressurreição e missionarismo foi apagada por um grupo de cristãos
que impuseram sua própria visão. Deste modo, não se pode abreviar o
discurso de Gregório Magno como um catalizador de uma recordação
coletiva, mas lembrar Maria Madalena como uma pecadora penitente se circunscreve numa visão de como se estabeleceram as relações
sexuais e entre os sexos, onde as mulheres não eram somente tentadoras dos homens com os perigos do sexo, todavia são arrependidas
devendo-lhes submissão.
Entretanto, em outras documentações a aparição de Maria
Madalena é de protagonismo como ocorre numa boa parte na documentação apócrifa e gnóstica. Um dos exemplos foi o Evangelho que
Tomé, que remonta ao segundo século, em que na logia 114 há o seguinte diálogo:
Afaste-se Maria de nós, pois as mulheres não merecem a vida!
E Jesus diz:
“Eis, eu a guiarei de modo a fazer dela um homem, a fim de
que ela se torne um espírito vivo igual a vós, homens. Por25 Gregório Magno, Homilia 33.
278 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
que toda a mulher que se torna homem entrará no Reino dos
Céus” (Evangelho de Tomé, 114).
A resposta dada por Jesus a Pedro se torna clara acerca de
uma definição dos papéis sexuais. E, neste aspecto, se valorizam algumas qualidades masculinas, como de virilidade, honra e o ato de ser
ativo; em contrapartida, à mulher que é afetada no seu pudor sexual,
mesmo sem contato com homens26.
Em contrapartida, ao analisar a documentação gnóstica, principalmente, a de Nag Hammadi, há uma situação diferenciada e dispare da participação e da imagem que o elemento feminino desempenhou nestas comunidades cristãs.
Antes de adentrarmos na questão que envolve a participação
feminina nas comunidades gnósticas, seria crucial definir o que vem a
ser o gnosticismo e a Biblioteca de Nag Hammadi.
III. A Biblioteca de Nag Hammadi e Os Gnosticismos
Os textos gnósticos da Biblioteca de Nag Hammadi foram um
conjunto de complexos escritos de XIII códices com cinquenta e dois
textos, encontrados no Egito e compreende o período entre os séculos
I a IV e.c. Os documentos são escritos em copta e foram descobertos
em 1945 por um camponês árabe, no Alto Egito, numa caverna chamada Nag Hammadi.
Para Elaine Pagels, os textos de Nag Hammadi e outros similares, que circularam no início da era cristã, foram denunciados como
hereges por cristãos, proto-ortodoxos, em meados do segundo século.
Contudo, aqueles que escreveram e divulgaram esses textos, que hoje
conhecemos como a Biblioteca de Nag Hammadi não se consideravam
‘hereges’, pois a maioria emprega a terminologia cristã relacionada de
26 PERISTIANY, J. G., Honra e Vergonha: Valores das Sociedades mediterrâneas.
2ª edição. Tradução de José Cutileiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1971,
p.139-155.
Volume 2
279
modo inequívoco à herança judaica. Esses cristãos, são hoje conhecidos como gnósticos, termo proveniente da palavra grega gnosis, em
geral traduzida por ‘conhecimento’27.
A descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi nos mostra toda
uma proficuidade e fluidez que foi o cristianismo antigo. Entre os anos
de 1972 e 1977, houve a publicação de nove volumes, colocando dessa
forma todos os treze códices no domínio público. O divulgador desse
projeto foi o estudioso estadunidense James M. Robinson, diretor do
Institute for Antiquity and Christianity, que publicou a tradução dos documentos do copta para o inglês, The Nag Hammadi Library28.
Definir o que é o gnosticismo - que se confunde com a gnosis,
o conhecimento -, é um trabalho árduo e complexo porque há muitas
escolas gnósticas entre os séculos II e V e.c. No entanto, um ponto em
comum entre os vários grupos gnósticos é que partem do princípio
ou da crença de que existe no homem uma faúlha ou centelha divina,
encerrada no seu mundo e corpo material, que deve ser libertada ou
redimida, para regressar à sua origem do Pléroma divino. Foi devido ao
gnosticismo que os Padres da Igreja, em processo de defesa e apologia,
apresentaram o cânon do AT e NT como norma, e os Concílios como
regra e Credo.
O credo de Nicéia aprovado pelos bispos e ratificados por
Constantino, acabaria se tornando a doutrina oficial que todos os cristãos deveriam aceitar para participar da igreja reconhecida pelo Imperador, tendo como capital da fé a cidade de Roma. Conforme Paul Veyne, a atitude assumida por Constantino de interiorização dos preceitos
cristãos trouxe consequências importantes para a institucionalização
do cristianismo e a estruturação da Igreja, tais como: a unidade, desencadeando a exclusividade da verdade, sendo um fim em si, onde
toda e qualquer opinião divergente e toda a recusa à autoridade eclesial sejam reprimidas, caracterizando-as como ‘heresia’29.
27 PAGELS, E. Os Evangelhos Gnósticos. Tradução de Marisa Motta. Rio de Janeiro:
Ed. Objetiva, 2006, p.XX.
28 The Nag Hammadi Library in English: Translated and Introduced by members of
the Coptic Library Project of the Institute for Antiquity and Christianity, Claremont/
California. San Francisco: Harper San Francisco, 1990.
29 VEYNE, P. Quando Nosso Mundo se Tornou Cristão. 2ª edição. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.136.
280 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Esse fato foi sintomático e problemática, pois segundo Ramsay Macmullen30, talvez incluíssem cerca de um pouco mais da metade dos cristãos de todo o império. Mesmo que alguns cristãos se
associassem aos ensinamentos de mestres gnósticos como Valentino, Marcião e o profeta Montano acabaram ignorando essa lei e,
também, ainda que alguns magistrados não a aplicassem, entretanto, essa legislação fez com que as comunidades cristãs ficassem atreladas a uma enorme rede que se direcionava à igreja e ao bispo de
Roma31. Deste modo, se percebe um processo de legitimação política de um grupo que se intitulava como a detentora de uma regra e de
uma verdade, uma ortodoxia.
Depois da explanação acima, acerca do credo defendida pelos
ortodoxos, outro mote de diferenciação dos gnósticos consiste na sua
teologia. Para o estudioso Antonio Piñero a acepção que os gnósticos
tiveram acerca da criação do mundo, negatividade da materialidade e
a complexidade de deidades, sendo um ‘atemporal’ e outro criado e
criador da matéria, foi totalmente particular e singular. Pois,
O que distingue o sistema gnóstico dos não-gnósticos é a sua
visão sobre o mundo. Na visão gnóstica impera o anti-mundo
já que o mundo físico não provém de um Deus verdadeiro,
mas de um princípio inferior consubstanciado na queda da
unidade perfeita da divindade. Nada do que é real ou bem
existe fora do Pléroma celestial. Na Hipóstase dos Arcontes
de Nag Hammadi, o mundo é fruto das potestades da obscuridade que se opõem e se separam do Pai da Verdade:
Falando sob a inspiração do Pai da verdade, o grande apóstolo [Paulo] transmitiu-nos o seguinte ensinamento acerca
das potestades da obscuridade: A nossa luta não é contra a
carne e o sangue, mas sim contra as potestades do mundo
e contra os espíritos do mal (Ef 6, 12). O seu chefe é cego.
[Impulsionado pela sua] potência, pela sua ignorância e
pelo seu orgulho […] disse: “Eu sou deus, e nenhum há [fora
de mim]. Ao dizer isto, pecou contra [o todo]. E esta palavra
30 MACMULLEN, R. Christianizing the Roman Empire: A.D. 100-400. New Haven;
London: Yale University Press, 1984, p.54-119.
31 PAGELS, E. H. Além de Toda Crença: O Evangelho Desconhecido de Tomé. Tradução de Manoel Paulo Ferreira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p.180.
Volume 2
281
chegou até à Incorruptibilidade. Então, da Incorruptibilidade surgiu uma voz que disse: “Erras, Samael” – ou seja, “o
deus dos cegos32”.
Os gnósticos, de acordo com Barth Ehrman33, como os médios platonistas pensavam que havia uma deidade suprema longe de
qualquer coisa que possamos pensar ou imaginar completamente
inefável, totalmente separada deste mundo. Irineu de Lyon comenta
sobre a criação a partir do conceito gnóstico: “Sem que o Demiurgo
soubesse absolutamente nada, o Salvador – afirmam eles – honrou o
Pleroma na criação quando produziu por meio da Mãe imagens e semelhanças das realidades do alto” (IRINEU DE LYON, II, 7).
Alguns médios platônicos notórios foram Filo de Alexandrina,
judeu, Justino, cristão, Numênio e Alcino, que seguiam as religiosidades greco-romana, mesmo com essas diferenças culturais e religiosas,
ambos coincidiam em que é excessivamente simples identificar ao
deus que criou o mundo no que vivemos com o princípio divino supremo. De acordo com David Brakke34, estes pensadores buscaram
orientação acerca da origem do mundo no diálogo platônico do Timeu,
em que um ser divino chamado de ‘criador’, demiurgo, cria o universo
visível como uma cópia das formas eternas. O demiurgo cria deuses
inferiores, que seguidamente o assistem e o universo que vivemos e se
crê é uma imagem possível do mundo espiritual perfeito.
As ‘heresias’ teriam nascido do contato do cristianismo com
um fundo eclético judaico e o greco-romano. Neste sentido, a gnosis,
de certa forma, ultrapassaria os exclusivistas quadros do pensamento cristão para se apresentar como um conjunto de noções e de elementos representativos de escritos herméticos. A descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi nos dá uma clareza, principalmente, de que
o gnosticismo seria explicado pelos seus contatos com determinados
movimentos judaicos, em algumas correntes da especulação filosófica
grega, sobretudo, como os valentinianos.
32 PIÑERO, A. Textos Gnósticos: Biblioteca de Nag Hammadi. Madrid: Trotta, 2005,
p.367.
33 EHRMAN, B. D. Pedro, Paulo e Maria Madalena: A Verdade e a Lenda sobre os
Seguidores de Jesus. Tradução de Celina Falck-Cook. Rio de Janeiro; São Paulo: Editora Record, 2008, p.181.
34 BRAKKE, D. Los Gnósticos. Tradujo de Francisco J. Molina de la Torre. Salamanca/Espanha: Ediciones Síguem, 2013, p.99.
282 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Segundo Elaine Pagels35, os gnósticos permaneceram próximos à tradição filosófica grega, que considera o corpo a morada do
espírito humano – como se a pessoa fosse alguma espécie de ser sem
corpo que o utiliza como instrumento, mas não se identifica com ele.
Para a autora os gnósticos estavam convencidos de que o recebimento
do espírito faria com que se comunicassem com o divino. Tanto que um
proeminente mestre gnóstico, Valentino (100-160 e.c.), diz ter sido o
primeiro a aprender os ensinamentos secretos de Paulo e presenciou
uma visão que tornou a fonte da sua própria gnosis, conhecimento. Valentino, de acordo com um fragmento perdido contido na obra de Hipólito de Roma (170-235 e.c.), faz a seguinte observação: “Pois Valentino
diz que viu uma criancinha recém-nascida, e a questionou para saber
quem era. E a criancinha lhe respondeu dizendo que era o Logos36”.
Valentino afirmara que havia recebido o conhecimento de
Teudas, um discípulo de Paulo, em que o iniciou na doutrina secreta de
Deus. Para Valentino, essa tradição secreta revela que o Deus adorado
pela maioria dos cristãos como criador é ingênua, sendo na realidade
a imagem do deus criador (Clemente de Alexandria, Stromata, VII, 17,
106, 4). Seguindo a filosofia Platônica, Valentino utilizou o termo grego
para ‘criador’, demiurgos, sugerindo um ser menos divino que serve
como instrumento de poderes superiores. Em relação ao mito da criação do mundo e, principalmente, à Deus, enfatiza uma transcendência
do deus supremo e a correspondente implantação de deus em princípios divinos inferiores e intermediários; o mais baixo de todos eles tem
a função de criar o universo material37.
Em comparação com Filo de Alexandria, Numênio, Alcino e
Justino, os gnósticos parecem sobressair por duas razões: seus princípios divinos mediadores são numerosos e complexo, e seu deus criador é mau. Nenhuma pessoa da Antiguidade era monoteísta como
compreendemos atualmente, os antigos ditos ‘monoteísta’ simplesmente creiam que o único Deus se alcançava sobre uma hierarquia de
deuses, demônios e outros seres espirituais. Tampouco estavam só os
35 PAGELS, E. Os Evangelhos Gnósticos. Tradução de Marisa Motta. Rio de Janeiro:
Ed. Objetiva, 2006, p.21-29.
36 FRAGMENTO A. In.: LAYTON, B. As Escrituras Gnósticas. Tradução de Margarida
Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 274
37 Ibidem, p.98-99.
Volume 2
283
gnósticos ao multiplicar os aspectos divinos do Deus supremo. Cristãos
como Basílides, ensinou entre 117-138 e.c., e os valentinianos também
imaginaram uma complexa divindade com múltiplos éons e concluíam
que o deus que criou este mundo era mais imperfeito que o demiurgo
divino de Platão38. A compreensão que os gnósticos tinham de deus
era certamente singular e complicada.
Entretanto, os gnósticos não foram muito bem aceitos pelos
filósofos do neoplatonismo, em especial por Plotino (214-270 e.c.).
Porfírio (232-304 e.c.) - biógrafo e compilador dos trabalhos de Plotino
- na obra de Vita Plotini, argumenta que os gnósticos cristãos teriam
essa denominação por serem interpretes errôneos de alguns princípios filosóficos de Platão e que Plotino havia escrito uma refutação
contra os gnósticos.
Havia, em seu tempo, muitos cristãos e também outros, sectários de uma seita derivada da antiga filosofia, adeptos de
Adélfio e de Aquilino, que possuíam muitíssimos escritos de
Alexandre o Líbio, de Filocomo, de Demóstato e de Lido, e
que apresentavam apocalipses de Zoroastro, de Zostriano, de
Nicoteu, de Alógenes, de Mesa e de outros tais, que, estando
eles mesmos enganados, a muitos enganavam, dizendo que
Platão não alcançara o profundo da essência inteligível. Por
isso Plotino mesmo não só fez muitas refutações a eles nas
reuniões, mas também escreveu o tratado que intitulamos
Contra os gnósticos, deixando a nós a tarefa de criticar as
doutrinas restantes (Porfírio, Vita Plotini, 16).
Todavia, para o meio cristão proto-ortodoxo, como aponta Clemente de Alexandria (150-215 e.c.), a acepção dos gnósticos era um
desvio à revelação cristã (Clemente de Alexandria, Stromata I, XV, 69,6).
Por conseguinte, os gnósticos ficaram numa situação complicada, enquanto que para alguns cristãos, os proto-ortodoxos, seriam
transgressores por causa da exposição do seu pensamento filosófico,
entretanto para a escola filosófica neoplatonista, como Plotino e Porfirio, os classificaram como desviantes pela interpretação ‘errôneas’ de
teses platônicas.
38 LAYTON, B. As Escrituras Gnósticas. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo:
Edições Loyola, 2002, p. 31.
284 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
IV. A Sofia e a Participação Feminina nas
Comunidades Gnósticas
Depois da explanação acima sobre a forma como os grupos
gnósticos concebiam a sua teologia, ao analisarmos alguns documentos de Nag Hammadi se percebe que em alguns grupos há uma diferenciação na forma como representaram a imagem de deus, como
uma potência feminina. Plotino, na Enéadas, no Livro II, faz uma refutação contra os gnósticos e menciona uma cosmogonia em que se
centra na figura criadora da Sofia, a sabedoria, uma potência feminina
Com efeito, eles dizem que a alma e também uma certa “Sofia” se inclinaram para baixo, seja porque a alma principiou,
seja porque a Sofia foi a causa dessa inclinação, seja porque
desejam eles que ambas sejam a mesma coisa e, então, dizem... ao afirmar que as outras almas desceram juntas com
aquela e são “membros de Sofia”, que elas se revestiram de
corpos, ou seja, os dos homens; mas aquela, por causa da
qual estas também desceram, eles dizem, ao contrário, que
ela não desceu, ou seja, não se inclinou, mas apenas iluminou a escuridão e, então, dela surgiu uma imagem na matérias. Então, modelando urna imagem dessa imagem em
algum lugar daqui através de matéria, ou materialidade, ou
como desejem chamá-la - eles chamam-na ora uma coisa,
ora outra, dando-lhe muitos outros nomes para o obscurecimento do que dizem -, engendram o que entre eles é chamado “demiurgo”” e, afastando-o de sua mãe, produzem a
partir dele o cosmos e rebaixam este às últimas imagens,
para que aquele que escreveu isso o insulte violentamente
(Plotino, Enéadas, II. 9, 10).
A sabedoria, a sofia, possui algumas conotações na teologia
dos seguidores de dois mestres gnósticos como Marco e Valentino,
como inferiu Irineu de Lyon, que ora a representam como o ‘silêncio
eterno e místico’ e à Graça, Ela que existia antes de todas as coisas’, a
‘sabedoria incorruptível’ pelo conhecimento (IRINEU DE LYON, Adversus Haereses, I. 13, 1-6), ou a ‘tétrada que está acima de tudo’ (IRINEU
Volume 2
285
DE LYON, Adversus Haeresis, I. 14,1). Mas, quando faziam suas orações chamavam a sabedoria de mãe39.
Trovão Mente Perfeita, documento de Nag Hammadi, é um
monólogo representado por uma potência feminina, identificável como
o ‘pensamento posterior’, uma manifestação da sabedoria. O poema é
de cunho enigmático e ambíguo, com autodescrições e exortações da
potência feminina, recheado de antagonismos, com a função de auxiliar Adão e todo o gênero humano a recolher o poder que foi roubado
por Ialdabaoth, o demiurgo mau. O poema faz a seguinte exortação
É da parte do poder que eu, até mesmo eu, fui enviada
E para aqueles que pensam em mim é que eu vim;
E fui encontrada naqueles que me procuram
[...] Pois sou a primeira e a última
Sou a venerada e a desprezada
Sou eu a meretriz e a santa
Sou a esposa e a virgem
Sou a mãe e a filha
Eu sou os membros de minha mãe.
Sou eu a estéril e a que tem muitos filhos
Sou eu aquela cujo casamento é magnifico e a que não se
casou
Sou eu a parteira e a que não dá à luz
Sou consolação de meu próprio trabalho.
Sou eu e a noiva e o noivo.
E o meu marido é quem me gerou.
Sou eu a mãe de meu pai e a irmã de meu marido
E é ele que é minha prole
Sou a serva daquele que me preparou
Sou eu a governante de minha prole (Trovão, a Mente Perfeita, 1. 2-4, 15-34)40.
Em seguida, o documento apresenta a entidade feminina
como a gnosis, o conhecimento
39 PAGELS, E. Os Evangelhos Gnósticos. Tradução de Marisa Motta. Rio de Janeiro:
Ed. Objetiva, 2006, p.60.
40 LAYTON, B. As Escrituras Gnósticas. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo:
Edições Loyola, 2002, p.189)
286 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Desconhecei-me, ó vós que me reconheceis:
E aqueles que não me tem reconhecimento, tomem
Conhecimento de mim!
Pois sou eu conhecimento e falta de conhecimento
Sou reticência e franqueza
Eu sou forte e tenho medo.
Eu sou guerra e paz.
Prestai-me atenção – sou eu a humilhada e a poderosa;
Prestai atenção à minha pobreza e à minha riqueza
Sou eu, contudo o intelecto
E o repouso
Sou eu o conhecimento de minha busca
E a descoberta daqueles que me buscam
E a ordem daqueles que me fazem solicitações
E o poder dos poderes, por meu conhecimento
Dos anjos que foram enviados, por minha fala
E dos deuses em suas épocas, por minha ordem
E dos espíritos de todos os homens que habitam comigo
E das mulheres que estão em mim
Sou eu a venerada e louvada e a desdenhosamente desprezada (Trovão, a Mente Perfeita, 14, 23-34; 18, 9-22)41.
Em outros documentos de Nag Hammadi, como o Apocalipse de Adão, a criação toma outras caracterizações distintas do que é
retratado no Gênesis, onde Adão e Eva se tornam mais elevados e poderosos do que o demiurgo; entretanto, a queda fez com que esse conhecimento fosse perdido. O trecho abaixo faz a seguinte alusão
Depois que deus me tinha feito na terra, juntamente com tua
mãe Eva, eu costumava andar de um lado para outro com ela
na glória. {...} que ela contemplou, desde o reino eterno do
qual tínhamos derivado. E ela transmitiu-me um relato de conhecimento do deus eterno. E nós nos assemelhávamos aos
grandes anjos eternos. Pois éramos superiores ao deus que
nos tinha feito, e aos poderes que estão com ele, com quem
(ainda) não tínhamos travado conhecimento[grifo meu].
Em seguida, deus, o governante dos éons e dos poderes, encolerizado nos deu uma ordem. Em seguida, nós nos tornamos dois éons, e a glória que estava em nossos corações – no
41 Idem.
Volume 2
287
de tua mãe Eva e no meu – deixou-nos, bem como o conhecimento prévio que soprara em nós.
E ela a glória fugiu de nós e entrou em outro grande éon e
em outra grande raça. Não foi do atual reino éon – do qual
tua mãe Eva e eu derivamos – que ele o conhecimento veio.
O Apocalipse de Adão faz uma menção categórica, de que
Eva teria recebido o conhecimento do ‘deus eterno’ e transmitiu para
Adão, sendo ambos parecidos a anjos. Segundo nos informa Irineu de
Lyon, na comunidade gnóstica pertencente à Ptolomeu, um discípulo
de Valentino, há uma descrição de como o mundo fora criado e, novamente, a imagem de Eva aparece como aquela que obtém a gnosis,
o conhecimento. Entretanto, no caso descrito por Irineu, a serpente
prefigura como aquela que dar o conhecimento, sendo a interventora
da mãe Sabedoria, e faz frente à divindade conhecida por Ialdabaoth,
o demiurgo.
Ialdabaoth ficou com ciúmes, e decidiu pensar um meio de
esvaziar o ser humano, por a criação de uma mulher. E como
resultado de seu próprio pensamento, ele tirou para ora uma
mulher. A sabedoria comum anteriormente mencionada
apossou-se dela e secretamente esvaziou-a o poder.
Mas os outros vieram e ficaram maravilhados com sua beleza; e a chamaram de Eva, e se enamorara dela, e geraram
filhos nela, e estes eles também chamaram de anjos.
Mas a mãe sabedoria deles astutamente desencaminhou Eva
e Adão pela intervenção da serpente, de modo a transgredirem o mandamento de Ialdabaoth [grifo meu]. E Eva foi facilmente persuadida, como se estivesse escutando uma descendência de deus. E ela persuadiu Adão a comer da árvore da
qual deus havia dito para não comer. Além disso – dizem eles
-, quando eles comeram, tiveram conhecimento do poder
que é superior a todos, e eles se revoltaram contra aqueles
que os fizeram (IRINEU DE LYON, Adversus Haeresis, I. 3.7).
Alguns grupos cristãos, de forma especial os valentinianos,
entendiam que a potência feminina seria a criadora primordial e mãe
288 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
do deus de Israel a pensar que estava agindo de maneira autônoma
(IRINEU DE LYON, Adversus Haeresis, I. 5,4). Em outro documento descoberto em Nag Hammadi, denominado de Hipóstase dos Arcontes,
temos a seguinte observação
Ele se tornou arrogante, ao dizer: ‘Sou eu o deus, e não há
outro além de mim. ’ (...) E uma voz surgiu das alturas do
reino do poder absoluto, dizendo: ‘Você está errado, Samuel’
[que quer dizer ‘deus dos cegos’]. E ele disse: ‘Se existe algo
além de mim, deixe que apareça para mim! ’. E sofia, imediatamente, estendeu o dedo e introduziu luz na matéria, e
ela o seguiu até a região do Caos (...). ele disse mais uma vez
a seus frutos: ‘Eu sou o deus da totalidade.’ E Vida, filha da
Sabedoria, gritou; e disse a ele: ‘Você está errado, Saklas!’
(Hipóstase dos Arcontes, 94, 21; 95,7).
Depois de toda essa exposição, de uma parte da teologia gnóstica, um outro ponto crucial está na participação feminina dentro dessas
comunidades. E, antes de tudo, a palavra gnosis nos dar uma elucidação.
A gnosis era ‘o conhecimento’ e era adquirido independente
do sexo, por isso que tivemos nos movimentos gnósticos uma grande
participação de mulheres que desempenharam funções de liderança,
como autoridades dentro dessas comunidades cristãs - como apontou Irineu de Lyon com certo escárnio na sua obra Adversus Haereses
(180 e.c.) -; e, assim sendo, a autoridade do bispo não era majoritária.
Para Gilvan Ventura da Silva, o monopólio sustentado pelas categorias
como dos bispos, diáconos e presbíteros, tinham como interesse as
atividades litúrgicas, visto que dentro das comunidades cristãs proto-ortodoxas havia um rápido processo de hierarquização e institucionalização42. Nas assembleias, em vias de institucionalização, as mulheres
não ocuparam ‘ministérios’ determinados, contudo, foram segregadas
às participações secundárias.
Essa proeminência feminina é conservada, de forma especial,
dentro das comunidades gnósticas. Como apontou Irineu de Lyon ao
42 SILVA, G. V. A Redefinição do Papel Feminino na Igreja Primitiva: Virgens, viúvas,
diaconisas e monjas. In: SILVA, G. V.; NADER, M. B.; FRANCO, S. P. (org.) As Identidades
no Tempo: Ensaios de Gênero, Etnia e Religião. Vitória/ES: EDUFES/PPGHis, 2006, p.309.
Volume 2
289
se referi à influência de um profeta, denominado de Marcos (150 e.c.),
dissidente de Valentino que:
É sobretudo das mulheres que ele se ocupe e, entre elas, das
mais elegantes e das mais ricas. Se ele quer seduzir alguma
de entre elas, faz-lhe este discurso lisonjeiro: ‘quero fazer-te
participar na minha Graça, já que o Pai de toas as coisas vê
sem cessar o teu Anjo diante da tua face... mantém-te pronta, como uma esposa que espera o esposo, para que sejas o
que eu sou e eu o que tu és. Instala na tua câmara nupcial a
semente da Luz. Recebe de mim o Esposo, dá-lhe lugar em ti
e encontra lugar nele. Eis que a Graça desceu sobre ti... abre
a boca e diz não importa o quê, tu profetizarás (IRINEU DE
LYON, Adversus Haeresis, I, 13.3)’
Para Irineu, o êxito das palavras do grupo herético como de
Marcos para as mulheres, se deveu, em especial, por permitir que estas profetizem (IRINEU DE LYON, Adversus Haeresis, I, 13.3), enquanto
que nas comunidades proto-ortodoxas, era-lhe proibida. Mas, para Irineu, o pior era que Marcos permitia que as mulheres atuassem como
sacerdotes na celebração da eucaristia ao seu lado; ele entrega o cálice
ás mulheres (IRINEU DE LYON, Adversus Haeresis, I, 13.4), ao oferecer a
oração da eucaristia e ao proferir as palavras de consagração.
Contudo, para Tertuliano (160-220 e.c.) o seu principal alvo
contra as práticas dessas mulheres se deve ao grupo de Marcião (85160 e.c.), seu contemporâneo, que as ordenavam em base igual ás dos
homens para os cargos de padre ou de bispo (TERTULIANO, Apologia,
125). Marcelina, uma mestra gnóstica, viajou até Roma para representar os carpocráticos (IRINEU DE LYON, Adversus Haeresis, I, 25.6), e afirmava que tinha recebido ensinamentos secretos de Maria, de Salomé
e de Marta. Outro grupo, como os montanistas reverenciavam duas
mulheres, Prisca e Maximila, como fundadoras do movimento (IRINEU
DE LYON, Adversus Haeresis, I, 25.6).
Outros grupos, como os valentinianos, as mulheres tinham direitos iguais aos dos homens, onde algumas eram reverenciadas como
profetisas, outras exerciam as funções de ensino, evangelização e de
cura, agindo muitas vezes como sacerdotes e bispos; em contrapartida, nas igrejas proto-ortodoxas as mulheres eram cada vez mais segre290 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
gadas e relegadas às funções secundárias (IRINEU DE LYON, Adversus
Haeresis, I, 13.4). Irineu de Lyon descreve que entre os valentinianos,
homens e mulheres participavam do sorteio; qualquer um poderia ser
escolhido para ser padre, bispo e diácono (IRINEU DE LYON, Adversus
Haeresis, I, 13.4). Quem recebesse a sorte era designado para assumir
o papel de sacerdote, outro ofereceria o sacramento do bispo, ou seja,
havia um rodízio de funções, bastante diferente do que ocorria nas
igrejas ortodoxas (IRINEU DE LYON, Adversus Haeresis, I, 13.4).
Eusébio de Cesaréia, comenta que depois da morte de um mestre gnóstico chamado de Montano (175 e.c.), um outro tipo de movimento gnóstico, a sua discípula Maximila dirigiu o movimento e sendo
alvo dos ataques da proto-ortodoxia fez o seguinte comentário: “sou
perseguida longe dos cordeiros como um lobo. Eu não sou um lobo. Eu
sou Palavra, Espírito e Poder” (Eusébio de Cesaréia. História Eclesiástica, V, 16, 17). Para Gilvan Ventura, as mulheres montanistas, desempenharam funções ainda mais preeminentes do que os marcionitas43,
desencadeando um desconforto que para algumas lideranças comunais
assumiram em relação à atuação de mulheres; irrompendo em proibições e interdições com maior intensidade a partir do século II, em virtude, da posição adotada pelas mulheres em alguns círculos gnósticos44.
Essas características gnósticas, foram endossadas por algumas comunidades paulinas. Um exemplo foi o documento apócrifo, do
século II e.c., denominado Os Atos de Paulo e Tecla, em que mostra
a figura de uma missionária, Tecla, que ensina, batiza e profetiza, fugindo de um casamento e da sua família45. Para o estudioso Barth
Ehrman os contos que envolviam Tecla e outras mulheres ascetas e que
acompanhavam outros missionários não eram irregularidades ou algo
inusitado no cristianismo antigo, mas uma declaração significativa de
uma corrente cristã importante para a época46 .
43 Ibidem, p.47.
44 SILVA, G. V. As relações entre o judaísmo e o cristianismo no Império Romano:
uma nova interpretação a partir do paradigma culturalista. História da historiografia.
Ouro Preto, n.05. Setembro 2010,p.308.
45 C.f. Apócrifos e Pseudoepígrafes da Bíblia. Organização de Eduardo de Proença.
São Paulo: Fonte Editorial, 2012, p. 388-400.
46 EHRMAN, B. D. Os Evangelhos Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não chegamos a conhecer. Tradução de Eliziane Andrade Paiva; revisão
técnica de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008 B, p.79.
Volume 2
291
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os papéis sexuais foram, de certa forma, reflexos no processo de hierarquização e legitimação política de um tipo de cristianismo
que se autodenomina como detentora de uma tradição. No entanto,
os grupos gnósticos nos mostram outras realidades e situações onde a
proeminência e liderança poderia ser adquirido independente do sexo,
através da gnosis.
Em suma, a partir da análise de alguns documentos contidos
na Biblioteca de Nag Hammadi e no discurso de alguns dos heresiólogos, como Irineu de Lyon, Clemente de Alexandria e Tertuliano, percebemos outras experiências de cristianismos, que se distinguia das
vivências comunais de um padrão de cristianismo que nos foi imposto
como verdadeiro e único. Portanto, o significado histórico da vitória
do cristianismo proto-ortodoxo dificilmente pode ser exagerado, pois
nos impuseram uma moralidade e uma religiosidade que constituíram
nossa identidade e a civilização ocidental.
292 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
A CONSTRUÇÃO DA DIVINDADE
CRISTÃ ORTODOXA NA PERSPECTIVA DE
NESTÓRIO DE CONSTANTINOPLA E
O CONFLITO COM O PODER IMPERIAL
(SÉC. V D.C.)
Daniel de Figueiredo1
A história da doutrina cristã na Antiguidade Tardia foi atravessada por diversos conflitos que emergiram na hierarquia eclesiástica
em torno das definições acerca da verdadeira divindade a ser adorada
pelos cristãos. Os debates que circundavam esses conflitos apresentavam grandes repercussões nos contextos em que emergiram, tendo em
vista a coexistência de diferentes formas de religiosidades na sociedade
romana do período e a paixão com que comunidades inteiras se engajavam na defesa da “verdadeira” fé. Contudo, dada a diversidade político-cultural do Império Romano, esses conflitos devem ser analisados
de forma mais ampla, de modo a não os restringir apenas aos confrontos de ideias entre aqueles que buscavam emplacar seus dogmas como
universais. Outras perspectivas devem ser contempladas, sobretudo
quando se pode observar, através dos documentos, a existência de tensões relacionadas à afirmação de autoridade e poder pelos teólogos
cristãos do período, bem como às questões identitárias subjacentes entre as diferentes comunidades de crentes que eles lideravam.
Outra perspectiva a se considerar na análise desses enfrentamentos, que os tornam tão instigantes quanto entender a riqueza
daquelas disputas teológico-filosóficas e das relações sociais decorrentes delas, é o papel do poder imperial nesses conflitos. Na medida em
que o imperador romano vai assumindo, paulatinamente, o encargo
de zelar pela piedade cristã, ou seja, o de guardião da definição do
1 Doutorando em História Antiga pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
– UNESP/Franca. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo – FAPESP.
Volume 2
293
Deus correto, essa atribuição vai se constituindo em uma das tantas
variáveis que o legitima para o exercício da sua função. Nesse sentido é
que buscaremos trazer algumas considerações acerca das ações tomadas pelo imperador Teodósio II (408-450) frente ao conflito que emergiu na hierarquia eclesiástica oriental em decorrência das divergências
entre as ideias advogadas pelos bispos Nestório de Constantinopla e
Cirilo de Alexandria, na primeira metade do século V d. C. Essa disputa,
que ficou conhecida pela historiografia como Controvérsia Nestoriana,
esteve relacionada à natureza do corpo do Cristo encarnado e do estatuto a ser atribuído à Virgem Maria, se mãe de Deus ou mãe de Cristo.
As ideias de Nestório estiveram relacionadas à negação do uso do apelativo Theotokos, que era aplicado à Virgem Maria e à natureza da divindade que veio ao mundo através dela. Suas formulações doutrinais
e a percepção que Nestório teve das ações do imperador Teodósio II
em relação a elas serão analisadas aqui a partir da apologia escrita por
ele, denominada Livro de Heraclides.2
I. As ideias de Nestório e a controvérsia em torno
delas
Nestório foi indicado pelo bispo João de Antioquia e convocado pelo imperador Teodósio II, em 428, para ocupar o episcopado da
capital imperial, Constantinopla, deixado vago em razão da morte do
bispo Sisínio. Ele era nativo de Cesareia Germanicia, cidade localizada
na província da Síria Eufratensis, e segundo uma antiga tradição siríaca tinha ascendência persa. Seus avós eram indivíduos não cristãos,
2 O Livro de Heraclides é dividido em duas partes. A primeira na forma de um
diálogo em que Nestório responde a questões teológicas apresentadas por um
interlocutor, Sofronius. A segunda parte foi escrita no final da sua vida e compreende
uma defesa da sua posição doutrinária e um relato histórico da controvérsia citando,
ao longo da sua narrativa, algumas cartas do bispo Cirilo de Alexandria, dos imperadores, Teodósio II e Valentianiano III, e de funcionários da administração imperial.
Nestório traz indicações desde a sua ida para Constantinopla, em 428, perpassando
pelo Concílio de Éfeso I, em 431, pelas negociações que se seguiram a ele e chegando
aos acontecimentos que circundaram o Concílio de Éfeso II, em 449.
294 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
oriundos do leste do rio Tigre e há indicações de que ele seria primo,
pelo lado paterno, de Teodoreto de Ciro, bispo que veio a desempenhar um papel de destaque na defesa das ideias nestorianas, durante
o desenrolar da Controvérsia Nestoriana3. É provável que, até a sua
transferência para a capital imperial, Nestório não houvesse se deslocado para mais longe do que a região de Antioquia, onde teria aprendido as letras gregas e sido aluno de Teodoro de Mopsuéstia, a quem
o bispo Cirilo de Alexandria atribuiria, mais tarde, a origem das suas
“blasfêmias” contra o Cristo4. Assim como João Crisóstomo, que comandara a Sé episcopal de Constantinopla na passagem do IV para o
V séculos d.C., Nestório era considerado um orador inflamado, possuidor de uma voz poderosa e, por ocasião do sermão inaugural do seu
episcopado, em 10 de abril de 428, na presença do imperador, teria se
expressado nos seguintes termos: “Dai-me, oh imperador, a terra purgada de heréticos e eu te darei o céu em troca! Ajuda-me a destruí-los
e eu assistirei a ti vencer os persas!”5
Algumas informações acerca dos primeiros passos de Nestório
no ofício episcopal são relatos que lhe foram atribuídos por terceiros e
muito pouco delas podemos confirmar através da nossa documentação.
Os escritos que são atribuídos a ele e que se têm conhecimento nos dias
atuais são um livro de homilias e sermões, um livro de cartas, os tratados
Tragédia e Livro de Heraclides e uma carta endereçada a certo indivíduo
de nome Cosmas. Com exceção dos dois últimos trabalhos, os demais
não apresentam tradução para uma língua moderna, estando reunidos
na obra Nestoriana, em idioma siríaco, editados por Friedrich Loofs6.
Contudo, é plausível inferir que o ambiente que o circundava
em Constantinopla não lhe tenha sido dos mais acolhedores, dada a
disposição belicosa a ele atribuída, de modo que ele tenha se antago3 NAU, François. Introduction. In : NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Trad.
F. Nau avec le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, p.
v-vi.; CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 63. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
4 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 71. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
5 SOCRATE DE CONSTANTINOPLE. Histoire Ecclésiastique. Livro VII. Vol. 5. Trad.
Pierre Périchon et Pierre Maraval. Paris: Les Éditions Du Cerf, 2004, VII, 29.
6 LOOFS, Friedrich. Nestorius and his place in the history of Christian doctrine.
Cambridge: Cambridge University Press, 1914, p. 1-6.
Volume 2
295
nizado a interesses de membros da hierarquia eclesiástica, da Corte e
da população da capital. Embora Nestório afirme no Livro de Heraclides
de que havia sido indulgente com os heréticos7, há relatos de que ele
possa ter empreendido perseguições a arianos, novacianos, macedonianos e quartodecimanos na capital imperial logo nos primeiros dias
após a sua posse8, bem como teria estendido essas perseguições para
fora da sua jurisdição episcopal, nas províncias da Ásia, Lídia e Cária9.
Outras acusações lhes são atribuídas de tentar enquadrar os monges
da capital imperial a uma vida reclusa, uma vez que é detectada a presença deles em diversas atividades que resultaram em tumultos entre
facções na capital imperial10.
A disputa teológica que Nestório veio a travar contra Cirilo
de Alexandria, além de se inserir nesse ambiente de conflitos dentro
da capital imperial, apresentou outro ingrediente relacionado à organização da hierarquia eclesiástica oriental. Por ocasião do Concílio de
Constantinopla, em 381, a capital do Império do Oriente havia sido
alçada ao segundo lugar de preeminência entre as Sés episcopais, após
a cidade de Roma, posição que até então era ocupada pela cidade de
Alexandria. Essa nova disposição já havia sido motivo de desentendimentos entre os bispos João Crisóstomo e Teófilo de Alexandria, antecessor e tio de Cirilo. Portanto, tanto questões internas quanto externas relacionadas à política administrativa da Igreja estiveram associadas à disputa teológica entre ambos os bispos.
Tanto Cirilo quanto Nestório, a despeito das suas ideias divergentes, reivindicavam ser representantes das formulações doutrinais
estabelecidas no Concílio de Niceia (325) e aperfeiçoadas no Concílio
de Constantinopla (381)11. Desse modo, ambos subscreviam a fórmu7 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 147.
8 SOCRATE DE CONSTANTINOPLE. Histoire Ecclésiastique. Livro VII. Vol. 5. Trad.
Pierre Périchon et Pierre Maraval. Paris: Les Éditions Du Cerf, 2004, VII, 29.
9 TRAINA, Giusto. 428 AD: an ordinary year at the end of Roman Empire. Translated by Allan Cameron. Princeton: Princeton University Press, 2011, p. 23.
10 RUSSELL, Norman. Cyril of Alexandria. London: Routledge, 2000, p. 31.
11 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 10. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007;
NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec le
concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 209-210.
296 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
la trinitária uma ousia e três hispostasis12, que estabeleceu que uma
única entidade divina se manifestava em três aspectos diferentes: o
Pai, o Filho e o Espírito Santo. Se pela ortodoxia vigente Cristo teria
que ser verdadeiramente homem e Deus ao mesmo tempo, a questão
que também passou a permear os debates nesse estágio do desenvolvimento da ortodoxia cristã se voltou para o estatuto que deveria ser
atribuído à Virgem Maria nessa circunstância, se Theotokos (Portadora
de Deus) ou Christotokos (Portadora de Cristo).
A primeira notícia que temos sobre o início da Controvérsia
Nestoriana chegou até nós por meio de uma Carta Festal13, pronunciada pelo bispo Cirilo de Alexandria, provavelmente entre os anos de
428 e 429. Embora o bispo alexandrino não faça referência direta a
Nestório nessa homilia, os contornos do seu pensamento a respeito da
unidade de Cristo, que se opunha à natureza dual da divindade que ele
atribuía a Nestório, já são esboçados:
É assim, e não de outra forma, que se pode pensar que
aquele que nasceu é Deus por natureza e que da Virgem que
o deu à luz pode-se dizer ser mãe, não simplesmente pela
carne e pelo sangue, como para nossas mães em relação a
nossa condição, mas, sobretudo mãe do Senhor e Deus, que
tomou nossa semelhança14.
Como destacamos antes, os conflitos enfrentados por Nestório no início do seu episcopado deixam transparecer a diversidade político-religiosa na capital imperial. Essa diversidade parece estar presente também na cidade de Alexandria, jurisdição episcopal de Cirilo, pois
Nestório encontrou brechas naquela comunidade para estender a sua
própria influência para dentro da diocese do Egito. As cartas trocadas
entre ambos os bispos, embora busquem enfatizar suas divergências
12 Termo grego adaptado para o uso teológico que significa “realidade individual
ou pessoa”. Na teologia Trinitária oriental foi padronizado pelos Padres Capadocianos na fórmula “três hipostasis ou pessoas em uma ousia ou substância”
13 Cirilo de Alexandria escreveu vinte e nove Cartas Festais entre os anos de 414
e 442. Elas não fazem parte da correspondência epistolar do bispo alexandrino, pois
se constituem de homilias de conteúdo teológico e exegético, que também serviam
para proclamar a data da Páscoa de cada ano.
14 CYRILLE D’ALEXANDRIE. Lettre Festale XVII. Tome III. Trad. Marie-Odile Boulnois
et Bernard Meunier. Paris: Les Éditions Du Cerf, 1998.
Volume 2
297
teológicas, deixam, contudo, transparecer de forma clara essas disposições de natureza político-administrativas que estavam subjacentes
aos debates entre ambos. Essa disposição pode ser observada na carta
escrita por Cirilo a Nestório, no início de 430:
Alguns homens continuam tagarelando, como eu tenho ouvido, sobre a resposta que dei a Sua Reverência, e fazem isso,
com frequência, mirando as reuniões de altos funcionários.
Talvez porque eles pensem que estão agradando aos seus
ouvidos, proferem tão imprudentes palavras. Eles fazem isso
mesmo que não tenham sido injustiçados, mas devidamente condenados: um de ser injusto com os cegos e os pobres,
outro de brandir a espada contra a mãe e o outro de ter roubado dinheiro de outra pessoa com a ajuda de uma serva.
Eles tiveram uma reputação duradoura tão ruim que eu não
desejaria isso a seus piores inimigos. [...] (2) Mas eles, com as
bocas cheias de maldições e amarguras, irão se defender perante o Juiz de todos. [...] Gostaria agora de voltar-me de novo
para o que mais me convém e lembrá-lo, como um irmão em
Cristo, que [...] (3) Nós dissemos que, embora as naturezas
sejam diferentes, elas foram reunidas para uma verdadeira
unidade, existindo um Cristo e Filho em ambos. As diferenças das naturezas não são destruídas pela união, mas sim que
a divindade e a humanidade formaram para nós um Senhor
Jesus Cristo e um Filho através da combinação inefável e incompreensível para uma unidade. Então, embora Ele tenha
existência anterior no tempo e foi gerado do Pai, Ele é dito
ter sido gerado também conforme a carne de uma mulher.
[...] (7) E eu escrevo essas coisas agora por amor em Cristo,
exortando-o como a um irmão e chamando-o a testemunhar,
na presença de Cristo e dos seus anjos escolhidos, que você
pensa e ensina essas doutrinas conosco, a fim de que a paz
das Igrejas possa ser salva e os laços de amor e concórdia entre os sacerdotes de Deus continuem intactos (Grifo nosso).15
Nessas cartas trocadas no início da querela, percebe-se que
enquanto Cirilo advogava uma união das naturezas (henosis), Nestório
falava apenas em conjunção, vínculo (synapheia) entre as naturezas
divina e humana no momento da encarnação16. Assim, os primeiros
15 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 4. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
16 BRAATEN, Carl E. Modern interpretations of Nestorius. Church History, vol. 32, n.
298 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
sermões pregados por ele, em Constantinopla, enfatizavam a necessidade de se estabelecer um correto apelativo para se referir à Virgem
Maria. Embora ele não fizesse restrição ao uso do termo Theotokos17
para designá-la, uma vez que entendia se tratar de uma designação
já enraizada na tradição popular, Nestório afirmava que esse termo
deveria ser corretamente explicitado, de modo a não deixar dúvidas
de que a Virgem não dera à luz a Deus, como uma deusa, mas, sim, à
parte humana de Cristo:
Portanto, é justo e digno das tradições do Evangelho que o
corpo é o templo da divindade do Filho, e um templo que se
juntou à divindade de acordo com certa união sublime e divina e que essa natureza divina fez sua própria as coisas do seu
corpo. Mas, em nome desse relacionamento atribuir também à sua divindade as propriedades da carne unida, quero
dizer, nascimento, sofrimento e morte é, meu irmão, não só
um ato de uma mente verdadeiramente desviada, como a
dos pagãos ou dos loucos Apolinário e Ário, e outras heresias, mas ainda mais grave do que eles. Pois para esses que
foram arrastados ao erro de relacionamento, fazem a Palavra
de Deus participar da nutrição do leite nesse relacionamento, e compartilhar no crescimento, pouco a pouco, do medo
no tempo da sua paixão e estar na necessidade de assistência
angelical. Seria como a circuncisão, sacrifício, suor, fome e
sede que aconteceu a seu corpo por nossa causa, estivessem
unidos na adoração à divindade.18
Para explicar a sua concepção de relacionamento divino e humano em Cristo, Nestório empregou o termo prosopon19, que, na for3. Cambridge University Press. American Society of Church History, Sep. 1963, p. 259.
17 A designação de Theotokos para Maria era corrente ao menos desde o começo do século IV d.C. e significava que Maria foi portadora da humanidade de Jesus
Cristo. Tendo em vista a proximidade entre divino e humano em Cristo (communicatio idiomatum) ela poderia ser chamada de Portadora de Deus (ANASTOS, Milton V.
Nestorius was orthodox. Dumbarton Oaks Papers, Published by: Dumbarton Oaks,
Trustees for Harvard University, Vol. 16, 1962, p. 122), que numa linguagem menos
apurada, alguns escritores traduzem por “Mãe de Deus”.
18 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 5. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
19 Nessa visão nestoriana, a pessoa do Logos e a pessoa do homem Jesus contemplam uma a outra como se elas estivessem realmente unidas, mas na forma de
uma união moral.
Volume 2
299
ma confusa que tentou explicá-lo, pareceu na concepção de Cirilo, que
dividia a natureza do Cristo encarnado em dois seres distintos e uma
relação de subordinação entre eles:
É por isso que foi necessário à divindade, para se renovar, criar
e dar-lhe a forma divina, a fim de passar de sua forma divina
à forma de servo. Era necessária, também, a humanidade
para que a forma do servo tomasse a forma de Deus e que
Deus tomasse a forma do servo, que este torna-se aquele
e aquele neste, em prosopon; este e aquele permaneceram
em suas naturezas; mantendo obediência sem pecado por
causa de sua obediência sublime e por isso ele foi entregue à
morte para salvação de todos. [...] De modo que a união das
naturezas ocorre no prosopon e não na sua própria natureza;
mas as naturezas permanecem com suas propriedades e há
um prosopon sem separação e sem distinção.20
A esses argumentos de Nestório, Cirilo se opôs de forma veemente acusando o seu colega de episcopado de tentar dividir o Cristo,
conforme Ário havia feito anteriormente, promovendo uma subordinação do Filho em relação ao Pai, numa perspectiva adocionista21.
Com esses argumentos, Cirilo escreveu ao bispo de Roma, Celestino
e obteve apoio dele em sua investida contra Nestório22. Em agosto
de 430, amparado, também, pelo trabalho do monge João Cassiano,
de Marselha, De incarnatione Domini contra Nestorianos23, Celestino
convocou um Concílio em Roma e condenou as ideias de Nestório, escrevendo em seguida para Cirilo decretando a seguinte sentença:
Assim, desde que o nosso autêntico ensinamento está em
harmonia com o Vosso, e usando de nossa autoridade apostólica, você cumprirá este decreto com a firmeza necessária.
20 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 267-268.
21 CYRIL OF ALEXANDRIA. Five Tomes Against Nestorius. Trad. Edward Bouverie Pusey. Oxford: James Parker and Co., and Rivingtons, 1881, I, 1, p. 6-7. A cristologia adocionista advogava a lógica que, ao ser adotado por Deus, Jesus teria sido exaltado ao
status divino, sem, contudo, ser divino por natureza ou da mesma essência desse ser.
22 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 11. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
23 RUSSELL, Norman. Cyril of Alexandria. London: Routledge, 2000, p. 38.
300 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Dentro de dez dias, contados a partir do dia desse aviso, ele
deve ou condenar seus maus ensinamentos por uma confissão escrita e fortemente afirmar a crença a respeito do nascimento de Cristo, nosso Deus, que a igreja de Roma, a igreja
de vossa santidade e a devoção universal defende ou, se ele
não fizer isso, vossa santidade, pelos cuidados com a Igreja,
deve imediatamente entender que ele deva ser removido do
nosso corpo, em todos os sentidos24.
Amparado pelo bispo Celestino de Roma, Cirilo também obteve o apoio dos bispos Rufus de Tessalônica, Menão de Éfeso, Juvenal
de Jerusalém, pela maioria dos bispos das cidades localizadas nas dioceses do Egito, Dácia e Macedônia e clérigos e monges dissidentes na
capital imperial, Constantinopla25. Em novembro de 430, Cirilo reuniu
um Sínodo em Alexandria, que emitiu uma carta sinodal impondo sanções a Nestório na forma de doze anátemas dentre os quais um deles
afirmava: “Se alguém separar as hipostaseis no único Cristo depois da
união, associando-as apenas por uma conjunção de acordo com a dignidade, isto é, pela autoridade ou poder, e não por uma união real, deixe-o ser anátema”26. Nestório, em seguida, pregou dois sermões em
Constantinopla e os enviou a Cirilo contra-argumentando esses anátemas27, bem como tentou, posteriormente, explicitar as contradições
de Cirilo no Livro de Heraclides:
O prosopon comum das duas naturezas é o Cristo. É dele
mesmo que as duas naturezas se servem como de um prosopon no qual e pela ajuda do qual elas sejam conhecidas
em essência todas as duas, a divindade e a humanidade, sem
divisão e com divisão. [...] Ele é um em essência.28.
24 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 12. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
25 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 16, 18, 42, 72, 101. The Fathers of the Church.
Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of
Press, 2007.
26 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 17. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
27 DRIVER, G. R; HODGSON, Leonard (1925). Introdution. NESTORIUS. The Bazaar
of Heracleides. Translated from the syriac by G. R. Driver and Leonard Hodgson. Oxford: Oxford University Press/Clarendon Press, 2002, p. xviii.
28 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
Volume 2
301
Ou seja, parece que o que Nestório entendia por prosopon,
Cirilo entendia por hipostasis. Milton Anastos29 também constata essa
confusão no uso desses termos e indica que essa equivalência entre
prosopon e hipostasis somente seria estabelecida no Concílio de Calcedônia (451). Nestório, contudo, contava com o apoio do bispo João
de Antioquia, Teodoreto de Ciro e outros prelados cujas Sés estavam
localizadas na diocese do Oriente30. As ideias de Nestório, como mais
tarde Cirilo veio denunciar, tiveram sua origem nos ensinamentos dos
bispos orientais Diodoro de Tarso (?-392) e Teodoro de Mopsuéstia
(350-428), já mortos naquela ocasião, mas bastante reconhecidos pelos prelados orientais pelos esforços que empreenderam no combate
ao arianismo durante seus episcopados31.
II. A atuação do imperador Teodósio II no conflito
Em decorrência desses debates, o imperador Teodósio II escreveu a Cirilo, em novembro de 430, para informá-lo da sua decisão
de convocar um Concílio para o dia de Pentecostes do ano seguinte32,
com o objetivo de colocar termo às disputas33. A partir dessa decisão
do imperador, percebe-se que tanto Cirilo quanto Nestório passaram
a angariar apoiadores de prestígio na hierarquia eclesiástica. Mas, é
digno de registrar que esse apoio se extrapolou para os funcionários
da administração imperial, sobretudo daqueles estabelecidos na Corte
imperial34. Desse modo, com o impasse estabelecido, o Concílio, que
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 439.
29 ANASTOS, Milton V. Nestorius was orthodox. Dumbarton Oaks Papers, Published by: Dumbarton Oaks, Trustees for Harvard University, Vol. 16, 1962, p. 123-124.
30 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letters 13, 63. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
31 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 66, 68, 69, 71. The Fathers of the Church. Vol. 76.
Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
32 7 de junho de 431.
33 ACTA CONCILIORUM OECUMENICORUM. Tomus I, Collectio Vaticana. Edidit
Eduard Schwartz et al. Berlin et Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1914-, 73-74.
34 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letters 96. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007;
302 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
antes estava previsto para ocorrer em Constantinopla, foi transferido
para a cidade de Éfeso, na igreja consagrada à Virgem Theotokos, ou
seja, um campo hostil a Nestório.
Na sacra imperial, que determinou a abertura do Concílio, Teodósio II nomeou um alto funcionário imperial, o comes Candidiano35,
para que mantivesse a ordem das sessões, com indicações expressas
de não intervir nas questões do dogma. Teodósio II instruiu, ainda, aos
participantes que nenhum dos bispos poderia se ausentar do Concílio, nem tratar de outros assuntos alheios à definição da verdadeira
fé. Nestório foi autorizado, por questão de amizade, ser acompanhado pelo comes Irineu36, que também não deveria interferir nos trabalhos37. Essa atitude do imperador de permitir que Nestório fosse
acompanhado no Concílio por dois altos funcionários imperiais aliados
a ele, parece demonstrar que Teodósio II se interessava pela causa nestoriana38. Por outro lado, essa decisão parece, também, ambígua, pois
permitiu que o Concílio se reunisse na arena de um bispo aliado de
Cirilo, Menão de Éfeso.
A atividade epistolar nesse momento foi intensa, conforme
pode-se acompanhar pela correspondência epistolar de Cirilo de Alexandria. No dia doze de junho de 431, o Concílio ainda não havia se
reunido, mas se encontravam em Éfeso: Nestório acompanhado de dez
bispos, o comes Irineu, o comes Candidiano representando o imperador, Cirilo acompanhado de cinquenta bispos, Juvenal de Jerusalém
com os bispos da Palestina, Flaviano de Filipe com os bispos da Macedônia, o diácono Besulas, representando as igrejas do norte da África,
e Menão de Éfeso39. A delegação dos representantes do bispo CelestiNESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec le
concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 388.
35 MARTINDALE, John Robert. The Prosopography of the later Roman Empire - 2.
AD 395-527. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 257-258.
36 MARTINDALE, John Robert. The Prosopography of the later Roman Empire - 2.
AD 395-527. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 624-628.
37 ACTA CONCILIORUM OECUMENICORUM. Tomus I, Collectio Vaticana. Edidit
Eduard Schwartz et al. Berlin et Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1914-, p. 120s.
38 NESTORIUS. Lettre à Cosmas. Traduit en français par F. Nau avec le concours P.
Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910.
39 NAU, François. Introduction. In : NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas.
Trad. F. Nau avec le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs,
1910, p. xix.
Volume 2
303
no, composta pelos bispos Arcádio e Projecto e pelo sacerdote Filipe,
só chegariam a Éfeso em 10 de julho, com instruções de apoio a Cirilo.
Em 21 de junho, Cirilo recebeu uma carta de João de Antioquia, por intermédio dos bispos Alexandre de Hierápolis e Alexandre
de Apamea, dizendo que esperava chegar a Éfeso em 5 ou 6 dias40.
Nessa carta, que justificava o seu atraso e dos demais bispos orientais,
João recomendou a Cirilo que ele “faça o que tiver que ser feito”41. A
mensagem é ambígua, pois a ordem expressa do imperador era que o
Concílio só fosse instalado com a presença de todos os bispos convocados42. Contudo, Cirilo interpretou essa recomendação do bispo João
como se ele estivesse de acordo que o Concílio fosse aberto, mesmo na
sua ausência e dos bispos orientais que o acompanhavam na viagem43.
Entretanto, para que o Concílio fosse iniciado e suas deliberações fossem acatadas, era necessário que o representante do imperador, o Comes Candidiano, lesse a sacra de abertura com as regras
estipuladas por Teodósio II. Em uma manobra para contornar esse impeditivo, Cirilo pediu a Candidiano que lesse a sacra, com o argumento
de que todos pudessem saber das intenções do imperador antes que
o Concílio fosse aberto. Sob pressão dos bispos presentes, Candidiano leu o teor daquele documento e, imediatamente após o ato dessa
leitura, Cirilo declarou o Concílio aberto e assumiu a sua presidência,
no dia 22 de junho de 43144. Nestório se recusou a participar das reuniões, com o argumento que temia por sua segurança, uma vez que a
população da cidade fora insuflada contra ele pelo bispo Menão45. Na
40 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 22. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007;
NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec le
concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 188.
41 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 23. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
42 ACTA CONCILIORUM OECUMENICORUM. Tomus I, Collectio Vaticana. Edidit
Eduard Schwartz et al. Berlin et Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1914-, p. 73-74 e 120s.
43 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 189. CYRIL
OF ALEXANDRIA. Letter 22. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I.
McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
44 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 371-373.
45 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
304 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
primeira sessão do Concílio, Cirilo e os demais bispos reunidos leram
o credo de Niceia, uma carta escrita por Nestório46 e alguns extratos
de seus escritos e os rejeitaram com anátemas. Em seguida, a carta
escrita por Cirilo contendo os doze anátemas contra Nestório47 foi lida
e eles foram confirmados. Assim, a assembleia reunida decretou a excomunhão e a deposição de Nestório48.
A historiografia tem registrado que Candidiano se mostrou ingênuo ao entrar no jogo de Cirilo e ler a sacra imperial sem que todos
os bispos convocados estivessem presentes ao Concílio49. Contudo,
Candidiano era o mais alto funcionário da Corte de Teodósio II (Comes
Sacrarum Largitionum)50 e partidário de Nestório. Portanto, devia possuir experiência política que sua função requeria, bem como interesses
a defender. Logo, pode-se supor que o atraso de João de Antioquia
e a leitura antecipada da sacra por Candidiano não nos parece mera
coincidência. Essas atitudes podem nos indicar mais um jogo político
entre Candidiano e os nestorianos para que Cirilo iniciasse o Concílio
fora das regras estabelecidas pela sacra imperial e ele pudesse vir a
ser anulado posteriormente. Essa disposição nos leva a crer que o imperador, embora pudesse estar sujeito à persuasão de funcionários e
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 199. CYRIL
OF ALEXANDRIA. Letters 23 e 95. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by
John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007
46 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 5. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
47 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 17. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
48 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letters 24-26. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
49 GRAUMANN, Thomas. Theodosius II and the politics of the first Council of Ephesus. In: KELLY, Christopher. (Org.) Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in late
Antiquity. Cambridge: Cambridge University Press, 2013 (e-Book); RUSSELL, Norman.
Cyril of Alexandria. London: Routledge, 2000, p. 47-48.
50 O Comes Sacrarum Largitionum tratava-se de um funcionário imperial da administração palaciana que supervisionava a coleta de impostos, tais como os direitos
aduaneiros e quotas diretas de metal precioso usado para financiar os donativos
concedidos periodicamente ao exército. Também era responsável por administrar as
casas das moedas, minas, pedreiras e fábricas têxteis (KELLY, Christhopher. Emperors, government and bureaucracy. In: CAMERON, Averil; GARNSEY, Peter. (Org.). The
Cambridge Ancient History vol. XIII: the late Empire, A.D. 337-425. Cambridge, UK:
Cambridge University Press, 2008, p. 166).
Volume 2
305
bispos adeptos a ambas as correntes, também os manobravam com a
finalidade de alcançar seus objetivos: utilizar-se da diversidade existente na hierarquia eclesiástica e na estrutura administrativa imperial
com a finalidade de alcançar a unidade imperial, enfraquecendo ambas as facções em disputa.
No dia 26 de junho, contudo, João de Antioquia chegou a
Éfeso com sua delegação, de quarenta e três bispos, que se reuniram
num contra-Concílio, com o apoio e presença de Candidiano. Dentre as
deliberações, decretaram as excomunhões de Cirilo e Menão de Éfeso. Relatos desses acontecimentos foram, logo em seguida, enviados
ao imperador, tanto por Cirilo quanto por Candidiano51. Candidiano
e agentes nestorianos, dentre eles o comes Irineu, tentaram impedir
que os relatos de Cirilo chegassem ao imperador, em Constantinopla.
Com o apoio do arquimandrita de Constantinopla, Dalmácio, agentes
de Cirilo lograram ter acesso ao imperador e expor a sua versão dos
acontecimentos. Entretanto, após receber cartas de Nestório e do comes Irineu, Teodósio II ordenou a deposição de Cirilo52.
Em consequência dessas manobras, o imperador destacou o
comes João53 para que fosse a Éfeso. Na sua chegada, em agosto de
431, João colocou sob prisão Cirilo, Menão e Nestório54. As negociações se intensificam nesse momento. Em setembro do mesmo ano,
o imperador recebeu, em Calcedônia, oito delegados de cada facção.
Como nenhum acordo foi alcançado, Teodósio II dissolveu o Concílio,
determinou o retorno de Nestório para o seu monastério de origem e
permitiu que bispos cirilianos entrassem em Constantinopla e consagrassem Maximiano como novo bispo da capital imperial55. Percebe51 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 161. CYRIL
OF ALEXANDRIA. Letter 27. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I.
McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
52 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 374-383.
CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 28. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by
John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
53 MARTINDALE, John Robert. The Prosopography of the later Roman Empire - 2.
AD 395-527. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 596.
54 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 27-28. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
55 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
306 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
-se, nesse momento, que em carta escrita por um secretário de Cirilo,
Epifânio, a Maximiano de Constantinopla, constava uma extensa relação de presentes e ouro que deveriam ser entregues a funcionários
influentes na Corte imperial, em quantidades dobradas para aqueles
palacianos que fossem hostis à causa ciriliana56. Após esses acontecimentos, sabemos que, no final de outubro do ano de 431, Cirilo já se
encontrava em Alexandria57.
Os bispos orientais não aceitaram a condenação de Nestório
e mobilizaram aliados na Corte, pois podemos constatar a presença do
comes Irineu intercedendo por Nestório58. O próprio Cirilo, também,
empreendeu esforços junto ao imperador para persuadi-lo da correção da sua doutrina:
Eu escrevi um tratado sobre a Encarnação do Filho de Deus
para o fiel imperador, que eu anexo para sua santidade. Seria
adequado que você o lesse e, se julgar adequado, que também seja lido pelos irmãos fiéis. Pois eu também li, antes de
todo clero e de todos os bispos que se reúnem comigo em
Alexandria, as cartas enviadas por você a mim59.
Em abril de 432, Teodósio II determinou que a reconciliação
fosse alcançada. Para isso, os bispos orientais deveriam abandonar
Nestório, mas, ao mesmo tempo, os bispos cirilianos deveriam retirar
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 388; CYRIL
OF ALEXANDRIA. Letters 96 e anexo 4. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007; ACTA
CONCILIORUM OECUMENICORUM. Tomus I, 1, 5, Collectio Vaticana. Edidit Eduard
Schwartz et al. Berlin et Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1914-, p. 135.
56 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 374-383.
CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 28. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by
John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
57 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 33. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
58 ACTA CONCILIORUM OECUMENICORUM. Tomus I, 1, 5, Collectio Vaticana. Edidit Eduard Schwartz et al. Berlin et Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1914-, p. 131135 ; NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 175.
59 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 74. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
Volume 2
307
os doze anátemas lançados contra ele. Como mediadores, o imperador destacou o bispo Acácio de Bereia, o decano dos bispos orientais, o anacoreta Simão Estilita e o tribuno Aristolau60. Através dessa
intermediação, com o auxílio do bispo oriental Paulo de Emesa, que
juntamente com Aristolau se revezavam entre Antioquia e Alexandria, um acordo foi alcançado, em 433, que ficou conhecido como a
Fórmula da Reunião61. Nesse acordo, João de Antioquia acabou por
aceitar a deposição e excomunhão de Nestório, sem que fizessem
menção à retirada dos doze anátemas, contudo a contraparte exigida
de Cirilo foi aceitar um credo em que as ideias de Nestório estavam
implícitas na sua formulação:
(1) Assim reconhecemos nosso Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, ser perfeito Deus e perfeito homem feito de alma dotada de razão e de corpo, gerado do Pai antes
dos tempos em relação a sua divindade e o mesmo nasceu
da Virgem Maria de acordo com a sua humanidade, em dias
recentes para a nossa salvação, consubstancial com o Pai na
sua divindade e consubstancial conosco na sua humanidade.
A união das naturezas foi efetuada, portanto nós confessamos um Cristo, um Filho, um Senhor. Em virtude desse entendimento da união que não envolve fusão, reconhecemos
a Virgem Santa como Theotokos, porque Deus a Palavra foi
‘feita carne’ e ‘tornou-se homem’ e unindo-se no templo que
tomou dela como resultado da sua concepção. Quanto aos
termos usados sobre o Senhor nos escritos dos Evangelhos
e apostólicos, nós reconhecemos que os teólogos trataram
alguns como compartilhados porque eles se referiam a uma
60 MARTINDALE, John Robert. The Prosopography of the later Roman Empire - 2.
AD 395-527. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 146-147; NESTORIUS.
Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec le concours P.
Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 450-452; CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 33. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007; ACTA CONCILIORUM
OECUMENICORUM. Tomus I, 1, 7, Collectio Atheniensis. Edidit Eduard Schwartz et al.
Berlin et Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1914-, p. 131-135.
61 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 399-439.
CYRIL OF ALEXANDRIA. Letters 36-40, 47, 90, anexos 2 e 3. The Fathers of the Church.
Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of
Press, 2007.
308 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
pessoa, alguns se referiam a duas naturezas separadamente, tradicionalmente ensinando a aplicação dos termos divinos para a divindade de Cristo e os termos humildes para a
sua humanidade62 (de Cirilo para João de Antioquia. Destaques nossos e do autor).
Na sequência desses acontecimentos, tanto Cirilo quanto João
de Antioquia passaram a ser questionados pelos seus seguidores acerca das concessões que fizeram de modo que o acordo entre eles fosse
assegurado. Cirilo se viu em uma situação de fragilidade por ter cedido
em questões doutrinais que, segundo seus aliados de primeira hora,
pareciam centrais na sua doutrina e não poderiam ser abandonadas.
João de Antioquia, por sua vez, foi questionado por ter confirmado a
excomunhão e deposição de Nestório63. Em 436, Nestório, depois de
ser banido para Petra, na província da Arábia, seria exilado, definitivamente, pelo imperador em um oásis no interior do Egito64. Parece que
da sua exoneração (431) até o seu exílio definitivo (436), Nestório continuou empreendendo negociações para reverter a sua excomunhão
e fosse chamado de volta por Teodósio II a Constantinopla, situação
que o colocaria novamente em condição de poder e prestígio frente
ao episcopado da capital imperial e dos seus adversários cirilianos65.
Nessa ocasião, os bispos orientais, dentre eles Teodoreto de
Ciro66, começaram a defender as ideias de Diodoro de Tarso e Teodoro
de Mopsuéstia, a quem Cirilo atribuíra a origem das ideias de Nestório67. Em vista disso, Teodósio II ordenou que os bispos orientais abandonassem a resistência a Cirilo e João de Antioquia68. Novamente, um
62 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letters 39. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
63 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letters 40, 45, 54, 93. The Fathers of the Church. Vol. 76.
Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
64 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 516-521.
65 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letters 37, 73, 103. The Fathers of the Church. Vol. 76.
Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
66 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letters 46, 63. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
67 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 71. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
68 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
Volume 2
309
fluxo intenso de cartas é percebido desse período até a morte de Cirilo, em 444. Nelas, continuamos percebendo os agentes do imperador
atuando na mediação entre ambas as facções:
E aqueles que resistem aos dogmas da religião ou ao culto a
Deus, “recalcitram contra o aguilhão”. Ferem suas próprias
vidas ofendendo Cristo e divertindo-se em calúnias contra
ele. Mas é estranho à alma de um bispo, a quem foi atribuído
presidir o povo, anatematizar com a língua os ensinamentos
poluídos e envenenados de Nestório, mas ter a mente cheia
com eles, transtornando as almas de seus irmãos por quem
Cristo morreu. Portanto, eu tenho escrito, também, para o
meu senhor, o mais admirável tribuno Aristolau, a quem vossas piedades deverão também escrever. E eu escrevo para
alguns outros também69 (Para os sacerdotes Máximo e João
e o arquimandrita Talássio, destaque do autor).
A geração de novos prelados que sucedeu aqueles que iniciaram o conflito na hierarquia eclesiástica oriental se encarregou de
manter o conflito em evidência. Cirilo foi substituído, em 444, pelo bispo Dióscoro de Alexandria, seu antigo secretário particular. Celestino
de Roma morreu em 432 e foi substituído por Sisto III, que permaneceu
na chefia episcopal de Roma até 440, quando o bispo Leão foi consagrado70. Maximiano de Constantinopla morreu, em 434, e foi sucedido
por Proclo de Constantinopla, um bispo que, desde a indicação de Sisínio, tentava se emplacar no episcopado da capital imperial71. Em 435,
ele protagonizou uma tentativa de conciliar os cirilianos com os bispos
orientais72, que circulavam as ideias de Teodoro de Mopsuéstia, ao
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 402-405.
69 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 64. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
70 NAU, François. Introduction. In : NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas.
Trad. F. Nau avec le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs,
1910, p. xxiii-xxv.
71 WICKHAM, Lionel R. Cyril of Alexandria: Select letters. Oxoford: Clarendon
Press, 1983, p. xxvi.
72 O bispo Rábula de Edessa já havia condenado as ideias de Teodoro de Mopsuéstia, antes mesmo da Fórmula da Reunião ser alcançada, em 433, pois traduções
armênias da sua obra circulavam na região. Rábula morreu em 436 e foi sucedido
por Ibas de Edessa, bispo inclinado às ideias nestorianas (WICKHAM, Lionel R. Cyril
310 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
compor o seu Tomo aos Armênios. Em 447, Proclo foi sucedido pelo
bispo Flaviano, que se mostrou comprometido em defender a Fórmula
da Reunião. João de Antioquia já havia morrido em 441 e foi substituído pelo seu sobrinho Domo73. O arquimandrita de Constantinopla,
Dalmácio, um dos líderes da resistência a Nestório na capital imperial,
foi sucedido pelo monge Eutiques, em 44074.
A persistência do conflito nos indica que as diferenças entre
Cirilo e Nestório não resultavam da adoção de pontos de vista pessoais divergentes sobre a natureza da encarnação de Cristo. Os conflitos
pelas tentativas de se estabelecer um monopólio da ortodoxia estão
propensos a serem utilizados em disputas por poder e autoridade na
hierarquia eclesiástica75, cujos líderes podem almejar estendê-los a
outros domínios da vida social. Conforme percebemos pelo desenrolar da Controvérsia Nestoriana, esse objetivo a ser perseguido necessitou que outros atores fossem incorporados às disputas, sobretudo
os funcionários imperiais, que possuíam acesso direto ao imperador
Teodósio II. Torna-se interessante perceber a interatividade existente,
naquele momento, entre hierarquia eclesiástica e poder imperial. Em
virtude da sua aproximação com Nestório, o comes Irineu foi exilado
em 436, mas retornou no ano de 447 na condição de bispo da cidade
Tiro. Entretanto, ele foi deposto, em agosto de 449, juntamente com
os bispos Teodoreto de Ciro, Ibas de Edessa e Domo de Antioquia76,
em virtude da continuidade da crise.
Em 447, o bispo Teodoreto de Ciro, primo e aliado de primeira
hora de Nestório, publicou o tratado em defesa das duas naturezas em
Cristo, o Eranistes77. Logo esses escritos ganharam circulação e chegaof Alexandria: Select letters. Oxoford: Clarendon Press, 1983, p. xxvii).
73 CYRIL OF ALEXANDRIA. Letter 77. The Fathers of the Church. Vol. 76. Translated
by John I. McEnerney. Washington/DC: The Catholic University of Press, 2007.
74 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 460.
75 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Vários trad. São Paulo:
Perspectiva, 2007, p. 62-64.
76 NAU, François. Introduction. In : NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas.
Trad. F. Nau avec le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs,
1910, p. xxiv-xxvii.
77 MILLAR, Fergus. A Greek Roman Empire: power, and belief under Theodosius II
(408-450). Los Angeles: California University Press, 2006, p. 30; WESSEL, Susan. The
ecclesiastical policy of Theodosius II. In: Annuarium Hisotoriae Conciliorum, n. 33,
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ram a Alexandria e Constantinopla e passaram a ser refutados pelo bispo Dióscoro de Alexandria e o arquimandrita Eutiques, em Constantinopla. Concomitante a isso, os bispos Domo de Antioquia e Teodoreto
de Ciro escrevem para Flaviano de Constantinopla acusando Dióscoro
e Eutiques de comprometerem o acordo alcançado com a Fórmula da
Reunião, em 43378. Esses movimentos foram suficientes para que a
capital imperial se tornasse novamente palco de conflitos79.
Eutiques, apoiado pelo bispo Dióscoro e pelo eunuco Crisáfio,
havia recrudescido as ideias cirilianas sobre a natureza do corpo de
Cristo e passou a afirmar que, após a encarnação, uma só natureza
deveria ser adorada, a natureza divina, pois, caso contrário, se estaria
praticando canibalismo no momento da Eucaristia. Ou seja, segundo
Nestório o acusara “o corpo de Cristo não seria consubstancial conosco, resultando não em duas naturezas, mas uma natureza”80. Contrário a essas ideias, o bispo Flaviano, em novembro de 448, convocou
um Sínodo, em Constantinopla, para tentar resolver o impasse entre
as facções opostas. Nessa reunião, o bispo Eusébio de Dorileia, partidário de Nestório e que já havia desempenhado papel de destaque
no início da controvérsia, em 428, acusou Eutiques perante Flaviano.
Eutiques foi convocado, mas não apareceu às sessões. Nessa ocasião,
ele foi condenado e deposto das suas funções. Mas, conforme nos relata Nestório81, Teodósio II, sob influência de cortesãos, empenhou-se
firmemente na defesa do arquimandrita e na perseguição a Flaviano:
Ele [imperador] exigiu deles, com um furor selvagem, os serviços sem remissão. As economias eram fixadas em público
e eram denunciadas diante da multidão. Todo bispo que não
tomasse partido de Eutiques era pego. Todo o imposto que
eles tinham de pagar para ele e para os imperadores predecessores era exigido de uma só vez. Quanto àqueles que
2001, p. 260-261.
78 BEVAN, George A. The case Nestorius: ecclesiastical politics in the East, 428-451
CE. Thesis (Degreeof Doctor of Philosophy). University of Toronto, 2005, p. 337-338.
79 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 379.
80 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 464.
81 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 466-467.
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eram ilustres ou de famílias mais altas, ele exigia publicamente, causando horror, uma grande soma de ouro. O imperador não teve misericórdia de Eusébio, o acusador de
Eutiques. Ele fez gemer e cair de joelhos a nobreza romana
[...] O imperador teria dito “Eu não quero saber, mas exijo o
ouro de qualquer maneira. E mandou fundir publicamente os
vasos sagrados da Igreja. O imperador convocou um Concílio
geral para depor Flaviano. Ele não teve nenhum socorro da
Corte Imperial. Isso ocorreu, dizem, pela escolha e cuidados
da irmã do imperador, e ela não queria mostrar em nada seu
poder sobre os negócios internos82.
Como medida para fazer valer as suas pretensões político-religiosas, Teodósio II optou por apoiar Eutiques e convocar um novo
Concílio, que também se reuniria em Éfeso, no ano de 449. O imperador, nessa ocasião, enviou uma carta a Dióscoro de Alexandria, em
15 de maio de 449, e o indicou para presidir o Concílio83. Nessa carta,
as suas indicações foram claras: favorecer a doutrina da união das naturezas aprofundadas por Eutiques. As ações de Teodósio II tornam-se bastante intrigantes nos eventos que circundaram esse Concílio.
Percebemos, nesse momento, que o imperador inverteu sua posição,
destacando funcionários alinhados com a facção ciriliana para intervir
nas deliberações da assembleia. Portanto, diferentemente do Concílio
anterior, em que Teodósio II deu instruções expressas para que os funcionários imperiais não interferissem nas deliberações tomadas pelos
bispos reunidos, dessa vez os funcionários destacados foram orientados a barrar aqueles bispos, como Teodoreto de Ciro e Flaviano de
Constantinopla, que se opunham ao resultado esperado por ele:
Antes que Flaviano entrasse no Concílio, Dióscoro havia tomado assento no lugar do bispo de Constantinopla. [...] Os
comes que tinham sido encarregados disso fizeram silenciar
os bispos que estavam reunidos e queriam falar a favor de
Flaviano. [...] Ele [imperador] preparou, imediatamente, acusadores para dizer que os atos que foram feitos em Cons82 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 467-469.
83 ACTA CONCILIORUM OECUMENICORUM. Tomus II, 1, 1, Collectio Vaticana. Edidit Eduard Schwartz et al. Berlin et Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1914-.
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tantinopla [Sínodo de 448] eram falsos. Os acusadores eram
aqueles que estavam refugiados juntos a Eutiques. [...] Graças aos favores que o imperador lhes concedeu, eles usaram
de violência, a fim de que Flaviano, pressionado ao ponto de
não ter nenhuma resposta às acusações contra ele, rendeu
subitamente a alma, ficou aturdido e pereceu84.
As ideias cirilianas, aprofundadas por Eutiques e Dióscoro
saíram vitoriosas do Concílio de Éfeso II, a despeito dos protestos do
bispo Leão de Roma que havia emprestado seu apoio ao bispo Flaviano85. Durante a realização desse Concílio, os documentos nos mostram, assim como no concílio anterior, uma ostensiva participação dos
funcionários imperiais que, nesse momento, compeliram os bispos a
acompanhar as pretensões de Teodósio II. Aqueles que se mostraram
reticentes ou foram persuadidos à retratação ou foram punidos com a
deposição e o exílio. O bispo Flaviano, por exemplo, foi duramente hostilizado e veio a morrer a caminho do exílio em função dos maus tratos recebidos pelos monges liderados pelo arquimandrita Barsumas86.
Esse monge de Constantinopla havia sido especialmente destacado
por Teodósio, em carta datada de 14 de maio de 449, para participar
do Concílio, em auxílio a Dióscoro, facultando-lhe, inclusive, a prerrogativa de voto, igualando-o, assim, aos demais bispos87.
O bispo Leão de Roma protestou veementemente contra o
resultado do Concílio. Ele empreendeu negociações na Corte do Ocidente tentando persuadir o imperador Valentiniano III, sua mãe Gala
Placídia e sua esposa Licínia Eudóxia para que escrevessem para Teodósio II. Tais apelos teriam sido em vão88. Leão já havia, anteriormente, confirmado o seu apoio ao bispo Flaviano, através de uma extensa
carta que ficou conhecida como Tomo de Leão ou Tomus ad Flavia84 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 470 e 481.
85 Ibidem, § 475.
86 Ibidem, § 476-495.
87 ACTA CONCILIORUM OECUMENICORUM. Tomus II, 1, 1, Collectio Vaticana. Edidit Eduard Schwartz et al. Berlin et Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1914-.
88 NAU, François. Introduction. In : NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas.
Trad. F. Nau avec le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs,
1910, p. xxvii.
314 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
num. Mas, com as negativas de Teodósio II em rever a sua posição, o
bispo de Roma classificou o Concílio como Latrocinium.
III. A percepção de Nestório sobre a atuação
Teodósio II
A partir dessas evidências, parte da historiografia classificou
as ações de Teodósio II como contraditórias e reveladoras de pouca
habilidade política, sobretudo por perceberem a tendência do imperador se deixar manipular por funcionários imperiais e membros da
hierarquia eclesiástica. Entretanto, a questão é mais complexa e não
pode ser resolvida simplesmente anulando a participação do indivíduo
que detinha o maior poder e autoridade no Império e transferir todo o
capital simbólico que ele representava para seus auxiliares, em virtude
da sua pretensa ingenuidade política.
Os debates em torno das ideias de Nestório e Cirilo ainda podem ser percebidos durante o III Concílio de Constantinopla, em 680, e
a imagem de Teodósio II que se cristalizou até nossos dias decorre, em
grande parte, de narrativas posteriores permeadas pelo prolongamento do conflito. Mas não somente essas narrativas, como as de Prisco de
Panium89 e Evágrio Escolástico90, serviram para embasar a imagem de
inabilidade política de Teodósio II. Mesmo Nestório, ao escrever sobre a
atuação do imperador no Livro de Heraclides, que ele percebia contraditória, contribuiu para essa finalidade, quando analisada de forma acrítica:
Mas ele [Cirilo] me temia por causa do socorro que o imperador me dava. Sabe-se que, na realidade, ele [imperador] me
traiu e, acima de tudo, nem me socorreu [...] pois ele já estava convencido de que eu deixaria Constantinopla e o Concílio
89 PRISCUS. History. In : The Fragmentary Classicising Historians of the Later Roman Empire. Vol. 2. Translation and historiographical notes by Roger C. Blockley. Liverpool: Francis Cairns Publications, 1983.
90 EVAGRIUS SCHOLASTICUS. Ecclesiastical History. Translated with an introduction by Michael Whitby. Liverpool: Liverpool University Press, 2000.
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do Oriente pediria que houvesse o julgamento e exame da fé
mesmo sem mim.91
O que se pode apreender da atuação do poder imperial é a
complexidade com que as controvérsias teológicas na Antiguidade Tardia devem ser analisadas. Esses conflitos transcendiam a esfera teológica e se estendiam para outros domínios, como a política e a administração do Império. A forma aparentemente contraditória com que
Teodósio II gerenciou o conflito não pode prescindir de uma visão que
englobe as disputas por poder e autoridade tanto na hierarquia eclesiástica quanto na administração imperial. A atuação do bispo de Roma
no conflito sugere, ainda, que a política de Teodósio II contemplava, inclusive, o atendimento de demandas para além dos seus domínios, pois
embora as duas partes do Império já estivessem separadas administrativamente, ambas eram governadas pela mesma dinastia teodosiana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme observou Fergus Millar92, Teodósio II não empregou a violência como forma de exterminar uma ou outra facção em
confronto, como fizera imperadores anteriores, mas utilizou-se, ao
contrário, de uma grande ferocidade retórica ao lidar com o conflito. Essa disposição nos indica que ele buscou manobrar a diversidade existente no Império Romano do Oriente como forma de manter
a unidade imperial em torno de si. Ao alternar o seu apoio às facções
em confronto, como sugere Nestório no excerto acima, o que poderia
denotar uma fraqueza do imperador ante as investidas de membros
da hierarquia eclesiástica e de funcionários imperiais, pelo contrário,
visava desgastar as facções em confronto de modo que ambas saíssem
enfraquecidas dos embates.
91 NESTORIUS. Le Livre d’Heraclide de Damas. Traduit en français par F. Nau avec
le concours P. Bedjan et M. Brière. Paris: Letouzey et Ané Éditeurs, 1910, § 391.
92 MILLAR, Fergus. A Greek Roman Empire: Power and Belief under Theodosius II
(408-450). Los Angeles: California University Press, 2006, p. 168.
316 Experiências Religiosas no Mundo Antigo
Desse modo, Teodósio II buscou manter a unidade do Império
não atrelada à unidade da Igreja, como sugerem os discursos retóricos
de Nestório e Cirilo, mas reforçar essa unidade em torno da sua atuação. Essas manobras permitiram a sua liderança frente ao Império
Romano do Oriente por quarenta e dois anos, algo inalcançável por
qualquer outro imperador romano, diferentemente do que se poderia
atribuir a um imperador fraco e manipulável.
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