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L AT I N OA M E R I C A N A
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PSICOPATOLOGIA
F U N D A M E N T A L
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 15, n. 3, p. 612-614, setembro 2012
A anatomia da melancolia
Robert Burton
Curitiba: Editora UFPR, 2011, 266 págs.
Experto crede Roberto
Roberto Kirschbaum
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2011 foi um ano doce para a melancolia no Brasil. Com o
empurrãozinho do filme dinamarquês homônimo, o termo foi
amplamente difundido pela mídia. Artigos, não somente sobre
o filme, mas sobre a própria melancolia, foram publicados em
revistas e jornais de grande circulação. Assim, a melancolia, que
a partir da segunda metade do século passado foi praticamente
substituída nos vocabulários médico e popular pelo termo nada
adequado depressão, faz sua reestreia em nosso repertório.
Neste solo fértil e com timing perfeito é publicada no
Brasil, ainda que tardiamente em relação à edição original inglesa
de 1621, a primeira tradução para a língua portuguesa da obraprima de Robert Burton: A anatomia da melancolia, com
subtítulo “O que é, com todas as suas espécies, causas,
sintomas, prognósticos e diversas curas. Em três partições, com
diversas Seções, membros e subseções. Filosófica, Medicinal e
Historicamente aberta e dissecada por Demócrito Junior”.
Burton, acadêmico inglês, teólogo, vigário e bibliotecário na
Universidade de Oxford, utiliza-se do nome Demócrito Junior
mais do que como um simples pseudônimo para escrever a
RESENHA
DE LIVROS
partir da sua própria melancolia, mas como forma de se declarar herdeiro e
sucessor de Demócrito de Abdera, o “filósofo que ri”, contemporâneo do mesmo
Hipócrates reverenciado no juramento médico até os dias de hoje. Conta-nos
Burton no longo e cativante prefácio satírico que, a pedido dos preocupados
abderitas, que consideravam Demócrito louco, Hipócrates foi visitá-lo. Encontrou-o compenetrado, dissecando pequenos animais em busca da sede da atra bilis,
bílis negra, ou melancolia, e escrevendo um livro sobre melancolia e loucura.
Depois da conversa que tiveram, Hipócrates voltou à cidade convencido de que
loucos estavam os abderitas, e que Demócrito é que era o são. O livro de
Demócrito Abderita teria se perdido. Demócrito Junior se propõe então a escrever
um novo livro, à altura do mestre. Suas credenciais? Melancólico ele mesmo,
afirma: “aquilo que os outros lêem ou escutam, senti e pratiquei em mim mesmo;
eles ganham conhecimento nos livros e eu na melancolia. Experto crede Roberto
[Crê em Robert, ele é expert].”
Mas a quem interessaria hoje esse livro tão antigo? Burton nos daria uma
resposta curta: “És tu o assunto deste meu discurso”. O livro trata do ser
humano, e a todos os seres humanos pode interessar. Aos historiadores, há
referências e citações históricas à exaustão. É pleno de jogos literários e
explorações linguísticas, tendo na literatura e na arte um grande exército de
admiradores: Anthony Burgess, John Keats, Jorge Luis Borges, Moacyr Scliar,
para citar apenas alguns. A grande obra de Klibansky, Panofsky e Saxl, “Saturno
e Melancolia – Estudos na História da Filosofia Natural, Religião e Arte”, de 1964,
traz a foto do túmulo de Robert Burton na contracapa.
Com os clínicos, estudiosos da psique e da história da psicopatologia, o livro
compartilha muito do que já havia sido pensado e produzido sobre a melancolia
no século XVII, o que não era pouco. Poderia se dizer que a melancolia não existe
mais como doença oficialmente reconhecida. Neste sentido a obra pode ser ponto
de partida para reflexões muito atuais, especialmente a questão da crescente
medicalização da sociedade em detrimento da subjetividade. No prefácio a esta
edição brasileira, Manoel Tosta Berlinck traça a evolução da compreensão e
interpretação da melancolia desde Aristóteles, passando por Burton, mais
recentemente Freud, que a considera uma neurose narcísica, e chegando por fim
à interpretação atual e empobrecida do termo que, sendo rebatizado de depressão
ou transtorno afetivo bipolar, reduz uma “formação repetitiva e padronizada do
inconsciente, extremamente duradoura e resistente à mudança, manifestando-se
de forma sintomática” a apenas um dos possíveis estados desta doença que pode
e deve ser suprimido quimicamente. Prosseguindo, Berlinck aborda as descobertas
de Freud e Karl Abraham que permitem compreender o ser humano como espécie
melancólica, e a melancolia, pelo menos numa forma benigna, não como doença,
curável, mas como condição humana da qual se pode até tirar proveito.
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O trabalho de tradução foi realizado com esmero. Guilherme Gontijo Flores
consultou algumas edições em língua inglesa e outras em línguas neolatinas.
Procurou dar ao texto um estilo comparável ao de Burton, por um lado “erudito
na linguagem”, por outro “inegavelmente leve e, na medida do possível, bastante
oralizado e popular na sua língua”. Poderia se dizer que o autor não escreve, mas
livre-associa, tentando elaborar sua melancolia. A experiência da leitura se
assemelha assim a uma conversa com um interlocutor bastante erudito mas ao
mesmo tempo jovial, espontâneo e coloquial.
Referências
BURTON, R. A anatomia da melancolia. Trad. Guilherme Gontijo Flores. Prefácio
Manoel Tosta Berlinck. Curitiba: Editora UFPR, 2011. V. I.
BURTON, R. (1621, ed. de 1632). Anatomia de la melancolia. Prefácio de Jean
Starobinski. Madrid: Associación Española de Neuropsiquiatría, 2003.
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KLIBANSKY, R.; PANOFSKY, E.; SAXL, F. (1964). Saturn and Melancholy. Studies in the
History of Natural Philosophy, Religion and Art. Nendeln/Liechtenstein: Kraus
Reprint, 1979.
ROBERTO KIRSCHBAUM
Psicólogo e psicanalista; Mestrando pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (São Paulo, SP, Br)
sob orientação do Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck; bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Brasília, DF, Br)
Rua Veríssimo Glória, 165
01251-140 São Paulo, SP, Br
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