QUALIDADE DE VIDA
DEFINIÇÃO, CONCEITOS E INTERFACES
COM OUTRAS ÁREAS DE PESQUISA
Autores:
MARCO ANTONIO BETTINE DE ALMEIDA
GUSTAVO LUIS GUTIERREZ
RENATO MARQUES
Prefácio do Professor Luiz Gonzaga Godoi Trigo
São Paulo
Escola de Artes, Ciências e Humanidades - EACH/USP
2012
Universidade de São Paulo
Reitor
Vice-Reitor
Prof. Dr. João Grandino Rodas
Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
Diretor
Vice-Diretor
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Prof. Dr. Edson Leite
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Prof. Dr. Edson Leite (Vice-Diretor da EACH), Vice-Presidente.
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Prof. Dr. Thomás Augusto Santoro Haddad (EACH/USP),
Prof. Dr. Pablo Ortellado (EACH/USP),
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Comissão de Biblioteca e Edição | CoBEd
Prof. Dr. Thomás Augusto Santoro Haddad | presidente
Prof. Dr. Pablo Ortellado
Prof. Dr. Rogério Mugnaini
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Rosa Tereza Tierno Plaza
Revisão
Felipe Corrêa
Capa
Carlos A. S. Santos
Diagramação
Ademilton J.Santana
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo
Almeida, Marcos Antonio Bettine de
Qualidade de vida: definição, conceitos e interfaces com outras
áreas, de pesquisa / Marcos Antonio Bettine de Almeida, Gustavo Luis
Gutierrez, Renato Marques : prefácio do professor Luiz Gonzaga
Godoi Trigo. – São Paulo: Escola de Artes, Ciências e Humanidades
– EACH/USP, 2012.
142p.: il.
Modo de acesso ao texto: <http:/www.each.usp.br/edicoeseach/qualidade_vida.pdf>
ISBN: 978-85-64842-01-4
1 Qualidade de vida. 2.Promoção da saúde. I. Gutierrez,
Gustavo Luis.II. Marques, Renato. III. Trigo, Luiz Gonzaga Godoi,
pref. IV. Título
CDD 22.ed. – 613
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico,
para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Sumário
9
Introdução
Capítulo 1
13
1.1 Qualidade de vida: uma área de
conhecimento em processo de definição
23
1.2 Percepções objetivas de qualidade de
vida
26
1.3 Percepções subjetivas de qualidade de
vida
32
1.4 Estilo, modo e condição de vida como
constituintes da qualidade de vida. As
relações entre as esferas objetivas e
subjetivas de percepção
39
1.5 Qualidade de vida, saúde e atividade
física
50
1.6 Índices do IBGE: instrumentos para
análise dos indicadores e das políticas
públicas
Capítulo 2
59
As interfaces de uma área de pesquisa
multidisciplinar
59
2.1 Qualidade de vida: discussões
contemporâneas (RDH e SF-36)
64
2.2 Políticas públicas de lazer e qualidade
de vida: a contribuição do conceito de
cultura para pensar as políticas de lazer
74
2.3 Esporte: relações com a qualidade de vida
79
2.4 Comentários sociológicos da cultura
alimentar
85
2.5 A Educação nutricional desde a ótica de
Pierre Bourdieu
90
2.6 Gestão e qualidade de vida na empresa
99
2.7 Patologias sociais e qualidade de vida
na sociedade moderna
109
2.8 Gestão e qualidade de vida: o esporte
como meio para a integração e bem-estar
entre os funcionários da empresa
119
2.9 Inovação tecnológica edesenvolvimento
humano: aspectos importantes para a
análise da qualidade de vida
125
2.10 Documento eletrônico e assinatura
digital: inovação tecnológica no Direito
brasileiro e os benefícios à qualidade de
vida
129
Observações Finais
131
Bibliografia
PREFÁCIO
Cada vez mais se fala sobre qualidade de vida. É uma concepção
que envolve parâmetros das áreas de saúde, arquitetura, urbanismo, lazer,
gastronomia, esportes, educação, meio ambiente, segurança pública e
privada, entretenimento, novas tecnologias e tudo o que se relacione com
o ser humano, sua cultura e seu meio.
Os conceitos e concepções referentes à qualidade de vida são
bastante diversos. Por exemplo, no Dicionário Oxford de Filosofia (Rio de
Janeiro: Zahar, 1997) a consulta ao vocábulo remete diretamente à outro
vocábulo, Felicidade . É uma visão bastante específica do tema, apesar de
fugir dos aspectos mais práticos do problema. Por outro lado, na década
de 1990, o filósofo alemão Hans-Magnus Enzensberger, considerava que
o luxo do futuro, um dos patamares mais elevados da qualidade de vida
do ponto de vista do consumo capitalista, será menos supérfluo do que
estritamente necessário. Os novos luxos, segundo ele, seriam: tempo,
atenção, espaço, sossego, meio ambiente e segurança. Pode ser um
paradoxo, mas em um mundo fragmentado e contraditório, envolvido em
crises econômicas, políticas e sociais cíclicas, os paradoxos são comuns.
Mesmo as atividades ligadas ao prazer e às delícias da vida são
comprometidas pelos limites e carências dos seres humanos. Gilles
Lipovetsky pergunta como se explica que a melhoria contínua das
condições de vida material não ocasione de modo algum a redução do
mal estar na civilização ? O paradoxo maior, ei-lo: as satisfações vividas
são mais numerosas do que nunca, a alegria de viver fica estagnada ou
até recua; a felicidade parece continuar inacessível enquanto temos,
ao menos aparentemente, mais oportunidades de lhe colher os frutos.
Esse estado não nos aproxima nem do inferno nem do paraíso; define
simplesmente o momento da felicidade paradoxal
(A felicidade paradoxal. São Paulo; Companhia das Letras, 2007).
Mas essas discussões acontecem em um mundo pretensamente
desenvolvido no ocidente e em algumas partes da Ásia-Oceania e Oriente
Médio, onde os IDHs atingem níveis considerados mais satisfatórios,
pois em vastas áreas do planeta a miséria e a opressão impedem que
se chegue a um padrão elementar sobre as condições de qualidade de
vida, restando apenas a indiferença dos mais bem aquinhoados de bens
materiais, mas ainda carentes de sentido e significado, em relação a uma
imensa massa humana alijada das benesses do desenvolvimento material
e tecnológico. Mais um paradoxo, representado pelo permanente abismo
entre os ricos e os pobres do planeta, em uma época onde a ciência e a
tecnologia pensam poder quase tudo.
Em uma época em que várias igrejas, sindicatos, partidos políticos,
governos, empresas respeitáveis e até mesmo universidades se renderam
à ambição e ao egoísmo, não é estranho que o incômodo contemporâneo,
sucessor de incômodos mais antigos, perturbe a desejável e idílica
serenidade que a mídia tenta passar. Mas essa mesma mídia mescla a
sensação de bem-estar aos medos e traumas, formando o contexto onde
esses paradoxos se desenvolvem.
Os três autores desse texto sobre Qualidade de vida: definição,
conceitos e interfaces com outras áreas de pesquisa compreendem
essas complexidades contemporâneas, o interesse pela vida e o desejo
que as pessoas sentem de bem viver. Souberam superar os clichês da
problemática e as condições meramente objetivas representadas por
tabelas e gráficos. Claro que pontos objetivos são importante em um estudo
acadêmico, mas as percepções subjetivas são igualmente significativas
e o texto explora essa riqueza de argumentos e possibilidades. Está
preparado o terreno para uma boa discussão interdisciplinar sobre
qualidade de vida, que acontece a partir do segundo capítulo e se
aprofunda pelo texto. As implicações do lazer, da cultura, do esporte, da
alimentação são exploradas como constituintes das políticas públicas e
privadas que garantem incremento das condições de qualidade de vida.
Não é apenas uma questão individual, mas também social e comunitária,
onde os campos do ócio e das atividades produtivas, inclusive as novas
tecnologias, influenciam essas políticas e práticas.
É importante que esses pesquisadores tenham ampliado o campo
da discussão sobre qualidade de vida, incorporando diversos pontos
que aprofundam a análise e oferecem novas perspectivas sobre o tema.
Para diversos profissionais e estudantes, essa temática relaciona-se
diretamente com seu campo de atuação ou pesquisa. Compreender as
novas estruturas sociais e políticas, econômicas e culturais, que influenciam
a qualidade de vida das pessoas é fundamental em um planeta cada
vez mais conectado, seja no campo virtual ou nas complexas realidades
cotidianas. Marco Bettine de Almeida, Gustavo L. Gutierrez e Renato
Marques somaram esforços e idéias em uma proposta multidisciplinar,
pluralista e comprometida com os desafios de entender e melhorar as
vidas das pessoas em um mundo ao mesmo tempo mais confortável e
desafiador, desenvolvido a altamente competitivo, onde as tecnologias
de comunicação e informática mascaram, de certa forma, as angústias
e dilemas do cotidiano estressante, principalmente nos grandes centros
urbanos.
Este livro é uma plataforma inicial que envolve algumas
possibilidades e se insere no universo interdisciplinar que marca muitas
de nossas novas universidades e campos de atuação profissional. Eles
conseguiram avançar nesse campo e a leitura do texto trará novas idéias
e alternativas sobre essa questão humana, demasiadamente humana,
parafraseando Nietzsche. Boa leitura.
Luiz Gonzaga Godoi Trigo
Professor Titular da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
da Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO
Este livro procura apresentar ao leitor um panorama abrangente
das principais discussões e problemas relacionados com a questão da
qualidade de vida, desde uma perspectiva acadêmica e contemporânea.
Parte do princípio que por trás de iniciativas pontuais e, muitas vezes
simples, como um programa de ginástica laboral ou de antitabagismo, os
quais sem nenhuma dúvida são importantes e úteis, existe também um
debate conceitual denso, atual e sistemático.
A principal característica deste debate é a interdisciplinaridade.
A pesquisa sobre qualidade de vida ultrapassou sua origem na área de
saúde e constitui hoje um dos campos mais importantes para o diálogo
entre as diferentes disciplinas e escolas de pensamento, no sentido da
busca de avanços reais para as pessoas das mais diferentes culturas.
Esta vocação original para a interdisciplinaridade permite trazer para o
mesmo espaço de discussão pessoas e áreas que, de outra forma, muito
dificilmente encontrariam um denominador comum para o diálogo e o
crescimento intelectual conjunto.
Esta diversidade, ao mesmo tempo em que disponibiliza uma
riqueza impar de ideias, exige do pesquisador disciplina e grande rigor
metodológico no sentido de não perder de vista os paradigmas originais
de cada área no processo de aproximação. Neste sentido, o livro caminha
todo o tempo na situação, em alguns momentos paradoxal, de aproveitar
as possibilidades teóricas dessas interfaces sem, contudo, cair na
tentação fácil da construção de uma colcha de retalhos onde cada parte
tem pouco compromisso na articulação entre os fundamentos da própria
área de origem e as características constitutivas das outras áreas com as
quais dialoga.
Procurando ser coerente com este compromisso, o livro inicia
o primeiro capítulo apresentando uma reflexão sobre a constituição
e principais características da área de pesquisa em qualidade de vida,
como forma de uniformizar a linguagem e determinar uma base conceitual
que deixe o mais claro possível, frente à complexidade e diversidade do
campo, as diferentes aproximações que serão apresentadas a seguir. A
pesquisa em qualidade de vida, no que diz respeito à forma de apresentar
seus resultados, caminha de um extremo ao outro. Por um lado, pretende
dar conta da enorme complexidade de todos os fatores que impactam
com importância nas condições de vida das pessoas, e, por outro, espera
poder apresentar o resultado na forma simples de um índice numérico.
As vantagens da apresentação do resultado da pesquisa na forma de
um índice são evidentes: permite ilustrar o complexo como algo simples,
ou pelo menos aparentemente simples, e viabiliza comparações entre
diferentes populações ou de uma mesma população no tempo. Não se
pretende aqui questionar esta dimensão da pesquisa em qualidade de
vida; acreditamos que os principais índices desenvolvidos guardam uma
relação significativa com o fenômeno que pretendem avaliar. Sua melhor
utilização, contudo, vai depender de conhecer os elementos que lhe deram
origem, capacidade para trabalhá-los de forma desagregada e acesso aos
dados de conjuntura mais significativos. Ainda no primeiro capítulo deste
livro, são apresentados aspectos do WHOQOL desenvolvido com apoio
da Organização Mundial da Saúde e outros índices utilizados no Brasil, a
partir do trabalho do IBGE.
O segundo capítulo do livro procura exemplificar algumas das
interfaces que a pesquisa em qualidade de vida possibilita, apresentadas
em ordem de abrangência, partindo de discussões mais gerais e
conceituais, até chegar a questões mais específicas como a relação com
o esporte e as inovações tecnológicas. Esperamos que a diversidade de
enfoques, os casos e exemplos apresentados, assim como a bibliografia
11
comentada possam ser úteis às pessoas interessadas nesta área de
estudo e, se possível, despertar interesse e curiosidade naqueles que
estão chegando agora.
Boa leitura!
12
Qualidade de Vida
CAPÍTULO 1
QUALIDADE DE VIDA: DEFINIÇÕES E
CONCEITOS
O universo de conhecimento em qualidade de vida se expressa
como uma área multidisciplinar de conhecimento que engloba além
de diversas formas de ciência e conhecimento popular, conceitos que
permeiam a vida das pessoas como um todo. Nessa perspectiva, lidase com inúmeros elementos do cotidiano do ser humano, considerando
desde a percepção e expectativa subjetivas sobre a vida, até questões
mais deterministas como o agir clínico frente a doenças e enfermidades.
Pode-se perceber inúmeros esforços na tentativa de elucidar
esse campo de conhecimento. Compreender qualidade de vida como
uma forma humana de percepção do próprio existir, a partir de esferas
objetivas e subjetivas, é um desses. Porém, é preciso que, para uma
compreensão adequada, não haja reducionismo perante esse tema, pois
o que se percebe são inter-relações constantes entre os elementos que
compõem esse universo.
Para melhor compreender a área de conhecimento em qualidade
de vida é necessário adotar uma perspectiva, ou um paradigma complexo
de mundo, pois se expressa na relação entre o Homem, a natureza e
o ambiente que o cerca (BARBOSA, 1998). Por exemplo, embora haja
diferença entre esferas de percepção deste conceito, para compreendêlas melhor é preciso que sejam associadas, que a influência de uma sobre
a outra seja considerada, formando um todo.
1.1 Qualidade de vida: uma área de conhecimento
em processo de definição
A presença do termo qualidade de vida é facilmente percebida no
linguajar da sociedade contemporânea, sendo incorporado ao vocabulário
popular com várias formas de conotação. Parece que existe um consenso
de que é algo bom falar em qualidade de vida, mesmo sem definir
exatamente do que está se falando.
O senso comum se apropriou desse objeto de forma a resumir
melhorias ou um alto padrão de bem-estar na vida das pessoas, sejam
elas de ordem econômica, social ou emocional. Todavia, a área de
conhecimento em qualidade de vida encontra-se numa fase de construção
de identidade. Ora identificam-na em relação à saúde, ora à moradia, ao
lazer, aos hábitos de atividade física e alimentação, mas o fato é que essa
forma de saber afirma que todos esses fatores levam a uma percepção
positiva de bem-estar.
A compreensão sobre qualidade de vida lida com inúmeros
campos do conhecimento humano, biológico, social, político, econômico,
médico, entre outros, numa constante inter-relação. Por ser uma área de
pesquisa recente, encontra-se em processo de afirmação de fronteiras
e conceitos; por isso, definições sobre o termo são comuns, mas nem
sempre concordantes. Outro problema de ordem semântica em relação à
qualidade de vida é que suas definições podem tanto ser amplas, tentando
abarcar os inúmeros fatores que exercem influência, como restritas,
delimitando alguma área específica.
Não é difícil observar manifestações desse movimento. Por exemplo,
na edição número 1897 da revista Isto É, do mês de março de 2006, a
matéria de capa intitula-se “9 lições de qualidade de vida: mudanças que
você pode promover no seu dia-a-dia para conquistar um novo padrão
de bem-estar físico e mental, e viver melhor”. Neste momento, serão
realizadas duas análises sobre esse objeto. A primeira em relação ao
conteúdo do título da reportagem, a segunda referente ao conteúdo do
texto como um todo.
Nota-se que o título encerra que qualidade de vida depende de
ações individuais para que seja transformada, pois passa a ideia de que
o sujeito pode mudar seus hábitos e, com isso, melhorar seu padrão de
15
bem-estar e viver melhor. Além disso, coloca que bem-estar e qualidade
de vida são sinônimos ou que, pelo menos, um exerce interferência sobre
o outro.
Quanto ao conteúdo da matéria, que dispõe de cinco páginas da
revista, começa com uma frase curta: “Qualidade de vida virou um objeto
de desejo”. Essa afirmação direciona para uma percepção do tema como
um objeto a ser alcançado, ou seja, como se para chegar a esse nível
fosse preciso estabelecer padrões de realizações na vida. Além disso,
são apresentados em seguida (compreendendo a maior parte da matéria)
nove passos que, se seguidos pelo sujeito, prometem ajudá-lo a alcançar
tal objetivo: “1. Cuide de sua vida sexual; 2. Tenha prazer; 3. Garanta mais
tempo para si mesmo; 4. Movimente o corpo; 5. Coma bem; 6. Não exija
demais; 7. Vá ao médico com regularidade; 8. Mantenha boas relações
e 9. Cultive a espiritualidade”. Nota-se que essas orientações remetem
a hábitos individuais e formas de lidar com alguns dos acontecimentos
cotidianos, mas que nem sempre estão ao alcance do sujeito que procura
melhoria de qualidade de vida.
Em resumo, numa leitura descuidada sobre o tema, é possível
concluir que nem todos os sujeitos têm qualidade de vida, e que é preciso
se esforçar para obtê-la. E é essa a principal mensagem que se veicula
nos meios de comunicação.
Tal forma de entender qualidade de vida é muito corrente em
ambientes comerciais, propagandas de alimentos, condomínios
residenciais, campanhas políticas, entre outros. A concepção sobre
qualidade de vida, que a eleva como um objeto a ser alcançado mediante
esforço do sujeito, promove uma corrida para alcançar algo que o senso
comum sabe que é bom, mas não tem claros seus limites conceituais
e sua abrangência semântica. É como se tratasse de um ideal da
contemporaneidade, que se expressa na política, na economia, na vida
pessoal. Busca-se qualidade de vida em tudo (BARBOSA, 1998).
Qualidade de vida tornou-se, em muitas circunstâncias, um jargão
útil a promessas fáceis e propagandas enganosas. Isso ocorre devido a
uma falta de compreensão específica sobre o termo, e sua consequente
colonização por parte dos meios comerciais e de comunicação, que
o utilizam como justificativa para tornar seus produtos úteis, ou para
manipular a opinião pública.
16
Qualidade de Vida
Finalizando a análise desta reportagem, é preciso salientar
uma outra relação presente no senso comum referente à definição de
qualidade de vida: a ligação desta com a saúde e a atividade física.
Talvez essa seja a principal associação entre o tema estudado e um de
seus elementos, possuindo mitos e crenças fortemente enraizados na
sociedade contemporânea.
A intenção em citar essa matéria não é desvalorizá-la ou invalidá-la
como tentativa de discussão sobre qualidade de vida, mas exemplificar
abordagens sobre esse tema que se encontram explícitas em nosso
cotidiano e principalmente na mídia. Nota-se que, ao lidar com essa área
de conhecimento, muitos meios de comunicação, assim como o linguajar
popular, buscam fatores que ilustram ou interferem sobre essa noção,
porém, sem definir ao certo a dimensão do objeto. Por essa falta de
especificidade terminológica e de uma visão fragmentada sobre o tema,
muitas vezes qualidade de vida passa a ser, de forma equivocada, um
termo abordado como algo a ser alcançado e que depende unicamente
da boa vontade e da atitude individual do sujeito em mudar seus hábitos.
Nesse sentido é que estudos em qualidade de vida podem se
centrar, buscando alternativas para a melhoria do nível de vida do maior
número de pessoas possível, pois isso não depende só do sujeito.
Em abordagens sobre qualidade de vida, é necessário ter atenção à
multiplicidade de questões que envolvem esse universo, desde parâmetros
sociais até de saúde ou econômicos. Esses indicadores podem ser
analisados (e assim o são) por diferentes áreas de conhecimento, com
referenciais e procedimentos diferentes, sendo vinculadas definições e
concepções variadas.
É possível observar esforços em estabelecer um tratamento
científico para o universo de qualidade de vida. Devido ser esta uma área
multidisciplinar, pode-se observar várias frentes de pesquisa e reflexão.
Para uma racionalização da análise sobre esse objeto, as formas de
definições sobre o tema serão analisadas em dois momentos: Análise
semântica do termo e discussão sobre sua abrangência; Definições sobre
essa área de conhecimento, com o objetivo de cercar suas variáveis e
campos de estudo.
17
Quanto à análise semântica, tem-se que o termo Qualidade, num
sentido filosófico, refere-se a um caráter do objeto, que a princípio nada
diz sobre ele, suas propriedades ou possibilidades. Significa uma forma
de estabelecer valores. Caracterizar algo pela sua qualidade é estipular
um nível bom ou ruim a ele; porém, essa atribuição é subjetiva, de acordo
com o referencial e os elementos considerados. O que é boa qualidade
para alguém não é necessariamente para outra pessoa (BETTI, 2002).
Ao atribuir valores a um objeto, está implícita a veracidade da
existência real do mesmo. Consequentemente, o que se analisa não é a
presença ou ausência deste no mundo concreto, mas seu valor perante
às variáveis que o rodeiam.
Analisando o termo qualidade de vida, nota-se que o emprego da
palavra Qualidade a essa forma de percepção de mundo estabelece uma
existência inerente a esse campo de conhecimento, independente de ser
considerado bom ou ruim. A qualidade de vida sempre esteve entre os
homens; remete-se ao interesse pela vida. Logo, é possível estabelecer
que qualidade de vida não é algo a ser alcançado, um objeto de desejo
da sociedade contemporânea que deve ser incorporado à vida a partir
de esforço e dedicação individual. Pelo contrário, é uma percepção que
sempre esteve e sempre estará presente na vida do ser humano. O fato
é que, a partir desse tipo de análise, todos os sujeitos têm qualidade de
vida, não sendo esse um elemento a ser alcançado através de ações
embutidas no padrão de boa vida da sociedade contemporânea; porém,
o interessante para a vida de cada um é buscar uma boa qualidade frente
às suas possibilidades individuais de ação.
Quanto ao valor implícito a essa percepção (bom ou ruim), é
possível afirmar que respeita tanto questões de ordem concreta, que
exercem influência direta sobre as possibilidades de ação do sujeito frente
à própria vida, como formas de percepção, ação e expectativas individuais
frente a esses elementos. Inclusive, estabelecer se algo é bom ou ruim
depende de diferentes referenciais ou pontos de vista.
Neste segundo momento, se faz importante uma definição sobre
o termo em questão, para um encaminhamento frente aos limites de
abrangência dessa área de conhecimento.
18
Qualidade de Vida
De acordo com Minayo et al. (2000, p.10), qualidade de vida
é uma noção eminentemente humana, que tem sido
aproximada ao grau de satisfação encontrado na
vida familiar, amorosa, social e ambiental e à própria
estética existencial. Pressupõe a capacidade de
efetuar uma síntese cultural de todos os elementos
que determinada sociedade considera seu padrão
de conforto e bem-estar. O termo abrange muitos
significados, que refletem conhecimentos, experiências
e valores de indivíduos e coletividades que a ele se
reportam em variadas épocas, espaços e histórias
diferentes, sendo, portanto, uma construção social com
a marca da relatividade cultural.
Nota-se que essa abordagem esbarra numa compreensão social
do termo, que considera questões subjetivas como bem-estar, satisfação
nas relações sociais e ambientais, e a relatividade cultural. Ou seja, esse
entendimento depende da carga de conhecimento do sujeito, do ambiente
em que ele vive, de seu grupo de convívio, da sua sociedade e das
expectativas próprias em relação a conforto e bem-estar.
Gonçalves e Vilarta (2004) abordam qualidade de vida pela
maneira como as pessoas vivem, sentem e compreendem seu cotidiano,
envolvendo, portanto, saúde, educação, transporte, moradia, trabalho e
participação nas decisões que lhes dizem respeito.
Essa abordagem indica, num primeiro momento, para as
expectativas de um sujeito ou de determinada sociedade em relação
ao conforto e ao bem-estar. Isso depende das condições históricas,
ambientais e socioculturais de determinado grupo, ou seja, o entendimento
e a percepção sobre qualidade de vida, nessa perspectiva, são relativos
e variáveis.
Qualidade de vida não se esgota nas condições objetivas de que
dispõem os indivíduos, tampouco no tempo de vida que estes possam ter,
mas no significado que dão a essas condições e à maneira com que vive.
Nessa concepção, a percepção sobre qualidade de vida é variável em
relação a grupos ou sujeitos. Para essa autora, o termo está relacionado
ao significado que damos às condições objetivas da vida.
Para Nahas (2001, p. 5), qualidade de vida é a “condição humana
19
Qualidade de Vida
resultante de um conjunto de parâmetros individuais e socioambientais,
modificáveis ou não, que caracterizam as condições em que vive o ser
humano”.
Gonçalves (2004, p.13) define qualidade de vida como “a percepção
subjetiva do processo de produção, circulação e consumo de bens e
riquezas. A forma pela qual cada um de nós vive seu dia-a-dia”.
Por fim, qualidade de vida, para a Organização Mundial da Saúde
(OMS) (1995), é “a percepção do indivíduo de sua inserção na vida no
contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação
aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”.
Não é possível existir um conceito único e definitivo sobre qualidade
de vida, mas se pode estabelecer elementos para pensar nessa noção
enquanto fruto de indicadores ou esferas objetivas (sociais) e subjetivas, a
partir da percepção que os sujeitos constroem em seu meio. (BARBOSA,
1998)
Segundo Vilarta e Gonçalves (2004, p. 33), essas esferas se
caracterizam como:
Objetividade das condições materiais: interessa a
posição do indivíduo na vida e as relações estabelecidas
nessa sociedade;
Subjetividade: interessa o conhecimento sobre as
condições físicas, emocionais e sociais relacionadas
aos aspectos temporais, culturais e sociais como são
percebidas pelo indivíduo.
Pontos de vista objetivos buscam uma análise ou compreensão
da realidade pautada em elementos quantificáveis e concretos, que
podem ser transformados pela ação humana. A análise desses elementos
considera fatores como alimentação, moradia, acesso à saúde, emprego,
saneamento básico, educação, transporte, ou seja, necessidades de
garantia de sobrevivência próprias da sociedade contemporânea.
Essa perspectiva caracteriza a análise em qualidade de vida como
uma busca por dados quantitativos e qualitativos que permitam traçar
um perfil de um indivíduo ou grupo em relação ao seu acesso a bens e
serviços. Esses dados são gerados com base em informações globais
Definição e Conceitos
20
dos grupos estudados. A partir deles, são traçados índices estatísticos de
referência sobre posições socioeconômicas de populações, assim como
comparações entre objetos diferentes. Com esse tipo de tratamento,
torna-se possível estabelecer quadros de perfis socioeconômicos para
ações voltadas à melhoria da qualidade de vida dos sujeitos envolvidos.
A análise de qualidade de vida sob um aspecto subjetivo também
leva em conta questões de ordem concreta, porém, considera variáveis
históricas, sociais, culturais e de interpretação individual sobre as condições
de bens materiais e de serviços do sujeito. Não busca uma caracterização
dos níveis de vida apenas sobre dados objetivos; relaciona-os com fatores
subjetivos e emocionais, expectativas e possibilidades dos indivíduos ou
grupos em relação às suas realizações, e a percepção que os atores têm
de suas próprias vidas, considerando, inclusive, questões imensuráveis
como prazer, felicidade, angústia e tristeza.
Quanto aos aspectos subjetivos, é preciso uma caracterização
prévia do ambiente histórico-social em que vive o grupo ou sujeito para
uma análise sobre seus níveis de qualidade de vida. Lembrando que o
estabelecimento desses níveis se dá de forma relativa às necessidades,
expectativas e percepções individuais.
Relacionando as definições de qualidade de vida apresentadas
com as duas esferas em que circula essa área de conhecimento, podese observar que, embora os autores citados apresentem prevalências
individuais de análise quanto a elementos objetivos ou subjetivos, não é
possível isolá-los em suas definições.
Há uma relação íntima entre aspectos objetivos e subjetivos a
respeito desse tema: “nenhuma análise sobre qualidade de vida individual
poderá ser desenvolvida sem uma contextualização na qualidade de
vida coletiva” (TUBINO, 2002, p. 263). Do mesmo modo, a definição de
qualidade de vida da OMS, por exemplo, contempla as concepções de
subjetividade do indivíduo e de objetividade das condições materiais
(VILARTA e GONÇALVES, 2004).
Essa compreensão direciona o estudo sobre qualidade de vida para
a necessidade de estabelecer parâmetros objetivos como condições de
saneamento básico, saúde, alimentação, moradia, transporte, educação,
entre outros (VILARTA e GONÇALVES, 2004). Porém, não se pode
21
excluir o impacto dessas variáveis sobre a vida dos sujeitos, sendo que
a interpretação, a percepção e a expectativa perante a vida variam de
acordo com a individualidade de cada um.
Essa divisão de esferas de percepção busca esclarecer a
problemática da multidisciplinaridade presente em estudos sobre
qualidade de vida, visto que esse é um tema de grande abrangência
semântica. É importante considerar que, por existirem diversas formas
de definição sobre o termo, a adoção de somente uma delas parece
imprudente, pois esse ainda é um campo em formação e em processo
de definição de conceitos e verdades. Logo, tais definições são aceitas
e utilizadas, porém, devem ser analisadas com olhar crítico e de forma
situada em relação aos aspectos objetivos e subjetivos de análise, além
do fato de serem complementares entre si. Tanto aspectos objetivos
quanto subjetivos devem ser considerados numa análise sobre o tema.
No processo de definir as fronteiras de abrangência de qualidade
de vida, torna-se necessário especificar o campo em que se encontra esse
tema como área de conhecimento e saber científico. A primeira reflexão
diz respeito à sua área de concentração: Humanas ou Biológicas.
Qualidade de vida seria um híbrido biológico-social, mediado por
condições mentais, ambientais e culturais (MINAYO et al., 2000). Essa
área de estudo, se simplesmente se ativer a questões de ordem biológica,
ligadas exclusivamente à saúde clínica, corre o risco de ser incompleta e
equivocada, pois desconsiderará as variáveis histórico-culturais, influentes
inclusive no processo saúde-doença. A preocupação com o conceito de
qualidade de vida refere-se a um movimento dentro das ciências humanas
e biológicas no sentido de valorizar os parâmetros mais amplos que o
controle de sintomas, a diminuição da mortalidade ou o aumento da
expectativa de vida (FLECK et al., 1999, p. 20).
A colocação desses autores apresenta uma noção que busca a
humanização deste conceito e dos avanços científicos e tecnológicos
na área de saúde e bem-estar das populações. Humanizar a saúde e a
qualidade de vida não significa somente acrescentar anos às vidas dos
sujeitos, mas acrescentar vida aos anos (FLECK et al., 1999). Ou seja,
não basta aumentar a expectativa de vida, mas melhorar a qualidade dos
anos vividos. Portanto, tanto a percepção individual dos sujeitos,
quanto análises objetivas sobre qualidade de vida, desde um ponto de
22
Qualidade de Vida
vista semântico sobre o termo, até possíveis aplicações diretas no real,
não podem ignorar o caráter de interdependência entre as duas esferas
de percepção (objetiva e subjetiva), nem aspectos clínicos e sociais para
que o ser humano não seja tratado como um número ou índice de análise,
nem tão somente um realizador integralmente responsável pelo seu bemestar.
Com base na revisão bibliográfica, é possível perceber uma
tendência em estabelecer conceitos e níveis de qualidade de vida a partir
da análise de instrumentos indicadores dessa noção. Esses parâmetros
buscam quantificar aspectos populacionais da saúde e bem-estar de
grupos humanos, e se apresentam sob formas, origens, referenciais e
áreas de atuação distintas. Nota-se, inclusive, que expressam as esferas
de percepção objetiva e subjetiva.
As aplicações de instrumentos de avaliação de qualidade de vida
[...] são amplas e incluem não somente a prática clínica individual, mas
também a avaliação de efetividade de tratamentos e funcionamento de
serviços de saúde. Além disso, podem ser importantes guias para políticas
de saúde (FLECK, 2000, p. 38).
“Os indicadores de qualidade de vida têm sido usados para avaliação
da eficácia, da eficiência e do impacto de determinados tratamentos na
comparação entre procedimentos para o controle de doenças” (SEIDL e
ZANNON, 2004, p. 581). Embora tais perspectivas levem em consideração
as relações entre saúde e qualidade de vida, elas explicitam uma intenção
desses indicadores de elucidar os perfis das populações em relação às
condições e aos parâmetros em que estão ocorrendo suas vidas. Os
dados gerados levam a caracterizações e comparações dos grupos, e
podem ser usados para fins diversos, como a promoção de saúde ou
objetivos políticos e mercadológicos.
Embora os indicadores busquem traçar perfis sobre a qualidade de
vida, é possível relacioná-los com as esferas referidas a partir da forma e
da caracterização dos dados coletados. Os instrumentos de ordem objetiva
abordam principalmente os bens materiais que influenciam a condição
e modo de vida, sendo esses termos configuradores de uma ordem
social. Esse tipo de análise busca estabelecer quadros gerais da vida de
populações, a partir de dados obtidos de forma concreta, sem abordagem
individual dos sujeitos. Por outro lado, os de ordem subjetiva visam
23
também a estabelecer perfis de populações, porém, a partir da percepção
individual dos sujeitos, complementando as análises referentes a bens
materiais do grupo. Um desafio importante para esses instrumentos é a
geração de formulações que permitam expressar correspondências entre
as melhoras dos índices coletivos e de satisfação pessoal (GONÇALVES
e VILARTA, 2004).
Os indicadores de níveis de qualidade de vida proporcionam um
caminho metodológico de análise das esferas de percepção objetiva e
subjetiva. Por essa razão, esses elementos serão apresentados de forma
separada; porém, é preciso considerar a relação dialética que se expressa
entre eles.
1.2 Percepções objetivas de qualidade de vida
A esfera objetiva de percepção de qualidade de vida lida com a
garantia e satisfação das necessidades mais elementares da vida
humana: alimentação, acesso à água potável, habitação, trabalho, saúde
e lazer (MINAYO, et al., 2000). Essa forma lida com as possibilidades de
consumo e utilização de bens materiais concretos, por isso, independe da
interpretação do sujeito perante sua própria vida.
Essa perspectiva é mais facilmente compreendida se associada
com instrumentos indicadores, visto que se apoia em dados de acesso
dos grupos sociais a materiais de consumo.
Os primeiros indicadores objetivos de qualidade de vida incluíam três
ordens de fato: “1. aquisição de bens materiais; 2. avanços educacionais;
3. condições de saúde” (GONÇALVES e VILARTA, 2004, p. 9). Esse tipo
de análise leva a uma generalização dos grupos em questão, pois suas
particularidades históricas e culturais não são levadas em consideração.
Esse tipo de instrumento indicador, que se apoia em questões
socioeconômicas relativas à aquisição de bens, desconsidera vertentes
subjetivas e a mutliculturalidade da sociedade contemporânea, adota
referenciais hegemônicos como parâmetros avaliativos (GONÇALVES e
VILARTA, 2004, p. 10):
Tomam como referência padrões ocidentais modernos
como modelos de referência para aferir todas as
24
Qualidade de Vida
nações do planeta; Discriminam pouco entre países de
condições assemelhadas; Adotam enfoque reduzido
de desenvolvimento como melhora de produção e
crescimento econômico, ignorando que qualidade
de vida também transita por valores e práticas como
urbanidade, respeito mútuo, enfim, a força espiritual da
democracia.
Nesse tipo de abordagem faz-se possível uma comparação mais
direta entre grupos separados pelo tempo ou por etnias diferentes. Isso
ocorre devido à adoção de elementos identificáveis como essenciais à
vida, com base em parâmetros culturalmente hegemônicos. Por um lado,
essa ocorrência atribui a possibilidade de classificar grupos quanto a seus
níveis de qualidade de vida, por outro, como não considera as percepções
individuais e especificidades culturais dos sujeitos e coletividades, a
validade das comparações e índices gerados se faz de forma política e
culturalmente hegemônica em alguns momentos.
Esses indicadores apresentam pontos positivos referentes à
facilidade de obtenção de dados e a geração de índices gerais sobre
as condições de qualidade de vida dos grupos analisados. Isso se
deve ao processo de obtenção desses dados, que se dá em análises
generalizantes da sociedade, através de índices ligados às áreas da
saúde, moradia, transporte, educação, alimentação, entre outras, e não
através de intervenções individuais. Outra característica é o enfoque
quantitativo sobre os dados e elementos analisados. A esfera objetiva de
percepção lida com a presença ou ausência de determinados elementos
nos grupos e a intensidade dessas ocorrências.
Um exemplo desse tipo de instrumento indicador é o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), elaborado pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Esse tipo de índice, além de
considerar aspectos socioeconômicos, lida com questões de saúde,
incluindo no cálculo a expectativa de vida ao nascer e taxas de mortalidade
da população. “Esse índice varia de zero a um: o nível alto de qualidade
de vida corresponde de 0,800 a 1,000; o nível médio está no intervalo de
0,500 a 0,799 e o nível baixo é inferior a 0,499” (GONÇALVES e VILARTA,
2004, p. 10).
A estipulação de valores entre os elementos analisados toma como
referência padrões ocidentais de percepção de boa qualidade de vida e de
25
expectativa quanto às necessidades de sobrevivência e bem-estar. Esse
índice é aplicado em populações em nível nacional, o que, de certo modo,
se caracteriza como um limite metodológico, visto que diferentes regiões
de um mesmo país possuem condições socioeconômicas extremamente
divergentes. Por outro lado, existe a possibilidade de adaptar ou desagregar
esse indicador para grupos específicos, selecionando um critério de
diferenciação entre eles (gênero ou classes sociais, por exemplo),
considerando-os como países (PAIXÃO, 2000). Essa se apresenta como
uma alternativa para aplicação em diferentes populações, mantendo ainda
a característica objetiva de análise.
Todavia, embora seja possível adaptar esse instrumento para grupos
específicos, essa alternativa, assim como toda espécie de análise objetiva,
mantém o caráter de comparação entre populações, desconsiderando as
especificidades étnicas e culturais.
Outro exemplo desses indicadores é o Índice Paulista de
Responsabilidade Social (IPRS), formulado por profissionais da Fundação
Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), que busca uma
análise socioeconômica geral sobre grupos, porém, agregando campos
menores que o nacional, tornando o índice mais específico. Esse índice
“assenta-se em três grupos categoriais – riqueza municipal, longevidade
e escolaridade – tendo sido aplicado em 645 cidades paulistas com
resultados considerados bem-sucedidos” (GONÇALVES e VILARTA,
2004, p. 12).
Esses tipos de indicadores, por se aterem a determinadas
populações, na maioria das vezes países ou Estados oficiais, estabelecem
dados generalizantes referentes às condições de vida dos sujeitos (que
interferirão diretamente na qualidade de vida dos mesmos), configurando
um perfil socioeconômico de determinado grupo de análise. Por razão
de o termo e a percepção de qualidade de vida não serem objetos bem
definidos no senso comum, e por constituírem uma forma de propaganda
mercadológica e política, a utilização desse tipo de índice pelos governos
é prática constante, visando divulgar as benfeitorias de seus mandatos.
Paixão (2000) cita o episódio de mudança dos critérios para cálculo das
variáveis econômicas do IDH durante o governo do ex-presidente do
Brasil Fernando Henrique Cardoso. Nessa ocasião, o país, que tinha um
índice que o classificava na faixa dos países de IDH elevado, com tal
26
Qualidade de Vida
mudança, passou a ocupar o nível médio, com IDH igual ao do vizinho
Peru. O governo brasileiro do período questionou tais mudanças, visto que
utilizava o índice como forma de propaganda política e dado confirmador
de ações socioeconômicas positivas.
Essa esfera de percepção (objetiva) lida com uma interpretação
da qualidade de vida a partir das condições sociais dos grupos em
questão. Tais determinantes são geradas como dados generalizantes, que
englobam os diferentes sujeitos numa mesma condição.
Após adotar as definições deste termo, apresentadas no item 2.1
deste trabalho, uma classificação da qualidade de vida desvinculada das
percepções individuais parece um tanto quanto equivocada. Mas não é; as
análises objetivas produzem uma grande colaboração para intervenções
nessa área, principalmente na saúde e na programação de ações sociais,
direcionando pontos carentes de melhorias na vida do grupo em questão.
Por outro lado, embora seja útil do ponto de vista de melhorias
de serviços à população, essa abordagem objetiva não comporta toda
a complexidade que abrange o termo qualidade de vida. É preciso uma
compreensão especifica sobre esses instrumentos e esfera de percepção
para localizar seu papel e função nessa área de conhecimento.
Portanto, a compreensão acerca da esfera objetiva de percepção,
assim como seus instrumentos indicadores, se faz importante em dois
aspectos: 1. Como instrumento de avaliação das condições de vida
das populações, indicando campos de carência de serviços ou de
assistência; 2. Como base para caracterização dos grupos em relação aos
ambientes socioeconômicos em que estão inseridos. Considerando que a
percepção de qualidade de vida do ser humano é vinculada tanto às suas
subjetividades, quanto às suas possibilidades de realização em sua vida,
essa esfera de percepção se caracteriza como um primeiro passo para o
entendimento desse campo de conhecimento.
1.3 Percepções subjetivas de qualidade de vida
Essa esfera de percepção lida, numa primeira instância, com as
ações individuais perante a própria vida do sujeito. Engloba desde suas
opções por práticas, como a expectativa e a percepção de seus níveis de
27
qualidade de vida.
Segundo Gonçalves (2004), a esfera subjetiva de compreensão de
qualidade de vida diz respeito ao estilo de vida do sujeito, que se caracteriza
como os hábitos aprendidos e adotados durante toda a vida, relacionados
com a realidade familiar, ambiental e social. São ações que refletem as
atitudes, os valores e as oportunidades na vida das pessoas, em que
devem ser considerados elementos concorrentes ao bem-estar pessoal,
controle do estresse, a nutrição equilibrada, a atividade física regular, os
cuidados preventivos com a saúde e o cultivo de relacionamentos sociais.
Minayo et al. (2000) tratam a esfera subjetiva de percepção com
valores não materiais como amor, felicidade, solidariedade, inserção
social, realização pessoal e felicidade. Logo, como se trata de uma
perspectiva subjetiva de ações, é sempre necessário considerar as
infinitas possibilidades individuais de percepção, conceituação e
valorização dessas variáveis imensuráveis objetivamente, como, por
exemplo, o sentimento de prazer em diferentes situações do cotidiano,
que se expressa de formas distintas entre sujeitos. Isso se exemplifica na
afirmação de Rosário (2002), de que a melhoria da qualidade de vida está
atrelada à busca pela felicidade.
Percebe-se que a esfera subjetiva de percepção engloba
sentimentos e juízos de valor dos indivíduos. Isso é atrelado à carga
cultural do sujeito, ao ambiente e local em que ele vive e às condições
de desenvolvimento possíveis para sua vida. Direciona desde sua forma
de ação na sociedade, como os meios de percepção e julgamento de
sua vida, sempre relativos às expectativas e ao entendimento de bemestar de seu grupo. “A subjetividade sobre o conceito de qualidade de
vida diz respeito também às diferentes fases da vida do sujeito, tendo um
significado diferente em cada uma delas, para a mesma pessoa” (NAHAS,
2001, p. 5).
Cada sociedade estabelece culturalmente seu padrão de vida
e isso direciona as formas de expectativa e níveis de satisfação dos
indivíduos que a compõem (MINAYO et al., 2000). Essa percepção exerce
influência sobre o que é e o que não é uma boa qualidade de vida. O grau
de satisfação dos sujeitos com suas realizações pessoais, assim como os
bens materiais obtidos, variam de acordo com o padrão de sua sociedade,
e, de forma mais profunda, com seus valores pessoais.
28
Qualidade de Vida
Os gostos e as expectativas dos indivíduos variam de acordo com
sua classe social e os valores e significados atrelados a ela (BOURDIEU,
1983b). Essa perspectiva exerce influência direta tanto sobre o estilo,
quanto a percepção individual da vida. Isso ocorre de acordo com as
possibilidades de ação e de adoção de estilos de vida saudáveis por parte
dos indivíduos, determinadas pelas variáveis socioeconômicas de seu
grupo social.
Além das diferenciações por classes sociais identificáveis
numa mesma sociedade, existem também diferenças culturais entre
grupos sociais, separados pela história ou por origens étnicas. Essa
multiculturalidade expressa um fator dificultante perante a concepção
do termo qualidade de vida e, principalmente, sobre instrumentos de
quantificação, devido à relatividade de compreensão e a expectativa sobre
o que é um bom nível de vida.
Os indicadores ligados a uma esfera objetiva de percepção têm
maior facilidade em lidar com essas variações culturais, pois jogam com
elementos concretos e de aquisição material, pautados numa lógica e
cultura hegemônico-ocidentais. Como essa forma de análise respeita
tendências ligadas às classes dominantes e seus patamares de bem-estar,
também apresenta um critério sobre uma boa qualidade de vida. Dessa
forma, a questão da multiculturalidade não se coloca como um problema
para coleta de dados em análises objetivas, mas, por outro lado, coloca
suas conclusões em dúvida, justamente por ignorarem as diversidades.
É nesse sentido que os indicadores ligados a uma esfera subjetiva
de percepção atuam. Esse tipo de análise, por se caracterizar pela coleta
de dados relativa à percepção individual dos sujeitos e estar voltada à sua
satisfação frente às expectativas próprias, busca o desenvolvimento de
perfis relativos à qualidade de vida que consideram a pluralidade cultural da
sociedade contemporânea e de sociedades de outros períodos históricos.
“Os [indicadores] de natureza subjetiva respondem a como as
pessoas sentem ou o que pensam das suas vidas, ou como percebem
o valor dos componentes materiais reconhecidos como base social da
qualidade de vida” (MINAYO et al., 2000, p. 17).
Esses indicadores atendem à premissa de que só é possível falar
em qualidade de vida a partir da análise da percepção individual dos
29
sujeitos sobre a própria vida. O simples questionamento pessoal pode se
mostrar um critério vago, visto que depende de inúmeras variáveis que
compõem a complexidade humana no momento das respostas. Logo,
esses instrumentos indicadores buscam avaliar tanto questões individuais
de percepção quanto a presença de bens materiais na vida dos sujeitos,
sendo que informados pelo indivíduo e não por órgãos generalizantes,
como na forma objetiva de análise.
Como exemplos desses indicadores, pode-se utilizar o Índice de
qualidade de vida (QUALIDADE DE VIDA), criado pelo jornal A Folha de
São Paulo, e o WHOQOL-100, desenvolvido pela Organização Mundial
de Saúde (OMS).
O primeiro “inclui um conjunto de nove fatores (trabalho, segurança,
moradia, transporte, serviços de saúde, dinheiro, estudo, qualidade do ar
e lazer)” (MINAYO et al., 2000, p. 15). Esses elementos são analisados a
partir do ponto de vista da população, que é dividida por faixa de renda,
escolaridade, categoria social, sexo e faixa etária. A pergunta chave é o
grau de satisfação dos sujeitos, classificando em satisfatório, insatisfatório
e péssimo, em um intervalo de 0 a 10.
Nota-se, nesse primeiro exemplo, que embora sejam avaliados
alguns elementos ligados a bens materiais como moradia, transporte,
dinheiro, o que se analisa nessa perspectiva não é a existência ou não
desses fatores, muito menos se estabelece uma quantificação sobre eles.
O processo se faz sobre a percepção individual dos sujeitos em relação
a sua condição de vida. Esse exemplo expressa a diferença conceitual
entre instrumentos indicadores objetivos e subjetivos; o primeiro busca
elementos relacionados a índices quantitativos gerais da população,
enquanto o segundo busca a percepção da população frente aos itens
selecionados.
Outro exemplo é o questionário WHOQOL-100, desenvolvido pela
Organização Mundial de Saúde. Ele busca uma avaliação conceitual
sobre aspectos do estado funcional, de bem-estar e da condição geral de
saúde dos sujeitos (GONÇALVES e VILARTA, 2004). Esse instrumento
parte da premissa de que qualidade de vida é uma construção subjetiva,
multidimensional e composta por elementos positivos (mobilidade) e
negativos (dor) (MINAYO et al., 2000). Foi desenvolvido por órgãos de
saúde de diversos países, buscando se adequar à transculturalidade do
planeta (FLECK, 2000). Esse processo se deu em dois passos: o primeiro,
30
Qualidade de Vida
de desenvolvimento das questões, e o segundo, de tradução, visando
adaptar o instrumento aos termos culturalmente equivalentes de cada
idioma.
O WHOQOL-100 é composto por cem perguntas referentes a seis
domínios: físico, psicológico, nível de independência, relações sociais,
meio ambiente e espiritualidade/religiosidade/crenças pessoais. Esses
domínios são divididos em 24 facetas, compostas por quatro perguntas
cada. Além disso, existe uma 25a faceta, com questões gerais sobre
qualidade de vida (FLECK, 2000):
31
Quadro 1: Domínios e facetas do WHOQOL-100
DOMÍNIOS E FACETAS DO WHOQOL-100
DOMÍNIO 1 – Domínio físico
1. Dor / 2. Energia e fadiga
3. Sono e repouso
DOMÍNIO 4 – Relações sociais
13. Relações pessoais / 14.
Suporte (apoio) social / 15.
Atividade sexual
DOMÍNIO 2 – Domínio psicológico
4. Sentimentos positivos / 5.
Pensar, aprender, memória e
concentração / 6. Autoestima / 7.
Imagem corporal e aparência / 8.
Sentimentos negativos
DOMÍNIO 5 – Meio ambiente
16. Segurança física e proteção
/ 17. Ambiente do lar / 18.
Recursos financeiros / 19.
Cuidados de saúde e sociais:
disponibilidade e qualidade
/ 20. Oportunidades de
adquirir novas informações e
habilidades / 21. Participação
em e oportunidades de
recreação e lazer / 22.
Ambiente físico: (poluição,
ruído, trânsito, clima) / 23.
Transporte
DOMÍNIO 3 – Nível de
independência
9. Mobilidade / 10. Atividades da
vida cotidiana / 11. Dependência de
medicação ou de tratamentos / 12.
Capacidade para o trabalho
DOMÍNIO 6 – Aspectos
espirituais, religião, crenças
pessoais
24. Espiritualidade /
religiosidade / crenças
pessoais.
(FLECK, 2000, p.35)
32
Qualidade de Vida
O WHOQOL-100 tem escalas de respostas referentes a quatro tipos
básicos de questões: intensidade, capacidade, frequência e avaliação
(FLECK et al. 1999). Também existe uma versão simplificada desse
instrumento, o WHOQOL-Brief, composto por 26 questões, sendo duas
gerais sobre qualidade de vida e uma por cada faceta da versão em maior
escala.
Embora se constitua numa esfera própria de percepção, o olhar
subjetivo se caracteriza como a interpretação dos sujeitos de sua
realidade histórica, social, econômica e de saúde. Por isso, é relativa a
cada indivíduo e sua carga cultural, porém, deriva das relações do homem
com os bens materiais que exercem interferência sobre sua vida. Logo,
essa perspectiva subjetiva é válida e interessante para a discussão
sobre qualidade de vida se atrelada a análises concretas e objetivas das
condições de vida das populações.
É sobre essa relação que trata o próximo item desse texto, refletindo
sobre as influências socioeconômicas perante a qualidade de vida dos
sujeitos e suas possibilidades de ação individuais frente às decisões
relativas à própria vida.
1.4 Estilo, modo e condição de vida como
constituintes da qualidade de vida. As relações entre as
esferas objetivas e subjetivas de percepção
Por se tratar de um campo de conhecimento multidisciplinar,
o estudo em qualidade de vida engloba diversos modos e conceitos
científicos, assim como inúmeras linhas de abordagem. Isso, atrelado
ao tratamento do senso comum e mercadológico, faz com que diferentes
autores ou sujeitos, fora das margens científicas, abordem esse tema sob
perspectivas diferentes, e, mesmo que involuntariamente, utilizem ou não
conceitos ou esferas de entendimento diversas. Portanto, a diferenciação
entre padrões de entendimento e percepção se faz necessária para
nortear as análises e organizar os conteúdos e abordagens. Isso não pode
ser confundido com um paradigma determinista e reducionista. O fato de
existirem percepções mais voltadas à análise subjetiva e outras ligadas à
objetiva são tendências que se complementam e, associadas, configuram
o atual campo de conhecimento em qualidade de vida.
33
É preciso salientar que as esferas de percepção sobre qualidade de
vida (objetiva e subjetiva) têm suas fronteiras muito tênues. Observa-se
que autores que adotam definições sobre este termo tendendo a adotar
uma dessas formas de compreensão, por vezes, ainda utilizam conceitos e
princípios de outra. Isso não se caracteriza por um equívoco metodológico.
O fato é que lidar com qualidade de vida implica em considerar inúmeras
variáveis que a compõem e as relações entre elas.
Isso justifica o fato de que, em alguns momentos, ao procurar
ater-se a uma das esferas, existe uma certa dificuldade em não utilizar
elementos de outra. Dessa forma, as relações entre uma esfera objetiva
(melhor expressa pela análise de indicadores sobre as condições de vida)
e subjetiva (ações próprias do estilo de vida do sujeito) são inevitáveis,
pois exercem influência mútua.
Uma explicação para esse fato se dá no conceito de Qualidade
Ambiental, que se constitui pelos juízos de valor relacionados ao estado
ou condições do ambiente (BARBOSA, 1998). Essa perspectiva lida com
as influências do ambiente sobre a qualidade de vida dos sujeitos. Esse
universo pode se expressar tanto física como socialmente. Independente
dessa diferenciação, o meio em que se coloca o indivíduo delimita suas
possibilidades de desejo, necessidade e realização.
Busca-se, então, uma reflexão sobre essa relação. Os hábitos e
as formas de se comportar dos sujeitos dependem de sua posição na
hierarquia social. Ou seja, o consumo simbólico define a diferença
entre estruturas sociais distintas, não através da quantidade de bens de
determinada classe, mas na forma como o grupo consome e utiliza esses
bens (BOURDIEU, 1992). Para adquirir as características simbólicas de
determinado grupo, o indivíduo precisa ter um estilo de vida que permita
tal realização.
A diferenciação entre estruturas sociais diferentes exprime a
relatividade entre as diversas expectativas e possibilidades de realização
em relação ao bem-estar e conforto numa sociedade. As classes sociais
têm gostos e preferências diferentes entre si e o estilo de vida seria uma
forma de expressão construída por vivências histórico-culturais do sujeito,
que exercem influência sobre seus hábitos (BOURDIEU, 1983b). Segundo
o mesmo autor, os gostos de liberdade (o que o sujeito escolhe para sua
vida para saciedade de prazer) só têm lógica se os gostos de necessidade
34
Qualidade de Vida
(realizações para garantia da sobrevivência) forem garantidos.
Segundo Freitas (2005), através de pesquisa empírica, é possível
perceber diferenças entre a percepção, o sentido e o significado que
diferentes classes dão aos mesmos fenômenos. Essa autora dá o
exemplo do futebol que, ainda que seja um fator de aproximação social
e que produz excitação em todas as esferas sociais, se expressa com
significados diferentes entre elas, e se caracteriza como uma forma de
encobrir problemas sociais; é uma opção de trabalho para classes menos
privilegiadas e apenas lazer e distração para classes mais privilegiadas.
Estilo de vida é o conjunto de ações habituais que refletem as
atitudes, os valores e as oportunidades na vida dos sujeitos (NAHAS, 2001).
Acrescentando a contribuição de Bourdieu (1983b) a essa afirmação,
pode-se compreender que se trata das ações individuais que refletem
os hábitos e a carga cultural do sujeito e que interferem diretamente em
sua vida. Essas ações são permeadas pela possibilidade de escolha do
indivíduo e de adoção ou não de práticas no seu cotidiano.
Porém, considerando a ocorrência de diferentes formas de consumo
simbólico e material entre as diferentes estruturas sociais, as oportunidades
de escolha não se apresentam da mesma forma para todos. Elas dependem
das chances de ação em sua vida, geradas pelas condições econômicas, de
subsistência, saneamento, entre outras. Alguém que tenha um orçamento
e condições de subsistência melhores do que outra pessoa terá maiores
possibilidades de escolhas em relação às práticas adotadas em seu estilo
de vida. Essas possibilidades são criadas de acordo com a condição e o
modo de vida do indivíduo (VILARTA e GONÇALVES, 2004), que permitirão
que ele possa fazer escolhas que direcionem seu estilo de vida.
Gonçalves (2004) define modo de vida como a garantia das
necessidades de subsistência do indivíduo, através de sua condição
econômica e, em parte, por políticas públicas; e condições de vida como
os determinantes político-organizacionais da sociedade como um todo,
que norteiam a relação entre os grupos de sujeitos e as variantes de
saneamento, transporte, habitação, alimentação, educação, cuidados à
saúde, entre outros.
A definição dos níveis de qualidade de vida dos sujeitos passa
pela interação entre esses três aspectos, sendo as práticas pessoais
35
(estilo de vida) com maior influência direta, porém, possibilitadas pelas
determinantes socioeconômicas (modo e condição de vida).
A adoção de um estilo de vida tido como saudável é tomada, na
sociedade contemporânea, como um fator determinante perante a situação
de saúde e de vida dos sujeitos. Porém, muitas vezes isso não ocorre,
não por falta de vontade do sujeito, mas pela ausência de condições
socioeconômicas favoráveis. Hábitos como uma nutrição adequada,
horas de descanso, visitas periódicas e profiláticas ao médico, e prática
frequente de atividade física, nem sempre são possíveis para todos os
indivíduos, devido a modos e condições de vida que não possibilitam tais
ações.
O uso do termo estilo de vida é muito comum e se faz de grande
importância quando são focadas questões relativas a qualidade de vida, pois
essa grande área diz respeito ao padrão de vida que a própria sociedade
define e se mobiliza para conquistar, e ao conjunto de políticas públicas que
induzem e norteiam o desenvolvimento humano (MINAYO et al., 2000).
Segundo os mesmo autores, em sociedades estratificadas a ideia
de bem-estar vem de padrões e parâmetros das classes superiores, que,
detentoras do capital e do acesso a inovações tecnológicas, estabelecem
as possibilidades de melhoria dessa variável de percepção, estipulando,
histórica e culturalmente, ações e bens de consumo que levam a uma
percepção positiva sobre a vida ou o que é considerado como um bom
nível de qualidade de vida.
A sociedade contemporânea define e cria padrões de vida a serem
seguidos, seja de forma consciente ou inconsciente. Isso se dá através
de processos de renovação e transmissão cultural que se incorporam na
percepção e expectativa dos sujeitos perante a própria vida. Além disso, a
preocupação com a qualidade de vida é uma questão que não diz respeito
somente ao ser individual, mas sim à sociedade como um todo, pois
remete a condições de sobrevivência e de conforto de todos os sujeitos.
Por isso, é uma questão social que engloba ações de diferentes esferas,
desde o Estado até a adoção de práticas saudáveis pelo indivíduo. Porém,
o direcionamento dado à utilização desse conceito ocorre de acordo com
interesses específicos, carregados de significados e intenções.
Gutierrez (2004) atenta para o risco de analisar a qualidade de vida de
36
Qualidade de Vida
forma despolitizada, desconsiderando influências do Estado, do mercado
ou adotando visões reducionistas sobre o tema. É possível observar que o
uso desse termo, devido sua grande abrangência e possibilidades de ação
(pois é um campo multidisciplinar) é feito, muitas vezes, de forma a atender
demandas de mercado e direcionar interesses políticos. Isso ocorre tanto
na promoção de produtos, quanto em promessas eleitoreiras. Nota-se
que esse direcionamento estabelece uma característica reducionista ao
campo, como se o consumo de determinados bens, ou a mudança de
setores específicos da sociedade estabelecessem uma melhoria definitiva
sobre a qualidade de vida dos indivíduos.
Nesse processo, o Estado diminui sua responsabilidade sobre
a oferta de condições para a melhoria da qualidade de vida dos
sujeitos através de serviços de saúde, educação, transporte, acesso à
alimentação, moradia, saneamento, pois, para que isso ocorra, é preciso
que as condições de vida possibilitem melhorias no modo de vida e,
consequentemente, a adoção de estilos de vida mais saudáveis.
Segundo Gonçalves (2004), a lógica capitalista, caracterizada pelo
democratismo das ações individuais, promove a ideia de que a saúde e a
qualidade de vida melhoram diretamente a partir da adoção de estilos de
vida saudáveis, e isso se torna uma estratégia para controle social. Isso
ocorre porque nem sempre são criadas condições que possibilitam aos
sujeitos a adoção de hábitos saudáveis. Difunde-se a ideia de que, para
melhorar a vida, algumas práticas devem ser incorporadas, como se isso
dependesse exclusivamente da vontade do sujeito.
Nota-se um empenho dos meios de comunicação para transmissão
dessa forma de pensamento, e uma certa omissão dos órgãos de poder,
pois através da divulgação da necessidade primária de estilos de vida
saudáveis, a maior responsabilidade pela melhoria da qualidade de vida
individual passa a ser do próprio sujeito. Isso é fortalecido pelo mercado,
que oferece produtos que interferem nessa mudança de hábitos,
prometendo a esperada melhoria da qualidade de vida.
Esse controle social se expressa na responsabilização do sujeito
pelos seus níveis de qualidade de vida, processo denominado por
Gonçalves (2004, p. 21) como culpabilização da vítima. Dessa forma,
o papel dos órgãos de poder muda num sentido de não proporcionar
reais melhoras nas condições de vida, mas de divulgar formas de ação
individuais que venham a colaborar para a adoção de estilos de vida
37
saudáveis. Por exemplo, em vez de proporcionar uma política de trabalho
que possibilite ao sujeito dedicar algumas horas de seu dia à atividade
física, simplesmente é fortalecida a necessidade dessa prática, deixando
a cargo do indivíduo as formas de realização.
O mesmo ocorre no ambiente profissional privado. Em vez da
empresa criar alternativas para diminuir a ansiedade e a insatisfação
do empregado com seu trabalho, ela simplesmente realiza campanhas
antitabagismo ou antialcoolismo, desconsiderando as razões sociais que
causam esse “vícios” e que podem estar ligadas, inclusive, à própria vida
profissional do funcionário (FREITAS, 2006).
Logo, existe um limite de responsabilização do sujeito frente a seus
níveis de qualidade de vida, devido às possibilidades de escolha de hábitos
e estilos de vida. Porém, a amplitude de escolhas deriva das condições
que o ambiente oferece ao sujeito, desde opções de consumo, até noções
de necessidades e desejos, visto que tudo isso deriva da sociedade.
O que é necessário para uma boa vida é estabelecido, num primeiro
momento, pelo ambiente físico-social, e, posteriormente, pelas escolhas
do sujeito para sua própria vida. A partir desse ponto, o que ele consegue
ou não realizar é decorrente das oportunidades disponíveis e também de
seu esforço frente às oportunidades que sua condição de vida oferece.
Uma boa percepção de qualidade de vida dependerá das
possibilidades que tenham as pessoas de satisfazer adequadamente
suas necessidades fundamentais. Isso se liga à capacidade de realização
individual, que é dependente das oportunidades reais de ação do ator
social. Ou seja, uma boa ou má percepção sobre a vida é relativa à
qualidade do ambiente em que se encontra o sujeito, ao oferecimento de
condições de realização e de satisfação das necessidades básicas que a
própria sociedade estipula como essenciais, e que o interessado toma e
deseja, ou não, como verdade para sua própria vida.
Os desejos manifestam a relação psicológico-emocional e subjetiva
com as necessidades e as carências. Descrevem um tipo de necessidade
que a sociedade atribui aos seus membros em geral, e que o sujeito adota
como indispensáveis (BARBOSA, 1998).
A esfera subjetiva de percepção considera a ideia de felicidade e
38
Qualidade de Vida
satisfação dos desejos. Um indivíduo se considera com boa qualidade de
vida se consegue realizar as aspirações criadas por sua sociedade e por
suas escolhas frente às possibilidades que o universo social lhe oferece.
Ou seja, as possibilidades de consumo e escolha que são estipuladas
objetivamente pelo meio social.
Portanto, a percepção de níveis de qualidade de vida toma-se
como algo amplo, que não pode ser estipulado somente com análises
globalizantes. Indicadores objetivos têm funções de traçar perfis de grupos
sociais, úteis para intervenções em populações, porém, não expressam a
percepção e situação individual frente às próprias vidas dos atores sociais.
De fato, uma boa ou má qualidade de vida depende da percepção
que o sujeito toma para seu existir biológico e social, sendo dependente
de suas ações e do ambiente que o cerca. Segundo Barbosa (1998), essa
noção deve ser analisada a partir da percepção que os sujeitos possuem
do seu viver, associada às transformações ambientais e às necessidades
básicas sentidas.
A condição de qualidade de vida está intimamente, mas não
integralmente, ligada à área da saúde. As intervenções nesse campo se
dão, numa primeira e importante instância, em alterações e melhorias
do estilo de vida das pessoas (MINAYO et al., 2000). Por isso ocorre
esse processo de culpabilização da vítima, pois a transmissão de
responsabilidade pelas condições de saúde, das políticas públicas para a
ação individual do sujeito, se faz vantajosa para os órgãos de poder, que
além de se omitirem de melhorar as condições de vida, agem de forma
economicamente mais interessante em outros setores.
Para analisar os níveis de qualidade de vida de grupos ou sujeitos é
preciso, sempre, considerar as variáveis de condição, modo e estilo de vida
que o cercam. O quadro gerado por essas perspectivas irá estabelecer a
forma de vida do sujeito.
Portanto, é necessário um olhar crítico em relação às abordagens
referentes à qualidade de vida, que se apoiam única e exclusivamente na
adoção de hábitos saudáveis (vide reportagem citada no item 2.1 deste
trabalho). Essa perspectiva reducionista direciona a responsabilidade por
tais condições de forma tendenciosa e vantajosa para os órgãos de poder
39
e, principalmente, para o mercado, que se nutre desse filão, por exemplo,
com a venda de possibilidades e produtos vinculados à prática periódica
de atividade física.
1.5 Qualidade de vida, saúde e atividade física
Independentemente da concepção adotada, do instrumento
indicador utilizado ou do conceito adotado sobre qualidade de vida, existe
uma íntima relação entre este campo de conhecimento, a área da saúde e
a prática de atividade física. Embora haja certa prevalência, principalmente
nos instrumentos indicadores, de uma abordagem de saúde mais próxima
da área médica (GARCIA, 2002), a abrangência desse elemento se
apresenta de forma bem ampla, relacionada a aspectos físicos, emocionais,
de relacionamentos, ligada ao bem-estar. De toda forma, essa relação se
apresenta como o primeiro referencial de percepção.
Para uma análise mais específica sobre essa relação, a saúde é
definida como “um estado de amplo bem-estar físico, mental e social,
e não somente a ausência de doenças e enfermidades” (Organização
Mundial de Saúde, 2006). Compreendida dessa forma, é um processo
instável, sujeito a mudanças rápidas e fortemente influenciado por ações
do sujeito e do ambiente. Não apenas um estado físico puro e objetivo,
que apresenta funções orgânicas intactas, mas uma dimensão subjetiva,
individual, psíquica, mental e social (WEINECK, 2003).
A relação entre saúde e qualidade de vida depende da cultura da
sociedade em que está inserido o sujeito, além de ações pessoais (esfera
subjetiva) e programas públicos ligados à melhoria da condição de vida
da população (esfera objetiva). O estado de saúde é um indicador das
possibilidades de ação do sujeito em seu grupo, se apresentando como
um facilitador para a percepção de um bem-estar positivo ou negativo. É
influenciado pelo ambiente, pelo estilo de vida, pela biologia humana e
pela organização do sistema de atenção à saúde em que o sujeito está
inserido.
A noção de saúde se coloca como uma resultante social da
construção coletiva dos padrões de conforto e tolerância que determinada
sociedade estabelece (MINAYO et al., 2000). As necessidades de saúde,
40
Qualidade de Vida
como uma das vertentes da qualidade de vida, não podem ser separadas
dos movimentos sociais urbanos e nem da dimensão da cidadania
(BARBOSA, 1998).
A relação entre a saúde e a qualidade de vida compõe-se dos
seguintes elementos (VILARTA e GONÇALVES, 2004, p. 42):
Domínios funcionais: Função física; Função cognitiva;
Envolvimento com as atividades da vida; Avaliação de
saúde subjetiva.
Domínios do bem-estar: Bem-estar corporal; Bem-estar
emocional; Autoconceito; Percepção global de bemestar.
Devido a essas características, o estado de saúde de um sujeito sofre
influências de inúmeras variantes, desde a subjetividade e a relatividade do
conceito e dos limites aceitos em determinada sociedade, até elementos
físicos, sociais, ecológicos, de hábitos pessoais, entre outros. Por isso,
os estados de saúde e doença de um indivíduo não podem ser atrelados
a somente uma forma de influência (por exemplo, alimentação), pois se
configuram por uma interligação contínua, que depende tanto das ações
individuais quanto das políticas públicas (SEIDL e ZANNON, 2004).
Pela relação e semelhança quanto aos processos de percepção de
saúde e qualidade de vida (ambos ligados a aspectos objetivos e subjetivos
de percepção), a análise do primeiro conceito pode ocorrer da mesma forma
que a do segundo. Inicialmente, será estabelecida uma associação entre
aspectos objetivos e saúde, através de políticas públicas e questões de nível
socioeconômico, e, num segundo momento, a atenção será direcionada às
questões ligadas aos hábitos individuais e ao estilo de vida dos sujeitos.
Conforme já abordado nesse trabalho no item 1.4, a qualidade de
vida tem íntima ligação com os aspectos socioeconômicos de determinada
população, que configuram a condição de vida dos sujeitos dela integrantes.
Existe uma relação direta entre essas variáveis e as condições de saúde,
expressada e comprovada por instrumentos e indicadores objetivos
(GONÇALVES e VILARTA, 2004).
Tais condições são determinadas pelas possibilidades de acesso
aos cuidados à saúde que são disponibilizados à população. Deslandes
41
(2004) cita duas abordagens político-organizacionais referentes à
organização desses serviços: prevenção em saúde e promoção da saúde.
A primeira diz respeito ao incentivo da associação direta e predominante
entre os hábitos do sujeito e sua condição de saúde. Essa linha de
intervenção se apoia numa concepção de responsabilização do sujeito
pelo seu estado de saúde (responsabilização da vítima), pois se aplica em
um modelo médico hegemônico, centrado no atendimento de doentes e
na divulgação de hábitos positivos à manutenção de bons níveis de saúde.
Apresenta limites para uma atenção comprometida com a efetividade, a
equidade e as necessidades prioritárias, ainda que possa proporcionar
uma assistência de qualidade em determinadas situações. A segunda
surge primeiramente na Conferência de Ottawa, em 19861, pela iniciativa
da responsabilização múltipla, que uniria esforços voltados à promoção
da saúde advindos do Estado (por meio de políticas públicas saudáveis),
da comunidade, de indivíduos, do sistema de saúde e de parcerias
intersetoriais (BUSS, 2000). A partir desse período, são valorizados
na promoção da saúde (DESLANDES, 2004, p. 02): políticas públicas
saudáveis, fortalecimento dos recursos de saúde comunitários, ambientes
favoráveis à saúde, desenvolvimento de habilidades pessoais, redefinição
dos serviços de saúde.
Esse modelo lida com a ideia de totalidade, definindo saúde como
uma questão social ampliada, além de incorporar a ação individual.
Na ideia de promoção da saúde, um estilo de vida tido como positivo
é importante, assim como a prática de atividades físicas e esportivas.
Porém, isso é uma parte do processo de integração entre vários fatores,
e não a única solução.
Essas abordagens representam a organização da atenção à saúde
da população, estabelecendo processos e possibilidades de acesso
a esses cuidados. São responsabilidades do Estado, assim como a
preocupação de proporcionar possibilidades de acesso a bens de consumo
tidos como indispensáveis na sociedade contemporânea: educação,
transporte, moradia, alimentação, saneamento básico, e, claro, cuidado à
saúde clínica. As probabilidades de alcance e consumo desses elementos
por parte dos sujeitos implicam as possibilidades de que se adotem
diferentes formas de estilos de vida, buscando os padrões saudáveis de
sua sociedade, devido à associação e à dependência de realização desses
hábitos aos aspectos socioeconômicos do ambiente.
1
42
1ª Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, 1986, Ottawa, Canadá.
Qualidade de Vida
Em relação aos hábitos individuais e estilos de vida dos sujeitos, a
esfera subjetiva de cuidados à saúde diz respeito ao impacto dos costumes
cotidianos do indivíduo perante sua vida. Entre os comportamentos
considerados saudáveis na sociedade contemporânea, Vilarta e Gonçalves
(2004, p. 47) destacam:
Adotar hábitos alimentares que respeitem as
necessidades biológicas de regularidade de ingestão
de nutrientes (distribuir a quantidade total de alimentos
ingeridos em várias refeições ao longo do dia);
Respeitar as necessidades específicas de nutrientes
para cada etapa da vida (considerar as demandas
por vitaminas, minerais, água, carboidratos, lipídeos,
ou proteínas de acordo com o estado fisiológico, por
exemplo, adolescentes, gestantes, atletas e crianças);
Praticar atividade física apropriada à própria condição
fisiológica e com regularidade;
Controlar o estresse físico e emocional com técnicas
específicas às expectativas e os objetivos de cada
pessoa;
Envolver-se em ações comunitárias estabelecendo
laços de apoio e convívio familiar e social;
Dedicar-se ao lazer não-sedentário, baseado em ações
que envolvam atividade esportiva, hobbies ou trabalho
voluntário.
Nota-se que, dentre as ações listadas, pode-se observar aspectos
voltados à alimentação, aos relacionamentos sociais e às práticas
sistemáticas de atividade física. Como o foco desse trabalho reside nas
relações entre a prática esportiva e a qualidade de vida, faz-se de fundamental
importância uma reflexão sobre o impacto desse tipo de atividade na
percepção humana, assim como os aspectos sociais envolvidos nessa
prática. Porém, não se pode ignorar o fato de que a adoção de hábitos
saudáveis depende da atitude e da adequação do sujeito a uma rotina
apropriada, desde que suas condições de vida proporcionem sua opção
de escolha. Por exemplo, é utópico falar em prática periódica e frequente
de atividade física sistematizada para um sujeito que mal consegue realizar
três refeições diárias e não tem acesso a bons sistemas de atenção à
saúde clínica. A adoção de um estilo de vida tido como saudável depende
de acesso à informação, às oportunidades para prática de atividade física e
aos hábitos positivos, ao apoio socioeconômico e à atitude para mudança
de comportamento (NAHAS, 2001).
43
A atividade física é colocada na sociedade contemporânea como
uma ponte segura para melhores situações de saúde. É uma função
bastante ampla, atribuída a um único conceito, sintetizando a abrangência
das inúmeras consequências do mesmo sobre o organismo humano.
Porém, esse termo é utilizado de maneira generalizante, pois é possível
que seja direcionado ao controle do estresse, assim como uma prática
antissedentária, e também para fins estéticos ou de melhora de performance
atlética (LOVISOLO, 2002).
Com o intuito de apresentar uma definição acerca do termo atividade
física, apresenta-se três opções, sendo que duas apontam para um sentido
semântico de qualquer prática corporal que gaste mais energia do que o
estado de repouso (NAHAS, 2001 e CARVALHO, 2001), enquanto uma
terceira estabelece a necessidade de racionalização e sistematização da
prática (LOVISOLO, 2002).
O termo atividade física carrega toda e qualquer
ação humana que comporte a ideia de trabalho como
conceito físico. Realiza-se trabalho quando existe gasto
de energia. Esse gasto ocorre quando o indivíduo se
movimenta. Tudo que é movimento humano, desde
fazer sexo até caminhar no parque, é atividade física
(CARVALHO, 2001, p. 69).
“É uma característica humana que representa qualquer movimento
corporal produzido pela musculatura esquelética, que resulte num gasto
energético acima dos níveis de repouso. Inclui atividades da vida diária, do
trabalho e do lazer” (NAHAS, 2001, p. 30).
“A atividade física refere-se a motivos e intenções de movimento
ou conservação das capacidades físicas, e implica um plano de ações
racionalizadas ou sistematizadas [...] controlada e corrigida por especialistas”
(LOVISOLO, 2002, p. 281).
Para esse trabalho, serão adotadas como significado de atividade
física as duas primeiras definições, que expressam nesse termo o
movimentar-se humano. Dessa forma, é possível que, ao abordar esse tipo
de prática, sejam englobados desde a realização de trabalhos cotidianos,
quanto de atividades planificadas, sistematizadas e a prática esportiva.
Essa opção se dá com o intuito de apontar a necessidade de, ao realizar
44
Qualidade de Vida
reflexões sobre atividade física, especificar o tipo de prática a qual se
faz menção, como por exemplo, atividade física moderada como prática
antissedentária, ou atividade física ligada ao treinamento esportivo.
Por outro lado, embora adote uma concepção diferenciada de
atividade física, as reflexões de Lovisolo (2002) denunciam a existência
de mitos ou crenças ligadas à atividade física e saúde. Para a abordagem
realizada sobre o trabalho desse autor, seu conceito de atividade física
(mais específico do que os de Carvalho e Nahas) não se coloca como
um empecilho ou como fator de incompatibilidade teórica, visto que
essa conceituação se encaixa na esfera de abrangência da definição de
atividade física adotada, pois se caracteriza como uma das possibilidades
de entendimento sobre o termo em questão (atividade física de forma
sistematizada).
Carvalho (2001) também denuncia a existência de um mito na
sociedade contemporânea, que associa atividade física com saúde,
promovido especialmente pelos meios de comunicação. Nesse contexto,
a ideia de que atividade física está diretamente relacionada com uma
boa saúde é literalmente vendida, segundo a autora, como uma prática
generalizante e que cultua estereótipos de boa forma física e saúde. Essa
ideia pode ser até comprovada por métodos científicos; porém, é preciso
considerar esse elemento função coadjuvante nesse processo, pois, como
já descrito nesse trabalho, a saúde é um complexo de vários componentes
que interagem e exercem influência sobre o resultado final.
Faz-se necessária certa reflexão (LOVISOLO, 2002): Qualquer tipo
de atividade física é benéfico para a manutenção da saúde? A mesma
forma de atividade física serve tanto para diminuir o estresse quanto para
proporcionar melhoria de performance atlética? A simples ausência de
sedentarismo garante um bom quadro de saúde?
Inicialmente, torna-se necessário definir os limites e as fronteiras
sobre sedentarismo. Nahas (2001) classifica que um sujeito sedentário é
o que não produz gasto energético mínimo de 500 Kcal/semana, ou seja,
que não pratica atividade física por 30 minutos, cinco vezes por semana.
Essa definição, baseada em gasto energético ou periodicidade da prática,
se faz um tanto quanto genérica, pois conforme o próprio autor salienta,
ao adotar essa concepção é preciso não ignorar as ações corporais dos
sujeitos em seu dia-a-dia, inclusive em momento de trabalho.
45
Ao considerar tais realizações, estabelece-se que qualquer forma
de movimento corporal é benéfica para a saúde, desde que compreenda
30 minutos do dia do sujeito. Isso pode ser considerado um equívoco, pois
existem diversas práticas de atividade física, desde caminhadas leves, até
trabalhos com peso ou um treinamento intenso de um triatleta, com efeitos
diversos sobre o organismo, assim como seu benefício ou malefício à
saúde (LOVISOLO, 2002).
Ao levar em consideração a multiplicidade de formas de atividade
física e suas consequências para o bem-estar do sujeito, para a
manutenção ou melhoria dos quadros de saúde, é necessário que essa
prática esteja adequada às condições e expectativas individuais, assim
como ao local, aos processos e ao ambiente em que ocorre. Por isso,
a concepção de antissedentarismo, que orienta para que o indivíduo se
movimente independente da forma de atividade, aponta para um passo
inicial para campanhas pró-atividade física, mas não é o trabalho suficiente.
O ideal, para um estilo de vida tido como saudável, seria a adoção de
práticas de atividade física sistematizada, considerando toda a condição
de vida e saúde do sujeito. Porém, como nem tudo acontece próximo do
ideal, o que se observa é uma realidade pautada pelo acesso um tanto
quanto restrito dessa forma de prática a algumas camadas da sociedade,
devido a critérios socioeconômicos. Por isso, a questão do sedentarismo
apresenta um quadro no qual a ideia de movimentar-se, independente da
forma e processos adotados, tem certa validade e impacto positivo sobre
a saúde dos sujeitos, incorporando, infelizmente, o sentimento de que é
melhor isso do que nada.
Por outro lado, Lovisolo (2002) atenta para o fato de que
classes socialmente privilegiadas também apresentam altos índices de
sedentarismo, mesmo com a divulgação de que um estilo de vida saudável
e as condições de saúde são diretamente dependentes da prática de
atividade física. O autor aponta para uma tese ligada ao aumento do
avanço tecnológico, que, por um lado, é benéfico à qualidade de vida dos
sujeitos, facilitando a comunicação e tornando a vida mais ágil e segura,
mas que privilegia a substituição do esforço humano pelo da máquina.
Essa ideia é compartilhada por outros autores, que denunciam um menor
uso da força humana no decorrer do tempo na sociedade contemporânea.
Avanços tecnológicos apresentam uma relação ambígua frente à
prática cotidiana de atividade física na sociedade contemporânea. Podem
46
Qualidade de Vida
tanto ser um fator de estímulo à inatividade (com inovações que facilitam
atividades do dia-a-dia, demandando esforço físico, divulgação e criação
de formas de consumo do lazer sedentário), como também a manutenção
de um estilo de vida ativo para praticantes já engajados nesse hábito, com
produtos ligados à melhoria de condições de prática.
Nesse aspecto, nota-se um filão de mercado que
visa desde desenvolver produtos que melhorem as
condições de prática (como isotônicos ou calçados
apropriados), até artigos que criam novas atividades
(bicicletas para ciclismo indoor). De toda forma, os
avanços tecnológicos estabelecem aos consumidores
praticantes algumas novas necessidades, como roupas
com tecidos especiais ou materiais que prometem
melhora de performance, que, se utilizados de forma
adequada, e com consciência de que não é o produto
que promove a prática, mas sim o sujeito, podem
colaborar para manter o interesse e a inserção desse
hábito presente no estilo de vida, o que pode ser
favorável à qualidade de vida (MARQUES, 2007, p.
145).
A influência da tecnologia sobre os hábitos de atividade física é
um dos inúmeros aspectos que inter-relaciona essa ação humana com
qualidade de vida. A questão abordada numa reflexão acerca das relações
entre saúde, atividade física e qualidade de vida não é de causalidade
direta entre as partes, tida como consenso na sociedade contemporânea,
mas a forma, a intensidade e o impacto com que se estabelece essa interrelação. O foco da reflexão não é abordar se a atividade física colabora ou
não com a melhoria dos quadros de saúde, mas que tipo de atividade, e
em que contexto se faz positivo ou negativo esse processo.
Autores como Nahas (2001) e Lovisolo (2002) salientam diferenças
entre formas de atividade física (exercício e atividade, práticas leves e
intensas, treinamento e prática voltada ao bem-estar), que se fazem
importantes devido aos diferentes impactos causados pelas variadas
formas de práticas sobre o organismo e também sobre o convívio social
dos sujeitos. Pode-se diferenciar as formas de atividade física como
ligadas a momentos de trabalho e não-trabalho (CARVALHO, 2001). Essa
proposta estabelece um parâmetro para compreensão desse termo, pois
47
especifica que, embora em momentos diferentes, é possível a prática de
atividade física. Por outro lado, abre a possibilidade de interpretação para
um campo em que a prática tenha sentido profissional, como por exemplo,
atletas de alto rendimento.
Nahas (2001, p. 33) chama atenção para uma variável que se
relaciona com a prática de atividade física, a aptidão física, definida como
“a capacidade que um indivíduo tem para realizar atividade física. Deriva
da hereditariedade, estado de saúde, alimentação e prática regular de
exercícios físicos”. Pode estar relacionada à melhoria de performance,
contribuindo para um bom desempenho em tarefas específicas, trabalho
ou esporte; ou à saúde, lidando com prevenção de doenças e busca de
maior disposição para atividades do dia-a-dia, exercendo influência sobre
o bem-estar.
Pode-se diferenciar formas de atividade física de acordo com o
sentido dado à prática, significado e motivação. Dessa forma, é possível
elencar duas categorias que podem ocorrer tanto em momentos de trabalho
como de não-trabalho do sujeito praticante, e acabam por influenciar a
aptidão física do sujeito, de forma voluntária ou involuntária:
a.) Atividade física ligada à incorporação ao estilo de vida: Práticas
sem o intuito de alcançar os limites de alto rendimento físico do organismo,
privilegiando o antissedentarismo, o prazer pela prática e a socialização.
Podem ou não ser sistematizadas, embora não excluam o sentimento de
esforço e cansaço.
b.) Atividade física ligada ao treinamento e melhoria de performance
atlética: Práticas que buscam estabelecer melhores patamares de limite
de realização de performance atlética. Ocorrem (ou pelo menos deveriam
ocorrer) de forma sistematizada, com controle da intensidade, buscando
segurança e bem-estar do sujeito. Nessa categoria, são englobadas
situações de treinamento esportivo, estético, com auxílio de controle das
variáveis do treino e efeitos deste sobre o organismo.
Os diferentes tipos de atividade física apontados nessa divisão
caracterizam uma heterogeneidade perante o sentido e os efeitos de sua
prática, mas, de toda forma, lidam com a melhoria do bem-estar do sujeito.
Esse quadro fundamenta o risco de generalizar afirmações referentes à
relação atividade física e saúde, pois, por exemplo, atividades voltadas à
48
Qualidade de Vida
melhoria de performance, visando um trabalho físico próximo do patamar
de limite de realização do sujeito, não se fazem interessantes para um
indivíduo sedentário iniciante em atividade física, podendo até gerar um
impacto negativo sobre sua saúde (NAHAS, 2001; WEINECK, 2003).
Portanto, ao relacionar atividade física e saúde é preciso considerar
o contexto sujeito – aptidão física –, sentido – objetivos da prática, para
que a atividade seja adequada às condições e intenções do praticante.
Com essa conclusão, é possível afirmar que existe uma relação
muito íntima entre a prática constante de atividade física e a condição
de saúde; porém, essa associação só se dá de forma positiva se ambas
forem compatíveis entre si e com a realização prática do sujeito e seus
objetivos, não esquecendo que a saúde é um todo complexo que engloba
inúmeros fatores, dentre eles, a atividade física.
Nesse quadro, o profissional de Educação Física, esporte e da
atividade física atua diretamente sobre o estilo de vida dos sujeitos,
promovendo práticas saudáveis e periódicas de atividade física. Porém,
existe a necessidade desse sujeito considerar as condições de vida
dos indivíduos praticantes, promovendo práticas adequadas às suas
possibilidades de acesso a bens materiais, e, sempre que possível, auxiliar
na melhoria dessas variáveis (GONÇALVES, 2004).
Intervenções sobre a qualidade de vida de um sujeito ou de um grupo
lidam com a melhoria do bem-estar e, principalmente, com a possibilidade
de autonomia por parte do indivíduo (VILARTA e GONÇALVES, 2004). A
proposta de atividade física como uma forma de melhoria do bem-estar
e da qualidade de vida exige atenção do profissional tanto em relação
ao seu impacto sobre a saúde clínica, quanto social e emocional, pois a
autonomia pessoal é fruto de boa condição de saúde, relacionamentos
pessoais e capacidade de realização prática das expectativas individuais.
Porém, o que se vincula na mídia é uma generalização deste tema,
que se faz interessante para um mercado próprio sobre atividade física
e saúde (CARVALHO, 2001). Isso justifica a análise realizada no item
2.1. deste trabalho, que denuncia um reducionismo de cuidados com
a qualidade de vida somente a ações individuais, e quando se trata de
atividade física, à prática ligada simplesmente à movimentação genérica
do corpo.
49
Esse mercado se aproveita de um padrão de vida sedentário
presente na sociedade contemporânea e divulga o mito de que atividade
física é uma solução salvadora e milagrosa para inúmeros males. Na
verdade, se apresenta como um dos vários hábitos tidos como saudáveis
e formadores de um estilo de vida positivo. O mercado que se cria a partir
disso, lida com materiais para a prática, meios de divulgação de hábitos
saudáveis ou eventos com esse fim, serviços técnicos de especialistas
na área, produtos alimentícios que prometem melhoria de performance,
entre outros.
Um dos filões desse mercado se expressa no esporte e na
transformação desse fenômeno em produto. Isso ocorre principalmente
na divulgação dos mitos esporte é saúde, esporte salva das drogas, entre
outros, e na infinidade de produtos ligados a esse universo.
Um olhar crítico sobre essa ação midiática se faz interessante
(CARVALHO, 2001), pois é necessário salientar uma relação complexa
entre qualidade de vida, saúde e atividade física, que se expressa numa
análise dos objetivos, possibilidades, condições de vida e de realização do
sujeito, adequando a prática ao estilo de vida de forma crítica, consciente
e positiva à saúde clínica, emocional e social.
Toda forma de atividade em que há troca de informação entre seres
humanos está sujeita à transmissão de valores morais, que influenciarão
na formação do sujeito e na sua perspectiva perante a própria vida. Uma
forma de prática que exerce influência sobre a qualidade de vida dos
sujeitos é o esporte, pois se trata de uma categoria de atividade física
que pode promover alterações tanto nas condições e no modo (através
de possibilidade de ascensão social), quanto no estilo de vida por meio da
prática periódica.
O esporte contemporâneo apresenta uma característica
mercadológica muito presente, que deve ser considerada de forma crítica
e consciente pelos profissionais e educadores envolvidos com esse
fenômeno. Por esse motivo, o próximo capítulo desse trabalho se destina
a uma contextualização do esporte como fenômeno sociocultural que
está presente na vida da sociedade contemporânea como um universo
complexo que transmite valores através de suas práticas.
Como é um campo em processo de definição, é possível observar
50
Qualidade de Vida
direcionamentos e definições distintas para qualidade de vida. Neste
trabalho, será considerada como uma área complexa, que se pauta
na multidisciplinariedade e circula tanto em esferas subjetivas quanto
objetivas de percepção individual sobre a qualidade da própria vida. Essa
complexidade pode ser observada, por exemplo, na definição da OMS
para qualidade de vida, que contempla as concepções de subjetividade
dos indivíduos e objetividade das condições materiais.
1.6 Índices do IBGE: instrumentos para análise dos
indicadores e das políticas públicas
O primeiro indicador do IBGE de 2005 que trata da qualidade de
vida é o percentual da População Economicamente Ativa (PEA) por ramo
de atividade. Um dos grandes avanços da humanidade, segundo Almeida
(1998), é a diminuição da mão de obra empregada na agricultura em favor
dos empregos no setor industrial e de serviços. O autor considera ser este
um dos fatores mais importantes do aumento geral do padrão de vida.
O decréscimo do percentual de mão de obra empregada na agricultura
é utilizado como um indicador de desenvolvimento agrícola, pois menos
empregados rurais devem significar mais máquinas, aumento da produção
e maior produtividade, e também maior desenvolvimento econômico,
segundo uma visão de tipo desenvolvimentista.
Esse avanço deve ser confrontado com algumas outras questões,
como: a.) a expulsão de pessoas do campo por meios insidiosos parte do
processo de concentração de terras para viabilizar a agroindústria ou a
valorização pura e simples (grileiros); b.) a diminuição da economia rural
familiar e o êxodo rural, dificultando a vida destas pessoas na cidade,
aumentando o número de excluídos e desempregados (falta de crédito
para o pequeno agricultor); c.) investimento em produtos da monocultura
no mercado de commodities e redução dos produtos de primeira
necessidade encarecendo-os, afetando principalmente o trabalhador de
baixa renda (plantação de cana de açúcar).
Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (2001) os
índices do trabalho agrícola estão associados às condições de vida
precárias, se comparados com a vida nas cidades: maior incidência de
doenças infectocontagiosas, menor expectativa de vida, maior pobreza,
51
pouco acesso a serviços etc. O deslocamento da PEA da agricultura para
os serviços e a indústria segue trajetória idêntica ao deslocamento da
população do campo para a cidade. Segundo dados do IBGE de 2005,
em 1940, a mão de obra agrícola representava 66% de toda a PEA, hoje
responde por apenas 26%. Esta mudança ocorreu com a incorporação
da PEA pela indústria e pelo setor de serviços. A indústria, por seu turno,
passou por um ponto de inflexão em 1980, quando ocorreu a mudança
de uma indústria que empregava uma fatia cada vez maior da PEA,
para uma indústria que emprega cada vez menos. O avanço tecnológico
provavelmente não permitirá a reversão de tal tendência. O trabalho na
indústria está sendo substituído pelo mundo dos serviços. Talvez, o maior
desafio contemporâneo ao desenvolvimento brasileiro seja que o setor
de serviço consiga alocar todo o contingente de trabalhadores que saem
do campo, sem perspectivas e que não encontram formas de acesso ao
mercado de trabalho formal, entre outros motivos por falta de qualificação
profissional.
Para pensar a qualidade de vida de maneira ampla e nãofragmentada, é conveniente levar em conta que a maior mecanização
no campo, sem uma política pública de readequação de mão de obra,
ou mesmo políticas de manutenção de famílias de economia familiar,
pode vir a gerar gargalos em outros índices da qualidade de vida, como
concentração de renda. È conveniente considerar também que esses
avanços seguem o desenvolvimento do capitalismo mundial, e não
constituem, portanto, parte de uma política pública integrada entre os
diversos setores. É possível perguntar aqui até que ponto os índices
refletem uma melhoria efetiva na qualidade de vida como afirmou Almeida
(1998), ou se eles apenas apontam um padrão da lógica evolutiva do
próprio sistema (MANTEGA, 1995).
A taxa de analfabetismo é um indicador educacional. É consenso
que ser ou não alfabetizado é fundamental para a qualidade de vida. A
capacidade de ler e escrever dá acesso à informação, abre espaço em
termos de oportunidade de emprego e possibilita uma integração social
mais ampla. O analfabetismo diminuiu no Brasil do século XX em todas as
suas grandes regiões. Em 1940, a taxa de analfabetismo atingia a casa
dos 61%; no Plano Nacional de Desenvolvimento, de 1995, era de 16%. A
diminuição ocorrida entre os censos de 1940 e 1980 é, por si só, bastante
52
Qualidade de Vida
significativa: em 1980, o analfabetismo era de 35%, representando uma
redução de quase 50% em 40 anos. Vale notar ainda que a tendência de
queda é ininterrupta, e se aplica a todas as grandes regiões do Brasil.
Há um aumento expressivo e consistente da alfabetização da população
durante todo o século XX. Em 1900, apenas 34,7% das pessoas com 15
anos ou mais de idade eram alfabetizadas. No início deste século, esse
indicador é de 80,0% (IBGE, 2005). Um aumento de pouco mais de 130%.
A questão que se coloca sobre esse índice é de qual analfabetismo
estamos tratando e como são os alfabetizados. Pesquisas recentes
divulgadas por jornais de grande circulação nacional como Folha de
São Paulo, Estado de S. Paulo e O Globo, ilustram como estão sendo
preparados os alunos de escolas públicas e particulares. O nível dos
alunos caiu com relação aos anos anteriores; as pesquisas apontam a
redução do analfabetismo no país sem especificar qualitativamente como
são os alfabetizados. Se a ideia de alfabetização é dar acesso à informação
e oportunidade de emprego, não se pode construir índice de qualidade
de vida apoiado nesse tipo de alfabetização (analfabetismo funcional).
Somente com análises da educação brasileira como um todo, como o
Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Básico, é possível apontarmos
caminhos para a implementação de projetos que atinjam os objetivos
de transformação social. Ao estabelecer parâmetros sem intermediação
desses problemas de aplicação, ou uma melhor metodologia dos
questionários, teremos uma falsa representação da realidade educacional
brasileira. Porque, de um lado, temos a diminuição do analfabetismo, e,
do outro, a menor qualificação dos alunos, principalmente da rede pública.
A taxa de matrícula no 2° grau tem melhorado de maneira ininterrupta
de 1940 até os dias atuais. Em 1940, os matriculados no ensino secundário
correspondiam a 6,2% da população entre 15 e 17 anos. Em 1960, essa
taxa era de 18,1%, e, em 1991, em torno de 40% (IBGE, 2005). Mesmo
se considerando que os dados disponíveis não incluem os cursos técnicos
nem pedagógicos, não há dúvida que o ensino de 2° grau está longe de
abarcar toda a sua clientela potencial. A questão da educação básica no
Brasil é extremamente complexa, em que se cruzam fatores que vão desde
a estrutura de carreira e salários de professores até a implantação de
projetos pedagógicos, que não conseguiram atingir os objetivos propostos.
Mesmo as avaliações qualitativas como, por exemplo, o ENEM, precisam
ser analisadas com cuidado. Para efeito deste texto, basta destacar a
relatividade de um índice absoluto como a taxa de analfabetismo para
pensar a qualidade de vida da população.
53
A qualidade de vida depende de vários indicadores que expressam
serviços públicos básicos. Dentre eles, destacamos a oferta de rede geral
de água, de rede sanitária, coleta de lixo, de eletrificação residencial e de
estabelecimentos de saúde e médicos por mil habitantes. Em todos eles,
o Brasil apresenta melhorias nos Índices de Desenvolvimento Humano
(2001).
Rede geral de água significa água centralmente coletada e tratada, o
que contribui para a redução de inúmeras doenças transmissíveis através
da água e, consequentemente, a diminuição da taxa de mortalidade
infantil e do aumento da esperança de vida ao nascer. A rede geral de
esgoto é outro serviço público básico que, juntamente com a rede geral de
água, melhora a qualidade da água consumida, contribui para a redução
da mortalidade infantil e o aumento da esperança de vida ao nascer. É
óbvio que melhor qualidade de vida está associada com um abrangente
serviço de rede geral de esgoto. A alternativa a isso é, em geral, nos
sítios urbanos, a vala negra e o esgoto a céu aberto. Nesse caso, tanto a
população infantil quanto a adulta fica exposta às doenças infecciosas e
parasitárias. A sujeira atrai também animais nocivos à saúde, como ratos,
e degrada as condições de vida e o meio ambiente.
O lixo coletado é também um serviço básico que tem relação direta
com a saúde pública e o meio ambiente. Quanto maior a proporção de
domicílios atendidos por esse serviço, menos sujeira é acumulada em áreas
residenciais, menor é a possibilidade de formação de focos de doenças
e, como consequência, melhor é a qualidade de vida (Almeida, 1998). A
eletrificação residencial é igualmente fundamental para a qualidade de
vida. Não apenas porque fornece acesso à iluminação elétrica noturna,
mas, principalmente, por permitir à população a utilização de geladeira,
fundamental para a conservação dos alimentos em países tropicais, e de
inúmeros aparelhos eletrodomésticos fortemente associados à qualidade
de vida como, por exemplo, TV, rádio, liquidificador e chuveiro elétrico. A
eletrificação residencial é mais um indicador relevante para a qualidade
de vida que apresenta melhoria constante nos anos em que o dado existe.
Em 1970, 47,6% dos domicílios tinham energia elétrica; em 1995, 91,7%
das residências já possuíam iluminação elétrica, geladeira e televisão.
Nesse século, cerca de 93% possuem iluminação (IBGE, 2005).
54
Qualidade de Vida
Segundo Almeida (1998), por causa da preponderância assumida
pela televisão, a energia elétrica é um importante fator de conforto e
informação. Maior abrangência da eletrificação residencial significa
população mais bem informada e tempo livre usufruído de forma mais
agradável. Podemos, contudo, acrescentar um outro olhar ao procurar
mostrar que o governo pode não ter uma atuação proativa nessas ações,
vinculadas muito mais a uma exigência econômica do que a políticas
participativas que visam a melhoria da qualidade de vida. Podemos citar
como exemplo a necessidade de ampliar o número de consumidores,
levando a cada casa os produtos e os pensamentos de setores que detêm
os meios de comunicação.
O aumento da aquisição de bens e serviços deu-se, principalmente,
no período do chamado “milagre econômico”, momento de constituição
de uma classe média, que possibilitou maior investimento nas indústrias
desses produtos, aumentando sua oferta (ALMEIDA; GUTIERREZ, 2005).
Hoje é possível ter um eletrodoméstico morando num barraco de alguma
área de risco social. Outro ponto a salientar é o processo de afastamento
dos centros urbanos, a chamada periferia. Um dos problemas dos
contingentes de desassistidos socialmente que migram para os centros
urbanos é a proliferação de bairros à margem dos centros de empregos,
dificultando o papel das prefeituras em oferecer os serviços básicos de
infraestrutura, já que é frequente a tomada de espaços para formação de
bairros sem planejamento.
Apesar do aumento da coleta de esgoto e do serviço de iluminação
pública em números absolutos, em números relativos as ações são pouco
eficazes, se comparadas ao desenvolvimento dessas novas moradias
clandestinas. Muitas vezes, essas pessoas não podem custear sequer o
serviço de iluminação pública, é pago na conta de luz. Ao não custearem
o serviço, o setor público, por meio das empresas concessionárias, não
investe nessas localidades.
No que diz respeito à instalação sanitária, não existem dados entre
1985 e 1990. Em 1960, cerca de 15% dos domicílios brasileiros contavam
com rede geral de esgoto. Em 1995, este número é de aproximadamente
40% (IBGE, 2005). A coleta evita o esgoto a céu aberto e as consequências
disso para a saúde pública. No RDH (2001), o Brasil aparece como um
dos países da América do Sul com menores índices de acesso à rede
geral de esgoto. Nem sempre o esgoto coletado é devidamente tratado.
55
Apesar de diminuir o risco de doenças nas localidades em que a rede é
construída, o tratamento não adequado do esgoto leva a uma piora nos
índices macros de qualidade de vida, já que o acesso à água potável é
um dos grandes problemas deste começo de século (PNUD, 2001). Ao
não tratar corretamente a água e aumentar o recolhimento de esgoto,
aumenta a contaminação dos rios, mananciais, mares e demais áreas
ribeirinhas e/ou litorâneas, aumentando assim a poluição e a degradação
ambiental. Esse é mais um exemplo de falta ações integradas nas políticas
públicas das secretárias dos diferentes órgãos de poder. Se por um lado
aumenta-se a rede de captação de esgoto, por outro, como não é tratado
corretamente, atinge a água potável, a flora, a fauna e, logicamente, a
qualidade de vida das populações onde os resíduos são despejados.
A medição da oferta de serviços de saúde pelos dados do IBGE
revela avanços. Houve acréscimo absoluto e relativo de estabelecimentos
de saúde e de médicos das décadas de 40 e 50, respectivamente, até os
dias atuais. No que diz respeito aos estabelecimentos de saúde, em 1940
existia um para cada 26.200 habitantes; em 1992 tínhamos apenas 3 mil
habitantes para cada unidade. Quanto aos médicos, em 1950, havia 0,38
para cada mil habitantes; em 1992, este indicador atinge a marca de 2,1.
Nas capitais, entre 1930 e 1989, houve uma acentuada diminuição
da proporção de óbitos por doenças infecciosas. Por outro lado, a
proporção de mortes resultantes de doenças circulatórias, do coração, de
derrame (principalmente neoplasias) e de câncer cresceram 75% (IBGE,
2005). As duas causas desse fenômeno são a melhoria da qualidade de
vida e a mudança do perfil etário da população. Melhor qualidade de vida
resulta em mais saúde, que aumenta a expectativa de vida. Somando-se à
redução da taxa de fecundidade, ocorre um envelhecimento da população.
As mortes causadas por câncer ou doenças circulatórias são típicas
de pessoas com saúde e longevidade, pois a sua incidência aumenta
com a idade. Elas já representam, separadamente, hoje, no Brasil, uma
proporção maior de causa mortis do que as doenças infecciosas. Nota-se
a tendência de melhora. As doenças da velhice continuam liderando e as
infecciosas e parasitárias mantêm tendência de queda.
Merece registro o aumento permanente das causas externas de
mortandade, reflexo da violência criminal e no trânsito. Trata-se de um
problema grave, que ainda está por merecer um combate mais sistemático
e eficaz. Essa estatística exemplifica algo para o que este artigo chama
56
Qualidade de Vida
a atenção: as melhorias coexistem com pioras e coisas a serem feitas. A
violência é fruto de políticas sociais sem direcionamento específico, de
formas de exclusão expressas na falta de educação, na falta de acesso
aos bens materiais mínimos e nas políticas de inclusão social (Almeida
e Gutierrez, 2005). A violência no Brasil influi negativamente na causa
mortis de jovens, principalmente do sexo masculino, constituindo-se um
grande problema que deve ser acompanhado em conjunto com as políticas
sociais de maneira ampla. O aumento da criminalidade reforça a tese de
problemas de distribuição de renda, acesso a emprego e esvaziamento
do papel do setor público em áreas de risco social, lembrando sempre que
uma política de inclusão social passa também pelos meios de correção,
como as Casas Corretivas de Menores Infratores, as Casas de Detenção
e os Presídios, que hoje são depósitos de pessoas e não conseguem
cumprir seu papel de reeducação e reinserção social do indivíduo, que
perdeu provisoriamente a sua liberdade (ALMEIDA e GUTIERREZ, 2004).
Quanto aos acidentes no trânsito, parte-se de uma política
de educação, uma vigilância mais justa e, principalmente, melhores
condições das estradas, das sinalizações e de uma ação efetiva junto
aos trabalhadores que atuam na área de transporte de mercadorias e
passageiros. A taxa de mortalidade infantil e a expectativa de vida ao
nascer foram deixadas para o final dessa sequência de dados, porque
sintetizam um avanço. A queda do primeiro, e a consequente melhora do
segundo indicador, só foram possíveis porque há hoje, no Brasil, mais
leitos por mil habitantes, mais saneamento, água tratada, lixo coletado e
estabelecimentos hospitalares. Entre 1930 e 1940 a média da mortalidade
infantil na década foi de pouco mais de 158/1000, sendo de quase 88 para
o período 1970-1980. A mesma taxa de mortalidade infantil no ano de
1993 foi de 43,4. Apesar de ainda estarmos distantes das taxas dos países
desenvolvidos, a melhoria foi bastante acentuada no período considerado,
a qual teve um reflexo significativo na expectativa de vida do brasileiro
(RDH, 2001). Apesar de não haver políticas públicas de grande porte, a
mudança foi grande e para melhor. E isso se aplica a todas as regiões do
Brasil. Em 1940, a esperança de vida ao nascer era algo em torno de 42
anos de idade; hoje ela situa-se próxima dos 67 anos.
Uma análise comparativa com os países para os quais existem
dados sobre renda, mostra que o Brasil é o país que apresenta um dos
maiores índices de desigualdade no mundo, e que a distribuição de renda
57
piorou entre 1960 e 1990 (a mais acentuada piora ocorreu entre 1960
e 1970). É importante destacar esse elemento, já que provavelmente
constitui o aspecto mais significativo da situação socioeconômica na qual
o Brasil se encontra. Ele demonstra claramente que os avanços sociais
são direcionados para o consumo e não para uma política de participação
social, mantendo parcelas da população excluídas (principalmente os
que vivem fora do eixo São Paulo e Região Sul), embora com avanços
no acesso a alguns bens duráveis. O Brasil, segundo o Programa de
Desenvolvimento Humano (2001), investe pouco na qualificação humana:
cerca de 0,8% do PIB. Nossos pesquisadores têm menor escolarização
que Panamá e Trinidad Tobago, a população brasileira ainda tem pouco
acesso às tecnologias antigas como telefone e eletricidade – índices
menores que Uruguai e Peru –, além de existir pouca interface entre a
inovação e os benefícios sociais vindos dela. Os mesmos problemas
constatados no Índice de Desenvolvimento Humano, como distribuição
de renda e escolarização, interferem nos índices de inovação tecnológica
(RDH, 2001, p. 48-49).
A discussão a respeito de políticas de qualidade de vida, como visto
no item 1.4, é muito distinta da discussão sobre o objeto de pesquisa
qualidade de vida. A passagem de um referencial para outro é cheio de
consequências e transformações. Enquanto a pesquisa teórica busca
ampliar o conhecimento acumulado a respeito de um determinado
assunto, a prática política busca a ampliação do poder dos agentes e o
controle político de suas bases (ALMEIIDA e GUTIERREZ, 2004). Assim,
o investimento na área de qualidade de vida deve entrar em disputa com
outras secretarias, tornando inviável, muitas vezes, a opção por uma
política pública de qualidade de vida, já que qualidade de vida é uma
opção fraca politicamente frente a campos como: controle inflacionário,
investimento no Etanol ou pagamento da dívida externa. Pensar a política
de qualidade de vida é praticamente sinônimo de pensar em formas
de aumentar o peso da área dentro da constelação mais ampla de
alternativas de investimento, que se apresentam para os governantes, a
partir da inserção num quadro nacional com forte influência das práticas de
sustentação no poder, em que governar, muitas vezes confunde-se, ou até
mesmo resume-se, a distribuir verbas e cargos (ALMEIDA e GUTIERREZ,
2005). Nessa linha de raciocínio, um primeiro aspecto essencial é o
caráter dúplice das políticas públicas de qualidade de vida. A qualidade
de vida deveria ser vista como melhoria do estilo de vida e condições de
vida (GONÇALVES, 2004). Associar as políticas públicas a essa ordem é
58
Qualidade de Vida
muito complicado, já que as ações, segundo Almeida e Gutierrez (2004),
priorizam a mudança subjetiva no estilo de vida, sem dar suporte material
suficiente para ter condição de vida digna. Essa visão da qualidade de
vida pode ser percebida em projetos federais de 2003-2006 como Mexase, Segundo Tempo, Esporte Lazer na Cidade e Política Nacional Contra
o Diabetes, que propiciam ações particularizadas sem proporcionar um
pensamento articulado entre os diversos setores sociais.
Desse referencial de qualidade de vida preocupado com o social
surgiu a ideia das ações vinculadas à educação, à cultura, à economia
e ao trabalho. A qualidade de vida se potencializa na educação social
da população e na busca constante da cidadania. Em outras palavras,
o caráter educativo e pedagógico justifica a inserção da qualidade de
vida nas políticas públicas, já que a condição de vida e estilo de vida,
incontestavelmente, são fatores primordiais para o avanço global da
sociedade.
A implementação de uma política de qualidade de vida dá-se no
interior de um projeto político mais amplo e através de uma máquina de
administração pública dominada, durante um período de tempo específico,
por um partido político ou, ainda, por uma tendência integrante de um
partido político. A expectativa do controle de verbas para serem distribuídas,
mais a necessidade de lotear as diferentes secretarias entre os grupos que
compõem uma base parlamentar de apoio, leva a execuções de ações
administrativas de uma forma não coordenada e independentes umas das
outras, em função dos interesses específicos de cada grupo instalado na
estrutura de poder. Assim, é extremamente difícil articular as propostas do
campo da qualidade de vida com as de outras áreas como saúde, habitação,
educação, pensando-as globalmente.
59
CAPÍTULO 2
AS INTERFACES DE UMA ÁREA DE PESQUISA
MULTIDISCIPLINAR
A área de conhecimento em qualidade de vida, como já definida, se
coloca como um campo de discussão interdisciplinar, com possibilidades
de atuação em diversas esferas da sociedade. Nesse sentido, após
delimitação de suas fronteiras, faz-se neste capítulo a exposição de
possíveis aplicações de tais conceitos, como forma de melhor compreender
as formas de implicação de qualidade de vida na sociedade, assim como
utilizar este conceito para desvendar, de certo modo, o espaço social.
2.1 Qualidade de vida: discussões contemporâneas
(RDH e SF-36)
Como discutido no capitulo 1, a crescente preocupação com
questões relacionadas à qualidade de vida veio de um movimento dentro
das ciências humanas e biológicas no sentido de valorizar parâmetros
mais amplos que o controle de sintomas, a diminuição da mortalidade ou
o aumento da expectativa de vida.
A definição no uso cotidiano apresenta-se, tanto de forma global,
enfatizando a satisfação geral com a vida, como dividida em componentes,
que, em conjunto, indicam uma aproximação do conceito geral. A forma
como é abordada e os indicadores adotados estão diretamente ligados aos
interesses de cada abordagem jornalística, divulgação ou mercadológica,
para operacionalização e avaliação. Dependendo do interesse, o
conceito, muitas vezes, é adotado como sinônimo de saúde, felicidade
e satisfação pessoal, condições de vida, estilo de vida (NAHAS, 2003); e
seus indicadores vão desde a renda até a satisfação com determinados
aspectos da vida. Devido a essa complexidade, conforme abordam
Almeida e Gutierrez (2004), a qualidade de vida apresenta-se como uma
temática de difícil compreensão e necessita de certas delimitações que
possibilitem sua operacionalização em análises acadêmicas.
É importante salientar que o leitor, qualquer que seja a sua formação,
deve se preocupar com textos acadêmicos, artigos de revistas ou jornais
que descrevem indicadores sem fazer relações diretas com a qualidade
de vida, conforme discutido no item 1.6 de maneira ampla; ou seja, os
textos tomam características como escolaridade, ausência dos sintomas
das doenças, condições de moradia como indicadores de qualidade de
vida, sem investigar o objetivo disso para as pessoas envolvidas. Se,
de um lado, isso contribui para as possibilidades de investigações em
grandes grupos, por outro, deixa de considerar a subjetividade e a cultura.
Os estudos sobre qualidade de vida podem ser classificados de
acordo com quatro abordagens gerais: econômica, biomédica, psicológica
e geral.
A abordagem socioeconômica tem os indicadores sociais como
principal elemento. As abordagens médicas tratam principalmente da
questão de oferecer melhorias nas condições de vida dos enfermos
(MINAYO et al., 2000). O termo qualidade de vida em relação a seu
emprego na literatura médica vem sendo associado a diversos significados,
como condições de saúde e funcionamento social. Qualidade de vida
relacionada à saúde (healthrelated quality of life) e estado subjetivo e
saúde (subjective health status) são conceitos relacionados à avaliação
subjetiva do paciente e ao impacto do estado de saúde na capacidade
de se viver plenamente. A abordagem psicológica busca indicadores que
tratam das reações subjetivas de um indivíduo com as suas vivências,
dependendo, assim, primeiramente, da experiência direta da pessoa cuja
qualidade de vida está sendo avaliada e indica como os povos percebem
suas próprias vidas, felicidade, satisfação. O fato de as abordagens
psicológicas considerarem qualidade de vida somente um aspecto interior
61
à pessoa, desconsiderando o contexto ambiental em que está inserida,
é a principal limitação dessa linha de pensamento. As abordagens
gerais baseiam-se na premissa que o conceito de qualidade de vida é
multidimensional, apresenta uma organização complexa e dinâmica
dos seus componentes, difere de pessoa para pessoa de acordo com
seu ambiente/contexto e mesmo entre duas pessoas inseridas em um
contexto similar. Características como valores, inteligência, interesses são
importantes de serem consideradas. Além disso, qualidade de vida é um
aspecto fundamental para se ter uma boa saúde.
Como colocado no item 1.1, a análise da qualidade de vida
aborda uma representação social criada a partir de parâmetros subjetivos
(bem-estar, felicidade, amor, prazer, realização pessoal) e objetivos, cujas
referencias são a satisfação das necessidades básicas e das necessidades
criadas pelo grau de desenvolvimento econômico e social de determinada
sociedade.
Os parâmetros de análise mais complexos ficam vinculados à
ideia do ser, pertencer e transformar. O ser são as habilidades individuais,
a inteligência, os valores, as experiências de vida. O pertencer tratase das ligações que a pessoa possui, as escolhas, assim como da
participação de grupos, inclusão em programas recreativos e serviços
sociais. O transformar remete à prática de atividades como trabalho
voluntário, programas educacionais, participação em atividades
relaxantes, oportunidade de desenvolvimento das habilidades em estudos
formais e não formais, dentre outros. Esses componentes apresentam
uma organização dinâmica entre si, consideram tanto a pessoa como o
ambiente, assim como as oportunidades e os obstáculos.
Gutierrez e Almeida (2006) abordam ainda que a noção de qualidade
de vida tem na relação individual e social algumas referencias como: a.)
o desenvolvimento econômico, social e tecnológico da sociedade; b.)
valores, necessidade e tradições; c.) estratificações, a ideia de qualidade
de vida está relacionada ao bem-estar das camadas superiores e à
passagem de um limiar a outro. Qualidade de vida inclui desde fatores
relacionados à saúde, como bem-estar físico, funcional, emocional e
mental, como também outros elementos importantes da vida das pessoas:
trabalho, família, amigos, e outras circunstâncias do cotidiano. Conforme
sugere a Organização Mundial da Saúde (2006), reflete a percepção dos
62
Qualidade de Vida
indivíduos de que suas necessidades estão sendo satisfeitas ou, ainda,
que lhes estão sendo negadas oportunidades de alcançar a felicidade e a
autorrealização, com independência de seu estado de saúde físico ou das
condições sociais e econômicas.
Determinados aspectos da nossa vida como a felicidade, amor e
liberdade, mesmo expressando sentimentos e valores difíceis de serem
compreendidos, são relevantes. Trata-se de um conceito para o qual até
mesmo uma definição operacional é difícil de ser elaborada. Qualidade
de vida é uma ideia largamente difundida na sociedade, correndo-se
o risco de haver uma banalização do assunto pelo seu uso ambíguo,
indiscriminado ou oportunista como acontece, por exemplo, com muitos
textos que prometem elevar a qualidade de vida do indivíduo lançando
mão de estatísticas muitas vezes irreais para comprovar suas afirmações.
De um lado, se tem a exploração oportunista de um conceito o que resulta
na sua depreciação e, de outro, o reconhecimento de que esse conceito
exprime uma meta nobre a ser perseguida, o que resulta na preservação
de seu significado e valor.
Os instrumentos para avaliação da qualidade de vida variam de
acordo com a abordagem e objetivos do estudo. Instrumentos específicos
como o Medical Outcomes Study Questionaire 36-Item Short Form Health
Survey (SF-36) para avaliação da qualidade de vida relacionada à saúde
e do WHOQOL para avaliação da qualidade de vida geral são tentativas
de padronização das medidas, permitindo comparação entre estudos e
culturas. Publicações sobre novos instrumentos de avaliação específicos
para populações ou pessoas acometidas por quadros patológicos
específicos são crescentes na literatura especializada. Medir qualidade
de vida é bastante complexo, o que leva a necessidade de definição clara
para cada estudo específico e para guiar a utilização de determinada
forma de avaliação.
Uma das formas mais tradicionais para avaliar qualidade de
vida em grandes populações é através do Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH). De acordo com relatório divulgado no ano de 2006 pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Brasil
melhorou o seu IDH, mas caiu uma posição no ranking mundial, de 68º
para 69º, numa lista de 177 países e territórios. O Índice utilizou quatro
indicadores: PIB (Produto Interno Bruto) per capita, expectativa de vida,
63
taxa de alfabetização de pessoas com 15 anos ou mais de idade e taxa de
matrícula bruta nos três níveis de ensino (relação entre a população em
idade escolar e o número de pessoas matriculadas no ensino fundamental,
médio e superior). Os resultados indicam que, de 2003 para 2004, o Brasil
avançou em duas das três dimensões do IDH (longevidade e renda) e
estabilizou-se em uma (educação). A decomposição do IDH mostra que
o Brasil tem um subíndice de renda superior ao da América Latina, mas
inferior à média mundial. Em esperança de vida, supera a média global,
mas não a latino-americana. Educação é a dimensão em que o Brasil mais
se aproxima dos países ricos e mais se distancia da média mundial.
Instrumentos como o SF-36 e o IDH, da mesma forma que o
WHOQOL da OMS, apresentam vantagens por serem instrumentos
que já tiveram sua validade e qualidades psicométricas atestadas, além
de permitirem a comparação com outros estudos. No entanto, esses
instrumentos trazem consigo limitações importantes, pois ao propor
indicadores deixam de avaliar as especificidades de cada sujeito em cada
contexto de avaliação.
Existem em 2011, nas Universidades Estaduais Paulistas, 84
pesquisas que tratam diretamente sobre a aplicação dos parâmetros
de qualidade de vida (71,4% dissertações de mestrado, 23,8% teses
de doutorado e 4,7% teses de livre-docência). Desses estudos, 71,7%
foram realizadas em adultos de ambos os sexos, sendo 13,2% com
mulheres; 7,5% com idosos; 1,9% com crianças, e em 5,7% não foi
possível identificar a população. Desses estudos, 69,8% foram realizados
com pessoas acometidas por algum tipo de patologia, sendo o principal
instrumento utilizado Medical Outcomes Studies 36-item Short-Form (MOS
SF-36). A produção no Brasil, em parte representada pelas universidades
investigadas, está seguindo uma tendência mundial, com um aumento da
produção e uma ênfase na qualidade de vida relacionada à saúde.
A produção sobre qualidade de vida no Brasil é relativamente
recente e tem aumentado a cada ano, não se restringindo a determinado
grupo social, mas sendo realizada, em grande parte, com adultos
acometidos por algum tipo de patologia, refletindo a preocupação em se
conhecer de que forma essas enfermidades estão comprometendo a vida
dos indivíduos, focalizando as análises na qualidade de vida relacionada
à saúde. Essa forma de pesquisa tem recebido críticas, pois, embora o
64
Qualidade de Vida
estado de saúde seja bastante importante para a vida das pessoas, nem
todos os aspectos da vida humana passam por questões médicas ou
sanitárias.
2.2 Políticas públicas de lazer e qualidade de vida:
a contribuição do conceito de cultura para pensar as
políticas de lazer
A discussão sobre as políticas públicas de lazer e sua relação
com a qualidade de vida é muito diferente da discussão sobre o objeto
de pesquisa lazer e qualidade de vida. Trata-se de uma transposição
repleta de consequências. Enquanto a pesquisa teórica busca ampliar
o conhecimento acumulado a respeito de um determinado assunto, a
prática política busca a ampliação do poder dos agentes. Nesse sentido,
o investimento no lazer e na qualidade de vida é uma opção política
fraca. Pensar essas políticas é praticamente sinônimo de pensar em
formas de aumentar o peso da área dentro da constelação mais ampla
de alternativas de investimento que se apresentam para os governantes,
a partir da inserção num quadro nacional com forte influência das práticas
clientelistas, em que governar, muitas vezes, confunde-se, ou até mesmo
resume-se a distribuir verbas.
O primeiro aspecto que chama a atenção, a partir dessa linha de
raciocínio, é o caráter educativo das políticas públicas de lazer e qualidade
de vida.
O lazer nas políticas públicas pode, também, dentro de um
cenário de repressão política, surgir como um mecanismo de coerção às
escondidas. Talvez hoje, muitos dos problemas relacionados aos usos do
lazer sejam referentes à dificuldade em libertá-lo das morais autoritárias
do militarismo. A filosofia dessa ação prática não é a de entender o lazer de
uma forma mais humana, para compartilhar ações e unir pessoas, como
um meio importante para uma tomada de consciência e mudança social.
A implementação de uma política de lazer e qualidade de vida dá-se
no interior de um projeto político mais amplo, e através de uma máquina de
administração pública dominada, durante um período de tempo específico,
por um partido político ou, ainda, por uma tendência integrante de um
partido político. A expectativa do controle de verbas a serem distribuídas,
65
mais a necessidade de lotear as diferentes secretarias entre os grupos
que irão compor uma base parlamentar de apoio, faz com que as ações
administrativas sejam executadas de uma forma não coordenada e
independente umas das outras, em função dos interesses específicos de
cada grupo instalado na estrutura de poder. Assim, é extremamente difícil
somar as propostas do campo do lazer e qualidade de vida com as de
outras áreas como hospitais, casas populares, escolas, etc. O mesmo tipo
de situação pode ser percebida com relação à área de cultura e os agentes
culturais, levando muitas vezes ao aumento da importância dos conteúdos
esportivos no interior das políticas de lazer e qualidade de vida, ou ainda
à opção mais fácil de contratar, com verbas públicas, apresentações de
representantes da indústria cultural, já que eles possuem a legitimação
de serem conhecidos e sua presença desejada por grande parte da
população.
Nesse sentido, trabalharemos nesse capítulo como o conceito
cultura têm relação com a dificuldade de se implementar uma política
pública de lazer, voltada à qualidade de vida. Após trabalhar esse conceito,
discutiremos a sua apropriação pelo mercado e pelas estruturas de poder.
O termo cultura tem dois significados básicos. O primeiro indica
o conjunto dos modos de viver e pensar definidos como civilização, ou
seja, a cultura entendida como a construção de uma totalidade através
das tradições, técnicas, instituições, derivadas de um sistema histórico,
parte integrante e indissociável do armazém do saber partilhado por
uma determinada comunidade. A construção deste sentido operou-se no
século XVIII por obra da filosofia iluminista. Outro significado de cultura,
trazido da tradição grega, designa a formação do homem enquanto
agente consciente, referindo-se ao homem como ser uno à procura do
autoconhecimento e em estreita relação com as artes e ofícios. Tendose tornado praticamente sinônimo de civilização, o termo hoje designa o
conjunto das tradições, técnicas, instituições que caracterizam um grupo
humano: a cultura compreendida dessa maneira é normativa e adquirida
pelo indivíduo, desde a infância. Nesse sentido, cultura é uma palavra que
se aplica tanto a uma comunidade desenvolvida do ponto de vista técnico
ou econômico, como às formas de vida social mais rústicas e primitivas.
Estamos pensando, portanto,
a cultura [...] tratada como sistema simbólico, pelo
isolamento dos seus elementos, especificando as
66
Qualidade de Vida
relações internas entre esses elementos e passando
então a caracterizar todo o sistema de uma forma
geral – de acordo com os símbolos básicos em torno
dos quais ela é organizada, as estruturas subordinadas
das quais é uma expressão superficial, ou os princípios
ideológicos nos quais ela se baseia (GEERTZ, 1989,
p.27).
Bourdieu (1989), por sua vez, sustenta que a percepção do mundo
social implica um ato de construção coletiva, comportando-se e operandose, na prática cotidiana, pela representação explícita e a expressão verbal.
O significado de cultura mais antigo designa o melhorar e refinar
da formação humana, que corresponde, ainda hoje, ao que os gregos
chamavam Paideia, e que os latinos indicavam pela palavra humanitas: a
educação do homem como tal, isto é, a educação devida àquelas “boas
artes”, próprias do homem e que o diferenciam de todos os outros animais.
A cultura para os gregos é a procura e a realização que o homem faz de
si. O homem só pode realizar-se como tal por meio do conhecimento de si
mesmo e do seu mundo e, portanto, mediante a pesquisa da verdade em
todos os domínios que lhe interessam.
A cultura, no sentido mais amplo, integra-se em diferentes
mecanismos de ação que perpassam o universo simbólico no qual o agente
vive, sendo o corpo o primeiro filtro da percepção, seja pelos sentidos
ou compreendida como experiências. Na formação do universo cultural,
têm-se diferentes níveis de compreensão nas formas de aprendizado,
sociabilização e influência do meio ambiente. Ao mesmo tempo em que
a definição de cultura, sinônimo de civilização, é empregada na tradição
iluminista, também podemos sintetizá-la pela busca individual de elementos
cotidianos para a formação do homem como agente histórico; é nesse
sentido que Norbert Elias (1984) aponta para uma ideia de civilização
representada por uma coletividade que define certos padrões, mas que,
inserido nessa totalidade, o indivíduo procura na sua cultura formas
múltiplas de relacionamento no pensar e agir. Podemos, assim, apontar
diferentes dimensões da cultura, como a cultura erudita, que é transmitida
na escola e sancionada pelas instituições; a cultura criada pelo povo
(popular), que articula uma concepção do mundo em contraposição aos
esquemas oficiais; a cultura de massa, que reflete um sistema industrial
em desenvolvimento e que tem base no fetiche, na mercantilização das
relações e no consumo.
67
Alguns teóricos da cultura, como Bosi (1986), atentam para o
caráter dominante da cultura de massa. Nessa interpretação, a partir
de leituras de Adorno e Horkheimer (1986), a crise da cultura popular
leva à concepção de cultura de massa, sendo uma nova era para a
cultura popular: “claramente não folclórica; abertamente organizada por
empresários da industria do lazer; fortemente estruturada em função de
um certo público-massa e necessariamente distinta das experiências da
‘alta cultura’” (BOSI, 1986, p. 73). Além dele, outros autores (Morin, Adorno,
Benjamim) acusam a cultura de massa de não ser cultura, mas indústria,
de não ser orgânica, mas exterior e manipuladora da inteligência e da
sensibilidade. Morin aborda essa perda de sensibilidade denominando-a
“segunda industrialização”, a ser a industrialização do espírito. “É esse o
caso daquilo que pode ser considerado uma terceira cultura, oriunda da
imprensa, do cinema, do rádio, da televisão, que surge, desenvolve-se,
projeta-se, ao lado das culturas clássicas e nacionais” (MORIN, 1997, p.
14).
O consumo da cultura de massa confunde-se com a concepção do
lazer moderno. O lazer moderno não é apenas o acesso democrático a um
tempo livre, que antes era o privilegio das classes dominantes. A fabricação
em série e a venda a crédito abrem as portas para os bens industriais, para
a limpeza do lar com aparelhos eletrodomésticos, para fins de semana
motorizados. É então possível começar a participar da civilização do bemestar, e essa participação embrionária no consumo significa que o lazer
não é mais apenas o vazio do repouso e da recuperação física e nervosa,
não é mais a participação coletiva na festa, não é tanto a participação nas
atividades familiares. Ele é, progressivamente, a possibilidade de ter uma
vida consumidora.
Dumazedier (1979) define lazer como o conjunto de ações
escolhidas pelo sujeito para diversão, recreação e entretenimento.
Num processo pessoal de desenvolvimento, tem caráter voluntário e é
contraponto ao trabalho urbano-industrial. É interessante notar que, para
Morin (1997), o lazer moderno é o acesso ao tempo livre, privilegio do
passado das classes dominantes (desde a tradição grega de ócio), que
se vincula ao tempo industrial e possui como principal característica o
repouso e a recuperação do trabalho. Outro autor que se apoia na
dicotomia lazer-trabalho para definir lazer é Magnani (2000), apontando
o interesse como principal característica do lazer, após libertar-se das
obrigações impostas pelo trabalho profissional. Elias e Dunning (1992),
68
Qualidade de Vida
por sua vez, e afastando-se da tradição dicotômica, entendem o lazer
como um tipo de atividade que se insere no tempo livre e colocam o
indivíduo como principal objeto de pesquisa, como sujeito social que pode
dotar de sentido a atividade e aproximá-la da busca da excitação ou do
prazer, definido enquanto a busca de um descontrole medido ou ainda um
descontrole controlado. Nesse caso, o lazer, apesar de trabalhar no limite
do descontrole, está intimamente ligado às dimensões sociais para cada
situação como, por exemplo, no estádio de futebol onde são permitidos
xingamentos e atitudes não convencionais (ELIAS; DUNNING, 1992, p.
112).
Uma outra alternativa para pensar o lazer consiste em destacar a
questão da busca do prazer como elemento fundamental que o distingue
das demais manifestações sociais. Não haveria assim nenhuma forma
de lazer que não incluísse a expectativa futura de auferir algum nível
de prazer, independente do fato de a expectativa vir a ter sucesso ou
não, e definindo prazer enquanto elemento essencialmente humano,
característico da formação da personalidade e que pode ser percebido
em qualquer meio social organizado, desde uma perspectiva histórica
(GUTIERREZ, 2000, p. 103).
A cultura e o lazer possuem uma íntima relação. Muitas das
atividades designadas lazer passam por manifestações de cultura. Os
jogos, as brincadeiras, as expressões artísticas são lazeres e fazem parte
da herança cultural de cada comunidade. Procurando não segmentar
nem a ideia de lazer, e nem tampouco a de cultura, trabalharemos a sua
relação como definida pela totalidade das tradições, técnicas e instituições
derivadas de um sistema histórico, parte integrante e indissociável do
saber partilhado por determinada comunidade. Apesar de esse conceito
explicitar uma totalidade, deve-se ter o cuidado de evitar reviver a ditadura
de uma concepção de “cultura” abstrata, mas percebida numa realidade
concreta como cultura de massas, cultura popular e cultura erudita.
A cultura de massa, que também pode ser compreendida como
indústria cultural, constituiu-se após a Revolução Industrial, principalmente
pelo desenvolvimento da tecnologia e a transformação dos meios de
produção. Estudiosos desse período, como Benjamin (1994), Adorno
e Horkheimer (1986), discutiram a influência da indústria cultural no
cotidiano da sociedade industrial, apontando para seu caráter dominador
69
e ideológico, principalmente com a criação de mecanismos de difusão em
massa, como é o caso do rádio, da fotografia, do cinema e da televisão.
Nesse caso, a arte, que anteriormente se expressava no seio da cultura
popular e erudita, agora divulga a rapidez e o consumo. Os meios de
comunicação terminam por substituir outras formas de expressão não
consumistas, isto é, apresentam-se como mercadoria, disseminando
hábitos, costumes e moldando relações interpessoais.
Esses processos de substituição foram construídos para
desenvolver o consumo e expandir o novo sistema de produção, num
processo de padronização da vida burguesa como modelo último a ser
seguido, atingindo diretamente as formas de lazer, já que o seu consumo
ocorre necessariamente no tempo não-produtivo. No lazer, ocorrem os
dois processos apontados anteriormente: a.) a mecanização do lazer
através da incorporação da tecnologia e b.) a substituição da busca de
um prazer não-consumista por uma necessidade de consumo, por meio
da ideologização. Nessa perspectiva de análise, a cultura de massa, pelo
processo de substituição e ideologização, percebe-se a subordinação de
todas as outras expressões em prol do consumo, delimitando e esmagando
os dois campos: cultura erudita (caracterizada pelo autoconhecimento)
e cultura popular (caracterizada pela sociabilidade espontânea), para
constituir-se como campo hegemônico.
Com o desenvolvimento da sociedade contemporânea, a indústria
cultural confunde-se com o lazer a ponto de serem usados como sinônimos,
o que leva a um afastamento ainda maior das suas manifestações nãoconsumistas. O uso da televisão é lazer, como o cinema, a música pop, a
dança de salão ou a fotografia. Segundo Bosi (1986), a cultura de massa
tenta suplantar os valores da cultura popular, substitui a integração do
indivíduo à cultura, transformando-o em mero espectador ou consumidor.
A indústria cultural desvaloriza o folclore, justamente para poder inserir-se
como prática dominante e colonizar o popular com os valores burgueses,
com o intuito de destruir todas as formas espontâneas que não têm como
fim último o mercado. O lazer, guiado pelos cânones da indústria cultural,
tem uma forte presença do individualismo e do consumo; sua construção
gira em torno da necessidade, da busca do prazer e do relacionamento
com o outro por meio dos bens de consumo. Apesar de estar totalmente
incorporado no cotidiano, esse valor pode ser revisto, pois existem formas
de preservação do popular e do erudito como veremos a seguir.
70
Qualidade de Vida
O termo cultura popular, por sua vez, remete-se às manifestações
coletivas, geralmente no espaço não-urbano. Ao pensar a cultura popular,
o folclore e os ritos antigos são os primeiros a serem lembrados. Essa
alusão do popular e rural está presente na própria constituição do
capitalismo, já que a exploração da terra o êxodo rural são características
da formação do proletariado urbano. O processo de apropriação da cultura
popular pela de massas é complexo e incorpora aspectos como, a perda de
identidade, o afastamento dos símbolos sagrados coletivos, a destruição
de uma moral campesina e o patriarcalismo. Como analisado no primeiro
capítulo, assumimos a cultura no sentido semiótico de reapropriação e
ressignificação temporal, historicamente determinada. Nesse sentido, a
cultura popular parece viver, desde a constituição da sociedade moderna,
uma luta diária com a indústria cultural, procurando incorporar a tecnologia
e reconvertê-la em instrumento de uma sociabilidade espontânea ou
autêntica. No caso do lazer, particularmente, vive-se a dualidade entre
as novas tecnologias do lazer e a ideologia do consumo, em que o lazer
popular pode ser percebido como espaço de resistência da doutrinação
puramente consumista, tendo como exemplos as festas típicas e os jogos
e brincadeiras.
Segundo Habermas (1987), por exemplo, sempre existirão
tentativas de exterminar a cultura popular, para promover, cada vez
mais, os valores de consumo. A incorporação do popular pelo mercado
é infinito, segundo Habermas, já que a própria indústria cultural nasce
do mundo da vida, posteriormente desvincula-se da cultura popular por
sua complexificação sistêmica, passando a colonizá-la. Esse processo
é definido por Habermas como formação e apropriação do sistema pela
colonização do mundo da vida. Para Habermas, o mundo da vida é a
base das relações humanas, e toda nova forma de vida tem como base
essa relação orgânica e social. A cultura, nesse sentido, é o armazém do
saber humano (HABERMAS, 1987). Desse modo, as festas típicas, como
a junina, Cosme e Damião e dias santos podem ser vistas lutando para
manter a tradição e não sucumbirem à industria cultural. A cultura popular
é reapropriada, ressignificada e reconstruída, numa evolução da própria
construção social. Nesse sentido, o lazer definido aqui como popular não
é aquele que permanece inalterado pelo tempo, mas o que preserva e
incentiva a socialização espontânea e a formação coletiva de identidade
do grupo. Essa dimensão parece ser a característica fundamental da
cultura popular.
71
Assim, as práticas de lazer populares como os jogos que pulsam nos
morros, ou as brincadeiras de rua urbanas, ou as festas rurais populares,
são formas de lazer que representam as práticas coletivas de convivência
e símbolos de uma comunidade, um apelo ao passado e uma forma de
resistência à generalização da tecnologia e do consumismo.
A cultura erudita não pode ser encarada como valorização do
aristocrático, ou ligada, literalmente, ao poder aquisitivo; porém, é
verdade que, de forma geral, sua existência depende da atenção prévia
das necessidades materiais básicas. A cultura erudita não é uma cultura
de massas; pelo contrário, a concepção de um consumismo exacerbado
afasta-se da cultura erudita, pois o erudito tem um caráter de descobrimento
do belo e de autoconhecimento. Ela tem como pressuposto o deleite com
a arte, da sacra à moderna, do renascimento à reforma, da iluminista à
barroca, do surrealismo ao romântico; enfim, da arte como uma linguagem
distinta, que necessita uma educação específica para seu deleite e
contemplação. O próprio termo contemplação afasta-se do “tempo é
dinheiro” capitalista. Essa outra linguagem, que representa a arte, difere
de uma leitura mecânica da sociedade; traz-nos um olhar peculiar dos
períodos históricos, expressando as características de um povo, de um
grupo e de cada contexto específico.
Mas aqui, da mesma forma que no caso anterior, é preciso tomar
cuidado com definições simples ou principistas. O cinema, por exemplo,
mesmo sendo um resultado do desenvolvimento industrial, não pode ser
considerado uma manifestação exclusiva da cultura de massas, correndose, nesse caso, o risco de apresentar um ideal de erudito passadista,
pensando a arte erudita como classicismo e que uma arte erudita
jamais poderá ser feita em interface com as máquinas contemporâneas.
Esse pensamento apresenta a cultura de forma estática e esquece a
possibilidade da ressignificação de toda manifestação humana. A arte é
um veículo de contestação social, como, por exemplo, o Cinema Novo
brasileiro da década de 60 e 70 e o surrealismo. A cultura erudita pode
representar a contestação ao sistema e a sua própria contradição, ser ao
mesmo tempo fruto do capitalismo e sua crítica. Por conseguinte, como
acontece com a cultura popular, a cultura erudita também é ressignificada,
utilizando novas técnicas e tecnologias para se expressar. O cinema, que
é um cânone da indústria cultural, também pode surgir como manifestação
de uma cultura erudita, nos termos aqui desenvolvidos.
A contemplação da arte é lazer. Apesar de a cultura erudita e
72
Qualidade de Vida
de o lazer se afastarem, devido ao conceito lazer colar-se à indústria
cultural, pode-se tentar aproximá-lo do erudito, no sentido de construir um
contraponto à cultura de massa. Subvencionada pelo Estado, a arte erudita
representada pelos museus, apresentações das orquestras clássicas,
bibliotecas de acesso gratuito são pouco procuradas, já que dependem
de um desenvolvimento educacional complexo e de longa maturação. O
desinteresse por parte de setores da população, decorrente de problemas
estruturais no campo educacional, leva a uma menor atenção pelo Estado,
desvalorizando e tornando mais difícil o surgimento e a divulgação de
novos artistas e novas tendências eruditas, numa espécie de círculo
vicioso.
Em resumo, como tentaremos desenvolver no quadro a seguir,
o lazer erudito pode ser caracterizado pela valorização do indivíduo,
pela sensibilidade e pelo autoconhecimento. Na cultura popular há a
valorização do indivíduo como grupo e também da sensibilidade; contudo,
esse conhecer-se não figura como sua principal característica. Na
indústria cultural essa sensibilidade é totalmente disparatada; quase um
clichê. A valorização extremada do indivíduo leva ao individualismo e o
autoconhecimento pode levar à aniquilação dos princípios de consumo,
por isso não existe.
Quadro: Características do lazer no campo de atuação
Características
Erudito
do lazer
Atributos
sociais
valorizados
Relação com
as políticas
públicas
Massa
Popular
Autoconhecimento Alienação
Familiaridade
Individualidade
Individualismo Coletivismo
Subjetivismo
Fetiche
Intersubjetivismo
Precária e sem
incentivo
Garimpo de
votos
Populista
Consumista
Programas
Federais sem
apoio popular
Populista
73
Relação com o Afastamento pelo
lazer
elitismo
Dificuldade ao
acesso
Educação
Divulgação
Inserção social Elitista
Formas de
expressão
Plural
Seletiva
Elitista
Diálogo com
Aberto
outros campos
Ideia de
passadismo
Nostalgia
romântica
Dominação da
Acesso aos
cultura urbanobens materiais
industrial
Dominação
Regionalista
Hegemônica
Quase
sinônimo
Mercadológica
Alienante
Massa
consumidora
Patriarcal
Coletivista
Identidade
nacional
Fechado
Aberto
As relações entre lazer e cultura, ou ainda, a percepção das
dimensões do lazer a partir da reflexão a respeito da cultura, permitem
perceber a dominação (não absoluta) da indústria cultural – definida
aqui como categoria próxima à cultura de massa, com relação à cultura
popular e a cultura erudita, por meio da relação ideológica com o público
–, incentivando o consumismo e o individualismo. A cultura popular,
caracterizada pela sociabilidade espontânea, e a erudita, caracterizada
pelo autoconhecimento, apresentam um intercâmbio constante ou, pelo
menos, uma dimensão comum de resistência ou ressignificação da
indústria cultural.
A política pública de lazer voltada à qualidade de vida, como qualquer
outro setor, deve ter uma postura crítica e articular-se, compartilhando
objetivos e recursos, além de adotar como critérios fundamentais o
incentivo à sociabilidade espontânea e o desenvolvimento da sensibilidade
e do autoconhecimento dos participantes. É nesse sentido que procuramos
aqui apontar a importância da pesquisa a respeito do objeto cultura e sua
contribuição para pensar o lazer, a qualidade de vida e as suas políticas.
74
Qualidade de Vida
2.3 Esporte: relações com a qualidade de vida
No esporte, a passagem do século XX para o século XXI foi
marcada por um quadro conceitual amplo de mudanças e tendências
influenciadas pelas transformações sociais e políticas, principalmente com
o fim da Guerra Fria, a globalização e a importância da atividade física
no mundo contemporâneo. Desde Pierre de Coubertin, o esporte mudou
bastante; pode-se afirmar que o universo dividido em esportes amadores
e profissionais tornou-se mais complexo que a simples aferição de renda.
Hoje, o esporte, como fenômeno social, possui distintas dimensões.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o quadro internacional do
esporte transformou-se em todas as suas formas e pode-se afirmar
que uma interpretação correta do conjunto de fatos históricos tornouse extremamente difícil. O esporte ganha uma nova forma, o ensino
de suas práticas para uma educação do movimento – educação física,
motricidade humana, consciência corporal. Rapidamente, o aspecto
pedagógico incorpora o ensino técnico da modalidade como espelho
direito do fenômeno esportivo. No esporte, as alterações da segunda
metade do século XX pós-guerra foram profundas, pois o número de
praticantes e modalidades surgidas cresceu impressionantemente. Além
disso, o esporte era visto apenas na perspectiva do rendimento; após a
Carta Internacional de Educação Física e Esporte da UNESCO de 1978,
a prática esportiva passou a ser entendida como “direitos de todas as
pessoas”.
A ideia de uma prática esportiva pluralista trouxe a possibilidade
de democratização e dissociação do esporte e do atleta profissional. A
abrangência social do esporte passou a ser preponderante. As formas
de exercício do direito ao esporte passaram a ser o esporte-educação,
o esporte-lazer e o esporte de alto desempenho. Essas dimensões do
conceito contemporâneo de esporte podem ser explicadas por princípios:
a.) do esporte-educação, qual seja, princípios socioeducativos voltados
à participação, à cooperação, à coeducação, à corresponsabilidade,
à inclusão, ao desenvolvimento esportivo e ao desenvolvimento do
espírito esportivo; b.) do esporte-lazer, constituído pelo princípio da nãoobrigatoriedade e da adaptação para a participação de todos; e c.) do
esporte de alto desempenho, com foco na superação, na performance e
no uso de diferentes tecnologias.
75
Com a globalização tecnológica e a mundialização cultural, o esporte
incorpora rapidamente as principais características desses fenômenos
sociais. Os avanços tecnológicos possuem aspectos positivos – como o
uso de mídias para o ensino tático e técnico, novos materiais como fibra
de carbono, nutrição, psicologia – e aspectos negativos – os diferentes
tipos de doping, aspectos financeiros como motor exclusivo da prática,
perda da relação entre o atleta e o país de origem.
Na mundialização cultural, o esporte se integra ao meio social
conforme suas dimensões e características locais. Por exemplo, o esporte
de lazer adapta-se à realidade cultural local como, por exemplo, o jogo
de futebol dos índios da tribo de Caetés, que a partida termina quando
uma equipe marca o primeiro gol. Na dimensão pedagógica, cada local
de trabalho possui características distintas, como nos mostram os livros
de ensino desportivo. Porém, o esporte de alto rendimento profissional
é aquele que, pelo fenômeno da secularização, da igualdade, da
especialização, da racionalização, da burocracia, da quantificação e do
recorde, integra uma realidade cultural sem sofrer adaptações. Uma
competição mundial na China, por exemplo, é a mesma nos Estados
Unidos, independente do modelo econômico, cultural e social desses e de
outros países, o que mostra que o esporte burocratizado estrutura-se em
um todo coeso e é justamente essa coesão que possibilitou o esporte se
tornar um fenômeno mundial.
A partir do momento que o esporte passa a ser um fenômeno
mundial, ele sofre com uma crise ética, principalmente quando seus
objetivos deixam de ser a prática e passam a incorporar aos seus fins
o uso político-econômico, como assistimos na Alemanha com Hitler, na
União Soviética com Kruschev, nos Estados Unidos com Nixon, no Brasil
com Médici, na Argentina com Afonsín. Ao mesmo tempo, temos por um
lado essa postura estratégica do esporte e, por outro, a busca pelo jogo
limpo e pela transparência esportiva, mostrando que o esporte reflete os
conflitos sociais com os quais, hoje, qualquer manifestação humana se
depara.
O esporte passa a ser movimento de massa por meio da
transformação do sentido da prática; primeiramente como rendimento
máximo, para o esporte participação e escolar, com o rendimento possível.
76
Qualidade de Vida
Outro ponto a ser lembrado sobre a massificação do esporte é que
a partir da ampliação dos praticantes, aumentaram-se os investimentos
do Estado, levando a uma transformação no conceito de planejamento
urbano e de políticas públicas no setor. O próprio desenvolvimento na área
científica demonstrou um avanço no entendimento do esporte participativo
nas escolas, juntamente com a prática das modalidades. Nesse sentido,
é razoável defender a ideia de que o esporte participação como cultura
espelha mais a sociedade atual do que a prática de alguns escolhidos
geneticamente para representar o país como monocultura. Porém, o
esporte participação necessita de um espelho, algo para mimetizar, e isso
é oferecido pela espetacularização, por meio da sua beleza, da arte, da
integração e da plasticidade. As imagens veiculadas ao esporte, bem como
um aparato midiático de grande proporção, leva a alimentação do sentido
da participação da prática, e quanto mais pessoas colocam o esporte no
seu cotidiano, mais espetacularizado ele fica. Esse processo histórico
complexo oferece uma pequena base para entender a esportivização da
sociedade e como ela está presente na vida das pessoas, simbolizando
competição, originalidade, beleza, frustração, vitória, reciprocidade ou
alegria, tornando as relações sociais repletas de valores esportivos.
Aspectos que devem ser pensados quando os relacionamos com a busca
de qualidade de vida.
Outro ponto importante é pensar o fascínio do esporte derivado
de aspectos que, de forma diversa, estamos habituados a experimentar
e admirar nos espetáculos. O aspecto estético é um dos elementos na
consolidação da popularidade do fenômeno esportivo. O esporte não é
somente um “tema” e/ou “inspiração” para obras de artes, mas, também,
é a própria manifestação artística, estabelecendo diálogos com outras
linguagens.
A discussão sobre o grau de relacionamento entre o esporte e o
espetáculo não é recente. Por exemplo, Pierre de Coubertin, quando
idealizou a recriação dos Jogos Olímpicos na modernidade, já os concebia
não somente dedicados ao esporte, mas como festivais culturais em um
sentido ampliado, tendo implementado concursos de poesias, de artes
plásticas e mesmo de músicas. O esporte como espetáculo constrói
valores; tornando-o mais que um objeto puramente estético, traz consigo
o conteúdo ético. Dessa ética, o esporte pode ser veículo de educação.
Demonstrado a inserção do esporte na sociedade e sua relação com as
77
manifestações humanas, o esporte como manifestação de massa começa
a ser objeto de discussão na pedagogia. Não demorando muito para ser
veículo de ensino-aprendizagem, desde os próprios conteúdos ligados ao
movimento até sentidos que os indivíduos dão à prática.
O esporte pode ser entendido como um campo de estudo composto
de incontáveis formas de relações humanas, todas elas passíveis de
serem examinadas pela ótica das orientações educacionais e dos valores
morais. O esporte transmite valores em qualquer ambiente, por isso a
importância para uma educação para prática esportiva e, ao mesmo
tempo, uma educação do esporte enquanto fenômeno social. A primeira
educação é a do gesto, da técnica, do controle emocional e dos princípios
das ciências do esporte; a segundo, uma educação dos valores, da
alteridade, da valorização da cooperação e da problematização do esporte
de alto rendimento que é vinculado à mídia.
A relação do esporte com a educação não é recente; ele foi
elaborada pela aristocracia inglesa no século XIX, entendida como uma
espécie de “escola de caráter”, isto é, como uma prática que ajuda a
formar os jovens dentro de princípios de hombridade e de comportamento
civilizado, preparando-os para competirem entre si dentro de uma ordem
instituída e inserida no grupo social delimitado. Graças ao sucesso do
movimento olímpico, no século XX, o esporte tornou-se um elemento
central da educação moral. Mas, a legitimação de uma “ética esportiva”
não ficou restrita ao âmbito da escola, uma vez que o esporte se difundiu
e se desenvolveu em outras instituições.
A educação consiste em transmitir normas de comportamento
técnico-científico (instrução) e moral (formação do caráter) que podem ser
compartilhadas por todos os membros da sociedade. Por isso, a educação
deve ser entendida como inseparável de princípios éticos como igualdade,
liberdade, justiça e felicidade, assim como da aceitação do direito às
diferenças e da preservação da autonomia individual ou institucional.
Podemos pensar a educação esportiva no ensino das modalidades, das
técnicas, das táticas, da visão espacial, no estímulo das capacidades
sensoriais, no desenvolvimento fisiológico, na busca pela saúde e
manutenção da saúde pela prática reiterada no tempo.
O esporte, na sua origem, derivava de jogo e brincadeira. Eles eram
parte da cultura, como expressão das tradições do sagrado ou do profano,
78
Qualidade de Vida
consistindo em uma atividade essencialmente lúdica de caráter ritual.
Pelas suas exigências, essas atividades celebravam o corpo, a força,
a beleza e o mágico. Uma característica do esporte moderno é retirar
o caráter ritual religioso do jogo e o transformar em algo secularizado,
sem estruturar-se na religião, incorporando elementos racionais, como
medidas, recordes e igualdade de chances.
A primeira aproximação possível entre o esporte e a promoção da
saúde é recuperar os aspectos primeiros da gênese do esporte, que é o
movimento lúdico e prazer trazendo para a sociedade contemporânea,
desvinculando o esporte de rendimento máximo, para a prática do
movimento lúdico com suas regras e estruturas, valorizadas pela mídia. O
ritual esportivo e seu caráter essencialmente mágico, como os uniformes
– a camisa da equipe –, as bandeiras, são exemplo de veneração que
podem ser utilizados como meios de promoção da saúde, valorizando o
esporte pela beleza do movimento.
A quantificação geralmente se faz acompanhar de dois outros
fenômenos muito frequentes no mundo esportivo de alto rendimento que
é a especialização – definição dos papéis a serem executados pelos
atletas – e as estratégias – táticas de jogos cada vez mais formais,
rígidas e calculistas, estes dois elementos visam, em última instância, um
melhor desempenho dos atletas e das equipes nas competições. Essas
características do esporte podem servir tanto para afastar dos cânones
da qualidade de vida, como aproximar. A quantificação pode ser marca
de desempenho ótimo, como parâmetro de envolvimento com a atividade
e busca de resultados intrínsecos do praticante, para poder comparar no
sentido de melhora da performance.
A introdução do uso de aparelhos tecnológicos confere mais
racionalidade e precisão aos movimentos; esse processo pode levar
tanto a uma exacerbação do culto exagerado ao corpo, ou também
utilizar os aparelhos para promover o movimento pelo esporte. Exemplo
disso é utilizar a tecnologia para adaptar a altura da tabela de basquete,
ou mesmo criar formas de interação entre os praticantes de alguma
modalidade. No surf, a utilização de pranchas com maior flutuabilidade e
equipamentos de segurança para os iniciantes. Fica claro que se propõem
à utilização do fenômeno esportivo como valorização do movimento, e a
sistematização do movimento reiterado no tempo para a busca de um
79
estilo de vida saudável. O rendimento não será a qualquer custo, mas
utilizar as modalidades esportivas como ampliação das possibilidades
de movimento. Consagrando o esporte como prática social que pode ser
vista como parte da modernização do mundo ocidental, de seu processo
civilizador, no sentido que lhe atribuiu Nobert Elias (1980).
2.4 Comentários sociológicos da cultura alimentar
A questão da alimentação no Brasil ganhou relevância acadêmica,
principalmente após os estudos sobre a fome de Josué de Castro. A
influência de Castro reverberou para outras áreas, como a das artes
audiovisuais, consagrando filmes de Glauber Rocha com o Cinema Novo
e a estética da fome, influenciando meios teatrais e musicais. Podemos
recordar da tropicália, de Gilberto Gil e Caetano Veloso, bem como os
sambas de protesto de Chico Buarque tratando do tema.
A estética da fome foi transformada pela estética do gordo; hoje, nos
causa maior impacto a versão cinematográfica e documental de obesos
mórbidos do que as cenas gritantes das crianças na Somália da década de
1990 durante os duros anos de guerra civil. Isso mostra que o conceito de
alimentação e de preocupação alimentar é socialmente construído, bem
como a estética do saudável. Será que nos acostumamos a visualizar as
“anoréxicas” e “bulímicas” com as roupas da última moda, transformando
o sentido do que é um corpo saudável?
Passados os estudos da fome e sua estética, bem como a
transformação do saudável nas artes, o conceito de cultura alimentar
ganha contornos muito mais complexos do que a presença ou ausência
de alimentos. Fala-se hoje da segurança alimentar e nutricional como um
direito humano que deve ser garantido pelo Estado. Implica a garantia de
todos a alimentos básicos de qualidade e em quantidade suficiente, de
modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades
essenciais (COLLAÇO, 2003).
O conceito também prescreve práticas alimentares saudáveis,
de modo a contribuir para uma existência digna em um contexto de
desenvolvimento integral da pessoa humana. A essa definição somamse outros aspectos como: a.) soberania alimentar – frente aos fluxos de
80
Qualidade de Vida
ampliação dos fast foods pelo mundo que, por vezes, substituem as comidas
típicas que possuem um valor nutricional historicamente construído e muitas
vezes contêm nutrientes que se adaptam às particularidades regionais; b.)
a defesa da sustentabilidade do sistema agroalimentar, baseado no uso
de tecnologias ecologicamente sustentáveis – utilização de recursos que
agridam menos o meio ambiente, discutindo a questão da necessidade de
produção de alimentos versus os problemas de distribuição e acesso; por
fim, c.) a questão da preservação da cultura alimentar – hoje se consolidam
as comidas light como monocultura alimentar, a ideia é introduzir novos
hábitos sem perder as características culturais, descobrindo os motivos
daquele alimento e reconstruindo as necessidades populacionais.
Podemos aprofundar o tema de cultura alimentar ao discutir a
importância dos “sistemas alimentares” como uma resposta à necessidade
de se analisar a alimentação em função dos processos de produção e de
consumo, assim como de todas as etapas intermediárias, no contexto da
sociedade num sentido mais amplo (MESSER, 1995).
Fazendo uma rápida análise desse programa, podemos entendêlo não como a redução da alimentação a números calóricos, mas
contextualiza-lo dentro do universo maior do educar para se alimentar,
conduzindo esse processo dentro de um contexto cultural particular,
que vai desde a produção até o consumo do alimento (MINTZ, 2001).
Trata-se, portanto, de considerar todos os determinantes do consumo
alimentar a partir das relações estabelecidas entre os diferentes agentes
sociais participantes da cadeia alimentar: produtores, distribuidores e
consumidores. Dessa forma, as especificidades locais, inclusive culturais,
também seriam levadas em conta no estudo dessas relações e na
definição de estratégias no campo da alimentação.
Mesmo com as novas mudanças de hábitos, não podemos
esquecer que o ato de comer é construído culturalmente, sempre foi
mediado por regras dietéticas, cujas origens e finalidades são múltiplas e,
muitas vezes, são elaboradas a partir de diversas formas de saber, como
o conhecimento científico, o senso-comum e as religiões (CANESQUI,
1988).
Nesse sentido, podemos compreender a cultura alimentar como
um sistema simbólico, ou seja, um conjunto de mecanismos de controle,
planos, receitas, regras e instruções que governam o comportamento
81
humano quando o assunto é comer (BRANDÃO, 1981). Esses símbolos
e significados são partilhados entre os membros do sistema cultural,
assumindo um caráter público e, portanto, não individual ou privado.
A cultura alimentar é formulada, principalmente, por meio da
atividade prática e do interesse utilitário (COLLAÇO, 2003). Atividade
prática seria desde as condições objetivas para a produção do alimento
até as possibilidades de adquiri-lo, seja pela troca através de moeda, seja
pelas condições corpóreas para colher o alimento. O interesse utilitário é
o valor simbólico que determinado agrupamento dá ao alimento. Portanto,
a cultura alimentar é definida por meio das pressões materiais impostas
pelo cotidiano e também pelo sistema simbólico, numa relação entre
facilidade de adquirir o alimento versus o valor cultural que ele possui em
determinada sociedade.
Para exemplificar a afirmativa acima, podemos apontar como
exemplo os estudos (MINTZ, 2001) que abordam as mudanças
alimentares em virtude da aquisição material e acesso aos bens. Grupos
populacionais da Ásia e África que tiveram maiores condições financeiras
ao longo do tempo foram paulatinamente substituindo sua base alimentar
de tubérculos, para cereais e, posteriormente, incorporaram na sua dieta
a carne.
Por isso é complicado apenas apontar as questões culturais e
simbólicas como únicos componentes da cultura alimentar. Logicamente,
a incorporação desses hábitos e dos alimentos adquiridos, a partir das
facilidades materiais, foi culturalmente determinada de acordo com
as tradições do lugar. Pode-se dizer que a dieta de uma determinada
população relaciona-se com os símbolos compartilhados pelo grupo e
suas condições materiais. Ou, utilizando os termos da qualidade de vida,
a alimentação é uma relação direta entre as condições de vida (acesso) e
estilo de vida (símbolos).
Podemos interpretar as regras que constituem o sistema simbólico
como parte integrante do mundo das reações espontâneas, em que se
constroem as regras e os hábitos alimentares mesmos. As regras que
constituem o sistema simbólico são, em sua formulação, partes da
construção racional do homem e possui uma nítida intenção de disciplinar
o comportamento humano para a vida em comunidade.
82
Qualidade de Vida
À luz dessas afirmações, pode-se apontar que nossos hábitos
alimentares fazem parte de um sistema cultural repleto de símbolos,
significados e classificações, de modo que nenhum alimento está livre das
associações culturais que a sociedade lhes atribui (LÉVI-STRAUSS, 1973).
Nesse caminho, vale dizer que essas associações determinam aquilo
que comemos e bebemos, o que é comestível e o que não é. Símbolos,
significados, situações, comportamentos e imagens que envolvem a
alimentação podem ser analisados como um sistema de comunicação, no
sentido de que comunicam sobre a sociedade que se pretende analisar.
A construção da linguagem pelo alimento não é de difícil
visualização: nos banquetes de Platão, o estar à mesa é tão importante
quanto os Discursos do Amor Platônico; as feiras na Idade Média e hoje,
em muitos locais do Brasil, são importantes pontos de encontro tanto para
o comércio quanto para as festas; para a Religião Cristã, lembramos do
milagre dos pães e da transformação do corpo de Cristo na Última Ceia,
imortalizada no quadro de Leonardo Da Vinci. São pequenos exemplos de
como há cultura e símbolos em torno do alimentar-se.
Outro aspecto da cultura alimentar refere-se àquilo que dá sentido
às escolhas e aos hábitos alimentares: as identidades sociais. Sejam as
escolhas modernas ou tradicionais, o comportamento relativo à comida
liga-se diretamente ao sentido que conferimos a nós mesmos e à nossa
identidade social. Desse modo, práticas alimentares revelam a cultura em
que cada um está inserido, visto que comidas são associadas a povos
em particular (COLLAÇO, 2003). Por exemplo, gafanhotos, na cultura
urbana paulista, seriam insetos e nada mais que isso; serpentes são para
ter medo, bem como os escorpiões, diferente so significado que esses
insetos possuem na cultura alimentar da Ásia.
Não é demais afirmar que aprendemos desde cedo a incorporar
gostos, alimentos e tipos de comida, e este aprendizado, apesar de
individual, insere-se no contexto cultural mais amplo. A comida e o
comer assumem uma posição importante na construção das teias sociais
de relacionamento de determinada comunidade, influenciando a vida
cotidiana. Esse aprendizado, inserido em diferentes grupos sociais,
determina a valoração dos diferentes alimentos, qualificando-os por sabor,
gosto, estética e, muitas vezes, preço. Constrói-se, também, o momento
particular de consumir determinado alimento, sequências de pratos,
melhores receitas e dias específicos para comer esse ou aquele alimento.
83
Em cada data comemorativa, um prato em cada região do planeta é o
mais indicado para se servir à mesa.
Essas questões de cultura alimentar são tão complexas que estudos
de grupos sociais são feitos de forma longitudinais, analisando, inclusive,
aspectos religiosos, considerados pelos antropólogos como importante
aspecto de formação da cultura alimentar (SAHLINS, 1979). As grandes
religiões monoteístas, por exemplo, sempre se preocuparam em seus
livros sagrados em estabelecer tabus alimentares delimitando o que os
seguidores podem ou não comer. Regras dietéticas estão presentes na
Bíblia, no Levítico e no Deuteronômio, classificando os animais em puros
e impuros, permitidos ou proibidos para consumo. Assim, se fossemos da
religião judaica, poderíamos comer animais que têm unha fendida dividida
em duas e que ruminam, como boi, ovelha, cabra; mas não comeríamos
aqueles que só apresentam uma dessas características, como camelo,
lebre, porco, com unha fendida, mas que não são ruminantes. Essa
lista segue com os que vivem na água, são comestíveis, aqueles com
barbatanas e escamas, mas são imundos os que não têm essas duas
características (TOPEL, 2003).
Discute-se se as proibições do consumo de determinados alimentos
pretendem proteger o “organismo biológico” do indivíduo, por conter
determinado nutriente ou defender o “organismo social” dos membros de
determinado grupo religioso, fixando suas identidades em contraponto às
identidades de participantes de outros grupos religiosos (SAHLINS, 1979).
A resposta a essa questão é simples: tanto os alimentos tendem a proteger
o indivíduo e seu bem-estar, quanto a comunidade. Marshal Sahlins
discute o consumo de carne de porco pela religião judaica; apresenta tanto
a dificuldade de digestão da carne, como a sua criação, dada a escassez
de água e as impurezas próprias do animal. Essas regras dietéticas têm
o caráter prático, fundado no conhecimento acerca das propriedades
dos alimentos, como também fazem parte de um sistema simbólico mais
amplo, ancorado na ideia de sagrado (LÉVI-STRAUSS, 1973).
Com o tempo, as vontades por determinados alimentos em
detrimento de outros acabam por construir no grupo uma formação do
gosto. O que se come afeta a maneira dos indivíduos conceberem e
classificarem as qualidades do gosto, portanto, formar preferências pelos
84
Qualidade de Vida
sabores (doce, amargo, salgado, picante etc.). Assim, a textura e o sabor
constituem, em boa medida, o que é familiar nos alimentos e o que pode
influir na aceitação de novos alimentos. As características visuais, como
a cor, a forma e a aparência de conjunto, também afetam a aceitabilidade
e as preferências alimentares, pois configuram aspectos do simbolismo
alimentar (MINTZ, 2001). Sobre essa dimensão simbólica, Bourdieu (1983)
afirma que as pessoas e os extratos sociais se distinguem pela maneira
como as pessoas usam os bens materiais e simbólicos de uma sociedade
de acordo com o acesso a esses bens, dando sentido ao mundo social.
Por este motivo é tão importante compreender esses aspectos da cultura
alimentar para construir formas de intervenção na dieta de determinada
sociedade ou indivíduo.
Quanto à sociedade, sublinha-se a preocupação com o respeito e a
preservação da cultura alimentar de cada povo. Nesse sentido, cada país
deve ter condições de assegurar sua alimentação, sem que lhe seja imposto
um padrão alimentar estranho às suas características e tradições. Essa
concepção surge como uma reivindicação feita por grupos que percebem
suas práticas alimentares ameaçadas pelos efeitos da globalização. Entre
os efeitos nocivos, destaca-se a perda da soberania desses países em
decidir o que produzir e comer. Também é denunciada a tendência global
à massificação do gosto alimentar, observada a partir da preferência dos
consumidores a produtos industrializados em detrimento dos produtos in
natura. Quanto ao indivíduo, buscar dietas e formas de intervenção na
alimentação de maneira a contemplar as características essenciais da
sua cultura alimentar, principalmente quanto a preservação dos sentidos
(olfato, tato, paladar e visão) que os alimentos possuem.
Portanto, o ato da busca, da escolha, do consumo e proibições do
uso de certos alimentos dentre todos os grupos sociais é ditado por regras
sociais diversas, carregadas de significados. Apreender a especificidade
cultural dessas regras sociais, as quais precisam ser explicadas em cada
contexto particular, é de extrema importância, pois o alimento constitui
uma linguagem.
O alimento é uma forma do homem se expressar dentro de um
contexto cultural particular, o preparar o alimento é carregado de ritual,
traz consigo uma carga simbólica enorme, sendo fonte de sociabilidade e
85
reciprocidade. Fazendo que as pessoas signifiquem e sintam pertencentes
a determinado grupo através da comida. Vemos isto com certa frequência
quando pessoas vão para um local, viajar ou morar, que possui hábito
alimentar distinto, ou pior, não se encontra determinado alimento naquela
localidade. Por vezes esse indivíduo se realiza quando o parente leva
aquela farinha ou feijão. Se bem que o mundo globalizado deixa mais
perto o alimento, ao mesmo tempo afasta a nostalgia do comer.
O caráter simbólico do alimento é importante, no entanto, não
devemos esquecer da preocupação de construir em grupos populacionais
amplos uma alimentação saudável. Esse conflito aparente entre hábito
alimentar e saúde ao comer deve ser superado pela compreensão e
adaptação das dietas e das vontades. È claro que essas questões são
permeadas pelo poder aquisitivo dos segmentos sociais e por oscilações
entre comer aquilo que é ditado pela nossa cultura e aquilo que é entendido
como saudável. Por isso o esforço multidisciplinar em construir formas de
intervenção na alimentação, preservando aquilo que são valores, daquilo
que são modismos, do que faz sentido. Exatamente esta sensibilidade que
devemos construir quando o assunto é intervenção na cultura alimentar.
2.5 A Educação nutricional desde a ótica de Pierre
Bourdieu
A estruturação de propostas de ação em educação nutricional
requer uma reflexão inicial a respeito dos fatores que interferem na
percepção de qualidade de vida dos sujeitos, além de questões ligadas
às suas condições socioeconômicas e culturais. Tais fatores exercem
influência sobre as condições de acesso ao alimento, as formas de
apreciá-lo, compreendê-lo e inseri-lo em seu estilo de vida.
A educação nutricional pode colaborar para que os indivíduos
analisem suas práticas e, a partir disso, tomem decisões. Tal processo
de mudança de hábitos deve agregar conhecimentos ligados ao campo
da Educação e das Ciências Sociais, para que esteja inserido em um
contexto político-social adequado de promoção da saúde e qualidade de
vida. Há uma diferença fundamental entre um sujeito social que adota
hábitos prejudiciais à saúde por falta de informações e alternativas, e o
86
Qualidade de Vida
sujeito que prefere esse tipo de conduta por outros fatores como privilegiar,
por exemplo, uma experiência que ele considera prazerosa. A educação
nutricional, como é característica do campo das intervenções em qualidade
de vida, procura divulgar informação e disponibilizar recursos para a
mudança de hábitos pessoais a partir de um processo de conscientização,
respeitando sempre a autonomia e responsabilidade de cada um.
A educação nutricional é útil e necessária também, porque, embora
haja desigualdade entre classes sociais na distribuição de alimentos, a
má alimentação não é problema apenas dos pobres. Os ricos também
apresentam tal quadro, não por impossibilidade de acesso, mas por
hábitos não-saudáveis presentes em seu estilo de vida. Pelo fato de a
qualidade de vida relacionar-se com a satisfação e cultura individual, e se
apoiar nos padrões do que determinada sociedade considera como boa
vida, é preciso considerar tanto os aspectos objetivos quanto os subjetivos
que a permeiam e delimitam. Os fatores objetivos lidam com questões
referentes às condições e modo de vida dos sujeitos, enquanto que os
aspectos subjetivos delimitam-se através do estilo de vida dos mesmos
que, segundo Bourdieu (1983a), se caracterizam como ações individuais
que refletem os hábitos e a carga cultural do sujeito, e que interferem
diretamente em sua vida. Nesse sentido, para qualquer análise relativa
à percepção de qualidade de vida se faz necessário considerar questões
sociais que ditam possibilidades de ação dos agentes (fatores objetivos),
e as escolhas que eles fizeram, de fato, para suas próprias vidas (fatores
subjetivos). Por isso, é possível afirmar que padrões alimentares são
determinados por questões que incluem, além de educação orientada
para uma nutrição adequada, fatores socioeconômicos, ecológicos e
culturais. E com base nessas premissas, a educação nutricional precisa
considerar questões ligadas tanto à condição e modo de vida, quanto à
cultura alimentar e as escolhas feitas pelo próprio sujeito.
Na busca por referencial teórico que investigue a relação entre
aspectos objetivos e subjetivos, entre condição e estilo de vida, segue
uma abreviada apresentação da obra de Pierre Bourdieu. Este sociólogo
francês baseou-se na busca por categorias universais referentes às
relações sociais, que permitissem a análise de diversos grupos, em
diversas situações, considerando a inter-relação entre fatores objetivos,
determinados pelo espaço social, e o poder de escolha e tomada de
decisão por parte do sujeito.
87
Na sociedade capitalista, as desigualdades sociais se mostram
aparentes. O ato de comer não é uma simples luta pela sobrevivência,
mas também um ato social que incorpora uma dimensão de diferenciação
social. Comer não satisfaz apenas a necessidade biológica, mas
preenche também funções simbólicas e sociais. Esse caráter simbólico
se diferencia com a idade, situação social e outras variáveis (RAMALHO;
SAUNDERS, 2000). Se comer é uma necessidade vital, o quê, quando
e com quem comer são aspectos que fazem parte de um sistema que
implica atribuição de significados ao ato de se alimentar (MACIEL, 2005).
Pode-se notar, em estudos relacionados a hábitos alimentares de
diferentes classes sociais, que existem diferenças quanto ao acesso, à
percepção, à preparação, à apreciação e à valorização dos alimentos
entre diferentes agentes sociais. Tais variações dependem de seus
habitus e sua identidade social como grupo.
Nesse aspecto, a comida, ou ainda o ato de alimentar-se, se
transforma num ato simbólico. Existem cozinhas diferenciadas, maneiras
culturalmente estabelecidas, codificadas e reconhecidas de se alimentar,
nas quais os pratos são elementos constitutivos de uma identidade. A
cozinha de um grupo é forjada na sua tradição, como afirmado no item
anterior. Assim, deve-se levar em conta o processo histórico-cultural
específico de cada existência. A culinária, ou as formas de se alimentar de
um grupo social específico, torna-se uma forma de identidade. É possível,
assim, pensar os sistemas alimentares como sistemas simbólicos em que
códigos sociais estão presentes, atuando no estabelecimento de relações
dos homens entre si e com a natureza.
Se hábitos alimentares obedecem a um código simbólico, é
fundamental uma compreensão, por parte de profissionais da saúde, das
especificidades que permeiam a dimensão simbólica dos grupos.
Partindo do pressuposto de que existe desigualdade no acesso
aos alimentos, o alcance da possibilidade de escolha em relação ao quê,
onde, quando, como e com quem comer, pode ser representado como a
posse de um capital simbólico pelo agente. Ou seja, a aquisição de um
reconhecimento social de que ele tem condições socioeconômicas que
o diferenciam de outros e que lhe permitem circular em determinadas
esferas da sociedade. Ao mesmo tempo em que esse capital ilustra
ascensão social do sujeito, também é uma porta para o aumento de seu
capital social.
88
Qualidade de Vida
A partir do momento que possuir um capital simbólico específico
posiciona determinado agente num estágio privilegiado dentro de seu
grupo, o acesso a certos tipos de alimentos e, principalmente, ao capital
cultural necessário para apreciá-los, faz dos possuidores de tais aspectos,
sujeitos diferenciados socialmente.
Dessa forma, com base na obra e nos conceitos de Pierre Bourdieu,
pode-se afirmar que a boa alimentação pode vir a se tornar um capital
simbólico importante na sociedade capitalista, desde que os hábitos
associados à busca por boa saúde se relacionem positivamente com
a facilitação para encontros sociais e o status quo, proporcionada por
aspectos como ascensão econômica, cultural política ou social. Nesse
mesmo sentido, parece importante não associar o ato de alimentarse corretamente com valores contrários, como dificuldade de interação
social, esquisitice, arrogância e desagregação.
Parece importante que os programas de educação nutricional levem
em conta o que é compreendido, em cada grupo social, por alimentar-se
bem. Ou seja, a dimensão social do ato de se alimentar traduz um capital
simbólico, facilitador da aquisição de capital social e que expõe a posse
de capital econômico. O alimento bom ou ruim é determinado, também,
socialmente.
Existem diferenças quanto à expectativa do sujeito frente a seu
alimento. Classes sociais menos privilegiadas têm a necessidade de
sentir-se com a barriga cheia, e por isso, somado à condição econômica
desfavorável, recorrem a alimentos tidos como “pesados”, gordurosos,
que compõem o prato principal (o arroz com feijão), enquanto que classes
mais abastadas buscam alimentos mais leves, complementares, como
misturas (peixes, legumes, frutas) (DANIEL; CRAVO, 2005).
Tais considerações demonstram que, na aplicação de programas
de educação nutricional, se faz necessário considerar como se traduz o
capital simbólico específico daquela estrutura e daquele espaço social,
para, a partir daí, estabelecer metas e planos de ação. Talvez não seja
possível afirmar que existe um campo nutricional (com base no conceito de
campo de Bourdieu), mas pode-se afirmar que se trata de um subcampo
de um espaço social maior, o campo econômico, com suas diferenças
socioculturais. Isso é possível, visto que o capital simbólico relativo ao
alimentar-se constitui uma das inúmeras formas de diferenciação social
desse espaço.
89
A tentativa de ensinar pessoas a melhorar seus hábitos alimentares
só vai atingir seu objetivo se fizer sentido para os agentes, em seu espaço
social. Ou seja, não basta dizer ao sujeito que ele deve se alimentar de
maneira correta se isso demandar a adoção de hábitos alimentares pouco
valorizados em seu meio, ou que não sejam de fácil acesso. Transformar
o hábito alimentar dos sujeitos e, mais do que isso, fazer com que outras
formas de alimento sejam valorizadas e aceitas como capital simbólico, é,
com certeza, um caminho difícil. A percepção da dimensão simbólica, nos
termos apresentados por Bourdieu, dos hábitos alimentares arraigados no
grupo, parece um elemento importante pra facilitar essa transformação,
ou pelo menos para não torná-la mais difícil ainda.
Deve-se considerar, para pensar a educação nutricional, duas
esferas importantes. A primeira, compreender que a mudança de hábitos,
ou seja, de estilos de vida, é diretamente dependente da melhoria de
condições de vida. Ou seja, um sujeito só pode adotar certos hábitos se o
acesso a eles lhe for garantido ou facilitado. Portanto, não basta centrar
esforços apenas no sentido de conscientizar os sujeitos acerca dos
benefícios de uma boa alimentação. Muitas vezes, principalmente no caso
de esferas sociais menos privilegiadas, é necessário adotar programas de
políticas públicas que facilitem e aumentem as possibilidades de escolhas
de alimentos para o dia-a-dia desses sujeitos, evitando, inclusive, a
culpabilização da vítima por suas escolhas, conforme apontado no item
1.1. Afinal, na sociedade capitalista o alimento é mercadoria e só pode ser
obtido na troca por dinheiro.
A segunda esfera diz respeito à compreensão dos diferentes
habitus e seu caráter de estrutura estruturante. Nisso se inclui que o
capital simbólico, caracterizado pelo ato de se alimentar de determinada
maneira, só faz sentido e tem valor se o grupo social específico assim
o reconhece. Portanto, é necessário não apenas inserir novos conceitos
de alimentação saudável, mas transformar paradigmas. Fazer com que o
reconhecido e valorizado em determinado grupo social seja algo próximo
do que se tem como ideal e objetivo no programa de educação nutricional.
Os agentes valorizarão e buscarão a aquisição de certo capital se
este lhe fizer sentido e lhe trouxer reconhecimento. Ou seja, antes de
inculcar novos hábitos no estilo de vida do sujeito, é preciso que toda sua
90
Qualidade de Vida
compreensão quanto à alimentação, e de seu grupo social também sejam
modificadas, para que certos hábitos sejam almejados por eles. Portanto,
a questão da educação nutricional parece passar também por tentar
estabelecer esforços tanto objetivos (na melhoria de condições de vida e
na transformação de paradigmas), quanto subjetivos (na transformação
de hábitos presentes no estilo de vida do sujeito e na percepção do que é
reconhecido como valioso no meio social), para que intervenções tenham
sucesso não somente como “doutrinas da boa alimentação”, mas como
formas verdadeiras e eficientes de transformação social e promoção da
saúde.
2.6 Gestão e qualidade de vida na empresa
Um pequeno histórico da relação entre qualidade de vida e o
desenvolvimento da empresa mostra que há uma ligação entre a procura
da qualidade dos produtos, das técnicas e tecnologias e a melhoria do
ambiente de trabalho. Com novos maquinários, foi possível preservar
a saúde do trabalhador, principalmente dos acidentes de trabalho, e,
com a melhoria das técnicas de produção, propiciou-se a limpeza do
ambiente, um dos requisitos para a qualidade dos produtos. Para ocorrer
a qualidade dos produtos e da produtividade foi necessária a criação
de novas técnicas e de procedimentos que interferissem na própria
estrutura empresarial, como a diminuição dos empregados e qualificação
dos trabalhadores, propiciando, para quem permanece na empresa,
meios mais especializados de trabalho, já que com o desenvolvimento
tecnológico, as profissões repetitivas tendem a extinguir-se.
Para melhorar a produção, foi necessária uma reestruturação no
ambiente de trabalho. A própria saúde do trabalhador afeta diretamente na
qualidade do serviço. Pois a rotatividade é negativa dentro da empresa,
principalmente na linha de produção. Essa nova visão empresarial mudou
o rumo do conceito de trabalho, de segurança e de higiene dentro das
fábricas. Posteriormente, os avanços tornaram-se significativos, tanto em
países desenvolvidos como subdesenvolvidos; todo este processo levou
à preocupação com a responsabilidade social e à criação de selos de
qualidade para serviços, produtos e clientes, como a criação do ISO’s; do
SA 8000 e OHAS 18001.
91
A responsabilidade social, em linhas gerais, é uma forma de
conduzir os negócios da empresa de tal maneira que a torne parceira
e corresponsável pelo desenvolvimento social. A empresa socialmente
responsável é aquela que possui a capacidade de ouvir os interesses
das diferentes partes (acionistas, funcionários, prestadores de serviços,
fornecedores, consumidores, comunidade, governo e meio ambiente)
e conseguir incorporá-los nos planejamentos de suas atividades,
buscando atender às demandas de todos e não apenas dos acionistas ou
proprietários.
O SA 8000 é uma norma internacional, Social Accountability
International, que discute as questões diretamente da qualidade de vida
do trabalhador como o trabalho infantil, forçado, a saúde e a segurança, a
liberdade de associação e o direito à negociação coletiva, a discriminação
e o horário de trabalho. A ISO indica a qualidade dos produtos, serviços
e dos meios de produção, a partir de selos. E, por último, OHAS 18001
preocupa-se com a saúde ocupacional do trabalhador.
Esse sistema de selos funciona, principalmente, devido ao mundo
globalizado, em que as empresas não ficam restritas somente ao seu
universo cultural, mas, para a exportação de produtos no mercado
internacional devem se preocupar com os selos de qualidade dos produtos
e serviços, e agora, com a responsabilidade social, há a exigência dos
consumidores com a saúde do trabalhador. Existe a reivindicação dos
consumidores que exigem o certificado para compra de tais produtos,
fornecedores ou mesmo países preocupados com a responsabilidade
social, levando as empresas nacionais a inserir-se nesse sistema. As
empresas nacionais devem procurar alternativas e rumos da qualidade
de vida na empresa, trilhando novos caminhos, pensamentos e,
principalmente, resolver alguns dos problemas substanciais da qualidade
de vida do trabalhador brasileiro. O debate torna ainda mais interessante
se revermos as discussões internacionais a partir do referencial local, isto
é, procurar absorver criticamente os preceitos estrangeiros colocando as
nossas particularidades e problemas característicos.
Algumas mudanças já estão em processo, como os antigos
ambientes insalubres que foram modificados por locais limpos, higiênicos
e saudáveis, os funcionários da produção trocarem os seus famosos
macacões por roupas brancas, a substituição de todo maquinário antigo
92
Qualidade de Vida
por novos e mais mecanizados que protegem a vida do funcionário dos
acidentes de trabalho. Esse é o novo universo das grandes corporações
que, em um futuro próximo, serão exigências às médias e pequenas
empresas nacionais.
Posterior ao movimento de higienização do ambiente de trabalho,
que foi a preocupação governamental em vários campos, como
saneamento básico, asfaltamento, fechamento de córregos, e, também,
nas empresas, com locais claros, secos e com temperaturas saudáveis,
houve uma reestruturação no conceito lazer, antes ligado à ociosidade –
caracteristicamente negativa ao trabalho e trabalhador –, agora chamado:
“Qualidade de vida do trabalhador”. Pois, como o descanso e o repouso
são privilegiados no lazer, ele pode ser analisado à luz da qualidade de
vida na empresa. Hoje, o lazer criou uma dimensão que o senso comum o
pensa como algo sem uma ligação direta com as corporações industriais,
mas, num passado próximo, o lazer foi parte desse processo de qualidade
de vida e preocupação com a saúde do trabalhador ou, como preferirem,
da diminuição do estresse físico. Percebeu-se que era necessário repouso
e descanso depois de um dia estafante no trabalho.
O próximo passo das empresas foi a inserção da ginástica laboral,
sendo uma outra resposta à qualidade de vida na empresa. Em outras
palavras, há uma preocupação com este estresse físico no próprio trabalho.
Percebeu-se que o tempo de descanso, de lazer não era suficiente para
a saúde do funcionário, que eram necessários momentos inseridos no
ambiente de trabalho que propiciassem um descanso direcionado. Os
benefícios são inúmeros, como prevenção da lesão por esforço repetitivo,
relaxamento, aliviamento das tensões, propiciar descanso e sociabilidade.
A ginástica laboral se especializa no tipo de atividade exercida pelo
trabalhador e no tipo de estresse físico encontrado nesse trabalho, tendo
um nicho muito claro de atuação.
Agora o novo desafio deste século, na gestão dos recursos humanos
e na preocupação da qualidade de vida na empresa, é com o estresse
psíquico; para muitos, esta é a nova enfermidade da modernidade. Cabe
uma reflexão para atentarmos a esse problema.
O estresse psíquico está intimamente relacionado com o grau
de responsabilidade que o indivíduo está submetido durante um tempo
ininterruptamente; não há um tempo predeterminado, pois é muito pessoal
93
a quantidade de horas, dias, meses ou anos que alguém consegue suportar
estando sob algum tipo de pressão psíquica. Por ser muito subjetivo
e muito vago, o estresse psíquico é uma discussão pouco palpável se
compararmos com a lesão por esforço repetitivo e dores corporais, que
sabemos o músculo exato e temos técnicas avançadas e comprovadas
que resolvam esse problema. Já no estresse psíquico, não há consenso
sob o que o desencadeia, como resolver o problema e, principalmente,
como evitá-lo; esse é o grande foco da qualidade de vida: como prevenir
o estresse psíquico.
De modo geral, ocorre o estresse em duas ocasiões. Primeiro,
quando o indivíduo tem que se adaptar a um estímulo externo ou interno,
exigindo intensa participação emocional e persistência contínua. Nesse
caso, há um esgotamento por falência adaptativa devido aos esforços
(emocionais) para superar uma situação persistente. Em segundo
lugar, quando a pessoa não dispõe de uma estabilidade emocional
suficientemente adequada para adaptar-se a estímulos não tão
traumáticos. Isso quer dizer que a pessoa sucumbiria emocionalmente
a situações não tão agressivas a outras pessoas colocadas na mesma
situação.
Uma possível tese do estresse psíquico no trabalho é vinculada aos
avanços das tecnologias, esta com mais velocidade do que a capacidade
de adaptação dos trabalhadores. Os profissionais vivem hoje sob contínua
tensão, não só no ambiente de trabalho, como também na vida em geral.
Há, portanto, uma ampla área da vida moderna em que se misturam os
estresses do trabalho e da vida cotidiana. A pessoa, além das habituais
responsabilidades ocupacionais, da alta competitividade exigida pelas
empresas, das necessidades de aprendizado constante, tem que lidar
com o estresse normal da vida em sociedade. É bem possível que todos
esses novos desafios superem os limites adaptativos levando ao estresse.
No ambiente de trabalho, os estímulos estressantes são muitos.
Podemos experimentar ansiedade diante de desentendimentos com
colegas, da sobrecarga, da corrida contra o tempo, da insatisfação salarial.
A desorganização no ambiente ocupacional põe em risco a ordem e a
capacidade do trabalhador. As consequências desse estresse do trabalho
são fatores significativos na determinação de certas doenças. Geralmente,
as condições pioram quando não há clareza nas regras, normas e tarefas
94
Qualidade de Vida
que deve desempenhar cada um dos trabalhadores, assim como os
ambientes insalubres, a falta de ferramentas adequadas.
Os desgastes emocionais a que pessoas são submetidas nas
relações com o trabalho são fatores muito significativos na determinação
de transtornos relacionados ao estresse, como é o caso das depressões,
ansiedade patológica, pânico, fobias, doenças psicossomáticas. Tanto
o operário como o executivo podem apresentar alterações diante
dos agentes estressantes. A pessoa com estresse ocupacional não
responde à demanda do trabalho e geralmente se encontra irritável e
deprimida. Por causa das normas e regras sociais, as pessoas acabam
ficando prisioneiras do politicamente correto, obrigadas a aparentar
um comportamento emocional ou motor incongruente com seus reais
sentimentos de agressão ou medo.
O estresse pode ser entendido como um estado de desequilíbrio
da pessoa que se instala quando ela é submetida a uma série de tensões
suficientemente fortes ou suficientemente persistentes.
Fatores relacionados ao serviço também contribuem para a pessoa
manter-se estressada, como é o caso da sensação de insegurança no
emprego, sensação de fracasso profissional, pressão. Isso tudo sem
contar os fatores internos que a pessoa traz para o emprego, tais como
seus conflitos, suas frustrações, suas desavenças conjugais, etc. O
extremo oposto, ou seja, ter uma vida sem motivações, sem projetos, sem
mudanças na ocupação ao longo de muitos anos, sem perspectivas de
crescimento profissional, assim como passar por período de desocupação
no emprego também pode provocar o mesmo desenlace do estresse.
Não devemos privilegiar apenas as razões emocionais em relação
ao estresse, por ser este uma alteração global do organismo. Aqui deve
ser considerado o conforto térmico, acústico, as horas trabalhadas
ininterruptamente, a exigência física, postural ou sensorial e outros
elementos associados ao desempenho profissional. Ambientes ruins, em
termos de temperatura, umidade do ar e contacto com agentes agressivos
à saúde fazem parte da exigência física a que alguns trabalhadores estão
submetidos.
95
O quadro evolutivo de estresse físico tem quatro níveis de
manifestação:
1o. nível
2o. nível
3o. nível
4o. nível
Falta de
vontade,
ânimo ou
prazer de ir
a trabalhar.
Dores nas
costas,
pescoço e
coluna.
Diante da
pergunta o
que você tem?
normalmente
a resposta é
“não sei, não
me sinto bem”
Deteriorar o
relacionamento
com outros.
Pode haver
uma sensação
de perseguição
(“todos estão
contra mim”),
aumenta o
absenteísmo e a
rotatividade de
empregos.
Diminuição notável
da capacidade
ocupacional.
Podem começar a
aparecer doenças
psicossomáticas,
Automedicação.
Neste nível tem se
verificado também
um aumento da
ingestão alcoólica.
Alcoolismo,
drogadicção,
ideias ou
tentativas
de suicídio.
Durante esta
etapa ou
antes dela,
nos períodos
prévios,
o ideal e
afastar-se do
trabalho.
Jürgen Habermas (1987), filósofo alemão contemporâneo que
escreveu a Teoria da Ação Comunicativa, discute a sociedade através de
dois pilares. O primeiro é o Sistema, que é dividido pelo Sistema Poder –
sujeição a coerção do Estado como meio de preservação do coletivo – e
Sistema Moeda – sujeição dos homens aos mecanismos do trabalho e
das empresas, se justifica pelo mundo do trabalho para aquisição de bens
e manutenção da vida. O segundo pilar é o Mundo da Vida – ambiente de
troca de ideias, em que as pessoas convivem sem coações, medos ou
insegurança, local onde a vida pulsa, espaço das relações intersubjetivas.
Quando os homens estão inseridos em um dos dois pilares, eles
agem conforme dois preceitos distintos: no Sistema Poder e Moeda, as
ações dos homens são estratégicas, isto é, o agir estratégico é uma ação
que tem como princípio o poder, é uma relação de desiguais em que um
detém o poder sobre o outro, como a relação do réu com as leis do Estado
ou o funcionário com seu chefe; nesses momentos, as ações humanas
96
Qualidade de Vida
estão permeadas pelo agir estratégico. Por outro lado, no Mundo da
Vida, as ações são permeadas pelo agir comunicativo; nele, as ações
procuram a verdade sem coações, medo ou insegurança, é uma relação
entre iguais, em que as pessoas colocam-se para entender o outro na
busca de consenso como, por exemplo, em momentos de lazer ou em
conversa com um amigo; nesses momentos, somos permeados por ações
comunicativas.
Norbert Elias, sociólogo Inglês contemporâneo, discutiu o processo
civilizador. Ele aponta que existe um desenvolvimento amplo na
civilização, que parte desde posturas positivas do bem viver às questões
mais complexas como mudança nas relações sociais e entendimento
do ser humano. Para ocorrer esse processo de civilização, os homens
sublimam toda a sua agressão, trocando-a por um autocontrole que tem
como característica principal a evolução social. No processo civilizador,
Elias procura construir a gênese do comportamento e das ações, a
partir de componentes racionais, mas sempre atento às manifestações
psicológicas e fisiológicas. De maneira geral, nas sociedades que adotam
elevadas normas de civilização, graças a um estrito controle da violência
física por parte do Estado, as tensões pessoais resultantes levam a uma
sensação de tensão e estresse. Para Elias, o autocontrole é constitutivo
da natureza do ser humano, e, portanto, não leva necessariamente a
manifestações de neuroses ou patologias.
Para Habermas, o estresse psíquico relaciona-se com o Sistema
Poder e Moeda, isto é, com o mundo do trabalho e a coerção do Estado,
seja ele qual for, faxineiro ou burocrata. O trabalho se caracteriza pela
égide do agir estratégico; segundo Habermas, no mundo do trabalho, que
chamaremos a partir de agora de Sistema Poder e Moeda, as pessoas
agem sempre de forma a manter-se no poder, no cargo, na função, e para
isso mentem, trapaceiam, “engolem sapo” e principalmente sublimam toda
a sua agressão, trocando-a por um sorriso propaganda, um “sim senhor”
para o chefe, um obrigado para o fornecedor ou um “volte sempre” para
o cliente. Essa relação mecanizada de autocontrole, típico da evolução
social, leva ao estresse psíquico.
Na ação estratégica, não é permitido agir segundo suas vontades,
mas de acordo com a vontade do Sistema Poder e Moeda, com os
preceitos capitalistas de acordos, datas e concorrência, seja para entrega
97
de um trabalho ou para execução de uma tarefa. Há também a pressão
do desemprego estrutural, levando a baixos salários e ao medo do
desemprego – este também é outro fator. Essa repressão velada leva a
um acúmulo de tensões e esse acúmulo gera o estresse psíquico.
Não se trata aqui de negar a importância do autocontrole para
a evolução social. Nobert Elias, no processo civilizador, apresenta
justamente o autocontrole, repressão das pulsões e das vontades como
mecanismos de civilização. Não é este autocontrole que estamos aludindo,
porque o autocontrole de Elias refere-se a uma melhoria e reciprocidade
para todos os pares. O autocontrole do agir estratégico habermasiano é
se sujeitar ao poder do outro, não somente ao poder do Estado discutido
em Weber, mas ao poder individual ou coletivo exercido pela moeda e
pela posição social; em outras palavras, é o autocontrole do subalterno
para não ficar desempregado ou àquele que almeja uma promoção.
Além deste autocontrole estratégico, podemos também apontar
o estresse psíquico de resolução de problemas ligados ao sistema
financeiro. Como o sistema é regido pelo agir estratégico, mesmo os
grandes executivos estão sob uma pressão psicológica muito grande,
justamente por saberem que o sistema conspira contra todos, a mentira
é utilizada para ganhar sempre, conseguir alianças e melhores posições.
O estresse psíquico do executivo é desencadeado pela própria estrutura
estratégica criada pela empresa no sistema produtivo.
Avaliado o problema, percebemos que as mudanças são mais
estruturais do que conjunturais. Segundo Habermas, o agir estratégico é
próprio e intrínseco ao Sistema Poder e Moeda, difícil de ser amenizado;
porém, leituras menos ortodoxas podem ser feitas, como exemplo
Gutierrez, que discute as formas de minimizar os efeitos do agir estratégico
dentro da empresa. Para Gutierrez, as empresas deveriam propiciar o agir
comunicativo dentro das relações de trabalho. Na teoria habermasiana,
as ações comunicativas privilegiam a verdade, a comunicação e a troca
de ideias sem coação, sem medo e com a possibilidade de todos os
presentes darem sua opinião, mesmo que seja desfavorável ao argumento
do outro. O agir comunicativo é a forma expressa de linguagem no sentido
mais puro que a comunicação pode ter, isto é, poder de voz a todos,
sem hierarquia, sem posições privilegiadas, apenas a fala no sentido
de elucidação e não do convencimento. O agir comunicativo encontra-
98
Qualidade de Vida
se no Mundo da Vida, que é caracterizado pelo mundo das relações
sociais: na família, no jogo, no churrasco, no ambiente ligado á cultura,
na troca de ideias, sem a repressão do Sistema Poder e Moeda; enfim,
onde as pessoas criam e recriam seu ambiente cultural. Nesse sentido, a
redução do estresse psíquico está diretamente relacionada à mudança de
perspectiva na relação empresa e profissionais, em que devemos conter
o agir estratégico e valorizar o agir comunicativo.
Alguns exemplos notáveis já são encontrados nas empresas,
como a flexibilidade de horários ou possibilidade de trabalho em casa,
que se aproxima de ambientes menos estressantes, convivendo com a
família; não valorizar funcionários pelegos que alimentam a discórdia e a
desconfiança dos companheiros, funcionários estes que ampliam a ação
estratégica; promover espaços coletivos onde a família do empregado
possa participar, criando outros vínculos além do burocrático, espaços
comunicativos na empresa como o clube para os funcionários ou as festas;
pequenas pausas durante o trabalho com atividades não dirigidas; ter uma
relação sadia com os funcionários, tratando-os com respeito e dignidade;
minimizar a hierarquia e cargos figurativos; ter uma política clara da
empresa quanto aos direitos e deveres do trabalhador e do empregador.
Esses são alguns pontos que podem facilitar a entrada do agir
comunicativo dentro da empresa, diminuindo a função do agir estratégico.
Claro que não existe consenso quanto a essas alternativas, mas não
podemos negar que várias das colocações apresentadas não são
nenhuma novidade, são discussões correntes.
O diferencial dessa discussão, porém, é o referencial habermasiano,
ao admitir que o estresse psíquico está relacionado não ao tipo de atividade
exercida, mas a toda uma estrutura criada no Sistema Poder e Moeda.
Hoje sabemos que o estresse psíquico está relacionado a esse medo,
à insegurança e ao autocontrole estratégico. Sabemos que o próprio
sistema cria esse mecanismo de diferenciação. Outra visão possível
desse tema é discutir a qualidade de vida na empresa pelo pressuposto
de Elias; podemos pensar que o processo civilizador na fábrica apresenta
uma evolução nas relações humanas, uma mudança na preocupação
com os funcionários, uma humanização do espaço de trabalho. Ocorreu
um processo civilizador nas corporações industriais, por isso a ginástica
laboral, os clubes empresas e a preocupação com a família do empregado.
Todos esses elementos são parte da evolução social e da melhoria da
99
qualidade de vida em todos os ambientes, trazendo o agir comunicativo
em locais anteriormente dominados pelo agir estratégico.
Ações que possibilitam a qualidade de vida e ajudam a minorar o
estresse psíquico são vinculadas ao agir comunicativo e ao autocontrole,
sairão na frente, na ampliação de novos serviços que promovam qualidade
de vida, aqueles que não somente têm o entendimento do mundo do
trabalho, mas aquele que conhece o Mundo da Vida, das relações, das
artes, da cultura, onde os seres se sensibilizam e onde a vida pulsa. Quem
conseguir trazer estes elementos dará um grande passo na construção de
meios que previnam o estresse psíquico.
Conquistar no ambiente de trabalho posturas menos agressivas,
promover o debate e o conhecimento dos desejos do detentor do capital e
dos trabalhadores, criar meios de comunicação sem restrições na empresa
e, principalmente, não exercer qualquer tipo de coação são ações que
terão efeitos positivos na qualidade dos produtos e na vida do trabalhador.
Podemos ir mais além, discutindo o papel da sociedade na valorização
do mundo do trabalho, do ganhar sempre, de afastar pressupostos éticos
positivos, de esquecer os princípios morais e educativos que regem o bem
viver. Nessa transformação, não cabe apenas à empresa, mas a todos
os ambientes e pessoas que valorizam Sistema Poder e Dinheiro, como:
escola, parque de diversão, cinema, compras, relações sociais. Em todos
esses ambientes, o agir estratégico é valorizado e por isso a transformação
será lenta e gradual.
2.7 Patologias sociais e qualidade de vida na
sociedade moderna
As patologias sociais têm afetado tanto a qualidade de vida dos
cidadãos como as doenças comuns. Entendamos como patologias sociais
os processos de adoecimento que têm origem na rotina ou o modo de
vida da população. Podemos qualificar como patologia social todos os
Transtornos Mentais Comuns (TMC), como o estresse, por exemplo, que
pode ser decorrente de uma determinada condição de vida e/ou estilo
de vida. Assim como as mais diversas formas de depressão. Outros
transtornos menos identificáveis são alguns dos ataques cardiovasculares
e a obesidade.
100
Qualidade de Vida
Dada essa constatação, surge uma contradição inerente aos
processos de diagnóstico e proposta de tratamentos, porque, se parte
significativa dos problemas identificados como patologias, hoje, é oriunda
do comportamento social e/ou da vida em grandes cidades, esta origem
– o mal combatível – não está em determinantes fisiológicos, mas na falta
de qualidade de vida. Portanto, quando a população em geral procura
um médico com sintomas decorrentes de problemas que surgem devido
a rotinas exaustivas, recorrentemente as respostas são fisiológicas, com
tratamentos bioquímicos. Ou seja, o tratamento baseado em remédios
agride os sintomas dos problemas apresentados, mas não arremata suas
causas que têm origens sociais e não somente biológicas.
Publicações na área médica associam os problemas de saúde
decorrentes do comportamento social. Ludemir (2008) discute a correlação
entre desemprego, informalidade e agravamento das TMCs:
Alguns autores sugerem que, para a saúde mental, os
efeitos das dificuldades crônicas são mais importantes
que os eventos vitais produtores de estresse. No
entanto, Weich e Lewis (1998) encontraram resultados
opostos e as dificuldades financeiras no momento das
entrevistas mostraram-se associadas com a incidência
e a prevalência dos TMC, enquanto a pobreza esteve
apenas associada à manutenção dos episódios. Para
Lewis (1996) e Wilkinson (1996), a falta de dinheiro
pode levar ao estresse e à insegurança, mecanismos
psicológicos causadores dos TMC. Wilkinson (1997)
sugere, no entanto, que pelo menos nos países
desenvolvidos, as desigualdades de renda (pobreza
relativa) comprometem mais a saúde do que as
precárias condições de vida (pobreza absoluta),
afirmando também que a tomada de consciência sobre
as desigualdades socioeconômicas afeta a saúde
mental (LUDEMIR, 2008, p. 454).
Hoje, com o avanço da medicina social, já é possível defender
que o TMC tem origem social. Será que é plausível, também, levantar a
hipótese de que outras patologias consideradas clínicas são de ordem
sociológica? A pergunta que nos estimula se resume na seguinte sentença:
por que tratar doenças ligadas à qualidade de vida com medicamentos,
101
se o problema está no cotidiano, na forma de encaminhar a qualidade de
vida, nas dificuldades de relacionamento? Se o problema é social, porque
a resposta deve ser fisiológica?
Um caso paradigmático poderá elucidar essas questões suscitadas.
Existe relação entre o aumento do uso de antidepressivos e infartos?
Será que antidepressivo provoca infarto? A resposta pode simplesmente
ser: o antidepressivo combate os sintomas dos problemas que o estresse
e o efeito da pressão cotidiana descarregam nas pessoas e, ao “mascarar”
sintomas, temos que esses efeitos acabam perdendo seu aspecto de
processo de desenvolvimento de uma patologia e sobrecarregam o corpo
até que entre em blackout.
Os médicos poderiam reagir, afirmando que não existem dados que
associem o uso de antidepressivos ao infarto, por exemplo. Mas não é
absurdo relacionar que existe uma correlação entre o uso de antidepressivo
e infarto, sendo que ambos podem ter uma mesma origem: quando se trata
de um problema de ordem rotineira que sobrecarrega o sistema nervoso
e se combate com antidepressivo, remedia-se os sintomas do problema
e não seu fator detonador. A sequência depressão-infarto não significa,
necessariamente, uma relação de causa e efeito, mas pode-se supor uma
ação diagnóstica em sintomas e não em causas que dependendo dos
casos pode levar ao infarto.
Não se quer com isso supor que há erro médico em determinadas
circunstâncias de tratamento com antidepressivo ou na apresentação de
diagnósticos, mas apenas sugerir que determinadas questões mais gerais
como a racionalização da sociedade podem estar na origem de problemas
considerados físicos. Mas, defender que há uma tendência da sociedade
em adiar os problemas originários da rotina desordenada e prejudicial à
qualidade de vida com tratamentos que levam em consideração apenas
os sintomas dos problemas e não suas causas não é nenhum equívoco.
Se a hipótese estiver correta, é o cotidiano que gera perda da
qualidade de vida dos cidadãos e é isso que tem recaído como uma série
de problemas que são camuflados pelo uso de medicamentos. Apesar
do monitoramento da JIFE (Junta Internacional de Fiscalização de
Entorpecentes), o uso de antidepressivos tem crescido mundialmente. No
102
Qualidade de Vida
Brasil, o uso de antidepressivo está em franca expansão entre a classe
média. A automedicação se torna outro problema, o jogo em que tudo vale
a pena para se sentir melhor passa a ser uma forma de adiar problemas
que exigem uma solução mais drástica e penosa. Esses medicamentos
corrigem as disfunções fisiológicas, mas não atingem as origens dos
problemas. Dramática situação, porque não se trata de um problema
isolado, mas de condições de vida típicas da sociedade moderna e que
não se limitam ao Brasil.
O mundo do trabalho interfere na saúde do trabalhador. Os diversos
estudos sobre a fadiga mostram que há um ajuste fisiológico do ser
humano com os equipamentos da fábrica. Os estudos sobre o movimento
repetitivo do fordismo tiveram efeito na produtividade, como também no
desempenho bioquímico dos trabalhadores. Basta atentar para os casos
de lesões por esforço repetitivo (LER), que passaram a fazer parte das
doenças relacionadas ao trabalho.
Os movimentos estudados por engenheiros é um processo antigo.
Taylor realizou uma revolução gerencial dentro da organização fabril já no
início do século XX. Sua forma de otimizar o tempo e orientar o processo
fabril transformou-se em uma “escola de pensamento”. A rotina é um
movimento involuntário e tão sutil que seus efeitos são sentidos apenas
ao longo dos anos. Uma rotina mal formada, não acompanha a evolução
do desgaste do corpo; sem o adequado acompanhamento biofísico, causa
sequelas incuráveis. Agora, acrescente isso ao ritmo intenso de trabalho
e à vida em cidades grandes. Com o aumento da idade, na medida em
que o corpo se desgasta, a rotina caminha em sentido oposto, torna-se
mais severa e penosa. É inevitável que o corpo passe por transformações
fisiológicas que o deixem menos resistente.
Nos anos 1920 e 1930, várias experiências foram registradas
para avaliar o desempenho de trabalhadores no chão de fábrica. São as
famosas “experiências de Hawthorne”: A luz tem efeito na produtividade?
A divisão do espaço interfere na produção? O comando faz diferença?
O que dizer dos processos de cooperação e identidade do trabalhador?
Independente da importância que esses estudos tiveram para o cálculo
da fadiga e da produtividade, os teóricos da administração chegaram à
conclusão de que os fatores psicológicos são mais importantes que os
fisiológicos na produtividade do trabalho. Assim surge toda uma corrente
103
ligada à administração de empresas que justifica a necessidade de
trabalhar o “capital humano”.
Concebidas por Elton Mayo, a partir de 1923, várias experiências
sobre o efeito dos intervalos na produtividade da industrial têxtil da
Filadélfia mostraram que o uso do tempo para algum descanso mínimo
é otimizador da produção. Depois disso, o autor foi convidado a seguir
fazendo experimentos em fábricas que tiveram efeitos importantes para
os administradores pensarem no processo produtivo e nos motivos que
geram a fadiga. A partir de 1927, Mayo realizou as “experiências de
Hawthorne” (bairro operário de Chicago), que influenciaram a literatura
sobre a divisão do trabalho e geraram várias correntes teóricas dentro
das estratégias de administração e organização do trabalho. Os efeitos da
fadiga tornaram-se mais conhecidos e, cada vez mais, se aprofundaram
os estudos sobre a saúde do trabalhador.
As experiências, tanto da Filadélfia quanto de Chicago, levaram
Mayo a interpretar que a fadiga tem uma origem ligada às questões
psicológicas mais que bioquímicas. Antes de acusar uma causa física,
o organismo reage psicologicamente ao processo de cansaço (MAYO,
1933). Baseado nessas constatações, a Organização Mundial do
Trabalho (OMT) fixou parte do seu aporte nas interpretações a respeito
dos “recursos humanos”, entendidos a partir da sua rede de relações. Ao
tratar desse tema, as questões da administração do trabalho se voltaram
para conceitos como motivação, pressão, metas, estímulos, liderança e
equipe.
Essa “engenharia social” oriunda das experiências de produtividade
descartou os efeitos fisiológicos que os movimentos repetitivos podem
causar. Em conseqüência, a vasta bibliografia sobre “estudos do
movimento” e os efeitos da ciência do treinamento, desenvolvida na área
do esporte nunca foram de interesse do administrador e jamais atingiram
o efeito prático ao participar do “chão de fábrica”. O máximo que o esporte
transmitiu ao empresário, nessa área de atuação direta na manufatura
(produção, produtividade eficiência, eficácia etc), foi a ginástica laboral,
que não tem ligação direta com a fabricação de produtos e não entra
em seu cálculo. Muito pouco para mais de meio século de progresso e
construção de conhecimento a respeito do corpo humano.
104
Qualidade de Vida
É evidente que o corpo tem elasticidade para adaptar-se aos
processos de trabalho, e está alheio a algum desgaste. Porém, no
longo prazo, os movimentos que testam os limites da exaustão foram
negligenciados. Desde a imposição do taylorismo e do fordismo no mundo
do trabalho, pouco se contribuiu para a análise das consequências dos
movimentos no processo de trabalho do operário. Agora, cada vez menos, o
corpo é importante ao trabalho e, cada vez mais, os processos de raciocínio
tornam-se indispensáveis para a produtividade. E novamente os efeitos
da fadiga mental têm pouca expressão nos cálculos de produtividade. As
questões biológicas não são tratadas no âmbito produtivo e não fazem
parte da preparação destinada pelos empresários aos seus trabalhadores.
Além disso, outro efeito desse descolamento, o desgaste do trabalhador,
pode ser visualizado pelo crescimento de uma série de patologias antes
escassas (TMC).
Portanto, ao determinar a questão do estresse ou depressão na
esfera da psiquiatria, a ciência da administração se eximiu de pensá-las
como decorrentes dos ambientes de trabalho, tratando-as como casos
isolados e particulares de indivíduos que precisam de medicamentos.
Supondo que o perfil do trabalhador moderno usa mais o raciocínio
que a força física, como retirar disso estratégias e treinamentos para
elevar a produtividade? Onde a qualidade de vida pode auxiliar? E mais:
como minimizar os impactos dos danos provocados pela fadiga?
As necessidades de produção pouco se atentam para os sintomas
de desgaste e/ou fadiga. Percebeu-se que, ao estimular o trabalhador (ou
pressioná-lo para manter a produção), o que faz diferença é seu empenho
psicológico e não sua postura fisiológica. Porém, a fadiga acontece com
o tempo. Assim, é normal que o trabalhador busque nos remédios um
refúgio para evitar que a exaustão interfira no processo de produtividade.
Mas, o que faz o remédio? Adia o problema. Faz com que os
sintomas da fadiga desapareçam. Por outro lado, as causas que levaram
aos sintomas continuam a atuar; só não se convertem em empecilhos
para a continuidade do trabalho. Os sintomas escondem o agravamento
do problema e os colapsos podem ser inevitáveis – quando não, ocorre a
dependência dos medicamentos.
105
O trabalho estabelece padrões, organiza pensamentos e invade
a vida cotidiana de forma a interferir na cultura. O trabalho disciplina
o tempo e o uso do tempo vai para além do mundo do trabalho. E. P.
Thompson tem um artigo seminal sobre “tempo, disciplina de trabalho e
capitalismo industrial” (THOMPSON, 1998, 267-304), em que discute o
uso do tempo pelo trabalhador, disciplinado a vender parte de seu dia
ao patrão. A disciplina com que se entrega a força de trabalho apresenta
consequências mas, também, o uso que se faz do tempo é fundamental
para discutir a qualidade de vida. Quanto tempo se passa no trânsito?
Quanto tempo se usa para dormir? Quanto tempo se dedica ao lazer? E,
quanto tempo trabalha-se?
Se o trabalho induz ao uso disciplinado e eficiente do tempo,
porque não acreditar que, fora do trabalho, as pessoas não querem
usar de forma racional também o tempo de lazer? Portanto, trabalharse-á com o suposto que o tempo fora do trabalho ganha racionalidade
similar ao tempo disciplinado pelo trabalho. Nesse sentido, a cultura sofre
interferência da sociedade industrial dando ao homem moderno um novo
patamar de comportamento cotidiano.
A incorporação dos hábitos do ambiente de trabalho em todos
os momentos de vida das pessoas, resumidamente, a racionalização
das ações sociais no sentido mais amplo, integra-se em diferentes
mecanismos de ação que perpassam o universo simbólico no qual o
agente vive, sendo o corpo, o primeiro filtro da percepção através dos
sentidos ou compreendido como experiências.
Pode-se pensar que, no trabalho, há um processo de racionalização
da vida; ocorre uma perda de liberdade nos processos de burocratização
que acompanhavam e permitiam o desenvolvimento de níveis cada vez
mais complexos de organização social (HABERMAS, 1989, p. 352).
Primeiramente, o trabalho degenerava o corpo; agora, ele interfere no
espírito.
Esses fatores como processos de secularização ou de
desencantamento das visões de mundo, e consequente diferenciação/
autonomização das esferas culturais de valor, levam a uma perda de
significado da vida em sociedade (HABERMAS, 1987, p. 350).
106
Qualidade de Vida
Numa sociedade industrial, a cultura da fábrica, do escritório,
do trabalho especializado e padronizado se torna lugar comum
do comportamento cidadão. Baseado em trabalho assalariado e
especialização das funções, o homem moderno não se identifica com o
produto do seu trabalho, mas racionaliza sua função ao buscar resultados
e não os processos de fabricação. Submete suas decisões ao tempo e o
tempo à busca de resultados. Se alguém faz isso na maior parte do seu
tempo durante a semana e considera isso como “tempo útil” – tempo de
trabalho –, em oposição ao “tempo inútil” – o tempo do lazer –, por que
não supor que se racionalizaria também o “tempo inútil” para otimizar seus
resultados?
A noção de qualidade de vida transita em um campo semântico
e polissêmico: de um lado, está relacionada ao modo, às condições e
aos estilos de vida. De outro, inclui as ideias de construção humana e
valores socialmente constituídos. E, por fim, relaciona-se ao campo da
democracia, do desenvolvimento e dos direitos humanos e sociais. No
que concerne à saúde, as noções se unem em uma resultante social da
construção coletiva dos padrões de conforto e tolerância que determinada
sociedade estabelece como parâmetros para si (ALMEIDA, GUTIERREZ
e MARQUES, 2009, p. 8). Pensar qualidade de vida é relacionar a noção,
o entendimento e a construção histórica, com os sentimentos psíquicos da
população na vida familiar, amorosa, social e ambiental; o conteúdo social,
relacional e cultural que envolve desde o acesso aos bens materiais até
o uso destes bens. Perceber os significados da qualidade de vida é o
compreender como construção cultural.
Todavia, se a sociedade moderna baseia parte significativa da sua
construção cultural com base na eficiência laboral, a qualidade de vida,
entre outras coisas, age para garantir a produtividade trabalhadora em
harmonia. Se assim se faz, a atividade física perde significado social em
si e passa a ser um meio para atingir melhor desempenho produtivo.
Nesse caso, o esporte, mais que a atividade física, ganha prioridade entre
as funções da educação do corpo. O esporte tem mais “afinidade” que
qualquer outra função junto ao homem contemporâneo, porque o esporte
trabalha com conceitos caros à atividade empresarial, como eficiência,
eficácia, otimização, planejamento e busca por resultados. O esporte
desempenha um importante papel na formação do homem moderno e da
vida em sociedade. Passou-se a discursar sobre o esporte como sendo
107
matriz de socialização e transmissão de valores, forma de sociabilidade,
instrumento de educação e fonte de saúde. Pergunta-se: qual esporte?
Como as pessoas praticam as modalidades esportivas? Aos saudáveis
que praticam algum tipo de modalidade esportiva, ainda que sem o padrão
competitivo, afirma-se que se afastam dos males atuais como obesidade,
hipertensão, problemas cardiovasculares ou também o estresse.
Fica claro nas questões levantada acima que o esporte pode ser
praticado como mero discurso, reproduzindo o aspecto racionalizador
da sociedade moderna, ou utilizá-lo como estratégia de ação frente
às patologias sociais, ou melhor, transformando as condições de vida
que somos submetidos em uma sociedade altamente burocratizada e
racionalizadora. O esporte sempre exige um cálculo. Cálculo inclusive de
utilidade. Praticar a atividade física esportiva, mais que qualidade de vida,
avalia desempenho. Requer melhora. Para melhorar, há necessidade de
planejamento. Busca-se otimização do tempo, um recurso escasso na
sociedade atual. O esporte racionaliza o desempenho do seu praticante e
busca progresso. Portanto, ao recorrer a termos tão presentes no mundo
do trabalho pode causar a impressão de que o tempo “inútil” ganha
determinada utilidade ao usar-se desses termos para tratar a atividade
extralaboral.
Pode-se, portanto, utilizar como estratégia essa visão do esporte na
sociedade como algo útil e que traz benefícios práticos na vida das pessoas
(diminui o estresse, alivia a tensão, combate a obesidade, deixa a pessoa
mais sexy, entre outros atributos), para conseguir, nas intervenções, aliviar
as patologias sociais. Nesse caso, propõem-se não somente uma atitude
de praticar modalidades esportivas ou exercícios, mas voltar estas ações
com os objetivos da qualidade de vida; mais do que promover práticas
esportivas, deve-se estruturar os objetivos da prática, afastando o modelo
de performances e incorporando o modelo de qualidade de vida.
Ao desenvolver um programa de atividade física, é preciso considerar
não somente seus benefícios fisiológicos, mas também buscar atender a
outros níveis de exigência do ser humano. Tais níveis dizem respeito
às necessidades de relacionamento, bem-estar e autoestima. A prática
esportiva se apresenta como uma dessas possibilidades, pois o esporte
é um fenômeno social que, além de incentivar a atividade física, promove
interação social e influência no relacionamento entre os participantes.
108
Qualidade de Vida
Porém, a simples ocorrência de atividades esportivas não garante
que seja desenvolvido um sentimento de integração entre colegas, a
identificação com o local de trabalho, o desenvolvimento da individualidade
e a autoestima do empregado. É importante que haja, por parte dos
organizadores de atividades esportivas, conhecimento específico a
respeito dos valores e das formas de manifestação do esporte (MARQUES,
GUTIERREZ e ALMEIDA, 2008).
Num ambiente em que as atividades esportivas e de lazer são
pautadas em normas do alto rendimento, valores como o individualismo, a
rivalidade e a segregação podem vir a ser transmitidos, pois esse modelo
valoriza os vencedores em detrimento dos perdedores. Já a prática
esportiva pautada na qualidade de vida sugere ações cooperativas em
suas atividades, visto que o objetivo é promover um processo de atividade
esportiva independente da nomeação de melhores ou piores, vencedores
e perdedores.
Uma das questões pertinentes à qualidade de vida é a relevância
de alguns níveis de exigência do ser humano, como necessidade de
relacionamento, bem-estar no ambiente de trabalho e manutenção de sua
autoestima. Ao adotar programas de qualidade de vida, a empresa deve
atentar para as atividades que estão sendo propostas e como estão sendo
aplicadas. O esporte é uma forma de atividade física que, além de auxiliar
na promoção do antissedentarismo e de benefícios à saúde clínica, pode
incentivar formas de relacionamento saudáveis entre os participantes.
Se não houver o esforço de formar profissionais com essa visão, o
próprio exercício/atividade reproduzirá a sociedade racionalizadora que
quantifica e mede desempenho, levando inevitavelmente a um aumento
das patologias sociais.
O que a prática esportiva tem a ensinar a sociedade moderna?
Acusamos aqui o fato de o esporte herdar, de certa forma, conceitos
e contextos oriundos da sociedade industrial. Todavia, deve-se fazer
justamente o caminho inverso neste momento. O que a sociedade
industrial pode aprender com a atividade esportiva voltada à qualidade de
vida? O esporte torna-se, dentro de atividade de lazer, um modus-operandi
da cultura moderna, faz-se útil ao mostrar que as patologias sociais são
mantidas sem que os sintomas sejam afastados. O esporte tornar-seia uma estrutura de reconciliação do homem racional com seus limites
biológicos. O esporte age, portanto, preventivamente. Ativa o metabolismo
109
e amplia a capacidade fisiológica para a resistência. Aumenta, inclusive,
a capacidade de trabalho e ajuda a evitar a fadiga. Se a exaustão física
causada pelo trabalho for combatida antes do aparecimento dos sintomas,
o esporte pode tornar-se o grande aliado do homem diante do frenesi do
tempo.
Trabalhar com as questões da qualidade de vida no esporte pode
ser um excelente aliado na prevenção das patologias sociais, enquanto
não se reconstruir esta sociedade que cultiva os Transtornos Metais
Comuns como meros desvios individuais.
2.8 Gestão e qualidade de vida: o esporte como meio
para a integração e bem-estar entre os funcionários da
empresa
O esporte é um fenômeno sociocultural que, devido a normas de
conduta e características próprias, transmite valores e, por isso, exerce
influência sobre hábitos e comportamentos de nossa sociedade. Os
ambientes de ocorrência desse fenômeno não dizem respeito somente a
praças2 voltadas à prática esportiva, mas também a qualquer local em que
estejam presentes meios de comunicação e comercialização voltados aos
produtos relacionados ao esporte.
Bracht (1997, p. 12) sugere duas formas de manifestação do
esporte: o esporte de alto rendimento ou espetáculo e o esporte enquanto
atividade de lazer.
Tais manifestações dizem respeito aos propósitos e aos meios
em que ocorre a prática esportiva, norteando o processo de análise desse
fenômeno. O esporte de alto rendimento pode ser resumido nos seguintes
pontos:
- Possui um aparato para a procura de talentos normalmente
financiados pelo Estado. Além disso, este aparato promove o
desenvolvimento tecnológico, com o desenvolvimento de aparelhos para
a utilização ótima do “material humano”;
O termo praça diz respeito a qualquer ambiente que seja destinado à prática de atividades
esportivas. Exemplos: clubes, parques, escolas.
2
110
Qualidade de Vida
- Possui um pequeno número de atletas que têm o esporte como
principal ocupação;
- Possui uma massa consumidora que financia parte do esporteespetáculo;
- Os meios de comunicação de massa são coorganizadores do
esporte-espetáculo;
- Possui um sistema de gratificação que varia em função do sistema
político-societal.
Essas características apontam para uma prática voltada à
constante busca pela melhoria de performance atlética e competitiva, o
que exige grande dedicação dos praticantes e sinaliza para um ambiente
profissional. Para que um ambiente pautado no profissionalismo sobreviva,
é preciso que haja movimentação de capital. Por isso, a disseminação
e comercialização dessa forma de manifestação do esporte são
dependentes de meios de divulgação, além de indivíduos interessados
em seu consumo.
Nesse processo de promoção, a capacidade de interferência e a
influência desse fenômeno sobre a sociedade são otimizadas, fazendo
com que seja incorporado sob o modelo divulgado por esses meios. Dessa
forma, o alto rendimento é apresentado como modelo predominante do
esporte, exercendo influência sobre a prática enquanto atividade de lazer.
Tal influência se apresenta nas regras utilizadas em atividades esportivas,
normas de ação e comportamento dos participantes em momentos de lazer
(muitas vezes iguais às do alto rendimento), além dos valores transmitidos
por tal prática.
Os valores transmitidos pelo esporte de alto rendimento são,
segundo Kunz (1994) e Bracht (1997), em obras distintas e independentes:
sobrepujança ao adversário, comparações objetivas, busca por melhor
rendimento e vitória, representação, supervalorização do vencedor e
desvalorização do perdedor, comércio e consumo do esporte, disciplina,
racionalidade técnica e concorrência. Pode-se notar que tais valores
transmitem a ideia de competitividade, segregação entre bons e ruins ou
111
competentes e incompetentes, rivalidade e respeito irrestrito a regras e
autoridades.
Isso se faz importante, na medida em que indivíduos que aceitam
o alto rendimento como a única forma de manifestação do esporte
incorporam os valores próprios do mesmo. Dessa forma, podem tornarse sujeitos que valorizem a vitória e a sobrepujança ao adversário como
o ponto central da prática esportiva, o que diminui as possibilidades de
integração e socialização por meio desse tipo de atividade, pois o vencedor
será valorizado e o perdedor subjugado.
Já o esporte como atividade de lazer, segundo Bracht, é
heterogêneo, pois se pauta em características e determinações do esporte
de alto rendimento, porém, num ambiente de não-trabalho. Isso não
significa que a atividade esportiva em momentos de lazer siga sempre, e
de forma rigorosa, as regras do esporte de alto rendimento, porém, elas
norteiam e fundamentam a atividade. Outra opção é a ocorrência de um
processo de ressignificação ou reinvenção do esporte, desvinculado do
alto rendimento.
O caráter heterogêneo do esporte voltado ao lazer se apresenta,
a partir da prática em si, como o motivo para a realização de certa
atividade, possibilitando ao praticante que determine as normas a serem
respeitadas. Esse fato possibilita o descarte ou a alteração de regras e
padronizações próprias do esporte de alto rendimento, visando facilitar ou
tornar mais atraente e integrativa a prática.
O esporte enquanto atividade de lazer apresenta, além da prática
em si, outras formas de manifestação como, por exemplo, o papel do
espectador e do organizador (não-profissional) de eventos esportivos.
Essa relação é importante devido ao fato de o fenômeno esporte transmitir
valores não somente a quem pratica, mas também a quem o assiste,
organiza e consome.
Para entender tais valores, é preciso que sejam considerados
os motivos que orientam a prática. Betti (1993) cita a preocupação
com a manutenção da saúde, o prazer e a sociabilidade. Os valores
transmitidos pelo esporte como atividade de lazer são: autovalorização
e reconhecimento de capacidades individuais próprias, influência positiva
sobre a autoimagem e concepção de vida, vivências coletivas, atuação
112
Qualidade de Vida
social, prazer na vivência esportiva desvinculado do desprazer de
outros participantes, resistência ao sobrepujar e intenção de colaborar,
valorização da ludicidade, cooperação, competição sem rivalidade,
valorização do processo competitivo e não somente do resultado da
competição, crítica à violência em competições, não-discriminação de
sexo, raça ou características físicas.
É importante considerar que tais especificações são próprias
da prática do esporte como atividade de lazer, pautada numa visão
ressignificada ou reinventada do esporte, na qual alguns autores (Kunz,
1994, Assis de Oliveira, 2001 e Oliveira, 2002) propõem alterações na
forma com que esse fenômeno possa ser ensinado e/ou organizado.
Tais mudanças visam proporcionar ao praticante a oportunidade de
vivenciar diferentes modalidades sem obrigação de alta performance
atlética e competitiva, além de propor ambientes em que a relação entre
os adversários seja transformada. Nesse caso, o oponente passa a ser
um colaborador que torna a prática possível, e não, necessariamente, um
rival.
A intenção da análise sobre as formas de manifestação do esporte,
assim como as teorias e propostas em relação a diferentes formas de
organizá-lo, é criar a possibilidade de a prática esportiva colaborar na
transmissão de certos valores sociais, além de proporcionar momentos e
ambientes adequados ao meio em que a prática ocorre.
É possível observar que o esporte está presente em diversos
setores de nossa sociedade, como nas escolas, em parques, nos meios
de comunicação, no comércio em geral, em praças esportivas e nas
empresas (além de outros ambientes). Em cada um desses meios, a
presença do esporte tem uma razão de ser, como por exemplo na escola,
ambiente no qual esse fenômeno é considerado um conteúdo da cultura
corporal e, portanto, um conteúdo a ser ensinado para o desenvolvimento
de cidadãos autônomos. Em parques e em praças esportivas, a presença
desse fenômeno pode ser creditada a programas sociais (Esporte para
Todos, por exemplo) ou simplesmente como forma de lazer sem vínculos
organizacionais. Já nos meios de comunicação, esse fenômeno se
apresenta como produto a ser comercializado.
E nas empresas? Qual é o intuito da presença desse fenômeno?
Ele atende aos objetivos de seus organizadores? É possível organizar
113
um processo de forma a otimizá-lo de acordo com fins específicos? A
partir da análise das duas formas de manifestação do esporte, é possível
entender algumas das implicações próprias desse fenômeno, visando
adaptá-lo ao ambiente em que se vai inserir e aos objetivos da prática a
ser proposta. Segundo Cañete (2001), os programas de “qualidade total”
implantados em empresas brasileiras visam, em primeiro lugar, o produto
final e o aumento da produtividade. Esse fenômeno tem causado aumento
da jornada de trabalho, criando situações desfavoráveis à saúde e ao
rendimento produtivo do empregado.
Nesse ambiente, pode-se estabelecer um ambiente no qual a
lógica de gerenciamento e de relacionamento empresa-empregado seja
simplesmente a da produtividade e lucratividade. Essa lógica pode, num
primeiro momento, ser saudável para a empresa; porém, considerando que
tal processo pode vir a ser desfavorável para o empregado, prejudicando
sua capacidade de trabalho, a mesma poderá sentir de forma negativa tal
ocorrência.
É evidente que nesse contexto, a criatividade, a
multidimensionalidade, a diferenciação não encontram espaço, visto
que representam ameaça ao poder, ao sistema vigente. Chega a ser
paradoxal, pois o movimento pela qualidade total exige pensamento
crítico, espírito livre, autonomia e iniciativa, atributos que as condições
de trabalho impostas e o controle rigoroso impedem, bloqueiam. Cañete
atenta para o fato de que um processo que visa exclusivamente o aumento
da produtividade e a busca por lucros, desconsiderando o empregado
como um ser humano integral, corre o risco de prejudicar, de forma
considerável, a saúde e a capacidade de produção de seu pessoal. Num
processo de produção pautado nesses objetivos, é possível observar a
utilização do homem como uma ferramenta, ou “organismo morto”, que
funciona à base do estímulo resposta. A manutenção dessa relação se
mostra um equívoco, pois a empresa depende de seu funcionário para
manter-se saudável e, por isso, deve zelar por sua saúde.
Pode-se notar que muitas empresas desenvolvem programas de
atividade física para seus funcionários, que englobam desde ginástica
laboral, até a construção de clubes. Porém, é preciso considerar o homem
não como uma máquina, mas como uma totalidade, cuja estrutura vem da
interação dos níveis de consciência físico, mental, emocional, existencial
e espiritual ligados e interdependentes. Dessa forma, ao desenvolver
114
Qualidade de Vida
um programa de atividade física na empresa, é preciso considerar não
somente os benefícios fisiológicos do mesmo, mas também buscar atender
outros níveis de exigência do ser humano. Tais níveis dizem respeito às
necessidades de relacionamento, bem-estar e autoestima. Para tal, é
preciso que o meio de trabalho proporcione contato social e colaboração
entre colegas. Porém, nem todas as funções e todos os meios de uma
empresa podem proporcionar tal ambiente. Nesses casos, é preciso que
soluções sejam encontradas para oportunizar ao funcionário momentos
de relacionamento com colegas.
Dessa forma, é possível afirmar que com a aplicação de programas
de prevenção de doenças na empresa, os funcionários dela tenham
maiores condições de apresentar boa produtividade. Com menores riscos
de lesões e doenças provocadas pelo trabalho e um meio que proporcione
integração entre os empregados, o ambiente se torna mais agradável e
motivante para o cumprimento de sua função.
Portanto, programas de atividade física nas empresas podem ter
como objetivo proporcionar ao funcionário não somente um momento
de trabalho físico, voltado unicamente à saúde corporal, mas também
oportunizar momentos de relacionamento e interação entre empregados
e o fortalecimento dos laços de afinidade entre empregado-empresa e
família-empresa.
Uma alternativa a ser oferecida pelas empresas com o objetivo de
proporcionar tais oportunidades ao funcionário é a realização de atividades
esportivas. Tais atividades podem significar um momento de recuperação
da individualidade do trabalhador, visto que, durante o momento de
trabalho, o mesmo perde sua função individual na sociedade e recebe
um papel limitado em relação ao processo de produção, se tornando uma
ferramenta da empresa. Segundo Costa (1990, p. 16), os propósitos da
oferta de oportunidades para a prática de atividades esportivas, por parte
da empresa são: melhoria da imagem da empresa junto aos empregados,
proteção somática e psicológica dos empregados, melhoria das relações
empregado/patrão, aumento dos benefícios sociais, ocupação do
tempo livre dos empregados durante seu período de permanência na
empresa, prevenção e redução dos acidentes no trabalho, aumento da
produtividade (melhores condições de saúde, rotatividade de pessoal,
redução do absenteísmo), manutenção do bem-estar físico e mental dos
trabalhadores.
115
Segundo Costa (1990), a primeira manifestação de atividades
esportivas no âmbito interno de empresas no Brasil é creditada à Fábrica
de Tecidos Bangu, sediada no Rio de Janeiro, em 1901. Nessa ocasião,
empregados da empresa jogavam futebol num campo estabelecido
no mesmo terreno da fábrica. O autor afirma que, a partir da década
de 1930, eventos como esse ocorriam no Brasil, em empresas que
ofereciam opções de lazer e esporte a seus empregados, por meio de
clubes subvencionados. Tais clubes receberam o nome de “classistas”,
em referência à vinculação destes com as empresas.
É comum observar hoje em dia a existência de espaços
voltados para a prática de atividade física ou clubes ligados a grandes
empresas. Embora nem todos estejam localizados no terreno da empresa,
representam um espaço de lazer e entretenimento para o funcionário e
sua família. Como indica Pereira (1992, p. 25), em pesquisa relacionada
à empresa Singer, a principal razão de adesão dos funcionários ao clube
da entidade é a possibilidade de prática esportiva. De acordo com o livro
Esporte e lazer na empresa, do Ministério da Educação do Brasil, de 1990,
a principal atividade desenvolvida nos clubes subvencionados a empresas
é a de caráter esportivo.
Nesse contexto, é necessário que a promoção e o gerenciamento
desse tipo de atividade recebam certa atenção, pois, já que há interesse
e grande ocorrência de realização de práticas esportivas, eles podem ser
um meio da empresa alcançar seus objetivos em relação à manutenção
da saúde física, mental e espiritual de seus funcionários. Porém, a simples
ocorrência de atividades esportivas não garante que seja desenvolvido
o sentimento de integração entre colegas, a identificação com o local
de trabalho, o desenvolvimento da individualidade e a autoestima do
empregado. É importante que haja, por parte dos organizadores de
atividades esportivas, conhecimento específico dos valores e das formas
de manifestação do esporte.
Num ambiente em que há grande valorização do esporte de alto
rendimento, há também o risco de que valores como o individualismo, a
rivalidade e a segregação sejam transmitidos, pois esse modelo valoriza os
vencedores e sobrepuja os perdedores. Nota-se que a prática baseada em
normas e padrões de comportamento próprios do alto rendimento, embora
reúna num mesmo ambiente um número considerável de interessados,
terá como finalidade a determinação de vencedores e destaques. Não
116
Qualidade de Vida
se pretende condenar tal prática, mas chamar a atenção para outras
possibilidades a serem consideradas em relação a esse tema.
Pereira (1992) afirma que a concepção dominante do esporte nas
empresas em nosso país é a integração dos funcionários. Porém, o que se
observa é a realização de competições esportivas com os mesmos moldes
do esporte competitivo. É possível afirmar que a ocorrência do esporte de
alto rendimento como, por exemplo, em jogos interempresas, provoca um
sentimento de integração e união entre os funcionários. Todavia, nesse
momento, todos estão sob a mesma bandeira, com o mesmo objetivo
de representar a empresa ou simplesmente torcer por ela. A presença
de rivalidade nessa forma de manifestação do esporte não promove um
mesmo nível de integração entre os funcionários de empresas adversárias,
o que pode vir a ocorrer entre equipes concorrentes em competições
internas.
Já a prática esportiva, pautada em valores do esporte ressignificado,
tem como objetivo principal transmitir valores de cooperação, interação e
convivência, por meio de transformações no foco da atividade e na forma
como ela é apresentada aos participantes. Uma forma de diferenciação
prática entre o esporte pautado em normas do alto rendimento e o esporte
como atividade de lazer, baseado na ressignificação de valores, pode ser
ilustrada pelos conceitos de atividades formais e não-formais (BRASIL,
1990, p. 37). Formais (objetivam a forma física): maior representação
externa da empresa; orientada para disciplina e regularidade; maior custo
per capita no atendimento; abrangência menor na população da empresa;
regulada por legislação (esporte e Educação Física); resultados diretos
mensuráveis. Não-formais (objetivam o bem-estar): maior atendimento
com menor custo; ênfase no voluntário e na participação; inclui familiares
dos empregados; admite adaptação nas instalações e áreas da empresa;
permite participação da comunidade local, fornecedores ou contratantes;
compartilha instalações e programas com atividades de lazer, reduzindo
custos; resultados indiretos mensuráveis.
Em relação às atividades formais, caracterizadas por seguirem
de forma integral as normas de procedimentos do alto rendimento,
nota-se que abrangem um número menor de pessoas na empresa, pois
esse modelo exige do participante um nível competitivo de performance
117
esportiva. Esse fator sugere valores de segregação e rivalidade entre
participantes, podendo agir como um fator desestimulante à prática.
Outro item que merece atenção nesse tipo de atividade é a
necessidade de disciplina e regularidade, fazendo com que o momento de
prática esportiva tenha características semelhantes ao trabalho. Porém, não
é necessário que, na tentativa de estabelecer um programa de atividades
esportivas na empresa, as atividades formais sejam descartadas. Elas
podem ser utilizadas em jogos interempresas, com o intuito de promover a
integração dos funcionários, provocando sua identificação com a bandeira
da entidade.
As atividades não-formais, por outro lado, devido ao seu objetivo
de integração e participação, não são pautadas em normas e padrões de
comportamentos do esporte de alto rendimento. A diferenciação encontrase na criação, na alteração e na adaptação de regras do esporte formal,
visando transformar a prática e a ressignificação de valores como a
rivalidade e o desejo de vitória.
Um exemplo de diferenciação entre as duas formas de atividades
é a substituição de campeonatos por festivais. O primeiro tem o objetivo
final de eleger um campeão, um destaque, e, chegar a esse posto, é o
objetivo dos participantes. Dessa forma, serão valorizados os que têm
maiores condições de apresentar performance competitiva e o oponente
será considerado rival, pois pode atrapalhar o praticante na busca de
seu objetivo. No caso dos festivais, o objetivo final pode ser criado pelos
organizadores, e a determinação de um campeão ou destaque não é
essencial. Dessa forma, o regulamento e as formas de disputa podem ser
moldados de forma a valorizarem a participação do maior número possível
de indivíduos, além de proporcionar-lhes o maior número possível de
jogos ou disputas (participação mista, jogos de todos contra todos, etc.).
Existem outros exemplos e situações que podem ser criadas
pelos organizadores de programas de atividades esportivas, que fujam
dos parâmetros de campeonatos ou festivais. Um exemplo é a criação
de horários de práticas de determinado esporte, abertos a participantes
de diferentes setores, idades, sexo, com supervisão de um instrutor, e o
intuito de realizar atividades ligadas a determinada modalidade esportiva,
que valorizem a participação de todos. Marques (2004) atenta para a
participação dos praticantes no desenvolvimento das atividades, sugerindo
118
Qualidade de Vida
alterações e adaptações que levem a atividade a proporcionar ao grupo
os objetivos do mesmo durante a prática. Essa participação é interessante
para a empresa sob o ponto de vista de fomentar no funcionário a vontade
de cuidar e melhorar o ambiente em que ele está presente, além de facilitar
a execução de atividades que proporcionem bem-estar e estimulem sua
participação ativa na empresa.
Considerando que o intuito da empresa em desenvolver programas
de atividades esportivas para seus funcionários é, primeiramente,
proporcionar um ambiente que desenvolva o bem-estar do empregado,
por meio de atividades que promovam integração e cooperação, tanto as
atividades formais quanto não formais podem ser utilizadas. É necessário
que o profissional responsável pelo desenvolvimento e aplicação de tal
programa conheça as características e valores pertinentes a cada uma
das formas de manifestação do esporte (alto rendimento e como atividade
de lazer) e aplique-as de forma consciente, de acordo com os objetivos da
empresa.
Analisando as características e valores de cada uma dessas
manifestações, sugere-se que atividades pautadas no esporte de alto
rendimento sejam promovidas em eventos interempresas. Para tal, é
interessante a criação de equipes representativas da entidade, com o
intuito de integrar os funcionários, estimulando-os a acompanharem as
disputas e participarem de forma conjunta sob a bandeira da empresa. Em
relação às atividades internas, parece ser mais interessante a utilização
de práticas baseadas nos valores de um processo de ressignificação do
esporte para o momento de lazer. Para tal, podem ser realizados eventos
que valorizem a participação e não a rivalidade (que pode ser evidenciada
em competições formais), por meio de alterações e adaptações de regras.
Dessa forma, é dada maior evidência à participação do indivíduo nas
atividades da empresa junto aos seus colegas, em momentos de lazer e
entretenimento, nos quais a capacidade técnica e a performance atlética
não serão mensuradas com a intenção de estabelecer destaques. Outra
possibilidade é a existência de horários periódicos reservados à prática
esportiva, sob a responsabilidade de um instrutor, que garanta, por um
processo de ressignificação do esporte, a participação e integração dos
funcionários.
Por fim, é possível que tais atividades tenham maior adesão
dos empregados, se abertas à participação das famílias (PEREIRA,
119
1992). Ou seja, é importante também a possibilidade de participação de
familiares nas atividades, além de programas de práticas esportivas para
crianças. Tal alternativa pode vir a otimizar a utilização do espaço do clube
subvencionado ou área de lazer, em horários em que os empregados
estejam trabalhando. Essas e outras medidas podem vir a aumentar o
vínculo de ligação empregado-família-empresa, satisfazendo tanto os
objetivos dos funcionários quanto da própria instituição.
2.9 Inovação tecnológica e desenvolvimento humano:
aspectos importantes para a análise da qualidade de vida
Estamos na era da globalização e da informatização. Uma das
características deste nosso período é a velocidade das transformações
sociais e a rapidez como se constituem as novas tecnologias. Todas as
áreas do conhecimento sofrem impactos dessa produção em grande
escala.
Com a inter-relação das diferentes áreas acadêmicas, cada
vez mais um progresso científico sai da sua esfera de origem e atinge
a construção do conhecimento de outro campo, como os avanços da
genética influenciando as teorias sociais ou a invenção dos motores a
biodiesel relacionando-se com a ecologia. Enfim, as novas tecnologias
e seu impacto na vida das pessoas acabam sendo um fio condutor
importante para interpretar os avanços no desenvolvimento social e, mais
ainda, na qualidade de vida, que é considerada uma área multidisciplinar
por excelência.
Para Gutierrez e Almeida (2006), seria um contrassenso utilizar a
denominação qualidade de vida para avanços tecnológicos que possuem
um corte econômico limitador; por isso, o acesso torna-se fundamental na
avaliação das conquistas científicas para o desenvolvimento humano.
Existe a esperança que as novas tecnologias irão levar a vida
mais saudáveis, maiores liberdades sociais, conhecimentos e meios
de vida mais dignos. Essa crença, ao analisar os dados objetivos, é
verdadeira, pois os avanços sociais do século XX apontam para a
melhoria do desenvolvimento humano tendo íntima relação com os
avanços tecnológicos (Relatório do Desenvolvimento Humano, 2001,
p. 2). Podemos citar a redução da subnutrição na Ásia do Sul, em 30
120
Qualidade de Vida
anos, de 40% para 23%; o acesso ao conhecimento livre pela internet; a
produção e a distribuição de novos medicamentos e o maior rendimento
agrícola. Todo esse progresso, em tese, propiciaria um desenvolvimento
da qualidade de vida de maneira ampla; no entanto, muitos desses
conhecimentos estão a serviço do mercado, porque ele se mostrou uma
máquina poderosa para os avanços científicos.
Ianni (2002) aponta que a lógica do mercado é produzir a nova
tecnologia para o lucro; não tem como fim o desenvolvimento humano ou
a qualidade de vida, mas a preservação e reprodução do poder.
Enquanto os discursos favoráveis à produção tecnológica
apontam as melhorias em grande parte dos índices analisados pelo RDH
(2001, p. 22), como a queda da pobreza extrema de 29% para 23% da
população mundial; a diminuição da desnutrição em 40 milhões; o aumento
na alfabetização em 8%; a redução na mortalidade infantil em 10%, os
críticos apontam que os avanços tecnológicos e a riqueza produzida
nesses últimos 20 anos já seriam capazes de erradicar grande parte dos
problemas mundiais (IANNI, 2002). Os avanços apontados são tímidos
perto da produção de riqueza dos países desenvolvidos, colocando,
inclusive, que os seus ganhos se dão às custas dos países periféricos por
razão da exploração das matérias-primas e da força produtiva.
De qualquer forma não devemos ter uma postura maniqueísta
frente aos dados apontados ou às novas tecnologias, porque sua
sistematização e impacto na vida das pessoas são de difícil análise.
Como também não se pode colocar um fator mágico, ela pode auxiliar no
combate à fome, ao analfabetismo, às doenças e à pobreza, mas não irá
resolver sozinha esses problemas. A tecnologia é instrumento do homem e
depende do livre-arbítrio, ou do mercado de capitais para a sua utilização.
A tecnologia é neutra, seu uso é ideológico.
A própria tecnologia que facilitaria a vida pode destruir a existência
humana. Esse é o grande paradoxo e o conflito da ciência contemporânea;
avançar com as técnicas pela racionalidade instrumental e viver melhor,
mas ter a preocupação que esses avanços também podem servir para
extermínio do homem. Não existe, portanto, uma racionalidade da
tecnologia; ela é algo sem identidade e depende da vontade dos homens.
Isso nunca foi tão verdadeiro como hoje. Vivemos em um mundo em que
há o mapeamento genético, o barateamento da comunicação em rede,
como também as novas técnicas de destruição em massa.
121
O impacto das novas tecnologias não é imediato; demora-se um
tempo para os indivíduos incorporarem os avanços em escala mundial.
Primeiramente, porque a produção tecnológica está concentrada
prioritariamente em países desenvolvidos. Em segundo lugar, existe um
tempo de adaptação social para reproduzir novas condições e estilos de
vida. Um fato importante, entretanto, é a necessidade da democratização
do conhecimento de maneira ampla, não somente com o uso da internet,
mas que se produzam novas tecnologias nos países periféricos.
É fácil perceber que a produção de novas tecnologias é bem
diferente da apropriação ou da importação de novas tecnologias. Um
exemplo simples são os coquetéis contra AIDS, podendo os países
desenvolvidos doar todos os medicamentos à África subsaariana e
controlar a epidemia, aumentando, posteriormente, os índices de qualidade
de vida, ou, então, podendo formar recursos humanos nesses países para
produzirem os medicamentos necessários.
Um retrocesso apontado no Relatório do Desenvolvimento Humano
(2001) é a falta de limitação da comercialização sobre os direitos de
propriedade intelectual, isto é, sobbre a inovação tecnológica. As
patentes limitam o acesso a tecnologia, logo, de avanços importantes e
fundamentais para a melhoria da qualidade de vida nos países periféricos,
como a patente de combinação de medicamentos antirretrovirais. Outras
vezes, empresas privadas patenteiam inovações de conhecimento
tradicional, como uso de plantas medicinais pelos índios da Amazônia,
limitando o acesso aos países de conhecimento de origem. Existe um
fator de exclusão grande, porque o uso da propriedade intelectual está
a serviço das grandes corporações. Outra dificuldade apontada pelo
relatório é a fuga de recursos humanos (cientistas) formados nos países
periféricos, perdendo todo investimento na formação desse profissional
altamente qualificado.
O problema central é que as novas tecnologias são, ao mesmo
tempo, instrumento para a qualidade de vida e um meio de vantagem
competitiva na economia mundial. O acesso às tecnologias ambientais
ou farmacêuticas, por exemplo, podem ser essenciais para combater o
desmatamento ou para salvar vidas em todo mundo. Mas, para os países
que as possuem e vendem, eles são oportunidades de lucros, ficando as
novas tecnologias mais relacionadas ao desenvolvimento econômico do que
122
Qualidade de Vida
ao desenvolvimento humano. Não é somente o mercado o grande vilão
na produção do conhecimento. Muitas vezes a própria tecnologia contém
riscos à qualidade de vida, como os produtos geneticamente modificados,
que têm o argumento favorável de ampliação da colheita e a diminuição
de pesticidas, mas não se sabe os riscos quanto à segurança alimentar
e à perda potencial da biodiversidade, afetando a qualidade de vida. Os
riscos ambientais devem ser analisados com cuidado, para não acontecer
novamente desastres como a introdução dos coelhos na Austrália, que
se reproduzem com enorme facilidade, destruindo flora e fauna, ou as
florestas artificiais de empresas de celulose no Espírito Santo e sul da
Bahia, que limitam os agentes polinizadores.
O Relatório de Desenvolvimento Humano dá à internet um
grande peso na transformação social. Segundo Eisenberg (2003, p. 3),
ela exerce um crescente fascínio sobre as pessoas, representando uma
importante inovação em relação aos outros meios de comunicação pelo
fato de permitir uma proliferação de produtores de mensagens. Enquanto
os fatores da produção dos meios de comunicação se agregam em
um complexo financeiro e infraestrutural, que praticamente determina
a natureza oligopolista da exploração econômica do meio, os fatores
da produção de sites na internet são infinitamente mais baratos e
menos complexos, permitindo, portanto, uma ampliação estrondosa da
capacidade de produção de mensagens na forma de sites por parte de
indivíduos e pequenas corporações.
Existe uma maior democratização no uso da internet quando se
analisa os dados de 1998 em comparação aos de 2000; nessa comparação,
nota-se um aumento de 4% dos usuários mundiais. Nos EUA, o índice era
de 26,3% e foi para 54,3%; na América Latina foi de 0,8% para 3,2%; na
Ásia Oriental e no Pacífico, foi de 0,5% para 2,3%, na África subsaariana,
foi de 0,1% para 0,4% (RDH, 2001). Fica claro que apenas a população
mais rica, nos países em desenvolvimento, tem acesso a internet; existe
também uma exclusão espacial, já que apenas cresce o uso nas áreas
urbanas. Mesmo com esses problemas, o RDH coloca grande ênfase
na ampliação da informação para o desenvolvimento dos países em
todo o mundo, e a internet tem um papel de destaque na difusão deste
conhecimento.
123
Mesmo com esse cenário positivo, as disparidades continuam.
A África tem menos largura de banda internacional do que São Paulo.
A largura de banda na América Latina, por sua vez, é parecida com a
de Seul, na Coreia do Sul (RDH, 2001). Veja que estamos comparando
países em desenvolvimento. Essa relação fica impraticável com os países
desenvolvidos.
Todavia, espera-se que a internet possibilite maior participação
política, por meio de comissões virtuais abertas, ou mesmo salas virtuais
de discussões diretas com os representantes do Executivo, Legislativo
e Judiciário. Maior transparência nas transações dos grandes mercados
mundiais; melhoria na saúde com informação disponível em rede e novas
tecnologias em medicamentos; na agricultura, com a divulgação de novas
formas de manejo e plantação; na educação, com a inclusão digital, ensino
à distância e aulas interativas. Não é por acaso que a rede é considerada
a nova era na difusão de tecnologia para a qualidade de vida.
Um dos grandes pontos do desenvolvimento humano é a
divulgação do conhecimento; acredita-se que a internet será um facilitador
e democratizador das novas tecnologias, ampliando assim o acesso aos
produtos de inovação tecnológica para todo mundo.
O Brasil, apesar de ser um dos 30 exportadores mundiais de
alta tecnologia, é considerado um seguidor dinâmico de tecnologia, isto
é, o Brasil não tem potencial de inovação, apenas de reprodução das
tecnologias já constituídas. A análise parte do Índice de Realização de
Tecnologia (RDH, 2001), que coloca o Brasil na 43ª posição, atrás de
Uruguai, Chile, México, Argentina e Costa Rica.
O Brasil está nesta colocação porque investe pouco na qualificação
humana – cerca de 0,8% do PIB –, nossos pesquisadores têm menor
escolarização que Panamá e Trinidad Tobago, a população brasileira
ainda tem pouco acesso às inovações antigas como telefone e eletricidade
– índices menores que Uruguai e Peru –, além de existir pouca interface
entre a produção de inovação e os benefícios sociais vindos dela. Os
mesmos problemas constatados no Índice de Desenvolvimento Humano,
como distribuição de renda e escolarização, interferem nos índices de
inovação tecnológica.
124
Qualidade de Vida
De fato, uma análise comparativa com os países para os quais
existem dados sobre renda, mostra que o Brasil é o país que apresenta
um dos maiores índices de desigualdade no mundo, e que a distribuição
de renda piorou entre 1960 e 1990 (a mais acentuada piora ocorreu no
regime militar). De acordo com esse tipo de objeção, o presente texto
pecaria por ignorar esse elemento, talvez o mais importante, da situação
socioeconômica na qual o Brasil se encontra.
Portanto, apesar do Brasil possuir dois polos industriais de
tecnologia de ponta, não consegue uma interface da inovação com
acesso, afetando negativamente na qualidade de vida. Já que a formação
dos cientistas (número de anos) é inferior à média dos líderes e líderes
potenciais, como também, a população ainda não tem acesso a tecnologias
já difundidas, como consumo de eletricidade e telefone (RDH, 2001, p. 4849).
O grande desafio para a humanidade é transformar a tecnologia
num instrumento para o desenvolvimento humano e isso requer, muitas
vezes, um esforço deliberado e investimento público para criar e difundir
amplamente as inovações. Não basta investir na criação, adaptação
e comercialização de produtos necessários, mas no acesso a esses
avanços. Deve-se relativizar o direito a propriedade intelectual, usando
o princípio da razoabilidade, perguntando-se: a propriedade intelectual é
mais importante que o bem vida, no caso de medicamentos, ou é ela é
mais relevante que o combate a desnutrição, nos avanços da agricultura?
Esse talvez seja o desafio e o discurso mais antigo da humanidade:
viver em uma sociedade mais justa, que permita o acesso aos bens
materiais e intelectuais de maneira ampla, e, não fazer dela uma arma de
dominação política, econômica e militar.
Antes de colocarmos peso das novas tecnologias na transformação
de uma situação concreta, como os novos medicamentos para combater
a malária na Ásia do sul, devemos pensar se as tecnologias estão
transformando o modo de pensar dos povos, se elas são utilizadas como
formas de ampliação da consciência e do conhecimento compartilhado, ou
estão cada vez mais a serviço da segregação, dominação e exploração.
125
2.10 Documento eletrônico e assinatura digital:
inovação tecnológica no Direito brasileiro e os benefícios
à qualidade de vida
A informatização chegou para ficar. Duas de suas características
principais são a rapidez das novas tecnologias e a velocidade de constituir
necessidades. O Direito, apesar do seu aspecto moroso às transformações,
vê-se compelido a adentrar nesse mundo da inovação, algumas vezes
para agilizar procedimentos como informatização do sistema de citação,
recebimento de Boletim de Ocorrência via e-mail e acesso à intimação
nas páginas da internet do Diário Oficial, outras por necessidade como a
nova lei de crimes na internet (em tramite no Congresso Nacional), ouvir
acusados presos por teleconferências e, também, o documento eletrônico
e a assinatura digital.
Há certo consenso de que essas facilidades contribuem para
melhoria das condições de vida das pessoas. Principalmente se os
cidadãos percebem a presença do Estado no seu cotidiano.
Com a globalização, as transações econômicas entre nações
ficaram mais frequentes e a necessidade de criar meios jurídicos para
validar documentos tornou-se mais que uma necessidade, uma questão
de ordem. O primeiro movimento nesse sentido deu-se no Direito
internacional, que adotou o meio eletrônico para uniformização da
legislação. Falamos da lei modelo da UNCITRAL (Comissão das Nações
Unidas para Leis de Comércio Internacional) sobre o comércio eletrônico,
que aponta a validade jurídica da mensagem eletrônica. “Não se negarão
efeitos jurídicos, validade ou eficácia à informação apenas porque esteja
na forma de mensagem eletrônica” (Art. 5º).
Isso quer dizer que os documentos contratuais, feitos por meios
eletrônicos, e-mail, possuem validade jurídica para exigir da parte a
obrigação de cumprimento. Segundo o Projeto de Lei sobre documento
eletrônico, assinatura digital e comércio eletrônico, aprovado por Comissão
Especial da Câmara dos Deputados, denomina-se o documento eletrônico:
“a informação gerada, enviada, recebida, armazenada ou comunicada por
meios eletrônicos, ópticos, optoeletrônicos ou similares” (art. 2°, inciso I).
Apesar do aumento do uso do recurso eletrônico, existe o problema
da volatilidade e da ausência de traço personalíssimo do autor, que
126
Qualidade de Vida
fragilizam o documento, isto é, a falta da assinatura. Surge, assim, o
grande e crucial problema da eficácia ou validade probatória do mesmo,
resolvido, como veremos adiante, pela inserção da assinatura digital que
nada mais é que uma moderna técnica de criptografia.
Como já vimos, se por um lado o documento eletrônico
existe e é válido juridicamente, por outro lado, subsiste, diante de sua
fugacidade, o crucial problema da eficácia ou validade probatória do
mesmo. A indagação se impõe: como garantir autenticidade e integridade
ao documento eletrônico? A resposta, para os padrões tecnológicos
atuais, consiste na utilização da chamada assinatura digital baseada na
criptografia assimétrica de chave pública (e chave privada). A rigor, num
par de chaves matematicamente vinculadas entre si. Esse procedimento
tem como principal função substituir a assinatura da carteira de identidade
pela digital. Em termos sintéticos, é uma assinatura singular em formato
eletrônico, que serve para garantir a validade jurídica do documento.
Sua facilidade é grande, tanto para as transações internacionais, como
para contratos particulares em um país de dimensões continentais como
o nosso. Isso mostra que os novos problemas trazidos pela tecnologia
deverão ter solução buscada no âmbito tecnológico.
Para dar uma noção geral, a criptografia consiste numa técnica de
codificação de textos de tal forma que a mensagem se torne ininteligível
para quem não conheça o padrão utilizado. Sua origem remonta às
necessidades militares dos romanos (escrita cifrada de César). O
padrão criptográfico manuseado para cifrar ou decifrar mensagens é
conhecido como chave. Quando a mesma chave é utilizada para cifrar
e decifrar as mensagens, temos a denominada criptografia simétrica
ou de chave privada, normalmente utilizada em redes fechadas ou
computadores isolados. Quando são utilizadas duas chaves distintas,
mas matematicamente vinculadas entre si, uma para cifrar a mensagem e
outra para decifrá-la, temos a criptografia assimétrica ou de chave pública,
vocacionada para utilização em redes abertas como a internet.
Esse mecanismo é utilizado para viabilizar as chamadas conexões
seguras na internet (identificadas pela presença do famoso ícone do
cadeado amarelo). Por exemplo, a empresa A deseja celebrar um contrato
com a empresa B, ambas precisam certificar seus computadores por
órgãos públicos, o que possibilitará que as mensagens sejam cifradas
127
e decifradas apenas pelos contratantes. A empresa A sabe que apenas
a empresa B terá acesso aos documentos e vice-versa, em caso de
inadimplemento (descumprimento do contrato), a autoridade pública
certificadora poderá dizer com certeza a validade ou não do contrato,
facilitando a eficácia ou validade probatória do documento.
O processo de regulamentação da assinatura digital no Brasil pode
ser dividido, até o presente momento, em seis fases ou etapas:
- Fase 1: Lei Modelo das Nações Unidas sobre Comércio Eletrônico
em 1996 (UNCITRAL).
- Fase 2: Projeto de Lei n. 672, de 1999, do Senado Federal.
Incorpora, na essência, a lei modelo da UNCITRAL.
- Fase 3: Projeto de Lei n. 1.483, de 1999, da Câmara dos
Deputados. Em apenas dois artigos, pretende instituir a fatura eletrônica e
a assinatura digital (certificada por órgão público).
- Fase 4: Projeto de Lei n. 1.589, de 1999, da Câmara dos Deputados.
Elaborado a partir de anteprojeto da Comissão de Informática Jurídica
da OAB/SP, dispõe sobre o comércio eletrônico, a validade jurídica do
documento eletrônico e a assinatura digital.
- Fase 5: Edição de Decreto pelo Governo Federal n. 3.587, de 5 de
setembro de 2000. Institui a Infraestrutura de Chaves Públicas do Poder
Executivo Federal.
- Fase 6: Edição da Medida Provisória 2.200 de 2001. Este diploma
legal instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil,
para garantir a autenticidade e a integridade de documentos eletrônicos
através da sistemática da criptografia assimétrica.
O grande desafio é transformar a inovação tecnológica num
instrumento para o desenvolvimento humano e isso requer, muitas
vezes, esforço deliberado e investimento público para criar e difundir
amplamente as tecnologias. Não basta investir na criação, na adaptação
e na comercialização de produtos necessários, mas no acesso a esses
avanços. Deve-se ampliar o acesso a validade jurídica dos documentos
eletrônicos para celebração de contrato para particulares no Brasil, devido
128
Qualidade de Vida
à extensão continental do país e o número de transações que se efetuam
via rede.
A relação com a qualidade de vida é direta porque são mecanismos
mais eficientes que facilitam o dia-a-dia daqueles que celebram contratos
na internet ou simplesmente fazem compras por meios eletrônicos.
Podendo transformar seu estilo de vida ao utilizar esse tempo conquistado
pela inovação em atividades físicas, descanso e entretenimento. Uma
visão bem próxima de Domenico De Masi sobre a importância das novas
tecnologias para o surgimento da sociedade pautada no lazer. Outra
aproximação se dá pelo amparo legal das relações jurídicas na internet,
mostrando a presença do poder público nas relações de consumo e de
contratos, o que oferecerá maior segurança para as pessoas, influindo
positivamente na qualidade de vida.
129
OBSERVAÇÕES FINAIS
A preocupação com o bem-estar das pessoas em geral, e dos
trabalhadores mais especificamente, não se inicia com a constituição de
uma área de pesquisa intitulada qualidade de vida. As condições, os modos
e estilos de vida das pessoas são resultados de uma longa evolução das
lutas políticas, econômicas e da própria cultura, no sentido de propiciar
sempre melhores e mais dignas condições de vida para a sociedade
como um todo. Uma longa história de lutas em que se destacam todos
aqueles que, em algum momento, não se conformaram com os critérios
de distribuição da riqueza produzida socialmente e se sacrificaram para
transformar as condições dadas.
Mas, se não é justo colocar o início destas preocupações com
o advento da discussão sobre qualidade de vida, tampouco seria justo
considerar que a qualidade de vida, enquanto área de conhecimento, não
traz nada novo ao debate teórico e às iniciativas práticas. Esse conceito,
ao incorporar a dimensão subjetiva da percepção das condições de vida,
permite olhar os índices econômicos (como renda e PIB) e de saúde (como
expectativa de vida ao nascer), desde uma perspectiva mais ampla, que
pode contribuir de forma significativa para pensar a sociedade atual.
Vamos tomar como exemplo o tão comentado Pré-Sal. Algumas
cidades litorâneas do Brasil terão em breve um significativo aumento
de receitas e de população. Não seria surpreendente se essas cidades
apresentarem, em breve, o dobro da população com uma receita de
arrecadação cinco ou seis vezes maior. Isso vai acarretar uma melhoria
significativa na qualidade de vida das pessoas? Não necessariamente.
Aliás, pelo contrário, não seria estranho que a degradação do ambiente
urbano, associada ao mau uso do dinheiro público, levasse a uma piora
das condições de vida de grande parte da população, com o surgimento
de favelas, aumento da criminalidade e da poluição ambiental. Num
cenário como esse, o desenvolvimento da pesquisa sobre qualidade de
vida, assim como o acesso aos índices de mensuração transparentes e
confiáveis, podem ser aliados importantes na luta por um futuro mais justo
e equitativo.
Seguindo nessa mesma linha de raciocínio, é preciso sempre ter
em mente que a valorização da percepção subjetiva, inerente ao conceito
de qualidade de vida, traz consigo o risco da culpabilização da vítima,
em que o elo mais frágil da relação acaba sendo culpado pelas mazelas
decorrentes do próprio ambiente. Um trabalhador acometido, por exemplo,
de alcoolismo, é o único culpado pelo vício ou é um resultado de estresses
e assédios com os quais não consegue lidar? A resposta certa deve estar,
muito provavelmente, no meio do caminho entre os dois extremos. Mas
uma contribuição importante da qualidade de vida é trazer para o debate
a certeza de que, principalmente em questões referentes a estilo de
vida, é improvável alcançar resultados positivos sem o envolvimento, a
conscientização e a aderência de cada pessoa em particular.
Acreditamos que a pesquisa sobre qualidade de vida pode,
efetivamente, ajudar na construção de melhores e mais justas condições
de vida para amplos setores da sociedade brasileira. E que pode também
contribuir para uma melhor compreensão sobre as formas de organização
e distribuição de riquezas na sociedade, oferecendo maiores subsídios
para uma reflexão que a torne mais justa e igualitária quando necessário.
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