Sobre a biografia de Ailton Batata, da Cidade de Deus
Categoria: Resenhas
Escrito por Leonardo Nascimento
No filme Cidade de Deus (2002), a história de Ailton Batata foi recriada para o personagem Sandro
Cenoura, vivido por Mateus Nachtergaele
Importante personagem da crônica do varejo de drogas na virada dos anos 1970-1980,
Ailton Bitencourt, mais conhecido como o Ailton Batata da Cidade de Deus, recupera em
livro e contextualiza a escalada da violência no Rio de Janeiro, mais precisamente na
Cidade de Deus, a partir do seu testemunho como protagonista dessa história.
Lançado pela FGV Editora, Cidade de Deus: a história de Ailton Batata, o sobrevivente
foi escrito pela antropóloga Alba Zaluar e pelo psicanalista Luiz Alberto Pinheiro de
Freitas, a partir de um longo processo de entrevistas realizadas com Ailton. Dividido em
duas partes, além do prefácio de Alba e do posfácio de Luiz Alberto, o livro trata do
percurso do personagem desde a infância, culminando com a experiência mortificante do
presídio.
Ailton ainda estava preso quando descobriu que tinha sido transformado em Sandro
Cenoura, personagem interpretado por Matheus Nachtergaele no filme Cidade de Deus,
de Fernando Meirelles e Katia Lund. Passados quinze anos desde o lançamento do filme
– e vinte anos após o livro de Paulo Lins –, Ailton se propõe a compartilhar sua versão
sobre a guerra entre a sua quadrilha e a de Zé Pequeno, que marcou o Rio de Janeiro.
Na introdução da obra, Alba Zaluar explica os motivos que levaram-na a aceitar o desafio
de (re)contar essa história. Segundo a autora, em 2002 Ailton havia lhe telefonado
propondo um encontro (àquela altura, ele cumpria regime semiaberto). Quis saber por
que sua história fora contada no romance e no filme sem sua autorização. Afinal, grande
parte do material utilizado por Paulo Lins para escrever Cidade de Deus foi coletada
durante os oito anos – entre 1986 e 1993 – em que o autor trabalhou como assistente da
antropóloga em uma pesquisa sobre a criminalidade no Rio de Janeiro.
Confessando-se muito aborrecida por não ter recebido nenhum tipo de agradecimento no
filme e ter visto seu prefácio ao livro de Paulo Lins desaparecer ao longo das edições,
Zaluar diz ter resolvido escrever o livro para cumprir o que vislumbrava como única
maneira de compensar Ailton pelos danos causados. No entanto, é estranho que a autora
apresente tal descontentamento em relação ao apagamento de seu nome, uma vez que
acusa livro e filme de terem ajudado a construir uma imagem que fortaleceu estereótipos
sobre a região e seus moradores, estendendo-se à cidade e aos cariocas.
Tendo acompanhado de perto as transformações no tráfico da cidade desde os anos 1980,
além de seu profundo envolvimento com a escrita do romance de Paulo Lins, a presença
de Alba Zaluar durante toda a primeira parte do livro transforma Ailton em um
coadjuvante de sua própria narrativa. Soa bastante indelicado que o livro, surgido do
desejo do biografado em dar sua própria versão dos fatos, seja apresentado como uma
obra em que o “Ailton Batata da Cidade de Deus passa de bandido a estudo de caso”. E é
justamente a escolha em tratar Ailton Batata como estudo de caso o grande erro do livro.
De forma burocrática, os autores alternam ao longo do texto suas explicações com falas
de Ailton, muitas vezes antecipando o que será dito – de maneira bem mais interessante
– por ele. O ponto alto do livro é justamente o capítulo em que ele narra, sem interrupções
desnecessárias, sua versão do que considera a verdadeira história da primeira guerra do
tráfico carioca.
A quarta capa anuncia ainda que “sua história de desqualificação, que inclui um
encarceramento de 15 anos, é transformada pela introdução de dois pesquisadores
acadêmicos. Ao relatar sua trajetória aqui, [Ailton Batata] passa a ser um homem
valorizado ao contribuir para a ciência”. É um tanto inusitada, além de excessivamente
arrogante, a escala valorativa empregada no texto.
O desejo de analisar um personagem tão complexo, pelas óticas da antropologia e da
psicologia, tropeça em uma análise esquemática, domesticando o personagem através das
categorias trabalhadas pelos autores. Se o uso de histórias de vida é um método importante
para superar a indigência resultante da falta de arquivos e documentos, de fato mostrar
que biografias constituem uma fonte importante de análise exige situá-las no conjunto das
condições históricas e sociais das quais elas emergem. No entanto, o excesso de
interpretações presentes no livro opera uma asfixia do próprio biografado.
No lugar de tomarem as entrevistas de Ailton Batata como um trabalho de autocriação,
implicado nos desdobramentos das experiências de violência e de reconstrução – um
processo que envolve inúmeras negociações subjetivas entre o indivíduo e as
possibilidades do mundo social –, Alba Zaluar e Luis Alberto Pinheiro de Freitas
interpretaram as entrevistas a partir de conceitos pré-determinados, buscando uma espécie
de legitimação para seus próprios argumentos e modelos de análise.
Um exemplo marcante é o emprego dos conceitos de “ethos guerreiro”, de Norbert Elias,
e o de “habitus”, de Bourdieu, modelos teóricos utilizados no texto para pensar as
questões relativas à masculinidade envolvidas nas guerras entre as quadrilhas. A tentativa
de explorar o processo de socialização masculina dentro de determinados contextos
sociais resultou em um imenso e cansativo espaço cedido ao envolvimento de Ailton com
diferentes mulheres (mesmo sendo casado), fazendo dele uma figura caricata.
Além do capítulo da guerra, outro ótimo momento do livro é a transcrição de uma
entrevista feita com o biografado sobre a tragédia e o horror das prisões brasileiras. Rica
em informações e detalhes, na entrevista Ailton é novamente conduzido ao posto de
protagonista de sua história. São esses momentos, em que sua voz não é abafada pelas
vozes dos especialistas, que garantem alguma relevância à obra dentro dos estudos de
criminalidade urbana.
Embora algumas das análises apresentem dados importantes para aqueles que desejam
conhecer algo mais sobre o mundo do crime e sua expansão na cidade, a impressão
deixada pela obra é que os autores acreditaram ter eles próprios muito mais a dizer sobre
essa história do que Ailton Batata.