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O CONCEITO DE PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA NA OBRA HUSSERLIANA
E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A PSICOLOGIA.
The concept of phenomenological psychology in the husserlian work and its
implications to psychology
El concepto de psicología fenomenológica en la obra husserliana y su implicaciones
para la psicología
Eduardo Luis Cormanich
Universidade Federal de Alfenas
Gustavo Arja Castañon
Universidade Federal de Juiz de Fora
RESUMO
Esse artigo explana sobre o desenvolvimento do conceito de Psicologia
Fenomenológica na obra do filósofo Edmund Husserl e, mais especificadamente,
na obra “Psicologia Fenomenológica” que corresponde ao vol. IX da coleção de
obras completas do filósofo, denominada Husserlina. Apresentamos o ideário
husserliano através da formação do conceito de Psicologia Fenomenológica e
como seu entendimento torna possível respostas a questões de cientificidade
para a Psicologia, que estão presentes desde a sua fundação como uma
disciplina científica moderna, desde o final do sec. XIX. Concluímos ser
necessária a construção de um campo intermediário entre a Fenomenologia e os
estudos científicos em Psicologia, através da redescoberta deste ideário
proposto por Husserl para uma possível Psicologia Científica de bases eidéticotranscendentais e que utilize-se do método fenomenológico, e do caráter
intersubjetivo da psique humana como fundamento desta possibilidade.
Palavras chave: Psicologia Fenomenológica; Subjetividade Transcendental;
Epistemologia da Psicologia; Psicologia Teórica.
ABSTRACT
This article explores the development of the concept of Phenomenological
Psychology in the work of the philosopher Edmund Husserl and, more
specifically, in the work "Phenomenological Psychology" that corresponds to vol.
IX of the complete works of the philosopher, denominated Husserliana. We
present the husserlian through the formation of the concept of Phenomenological
Psychology and how its understanding makes possible answers to questions
about psychology scientificity, which has been present since its foundation as a
modern science, at the end of the XIX century. We conclude that it is necessary
to construct an intermediate field between Phenomenology and scientific studies
in Psychology, through the rediscovery of Husserl’s theory over the possibility of
a Scientific Psychology of eidetic-transcendental bases and the usage of the
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phenomenological method, as well as the intersubjective character of human
psyque as the basis of this possibility.
Keywords: Phenomenological Psychology; Transcendental
Epistemology of Psychology; Theorical Psychology.
Subjectivity;
RESUMEN
Este artículo aborda sobre el desarrollo del concepto de Psicología
Fenomenológica en la obra del filósofo Edmund Husserl y, más concretamente,
en la obra "Psicología Fenomenológica" que corresponde al vol. IX de la
colección de obras completas del filósofo, denominada Husserlina. Presentamos
el ideario husserliano a través de la formación del concepto de Psicología
Fenomenológica y como su entendimiento hace posible respuestas a cuestiones
de cientificidad para la Psicología, que están presentes desde su fundación
como una disciplina científica moderna, desde el final del sec. XIX. Concluimos
que era necesaria la construcción de un campo intermedio entre la
Fenomenología y los estudios científicos en Psicología, a través del
redescubrimiento de este ideario propuesto por Husserl para una posible
Psicología Científica de bases eidético-trascendentales y que se utilice del
método fenomenológico, y del carácter intersubjetivo de la psique humana como
fundamento de esta posibilidad.
Palabras clave: Psicología Fenomenológica; Subjetividad Trascendental;
Epistemología de la Psicología; Psicología Teórica.
INTRODUÇÃO
Atualmente, muito tem se discutido e pesquisado a respeito da fenomenologia.
Há um crescente interesse ao “voltar às coisas mesmas” do filósofo Edmund Husserl, e
principalmente, existe uma tentativa de reinterpretar sua filosofia, adequando-a as
necessidades mais atuais. Um dos campos de estudo que mais tem se valido dessa
“redescoberta” da fenomenologia, tem sido a Psicologia. Diversos trabalhos têm surgido
com o objetivo de aplicar o método fenomenológico à pesquisa e à prática psicológica –
mais especificadamente, no campo da psicologia clínica –. Assim, surge um novo campo da
psicologia, denominado Psicologia Fenomenológica, que tem ganhado cada vez mais
interesse por pesquisadores e profissionais da área. Apesar das inúmeras publicações na
área ainda é raro encontrar discussões que ressaltem ou tragam alguma novidade ao
campo das discussões mais teóricas ou conceituais a respeito do tema. Apesar da alguns
autores não objetivarem discussões especificamente com a filosofia, ainda assim encontrase falta de clareza no uso de alguns pressupostos, e não raro também a presença de
inúmeras contradições entre os conceitos utilizados, e algumas apropriações indevidas dos
conceitos fenomenológicos, como sobressalta Goto:
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A psicologia dita fenomenológica brasileira, ao invés de basear-se
diretamente na concepção da psicologia fenomenológica de Husserl,
fundamenta-se
na
visão
filosófica
das
fenomenologias
ou
dos
existencialismos delas decorrentes que não tratam com suficiente clareza o
que o próprio Husserl chamou de psicologia fenomenológica (2008, p. 16).
Devido ao processo histórico da chegada das obras husserlianas e como estas
foram absorvidas pelos psicólogos brasileiros, principalmente os de interesse na psicologia
humanista, muito dos conceitos foram transportados para o ambiente clínico, tomando a
psicologia fenomenológica apenas como um “referencial teórico”, ou na melhor das
hipóteses, como uma “descrição da realidade psíquica”, sem, contudo uma reflexão mais
aprofundada do próprio ideário husserliano proposto para a psicologia. Tudo isso ocasionou
diferenças na compreensão e no entendimento da fenomenologia e sua relação com a
psicologia (Holanda, 2016). Houve alguns autores que interpretaram a Psicologia
Fenomenológica, de modo a adequarem alguns pressupostos pessoais aos conceitos que
estavam redescobrindo na filosofia husserliana, de tal maneira que a fenomenologia serviu
mais como um recurso argumentativo para filosofias já propriamente desenvolvidas – em
destaque, a relação entre fenomenologia e o existencialismo (Feijoo & Mattar, 2014; Feijoo,
2011; Forghieri, 2012; Giorgi & Sousa, 2010) – do que como uma escola autêntica e
autônoma de pensamento. Como aponta Goto (2008) é importantíssimo que se (re)descubra
a psicologia fenomenológica husserliana pois “somente ela nos permitirá conhecer os atos
psíquicos em sua estrutura essencial e no modo de dar-se” (Arruda, 1947, p. 148, apud
Goto, 2008, p. 17), para assim podermos levar a cabo o ideário husserliano para a
psicologia e, quem sabe, retira-la do seu empirismo pueril para lançá-la ao status de uma
ciência autônoma.
Esse artigo como resultado de nossa pesquisa no mestrado tenta demonstrar a
necessidade de se redescobrir o conceito da Psicologia Fenomenológica na obra de Husserl
e tem como objetivo esclarecer o ideário husserliano proposto para a psicologia, bem como
explicitar as diferentes acepções do conceito da psicologia fenomenológica ao longo das
obra husserliana. Buscaremos traçar um rápido contexto histórico no qual estava inserido
Husserl para auxiliar a compreensão do ideário husserliano para a psicologia e como a
psicologia fenomenológica husserliana ainda pode auxiliar em problemas fundamentais para
a psicologia.
Nossa pesquisa procurou revisitar os principais textos husserlianos que nos
poderiam orientar sobre a temática da psicologia fenomenológica , tendo como critérios de
escolha aqueles textos que abrangeriam tanto momentos iniciais de sua obra (como as
Investigações Lógicas e as Ideen), como aquelas obras de sua fase final (tais como Krisis);
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perpassando também as obras intermediárias e , principalmente, nos fixando nos textos
compreendidos entre os anos de 1925-27 que compreendem os textos compilados na
Husserliana IX, que recebe o título de “Psicologia Fenomenológica”.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Importante ressaltar que muito do que se tem compreendido como psicologia
fenomenológica atualmente é uma composição entre os conceitos husserlianos a respeito
da fenomenologia e de seu método, aplicados diretamente ao campo de atuação clínica da
psicologia. Portanto, o que se quer aqui apresentar é o conceito de psicologia
fenomenológica mais puro, tal como é desenvolvido por Husserl, e que se configura numa
importante orientação para as soluções de ordem epistemológicas e metodológicas para a
psicologia, como buscaremos apresentar a seguir.
Retomando alguns autores nacionais e internacionais a respeito da temática da
Psicologia Fenomenológica notamos algumas aproximações ao ideário husserliano e ao
projeto de uma fundamentação das “ciências do espírito”, entre as quais a Psicologia;
porém, é possível perceber uma total arbitrariedade e pragmatismo no que tange a
interpretação e aplicação dos conceitos e metodologias fenomenológica.
No texto de Forghieiri (1993) intitulado de “Psicologia Fenomenológica:
Fundamentos, Método e Pesquisa”, a autora narra o percurso pessoal que a fez chegar até
a fenomenologia, em uma época em que pouco, ou quase nada, se discutia a respeito do
método husserliano em psicologia. Ela conta neste livro seu percurso pessoal e como a
proximidade com a psicologia humanista a fez chegar a autores fenomenólogos e
existencialistas, tais como Kiekerggard, Nietzsche, Sartre, Heidegger e, posteriormente aos
textos de Husserl. Ela reconhece que os textos husserlianos eram de considerável
complexidade filosófica, o que fez com que ela se “encorajasse a chegar a um próprio modo
de compreender a Fenomenologia” (Forghieri, 1993, p. 10). Apesar de certo pessoalismo
outorgado a interpretação da autora ao tema da psicologia fenomenológica, esta ainda
reconhece que o trabalho husserliano tinha como objetivo “problematizar o próprio
conhecimento (…) como o único método para se chegar a verdades apodíticas” (Forghieri,
1993, p. 14). Porém, quando se trata de discutir o conceito husserliano da Psicologia
Fenomenológica a autora se apoia na interpretação de comentadores, os quais por sua vez,
também possuem uma interpretação pessoal a respeito das aplicações do método
fenomenológico no âmbito da psicologia:
Giorgi (...) considera que a ‘uma genuína Psicologia Fenomenológica ainda
não existe, e a razão é o fato da Fenomenologia ser compreendida
basicamente como uma filosofia, com implicações para a Psicologia, ao invés
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de contribuir concretamente para o desenvolvimento de uma Psicologia
Fenomenológica’ (p.5) (Forghieri, 1993, p. 11).
Neste trecho Forghieri cita um dos pesquisadores mais conhecidos na área,
Amedeo Giorgi, que, apesar de reconhecer o trabalho inacabado no tocante às reflexões
filosóficas a respeito do desenvolvimento de uma “genuína Psicologia Fenomenológica”,
também intentou criar uma própria metodologia de investigação em psicologia a partir de
alguns
pressupostos
husserlianos.
Ambos
autores
assumem
que
a
psicologia
fenomenológica husserliana possuí um caráter meramente descritivo, enquanto que, como
veremos a seguir, o próprio Husserl irá abandonar por completo tal característica do seu
método a partir de 1913 quando escreve as Ideen1 (Husserl, 2006)
Apesar de apresentar uma compreensão profunda a respeito da fenomenologia
husserliana e, em especial, ao descrito sobre a Psicologia Fenomenológica, em Giorgi
(Giorgi & Sousa, 2010) não vemos uma compreensão última a respeito da elaboração de
uma Psicologia Fenomenológica com bases husserlianas. Encontramos, ao invés disso,
uma adaptação do método fenomenológico a uma intentada psicologia que buscasse
corresponder às exigências do modelo científico moderno, como irá descrever o próprio
autor:
A Fenomenologia afirma a possibilidade de se analisar reflexivamente o que
surge no fluxo da consciência. No caso do método fenomenológico
psicológico, esse procedimento é realizado apenas pelo investigador,
mantendo em aberto a possibilidade de uma visão crítica dos pares. Como é
sabido, poder contar com a visão crítica dos pares e possibilitar a replicação
dos estudos são dois critérios fundamentais em qualquer disciplina científica.
Neste momento, o crucial é salientar que esta opção se pretende conciliar
dois aspectos: seguir o requisito fenomenológico de valorizar as descrições
sobre experiências vividas, salientando o sentido de como estas se
apresentam a consciência do sujeito, mantendo no entanto, passos
metodológicos que permitam enquadrar o processo de investigação em
critérios unanimemente considerados na comunidade científica (Giorgi &
Souza, 2010, pp. 75-76).
Fica explícita a escolha feita pelo autor que prefere abandonar um rigor acerca
do seguimento do ideário husserliano, a fim de encontrar uma metodologia que corresponda
aos critérios de cientificidade, entre os quais, o critério de replicabilidade dos experimentos.
1
Momento este em sua vida que ficou conhecido como “virada transcendental”.
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Isso, de modo algum, diminui a importância do trabalho desse reconhecido autor (menos
ainda dos seus seguidores e de tantos outros pesquisadores na área que tem encontrado
em sua metodologia um referencial bastante sólido e de alta replicabilidade); contudo, como
vemos em Goto & Feijoo (2016), é possível encontrar algumas inconsistências na obra de
Giorgi e em sua metodologia, por vezes, excessivamente cientificista, o que acaba por
impossibilitar o seguimento mais próximo do ideário husserliano:
Nesse caso, parecem existir certas ambiguidades e confusões conceituais
dos autores na relação da fenomenologia de Husserl com a psicologia, pois,
na reflexão fenomenológica, por exemplo, mesmo na psicologia, a redução
deve ser levada a cabo, o que significa reconduzir o empírico do fenômeno ao
seu fundamento, ou seja, para o âmbito eidético-transcendental. (Feijoo &
Goto, 2016, p. 6)
Nossa crítica, portanto, vai ao encontro dessas iniciativas anteriormente citadas,
e seguindo outros autores que corroboram com nossa perspectiva (Feijoo & Goto, 2016),
(Porta, 2013), (Reis, Holanda, & Goto, 2017), (Goto, 2008), (Kockelmans, 1987);
buscaremos demonstrar como o ideário husserliano, proposto para a Psicologia ainda
carece de ser resgatado e levado a termo. Objetivamos evidenciar quais as principais
características que formam a Psicologia Fenomenológica, tal qual formulada por Husserl, e
como tal constructo foi evoluindo ao longo de sua obra. Tentaremos ao final deste ensaio,
explicitar quais caminhos podem ser seguidos, no que se refere ao resgate da possibilidade
da fundamentação da ciência psicológica, tal qual definida pelos cânones fenomenológicos
de rigorosidade husserlianos.
CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DA FENOMENOLOGIA: SUA INTRÍNSECA
RELAÇÃO COM A PSICOLOGIA
A história da fenomenologia se confunde com a própria trajetória husserliana na
busca de um método rigoroso que pudesse retirar de vez algumas acepções subjetivas ou
obscuras demais entre as nascentes ciências humanas no período compreendido entre o
final do séc. XIX e início do século XX. Entre as ciências que surgiam à época, que eram
alvo de maiores atenções do filósofo, estava a nascente psicologia. As próprias mudanças
das acepções do que se entende por fenomenologia “estão em correlação com as
mudanças em sua concepção do que seja a psicologia” (Porta, 2013, p. 66). Alguns
psicólogos chegavam até mesmo apostavam que o fim da filosofia estava próximo, pois
nenhuma metafísica ou discurso lógico poderia subsistir aos argumentos das ciências e seu
rigoroso método de controle. Nesse cenário surge uma corrente que buscava reduzir todo e
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qualquer debate filosófico ao campo da psicologia, e assim tratando os argumentos
filosóficos em sua acepção psíquica, submetendo a própria lógica à força das
argumentações de uma ciência do psíquico. Essa corrente de pensamento ficou conhecida
como psicologismo. A primeira grande obra husserliana, suas Investigações Lógicas
buscava exatamente combater essa corrente que predominava entre os filósofos e os
primeiros psicólogos de sua época. Husserl defenderá uma autonomia da lógica em relação
à própria psicologia, e ainda buscará fundamentar a lógica e as demais ciências sobre outro
alicerce, a lógica pura, que apenas pode ser explicitada através de um rigoroso método de
investigação – que posteriormente Husserl denominará como método fenomenológico, ou
simplesmente, fenomenologia. Esse é o princípio da fenomenologia, e o princípio da história
do conceito husserliano de psicologia fenomenológica. Nesta obra ainda não estão descritos
pormenorizadamente o método fenomenológico da variação eidética, por exemplo, mas,
como dirá o próprio Husserl, já aparecem nas Investigações o gérmen da fenomenologia e
da compreensão de que a psicologia fenomenológica é um campo necessário para a
compreensão da ideia da fenomenologia, e já está sendo compreendida a psicologia
descritiva como precursora de um novo tipo de psicologia:
Ainda há um aspecto do método psicológico-fenomenológico, talvez o mais
importante e essencialmente novo de todos, que ainda não designei, e que
também apareceu pela primeira vez nas Investigações Lógicas e influenciou
completamente seu método de trabalho. Pois, tornou-se aparente de uma só
vez que uma investigação descritiva com o objetivo novo das Investigações
Lógicas não tem o caráter de uma investigação meramente empiricamente
psicológica, nem psicofísica nem descritiva no sentido natural. O tema
exclusivo das Investigações Lógicas era o psíquico como correlativo às
objetividades pretendidas em cada caso (e especialmente as objetividades
logicamente ideais), assim, a multiplicidade de modos psíquicos nos quais,
puramente na imanência da vida psíquica, conceitos, julgamentos, teorias,
são formadas como unidades de sentido idealmente idênticas, com os modos
respectivos de ser suposto ou evidentemente verdadeiro (Husserl, 1962/1977,
p. 26-27, tradução nossa).
Fica-nos claro aqui, mais uma vez, que o entendimento do projeto husserliano
para a psicologia necessita de uma compreensão global de sua obra. A psicologia
fenomenológica não trata apenas do empírico em psicologia, nem tão pouco das minúcias
psicofísicas de sua época. A proposta husserliana é integrar sob uma mesma égide
epistemológica não apenas a psicologia, mas todas as demais ciências do espírito
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(Geistwassenschaften2) que teriam como ciência apriorística, ou seja, paradigmática, a
ciência psicológica, nascida a partir do método fenomenológico. Husserl explicita nesse
trecho que tal objetivo já estava traçado em suas Investigações, ao discutir as raízes da
lógica pura, na sua íntima relação com os fenômenos psíquico-eidético-transcendentais, e
que será melhor desenvolvida nas suas obras subsequentes.
Portanto, desde o início, queremos esclarecer que não basta uma descrição do
conceito husserliano de Psicologia Fenomenológica sem ao menos compreender o contexto
histórico-filosófico ao qual está inserida sua obra, e quais questões tal constructo visa
responder. Nem mesmo será possível compreender a nova psicologia que Husserl propõe
se não mantivermos em mente problemas contidos na própria psicologia, desde a sua
fundação. O problema levantado por Husserl, e que até hoje subsiste, é um problema
epistêmico: como pode a psicologia, ainda hoje, se propor a estudar a subjetividade, sem
que seu método seja capaz de alcançar o cerne dessa vida subjetiva? Como é possível
descrever a subjetividade própria, ou a de outrem, sem esclarecer como resolver o problema
dos conteúdos excessivamente pessoais, ou que enviesem a resposta? São essas questões
de ordem prática e metodológica que Husserl busca responder com sua “filosofia rigorosa”,
que não tem outro objetivo, senão desvelar a maneira de conhecer própria da consciência e
todos os fluxos vividos dela pertencentes (Husserl, 1911/2007).
O CONCEITO DE PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA – UMA INTRODUÇÃO
A construção e a definição do conceito psicologia fenomenológica em Husserl
perpassa toda a sua obra e acompanha passo-a-passo a evolução de sua própria filosofia.
Para um profundo entendimento acerca dos vários entendimentos possíveis para esse
termo, seria necessária uma completa revisão de sua obra, o que infelizmente foge ao
escopo desta etapa do nosso trabalho. Não podemos nos furtar, porém, de uma análise que,
no que pese nosso objetivo, ao menos vise elucidar algumas diferenças entre aqueles
termos historicamente relacionados a esse em questão. A própria fenomenologia tem sua
origem na construção da crítica ao modelo de psicologia adotado à época de Husserl –
como anteriormente citado – sendo que, o próprio conceito da psicologia fenomenológica,
também acompanha as transformações e as “guinadas” dadas por Husserl em sua própria
teoria. Convém, portanto, buscar fazer uma rápida releitura nas principais obras do autor
referentes ao tema.
2
Wilhelm Dilthey (1833-1911), filósofo alemão, contemporâneo a Husserl, formulou as diferenças
entre as ciências da natureza (Naturweissenchaften) e as “ciências do espírito”
(Geistweissenschaften). O termo “ciências do espírito” é comumente traduzido por “ciências
humanas”, ou “humanidades”, buscando-se diminuir o preconceito linguístico de cunho religioso e/ou
espiritual que poderia ser atribuído pelo uso do termo “do espírito”. Aqui optamos por manter o uso
“ciência do espírito” por referência ao seu uso histórico nos trabalhos de Husserl.
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Na sua primeira proeminente obra, as Investigações Lógicas, e mais
precisamente no volume VI (Husserl, 1988), Husserl caracteriza sua nova metodologia como
uma psicologia descritiva. Não uma psicologia semelhante a seu predecessor e mestre
Brentano – uma psicogenese exaustiva dos fenômenos mentais – mas, como o próprio
Husserl se viu obrigado a elucidar, tratava-se de uma psicologia descritiva dos atos
psíquicos e também da clarificação das essências dos atos psíquicos. Sua análise, portanto,
não
buscava
apenas
uma
descrição
dos
conteúdos
desses
atos, mas
visava,
principalmente, elucidar a própria essência do ato psíquico, sua constituição e sua origem
no caráter intencional da consciência, como veremos adiante. O método que Husserl
começara a desenvolver nesta obra, e o qual ele levará a termo em outras obras
posteriores, é o que possibilitará que o filósofo alcance esse substrato da essência da vida
psíquica. Esse método ele o denominará de método fenomenológico. A fenomenologia até
então constituída, resulta dessa descrição pormenorizada dos atos psíquicos, com a busca
da evidenciação de suas essências. Portanto, nesse primeiro momento, a psicologia
descritiva de Husserl poderia ser facilmente confundida com a própria fenomenologia.
Mas a partir das Investigações, Husserl começa a pensar em outra formulação
para a própria fenomenologia, buscando desfazer o possível engano do qual era acusado,
ao tratar como quase sinônimos os termos psicologia descritiva e fenomenologia. No seu
artigo publicado na revista Logos, a Fenomenologia como Ciência Rigorosa (Husserl,
1911/2007),
Husserl
visa
estabelecer
as
diferenças
entre
sua
recém-fundada
Fenomenologia de uma ciência empírica psicológica. Segundo ele:
(...) na fenomenologia deparamos com uma ciência, cuja amplitude os
contemporâneos ainda não imaginam, e que, apesar de ciência da consciência,
não é psicologia: deparamos com a Fenomenologia da consciência, oposta à
Ciência natural da consciência. Como não há de tratar-se de uma equivocação
casual, é de esperar de antemão que a Fenomenologia e a Psicologia devem
estar próximas uma da outra, referindo-se ambas à consciência, embora de
modos diversos e em “orientação” diversa, podendo dizer que à Psicologia
interessa a “consciência empírica”, a consciência na continuidade da Natureza,
ao passo que à Fenomenologia interessa a consciência “pura”, isto é, a
consciência na orientação fenomenológica (Husserl, 1911/2007, p. 19, tradução
nossa).
Ao expressar essa diferenciação, Husserl pretende deixar claros os objetivos de
sua nova ciência fenomenológica, porém, cria, consequentemente, outro problema que
posteriormente irá buscar solucionar: se há a possibilidade de uma ciência empírica
psicológica, que estudará a “consciência empírica”, como então a fenomenologia, a ciência
que estuda “a consciência pura” se relaciona com aquela? Esta questão abre um novo
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campo de estudos para o próprio Husserl, que passa a se dedicar então na elucidação
desse problema, e tem como resultado a sua obra Ideias para uma Fenomenologia Pura e
Para uma Filosofia Fenomenológica3 (Husserl, 1911/2014). Nesta obra Husserl clarifica sua
metodologia fenomenológica e clarifica também o caráter eidético dos atos psíquicos ou da
consciência. Ele proporá uma “nova psicologia”, a qual denominara de psicologia eidética,
ou seja, aquela psicologia que tratará do caráter das essências dos atos intencionais da
consciência, ou seja, dos atos psíquicos.
Husserl explicitará a necessidade de se fundamentar a pretensa psicologia
científica através de uma ciência eidética que a anteceda. Segundo o filósofo, ainda em
Ideias I, “toda ciência de fatos (ou ciência da experiência) tem seu fundamento teórico em
ontologias eidéticas” (Husserl, 1911/2014). É através dessa constatação que Husserl
propõe, portanto, o surgimento de uma nova ciência eidética que torne possível a
fundamentação da ciência psicológica. A nova psicologia eidética terá como objeto de
estudo a “explicitação das leis essenciais, apriorísticas, da região ontológica da alma
(Seele), propiciando a clareza conceitual necessária para a investigação posterior dos fatos
psíquicos, domínio da psicologia empírica” (Peres, 2014). Nasce aqui, portanto, um novo
projeto husserliano que, apesar de estar subtendido em trabalhos anteriores, parece tomar
forma e força, capaz de propiciar a fundamentação metodológica e epistemológica para uma
possível psicologia científica, que leve em conta os aspectos intencionais dos atos
psíquicos. Nos anos seguintes Husserl se dedicará exclusivamente a esse tema, e, entre os
anos de 1925 a 1927, proferirá em Freiburg suas “lições sobre a psicologia fenomenológica”.
Estes textos serão o tema central da nossa próxima sessão, na qual buscaremos expor mais
pormenorizadamente as especificidades do ideário husserliano e as novas possibilidades
metodológicas visando sanar algumas das principais questões acerca do problema da
cientificidade da psicologia.
Contudo, antes de introduzir propriamente o principal foco desse estudo, cabenos ressaltar que o tema da psicologia fenomenológica sofreria uma nova alteração dentro
da proposta husserliana. Mais especificadamente, nas suas obras finais, e em especial, em
A Crise da Ciência Europeia e a Fenomenologia Transcendental (1954/2012), Husserl volta
a tratar como sinônimos a então constituída Psicologia Transcendental (Fenomenológica)4 e
a Fenomenologia Transcendental. Com isso também, ele aparentemente igualou os
objetivos de ambas, ou seja, a obtenção das essências dos atos psíquicos através da
3
Esta obra é também conhecida pelo nome “Ideias I”, por se tratar do primeiro volume de uma
sequência de três volumes pertinentes ao mesmo tema. Para o português, atualmente, apenas o
Ideias I encontra-se traduzido.
4
O termo utilizado por Husserl nesta obra se refere diretamente a “Psicologia Transcendental”.
Porém, como buscaremos demonstrar, o conceito de Psicologia Fenomenológica sofrerá inúmeras
transformações e variações, ao ponto de que, nesta obra, uma das escritas por Husserl, ele deixa de
usar o referido termo, para utilizar-se tão somente do termo “Psicologia Transcendental”.
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redução transcendental. No parágrafo 72 da citada obra, Husserl afirmará “Só existe uma
psicologia transcendental, que é idêntica à filosofia transcendental” (Husserl, 1954/2012, p.
208). Entretanto, ao investigarmos essa aparente equalização proposta por Husserl,
verificamos que não se trata de uma igualdade ôntica, como se exatamente as mesmas
coisas fossem; ou seja, quando Husserl busca comparar a psicologia transcendental
(eidética) à filosofia transcendental, ele o faz no sentido de que ambos tratam do aspecto
transcendental da vida psíquica. Porém, há uma diferença quanto aos objetivos de cada um
desses campos de estudo: enquanto a filosofia transcendental, ou mais propriamente, o
método fenomenológico de redução transcendental objetiva o acesso às essencialidades da
vida psíquica, e nelas permanecem; a psicologia eidética, por sua vez, buscará
compreendê-las (as essências) dentro de um entendimento do próprio fenômeno psíquico
humano, enquanto tal. Enquanto para que haja a redução transcendental é necessária
apenas a análise das minhas vivências; para a psicologia eidética, a possibilidade da
compreensão de um outro, de um alterego, e de uma intersubjetividade que torne possível a
compreensão da dimensão universal da vida psíquica, é a meta a ser concluída. Sua
validação não se encontra apenas na correspondência com a lógica pura intrínseca da
própria possibilidade das vivências (como na filosofia transcendental), mas estabelece-se,
principalmente, na possibilidade da compreensão de uma unidade intrínseca a todas as
possibilidades de consciências:
Em virtude da redução, os outros se transformam, de homens para mim
existentes, em alteregos para mim existentes, com o sentido de ser implicações
intencionais da minha vida intencional original. Inversamente, também é valido:
neles estou implicado, com toda a minha vida original, e todos eles, do mesmo
modo, entre si. O que, então, cientificamente digo digo-o de mim e para mim,
mas
assim
também,
paradoxalmente,
para
todos
os
outros
como
transcendentalmente implicados em mim e entre si. A pura psicologia não
conhece justamente senão o subjetivo, e admitir aí como existente algo de
objetivo é já dela ter aberto mão. A infinita pesquisa psicológica, como pura e
transcendental, diz respeito a este entrelaçamento intencional dos sujeitos e da
sua vida transcendental, e realiza-se necessariamente segundo a figura que se
orienta ao meu redor”. (Husserl, 1954/ 2012, p. 209).
Portanto, o aspecto transcendental a que se refere Husserl quando fala de uma
Psicologia Transcendental se refere a esse campo “intersubjetivo” que se apresenta na
possibilidade do “entrelaçamento intencional dos sujeitos e de sua vida transcendental.
Enquanto que, à filosofia transcendental cabe a análise da lógica subjacente a toda e
qualquer possibilidade de consciência e dos atos conscientes a essa relacionados. Neste
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ponto, porém, há muito o que ainda precisa ser esclarecido, tanto quanto aos pretensos
ideais husserlianos quanto suas possíveis acepções e aplicações.
Por ora, cabe-nos apenas ressaltar que a aparente confusão atribuída a Husserl,
por parte daqueles que compreendem que a Fenomenologia Transcendental se iguala à
Psicologia Transcendental, na verdade ocorre por uma má compreensão do próprio ideário
husserliano. Nosso objetivo aqui será, outrossim, buscar uma interpretação de Husserl que
corrobore com nossa hipótese central de que Husserl tem a oferecer uma nova perspectiva
epistemológica e metodológica para o surgimento de uma “nova psicologia”, capaz de
fundamentar teoricamente uma pretensa psicologia científica.
O CONCEITO DE PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA EM “LIÇÕES SOBRE PSICOLOGIA
FENOMENOLÓGICA”
Apresentamos
a
seguir
então
uma
“sumarização”
das
características
fundamentais dessa “nova psicologia”. Segundo o próprio Husserl, a partir da análise do
conteúdo contido nas “lições sobre a Psicologia Fenomenológica” ele demonstra que
podemos examinar as características básicas desta através dos seguintes “motes”:
“Aprioridade, Eidética, Intuição ou Descrição Pura e Intencionalidade” (Husserl, 1962/1977,
p. 33, tradução nossa). Seriam estas as características básicas oferecidas por Husserl para
a psicologia fenomenológica. Percorremos então ao longo do artigo, cada uma dessas
características, relacionando-as aos fundamentos da Psicologia Fenomenológica, tal quais
são definidas por Husserl nas “Lições sobra a Psicologia Fenomenológica” (Husserl,
1962/1977), no contexto da elaboração de sua proposta para uma possível Psicologia
Científica alicerçada sobre a Fenomenologia.
Por uma Psicologia Eidética
Na análise do filósofo Husserl, as várias tentativas de constituição da ciência
psicológica foram fracassadas, pois estas 1) não conseguiram dar conta do problema da
caracterização do seu objeto de estudo, 2) não estabeleceram uma metodologia própria,
capaz de garantir o acesso e a compreensão do seu objeto de estudo e 3) não conseguiram
erigir uma teoria solidamente fundada capaz de percorrer um continuum intrinsecamente
lógico (Husserl, 1962/1977). Serão esses os pontos que ele buscará fundamentar dentro do
seu ideário para uma psicologia pretensamente científica.
Husserl argumenta que o modelo das ciências naturais não deve ser seguido
pelas ciências do espírito. As ciências do espírito teriam um funcionamento e leis próprias
que não se adequam ao naturalismo que fundamenta as ciências naturais. Husserl
defenderá que os elementos físicos (naturais) possuem equivalência aos fenômenos
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psíquicos (mentais), principalmente no que tange a demonstração de sua existência e
veracidade. Para ele não há distinção entre a verdade das duas modalidades de fenômenos,
pois ambos têm como pressupostos as suas respectivas ciências apriorísticas, e essas, por
sua vez, fundadas sob a mesma lógica pura universal. Husserl defende a suposição de um
mundo real, não o nega; mas também sustenta a existência de um mundo que apesar de
não-real (irreal) deva ser considerado como existente e, portanto, tão verdadeiro quanto
aquele primeiro. Portanto, Husserl assume que, embora os fenômenos mentais não
possuam uma existência no plano da realidade (tais como os objetos das ciências naturais),
a possibilidade do conhecimento dos fenômenos mentais se baseia na mesma
fundamentação epistemológica das ciências apriorísticas que fundamentam as ciências do
espírito e as ciências naturais.
Assim como as ciências naturais tem como fundamento metodológico e
epistemológico a ciência apriorística da matemática, as ciências do espírito possuem sua
fundamentação em outra ciência apriorística, a psicologia fenomenológica. Portanto, ambos
os tipos de fenômenos não diferem, entre si, em suas bases epistêmicas de fundamentação,
pois em Husserl matemática e psicologia fenomenológica se igualam em caráter de
evidenciação. Diferem apenas na maneira como se dão na própria experiência. Husserl
constata que a matemática, a ciência apriorística da física moderna e, portanto, das ciências
naturais, é ela também uma ciência que não trata de verdades ou proposições pertencentes
ao mundo real como tal. Argumentará Husserl que o que confere veracidade a matemática
não é o mundo físico, mas a própria lógica que sustenta as suas proposições. Dirá ele:
“Uma proposição ou um número não é um evento real no universo, assim como não é
alguma coisa que ocorre aqui ou ali, numa irrepetibilidade individual, movendo-se ou parada,
ou exercendo alguma causalidade” (Husserl, 1962/1977, p. 15, tradução nossa). A
matemática, portanto, possui uma relação de verdade própria que não precisa ter correlato
no mundo real. É ela mesma irreal e possível de ser verificada, através de sua própria
identidade numérica singular como verdadeira ou falsa, tais como os objetos do mundo real,
dirá Husserl. (cf. Husserl, 1962/1977).
Portanto, a primeira característica defendida por Husserl para a possibilidade de
uma Psicologia Científica, é que ela não abandone o caráter eidético que fundamentam as
ciências do espírito. Para uma Psicologia que seja capaz de tratar do psíquico, é necessário
uma redescoberta do caráter eidético dos fenômenos psíquicos que constituem o objeto
desta ciência. Além do mais, é necessário compreender que os fenômenos tratados pela
Psicologia Fenomenológica, são também tão existentes quanto a própria possibilidade da
matemática. Em Husserl, portanto, o caráter eidético dos fenômenos psíquicos não são um
impeditivo para seu manejo e estudo; tal como na matemática, a Psicologia Fenomenológica
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tratará de objetos ideias e que tenham uma lógica intrínseca que possibilite seu estudo e
sua compreensão.
Intencionalidade, o caráter fundamental do psíquico
O conceito de intencionalidade da consciência provém da filosofia medieval que
considerava que a consciência possuía uma intentio, ou seja, uma propensão a estar
sempre voltada para algo fora dela, algo que não ela mesma. Brentano resgata essa
característica e lhe confere uma nova importância, ao considerar que toda a atividade
psíquica também possuía esta característica, ou seja, todos os atos psíquicos, como
emoção, pensamento, lembranças, estariam relacionados a um objeto presente no mundo
físico (Brentano, 1874/1935).
Mesmo que tal suposição já pudesse ter sido defendida de maneira análoga por
outros filósofos5, em Brentano esse aspecto era colocado como uma característica
fundamental da consciência e que possibilitaria a instrumentalização do mundo psíquico.
Ora, se tudo o que se passa na consciência provém do mundo externo que nos circunda, é
possível acessar o conteúdo da consciência explicitando as relações entre ela e o mundo
físico. A diferença de Brentano para seus antecessores se dava pelo fato dele identificar um
novo tipo de fenômeno, que podia ser tratado como objeto de estudo de uma psicologia sob
o ponto de vista empírico: o “fenômeno psíquico” (Brentano,1874/1935). Tal qual Husserl irá
defender, Brentano também pressupõe a existência do mundo interior, porém de maneira
separada do mundo externo e dele dependente – e neste último aspecto, Husserl
discordará, pois, como veremos, o caráter intencional da consciência unifica esses dois
aspectos da experiência –. Esse fenômeno psíquico, tomado como uma verdade, oriundo da
constatação do caráter intencional da consciência, é o que possibilitará segundo Brentano a
fundamentação de uma psicologia empírica. Porém, como Husserl observará essa
psicologia brentaniana apenas conseguirá fornecer um aspecto descritivo da vida mental,
sem conseguir explicitar os nexos intrínsecos da subjetividade. Por essas razões Husserl
caracterizará Brentano como um naturalista, pois este argumentará que toda a vida mental
dependerá exclusivamente do mundo natural, acabando por repetir um tipo mais velado de
dualismo – ao supor um mundo “externo” que afeta o mundo “interno” –. Será diante este
dualismo, que precisa supor a primazia do mundo externo, que Husserl proporá uma nova
compreensão do caráter intencional da consciência.
Husserl percebia que a constatação do caráter intencional da consciência
poderia assegurar mais do que a simples descrição da vida interior. Ao assumir que nossa
experiência interior se dá, toda ela, voltada a algo que não ela mesma, Husserl constatou
5
Como em David Hume (1711-1776), por exemplo, que considerava que todos os pensamentos têm
sua origem numa impressão do mundo externo. Esse princípio ficou conhecido como o “princípio da
cópia” (Hume, 1739/2000).
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que não é possível identificar uma relação de causalidade, pois do mesmo modo que
podemos dizer que o mundo externo causa nossa experiência, poderíamos assumir também
que é a consciência que possibilita a existência do mundo externo e isso repetiria,
novamente, o mesmo dualismo. Para fugir a este dualismo e à dupla causalidade, Husserl
busca uma terceira via, e defende que não há consciência de algo em si fora dessa relação
intencional, repetindo seu predecessor Brentano, e adiciona o caráter imediato da
experiência, conferindo outra acepção ao caráter causativo. Isso implica em dizer que a
vivência do mundo se dá num imediatismo entre aquilo que é conhecido e a tomada de
consciência daquele que conhece. A intencionalidade revela a dependência mútua entre a
natureza da psique e a própria possibilidade de conhecimento do mundo. Portanto, essa
será a característica que, segundo Husserl, conferirá toda e qualquer possibilidade de
conhecimento do mundo e de si mesmo, e, portanto, de toda e qualquer ciência possível. E
é a partir da constatação do caráter intencional da consciência que Husserl constituirá toda
a fenomenologia e, consequentemente sua metodologia própria, principalmente no que se
refere à redução fenomenológica, como dirá Lyotard (2008):
Com efeito, a intencionalidade não é apenas esse dado psicológico que Husserl
herdou de Brentano, mas ainda aquilo que possibilita a própria epoché: perceber
este cachimbo em cima da mesa, de modo nenhum implica ter uma reprodução
em miniatura desse cachimbo no espírito, mas visar o próprio objeto cachimbo.
Ao por fora de circuito a doxa natural (posição espontânea da existência do
objeto), a redução revela o objeto enquanto visado, ou fenômeno; o cachimbo
não é, então, mais que um face-a-face (Gegen-stand) e a consciência aquilo de
quem há esses face-a-face. (p. 37).
Não se pode, pois confundir a descrição intencional da consciência apenas
como uma descrição óbvia do conteúdo da consciência; a obviedade está, antes, em
compreender uma interdependência recíproca entre o ato da consciência – de maneira
geral, o ato de conhecer, tomar consciência de – e o próprio perceber e vivenciar o objeto.
Husserl exalta que aqui não há distinção nem temporal nem de causalidade, é um e o
mesmo ato. É a própria síntese intencional, ou seja, a maneira própria da consciência de
conferir unidade de significação às experiências, voltando-se para as coisas mesmas.
A “demonstração” (Aufweisung) de que o cogito, quer dizer, o estado intencional,
é consciência de alguma coisa só se torna fecunda pela elucidação do caráter
original desta síntese. Quer dizer que só esta “demonstração” torna fecunda a
importante descoberta de Franz Brentano, a saber, que a intencionalidade é o
caráter descritivo fundamental dos “fenômenos psíquicos”. Apenas ela permite
isolar realmente o método de uma ciência descritiva da consciência, tão
filosófica e transcendental como psicológica (Husserl, 1963/1988, p. 58).
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A intencionalidade será a responsável por demonstrar a unidade da correlação
entre a experiência vivida e o mundo, enquanto tal, e será ela mesma quem possibilitará a
emergência de uma ciência do psíquico. Husserl defenderá que a psicologia tem na
intencionalidade a possibilidade de um acesso direto ao fenômeno psíquico. Dessa maneira,
a intencionalidade seria capaz, ao mesmo tempo, auxiliar na superação de duas grandes
dificuldades da psicologia: sua metodologia e seu objeto de estudo.
A análise da vida psíquica consiste, pois, antes de tudo, na capacidade do
psicólogo em colocar em evidência essa mútua relação entre a experiência e sua
significação, em outras palavras, sua imanência e sua transcendentalidade. Apenas assim,
no esforço de evidenciar essa relação, será possível viabilizar uma psicologia que trate dos
fenômenos psíquicos que embora “irreais”, são tão passíveis de ter sua existência verificada
quanto qualquer outro objeto real, tal qual como ocorre nas ciências naturais.
Para fundamentar essa afirmação, podemos lembrar-nos da própria analogia
entre matemática e a psicologia a priori feita por Husserl, quando ele afirma que tal como a
matemática trata de objetos irreais, porém existentes; igualmente a psicologia a priori
também trata de objetos irreais, igualmente existentes e passíveis de serem verificados
através da explicitação de sua lógica intrínseca. (cf. Husserl, 1962/1977, p. 35).
Psicologia Fenomenológica, Uma Ciência Intuitiva e Apriorística
Quanto
ao
objeto
de
estudo
da
psicologia
fenomenológica,
como
consequência também da aceitação da evidência da intencionalidade da consciência, surge
uma nova tipologia, por assim dizer, de objeto. Não se trata aqui mais de um objeto
mensurável e de existência no real; é antes um objeto que se evidencia na intuição
originária da experiência. Essa intuição, segundo Husserl, não é coisa estranha à nossa
experiência e ao nosso conhecimento de mundo; ela é, na verdade, condição sine qua non
de possibilidade de qualquer conhecimento do mundo, seja ela referente ao mundo
intrapsíquico, seja ele referente ao conhecimento das coisas em si. A intuição é, antes de
tudo, quem possibilita a própria capacidade do conhecimento (cf. Husserl, 1962/1977, p. 21).
Será por isso que Husserl defenderá que a “nova psicologia”, a psicologia fenomenológica,
irá, ao mesmo tempo, fundamentar uma ciência psicológica e a própria teoria do
conhecimento.
A redescoberta da intuição como uma habilidade da consciência e, portanto,
como ferramenta essencial no desvelamento da constituição da própria psique faz com que
ela passe de mera conjectura abstrata para se tornar uma verdadeira “pedra angular” no
entendimento da vida psíquica, um a priori, nas palavras de Husserl (cf. Husserl, 1962/1977,
p. 27). A maneira como poderemos alcançar essa intuição pura e, por consequência a
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própria experiência pura é objetivo de todo o trabalho fenomenológico de Husserl que
precedeu a própria ideia da psicologia fenomenológica.
A intuição segundo Husserl, não é mera subjetividade. É antes possibilidade de
constatação de verdade. Para Husserl não existe lógica, ou mesmo proposição verdadeira,
sem que haja uma relação intrínseca com a intuição originalmente doada de maneira
apodítica, sem nenhuma pressuposição que a anteceda ou que lhe ofereça condições de
existência. Dessa maneira, atingir uma intuição pura é condição de verdade de qualquer
proposição, seja ela lógica, matemática, ou, em nosso caso particular, psicológica. Dessa
maneira ele acredita conseguir entrelaçar, sobre a mesma égide epistemológica as ciências
apriorísticas da matemática e da psicologia. Funda assim uma psicologia a priori, uma
“psicologia pura”, ou, simplesmente, uma “psicologia fenomenológica” que possuí as
mesmas referências à mesma lógica que fundamenta a ciência matemática.
A intuição, condição primária para a lógica, é quem confere o caráter de sentido
da própria experiência. Não, porém, aquele sentido dado a posteriori; não um sentido obtido
por meio da reflexão; antes, este sentido, que é obtido através da redução fenomenológica,
e que corresponde, portanto, à própria essência da coisa em si, se identifica com a própria
experiência em si. É também o que possibilita sua própria conscientização, sua retenção,
não enquanto coisa material, mas enquanto marca indelével da própria experiência do ser. É
a intuição quem confere o caráter da experiência original, pois ela também está localizada
neste mesmo âmbito das experiências originais. Portanto, nossa experiência original, a
experiência pura, está intimamente ligada à própria noção de intuição, e esta por sua vez é
manifesta nessas experiências, na nossa “visão interna” da experiência, como dirá Husserl
(1962/1977):
Além disso, por um tal procedimento, a caracterização essencial mais universal
do ser psíquico e do ser vivido está exposta: intencionalidade. Vida psíquica é a
vida de consciência; a consciência é consciência de alguma coisa. Este título
genérico, consciência, com os títulos que pertencem inseparavelmente a ele eu, a personalidade como tal, e objetividade como objetividade da consciência esses títulos sobre os quais tudo o que é psíquico permanece, a consciência
tomada apenas como ela se apresenta de acordo com a sua própria essência,
na base da visão interior, esta dupla centralização da vida da consciência
fornece para toda a psicologia do interior um caráter teleológico de centralização
em
seu
progresso:
a
tarefa
necessariamente
surge
de
perseguir
sistematicamente a descrição das multiplicidades coerentes da consciência, que
dizem respeito, essencialmente, ao tornar-se consciente o cognitivo, ou ser
capaz de tornar-se consciente, de objetividades de cada categoria. Cada
categoria de possíveis objetividades designa um índice para uma metódica
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regularidade de uma possível vida psíquica; todos os possíveis mundos reais,
uma regularidade da possibilidade da vida psíquica intersubjetiva (p. 34,
tradução nossa).
O Objeto da Psicologia Fenomenológica: a Experiência Pura
A experiência pura é a evidenciação dos fenômenos psíquicos, é ela que
possibilita uma psicologia a priori e será ela o objeto primário de investigação da própria
psicologia enquanto tal. O que Husserl busca demonstrar é a necessidade de se “purificar”
essa noção de experiência, uma vez que na visão naturalista de mundo a experiência
possuí certo “ruído” que impede que ela se dê a conhecer de maneira direta. Porém,
mediante uma mudança do nosso olhar, mediante uma suspensão da visão naturalista de
mundo, através da epoché(εποχη), a experiência se apresenta na sua essencialidade, na
sua forma “pura” e, portanto, isenta dos ruídos que impedem o contato direto a sua
essência. A originalidade de Husserl, repetimos, foi evidenciar o caráter intencional da
consciência e, portanto, da própria experiência em si enquanto caráter inegável do ser
psíquico vivenciado pelo sujeito. Husserl foi além de seu antecessor e mestre Brentano ao
apontar a transcendentalidade da experiência, compreendendo-a não apenas como um
reflexo mental da coisa em si – o que acabaria por repetir o dualismo – mas evidenciando a
maneira própria da ocorrência dos fenômenos na consciência, sua dação fenomênica, a
própria apresentação das essências na relação direta com a experiência do mundo.
Perseguir e defender esse posicionamento, essa “atitude fenomenológica” perante o “mundo
da vida” é a condição para a psicologia, a única possibilidade viável de uma ciência
psicológica, segundo o próprio Husserl. Será a análise dessa intuitividade das essências
que proporcionará a primeira possibilidade de uma psicologia intuitiva, uma psicologia que
evidencie toda e qualquer experiência como experiência pura, como correlato da própria
intencionalidade (cf. Husserl, 1962/1977, p. 28).
Husserl acredita ser possível encontrar nexos internos à psique que
fundamentarão sua ciência apriorística. Esses nexos, o filósofo defenderá, podem ser
encontrados em quaisquer tipos de vivência intencionais da consciência.
Os sentimentos, uma tonalidade afetiva, um pensamento que surge, um
despertar esperançoso, etc. - nada deste tipo é uma experiência vivida de
maneira isolada; isto é o que está no meio psíquico, nos seus entrelaçamentos,
suas motivações, suas indicações, etc. Que são eles mesmo momentos
indissocialmente co-vividos em nexos, da função psíquica. (Husserl, 2001, pp.
16-17, tradução nossa).
O primeiro nexo, e talvez o mais importante a ser estabelecido, será o próprio
caráter intencional da consciência, e, por consequência, o caráter que irá fundamentar todos
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os tipos possíveis de vivências. Como dito anteriormente é a “perseguição” constante desse
caráter fundamental da vivência psíquica que possibilitará uma compreensão propositiva da
experiência. Não será suficiente, porém, apenas este primeiro nexo. Outras proposições,
advindas desse primeiro nexo, deverão ser estabelecidas, a fim de que se possa erigir uma
base sólida que possa fundamentar as demais ciências do espírito, e a própria psicologia
científica.
Outra importante característica dos nexos psíquicos a serem buscados é a
sua unicidade. Para Husserl a própria tentativa de divisão do psíquico de seu todo para as
suas partes, faz com que o caráter teleológico da vivência psíquica se perca. Dentro da ótica
husserliana não há como analisar o psíquico, suas diversas facetas, sem levar em
consideração
que,
ao
dividi-lo,
há
perdas
irreparáveis
e
que
descaracterizam
ontologicamente as vivências e experiências enquanto tais. Dividir a experiência psíquica é
retirar o caráter essencial da própria experiência. Assim como há nexos psíquicos entre as
diversas experiências psíquicas, separá-las, sem levar em conta a unidade que os formam,
seria descaracterizá-las daquilo que confere sua própria essência.
Husserl não explicitou, factualmente, como seria possível a experimentação e a
evidenciação desses nexos psíquicos. Porém, em vários trechos, ele evidencia a
necessidade de transpor as experiências e constatações individuais para o âmbito das
experiências comunitárias e universais. É neste ponto que emerge outro tema, muito
importante para o entendimento da obra e da proposta husserliana, a intersubjetividade.
Husserl cita em vários trechos da husserliana IX que sua nova psicologia, a psicologia
fenomenológica, é quem evidenciaria os traços intersubjetivos da psique. Num trecho onde
ele compara mais uma vez a matemática e a psicologia (como ciências apriorísticas) ele
dirá: “Se nós tomamos à objetividade lógico-matemática como sendo capaz de tornar-se
evidente intersubjetivamente, então nós devemos adicionar a subjetividade singular à
subjetividade comunicativa e à vida comunalizada.” (Husserl, 1962/1977, p. 27, tradução
nossa).
Se, por um lado, Husserl não define como essa psicologia fenomenológica
deverá ser estabelecida, por outro ele estabelece critérios bem definidos sobre quais
elementos deverão constituir tal campo. São elementos que não podem deixar de ser
levados em consideração como, 1) o caráter eidético da psicologia fenomenológica; 2) o
caráter intencional da consciência como constituinte do fenômeno psíquico; 3) a
caracterização apriorística dessa nova psicologia, que dará condições para uma psicologia
científica e 4) a busca pelos nexos psíquicos universais que formam a psique humana. A
psicologia fenomenológica, porém, ainda parece estar distante de uma concretização, mas
sua originalidade e sua crítica ainda são relevantes. Husserl defendia um modelo de ciência
psicológica que não aceitasse o julgo naturalista, pois era consciente das perdas advindas
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dessa aceitação. Compreendia que caso a psicologia buscasse se adequar aos modelos
das ciências naturais perderia, não apenas em força de evidenciação de seus pressupostos,
mas também acabaria por renegar uma atribuição que lhe é própria, a saber, o estudo das
próprias vicissitudes e vivências do ser humano que caracterizam aquilo que de mais próprio
possuí a essência humana, sua psique.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluímos desta análise que o conceito de psicologia fenomenológica
pressupõe uma compreensão de que não é possível 1) uma relação entre o modelo das
ciências naturais e o modelo das ciências do espírito, uma vez que a fundamentação das
ciências do espírito passa necessariamente pela compreensão da caracterização da
experiência como conteúdo da consciência intencional, e não de um mundo exterior real
matematizável previamente assumido; 2) que a psicologia fenomenológica só pode ser
exercitada através de uma compreensão profunda da relação entre a intuição eidética e a
significação dada pela experiência pura, a saber, a característica imanente e a característica
transcendental da experiência pura; e 3) que para que a psicologia possa almejar uma
evidenciação apodítica aos moldes das ciências naturais é necessário que ela jamais
abandone sua “vocação” teleológica, ou seja, que jamais deixe de conferir às experiências
humanas, nos seus mais diversos âmbitos, individuais, coletivos e culturais, uma
significação que a ligue com uma natureza psíquica humana universal.
Ainda restam alguns trabalhos complementares que busquem evidenciar a
possibilidade de uma psicologia fenomenológica com base não apenas na própria
experiência, mas também na possibilidade da compreensão da experiência do outro como
fundadora das vivências.
Husserl,
apesar
de
não
se
dedicar
demoradamente
ao
aspecto
da
intersubjetividade nos escritos da Husserliana IX – sobre o quais nos embasamos para a
escrita desse artigo – , o fez de maneira bastante intensa em outras obras – ainda não
publicadas para o português – que compõem, consecutivamente, os volumes 13, 14 e 15 da
Husserliana (Husserl, 1973a, 1973b e 1973c.). Foge, porém, do escopo de nossa pesquisa
a análise dessas obras, mas desde já é possível destacar que este tema tem sido bastante
estudado por outros pesquisadores da área da atualidade (Cadeña, 2015; Hutcheson,1981;
Overgaard, 2006; Zahavi, 2001; Zahavi, 2006), o que indica sua relevância teórica.
A proposta de nossa análise consiste em explicitar o posicionamento de Husserl
em relação à psicologia é uma possibilidade de fundação da psicologia sobre bases
filosóficas e metodológicas que garantam a ela uma independência enquanto ciência,
enquanto campo de estudo e, mais importante, com uma teoria sólida que garantam a ela
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uma estrutura capaz de levá-la a seu pleno desenvolvimento enquanto ciência do psíquico.
Portanto, parece-nos que o mais sensato a se buscar é a criação de um campo
intermediário e interdisciplinar que almeje sanar questões de ordem metodológicas e
epistemológicas para a psicologia, garantindo assim sua autonomia e autenticidade
científica, enquanto é igualmente desenvolvida uma sólida fundamentação filosófica e
teórica para este campo. Acreditamos que assim estaríamos mais próximos das intenções
de Husserl para sua Fenomenologia e para sua pretensa fundamentação filosófica da
psicologia.
Destacando principalmente o aspecto intersubjetivo da realidade psíquica, talvez
fosse possível uma ciência psicológica que pudesse garantir a validade de seus
pressupostos pela repetibilidade de tantas e tantas vivências, não apenas seus tipos, mas
na multiplicidade da comunidade de seres que compartilham tais vivências. Talvez seja
possível enunciar, das vivências psíquicas, suas características fundamentais, suas diversas
conformações culturais e históricas, e até mesmo destacar as necessidades fundamentais
das vivências psíquicas humanas, tais como a liberdade, autonomia, realização e
transcendência. Estes aspectos são defendidos por diversos filósofos, mas agora talvez
possam encontrar validação na própria ciência psicológica. Assim poderiam deixar de ser
apenas parte de uma crença ou análise filosófica, e passar a participar de um conjunto de
conhecimentos científicos. Espera-se que o retorno às bases filosóficas da psicologia, como
foi defendido por Husserl, possa ser alcançado. Acreditamos que com isso a psicologia
possa voltar a ser uma “psicologia com alma” (Jung, 1986), e, portanto, retomar sua
vocação primeira. Dessa forma a “psicologia poderá ultrapassar sua crise interna promovida
pela ciência e retomar o autêntico sentido de sua motivação originária de ser ciência
universal do psíquico” (Goto, 2008, p. 183).
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Notas sobre os autores:
Eduardo Luis Cormanich: Docente substituto da Universidade Federal de Alfenas, no
Instituto de Ciências Humanas e Letras. Graduado em Psicologia pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG - 2013), Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação
em Psicologia, da Universidade Federal de Juiz de Fora, na linha de História e Filosofia
da Psicologia e atualmente doutorando também no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFJF. E-mail:
[email protected].
Gustavo Arja Castañon: Professor adjunto do departamento de Filosofia da
Universidade Federal de Juiz de Fora e professor do Programa de Pós-graduação em
Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da mesma instituição.
Graduado em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998) e em
Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006). Mestrado em Psicologia
Social pela UERJ (2001) e em Lógica e Metafísica pela UFRJ (2009). Doutorado em
Psicologia pela UFRJ (2006) e Pós-doutorado em Filosofia da Ciência pela Durham
University (2015). E-mail:
[email protected]
Recebido: 17/07/2018.
Aprovado: 20/08/2018.
Rev. Nufen: Phenom. Interd. | Belém, 10(3), 143 - 165, set. – dez., 2018.