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R e v i s tA d A AGU ANO XII nº 39 - Brasília-DF, jan./mar. 2014 clAssificAção — qUAlis b2 Revista da da AGU Brasília n. 39 p. 1- 412 jan./mar. 2014 Revista da AGU Escola da Advocacia-Geral da União Ministro Victor Nunes Leal SIG - Setor de Indústrias Gráficas, Quadra 6, lote 800 – Térreo CEP 70610-460 – Brasília/DF – Brasil. Telefones (61) 2026-7368 e 2026-7370 e-mail: [email protected] ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO Ministro Luís Inácio Lucena Adams DIREÇÃO GERAL DA AGU Fernando Luiz Albuquerque Faria Marcelo de Siqueira Freitas Paulo Henrique Kuhn Adriana Queiroz de Carvalho Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy Ademar Passos Veiga Grace Maria Fernandes Mendonça Substituto do Advogado-Geral da União Procurador-Geral Federal Procurador-Geral da União Procuradora-Geral da Fazenda Nacional Consultor-Geral da União Corregedor-Geral da AGU Secretária-Geral de Contencioso ESCOLA DA AGU Juliana Sahione Mayrink Neiva André Luiz de Almeida Mendonça Nélida Maria de Brito Araújo Diretora Vice-Diretor Coordenadora-Geral EDITOR RESPONSÁVEL Juliana Sahione Mayrink Neiva COORDENADOR DA REVISTA DA AGU André Luiz de Almeida Mendonça ABNT(adaptação)/Diagramação: Capa: Niuza Lima /Gláucia Pereira Fabiana Marangoni Costa do Amaral Os conceitos, as informações, as indicações de legislações e as opiniões expressas nos artigos publicados são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Revista da AGU – Advocacia-Geral da União Ano XIII – Número 39 - Brasília-DF, jan./mar. 2014 Periodicidade: Trimestral - ISSN 1981-2035 1 – Direito Público – Brasil – periódico. Advocacia-Geral da União CDD 341.05 CDU 342(05) coNselHo editoRiAl Juliana Sahione Mayrink Neiva André Luiz de Almeida Mendonça Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy Jefferson Carús Guedes Mariana Filchtiner Figueiredo Nicolás Rodríguez García Otávio Luiz Rodrigues Junior Pedro Tomás Nevado-Batalla Moreno Regina Linden Ruaro Revisores Adriana de Oliveira Rocha Adriana Pereira Franco Aluisio de Sousa Martins André Lopes de Sousa Andrea Dantas Echeverria Anésio Fernandes Lopes Antônio de Moura Borges Carlos José de Souza Guimarães Cássio Andrade Cavalcante Clóvis Juarez Kemmerich Cristina Campos Esteves Dalton Santos Morais Daniela Ferreira Marques Denise Lucena Cavalcante Dimitri Brandi de Abreu Eliana Gonçalves Silveira Eliana Pires Rocha Eugênio Battesini Ewerton Marcus de Oliveira Gois Fabiano André de Souza Mendonça Filipo Bruno Silva Amorim Flávio Roberto Batista Francisco Humberto Cunha Filho Gregore Moreira de Moura Gustavo Augusto Freitas Lima Ivana Roberta Couto Reis de Souza José Tadeu Neves Xavier Judivan Juvenal Vieira Karla Margarida Martins Santos Luís Carlos Martins Alves Jr. Luís Claudio Martins de Araujo Maria de Fátima Knaippe Dibe Natalia Camba Martins Nilma de Castro Abe Omar Bradley Oliveira de Sousa Robson Renaut Godinho Rui Magalhães Piscitelli Valdirene Ribeiro de Souza Falcão Valério Rodrigues Dias Vânia Maria Bastos Faller Revisores internacionais Nicolás Rodríguez García Pedro Tomás Nevado-Batalla Moreno sUMÁRio Editorial ................................................................................................................7 ARtiGos iNteRNAcioNAis Legitimidad democrática y diálogo inter-institucional: algunos desafíos para los sistemas débiles de control judicial Legitimidade democrática e diálogo inter-institucional: alguns desafios para os sistemas fracos de controle judicial Diego Moreno Rodríguez Alcalá ..................................................................................... 9 The International Agreements and reducing the demand for freshwater: A path toward a new regulation Brazilian Federal Attorney, Master of Laws at Georgetown University (USA), and Master of Law at Lusiada University (Portugal) Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira..................................................................47 ARtiGos O Veto Presidencial no Direito Constitucional Norte-Americano The Presidential Veto in the American Constitutional Law Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy ..............................................................................67 Princípios da Arbitragem Principles of arbitration Arthur Rabay ...................................................................................................................89 As Cooperativas de Trabalho nas Licitações Públicas – Uma Necessária Mudança de Paradigma Cooperatives Working in Public Biddings – A Necessary Paradigm Shift Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão .........................................................109 Análise das Pesquisas da FGV e UFRGS Sobre o Panorama Processual Brasileiro e a Necessária Intervenção da Advocacia Pública An Analysis of the Research and FGV UFRGS Process Overview on Brazilian and Necessary Role of Public Advocacy Fernando Menegueti Chaparro ....................................................................................183 O Sistema de Registro de Preços no Regime Diferenciado de Contratações (Lei Nº 12.462/11) The Registration System Prices in Differential Treatment of Contracts (Rule Nº 12.462/11) Juliano Heinen ...............................................................................................................173 Os Novos Movimentos Sociais e os Direitos Humanos: a utilização da Legal Opportunity como estratégia para mudanças político-culturais contramajoritárias New Social Movements and Human Rights: the Legal Opportunity as a strategy for countermajoritarian political-cultural changes Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio ....................................................................................................201 O Diálogo Institucional entre Cortes Constitucionais: uma nova racionalidade argumentativa da jurisdição constitucional justificada pelos diálogos institucionais transnacionais The institutional dialogue among Constitutional Courts: A new argumentative rationality of the judicial review, based on the transnational institutional dialogue Luis Cláudio Martins de Araújo .................................................................................225 A Tutela do Patrimônio Cultural no Brasil: uma reflexão inicial sobre um caso de judicialização The Protection of Cultural Immovable Heritage in Brazil: a initial reflection about judicial case Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira ....................................................................................253 Estado Constitucional e Processo Administrativo State Constitutional and Administrative Procedure Raimundo Márcio Ribeiro Lima .................................................................................273 Tratado de Estabilidade Fiscal Europeu, Soberania e o (Re)Desenho Constitucional do Orçamento European Stability Fiscal Treaty, Sovereignty and the Budget Constitutional (Re) Design Raphael Ramos Monteiro de Souza .............................................................................309 Cláusula de Não-Concorrência Non-Competition Clause in Employment Contracts Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves ............................................................................333 PAReceR Parecer nº 02/2014/Câmarapermanenteconvênios/DEPCONSU/PGF/AGU Humberto Fernandes de Moura ....................................................................................361 JURisPRUdÊNciA coMeNtAdA ADPF n. 101 - A atuação da AGU no Caso da Importação de Pneus Usados Filipo Bruno Silva Amorim .........................................................................................379 Normas Editoriais ........................................................................................ 409 editoRiAl A Escola da Advocacia-Geral da União, Ministro Victor Nunes Leal, abrindo o ano de 2014, lança a 39ª edição da Revista Jurídica da AGU, referente ao trimestre de janeiro a março de 2014. A 39ª Edição da Revista da AGU contém relevantes artigos jurídicos em diversas áreas do direito, sendo que uma das novidades desta edição é o primeiro artigo internacional publicado em língua inglesa. A comunidade jurídica poderá se deleitar com a leitura dos excelentes trabalhos aqui apresentados, começando com os dois artigos internacionais, sendo o primeiro abordando o tema: Legitimidade democrática e diálogo inter-institucional-alguns desafios para os sistemas fracos de controle judicial e o segundo abordando o tema: The Internacional Agreements and reducing the demand for freshwater-A path toward a new regulation. Dando continuidade a apresentação dos temas tratados nesta 39ª Edição da Revista da AGU, citamos o brilhante trabalho apresentado pelo Consultor-Geral da União, Dr. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, em seu artigo: O Veto Presidencial no Direito Constitucional NorteAmericano. Na sequência temos os seguintes, também maravilhosos artigos jurídicos: Princípios da Arbitragem - Principles of arbitration, de Arthur Rabay; As Cooperativas de Trabalho nas Licitações Públicas – Uma Necessária Mudança de Paradigma - Cooperatives Working in Public Biddings – A Necessary Paradigm Shift, de Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão; Análise das Pesquisas da FGV e UFRGS Sobre o Panorama Processual Brasileiro e a Necessária Intervenção da Advocacia Pública - An Analysis of the Research and FGV UFRGS Process Overview on Brazilian and Necessary Role of Public Advocacy, de Fernando Menegueti Chaparro; O Sistema de Registro de Preços no Regime Diferenciado de Contratações (Lei Nº 12.462/11) The Registration System Prices in Differential Treatment of Contracts (Rule Nº 12.462/11), de Juliano Heinen; Os Novos Movimentos Sociais e os Direitos Humanos: a utilização da Legal Opportunity como estratégia para mudanças político-culturais contramajoritárias - New Social Movements and Human Rights: the Legal Opportunity as a strategy for countermajoritarian political-cultural changes, de Luciano Pereira Vieira e José Antonio Remedio; O Diálogo Institucional entre Cortes Constitucionais: uma nova racionalidade argumentativa da jurisdição constitucional justificada pelos diálogos institucionais transnacionais -The institutional dialogue among Constitutional Courts: A new argumentative rationality of the judicial review, based on the transnational institutional dialogue, de Luis Cláudio Martins de Araújo; A Tutela do Patrimônio Cultural no Brasil: uma reflexão inicial sobre um caso de judicialização - The Protection of Cultural Immovable Heritage in Brazil: a initial reflection about judicial case, de Monica Teresa Costa Sousa e Paulo Fernando Soares Pereira; Estado Constitucional e Processo Administrativo - State Constitutional and Administrative Procedure, de Raimundo Márcio Ribeiro Lima; Tratado de Estabilidade Fiscal Europeu, Soberania e o (Re)Desenho Constitucional do Orçamento - European Stability Fiscal Treaty, Sovereignty and the Budget Constitutional (Re) Design, de Raphael Ramos Monteiro de Souza; Cláusula de Não-Concorrência - NonCompetition Clause in Employment Contracts, de Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves. Esta edição ainda publica o bem lançado PARECER Nº 02 /2014/ CÂMARAPERMANENTECONVÊNIOS/DEPCONSU/PGF/AGU, da Procuradoria-Geral Federal Temas relacionados a convênios e demais ajustes congêneres tratados no âmbito da Câmara Permanente de Convênios designada por meio da Portaria/PGF n.º 98, de 26 de fevereiro de 2013, bem como a JURISPRUDÊNCIA COMENTADA da ADPF n. 101 - A atuação da AGU no Caso da Importação de Pneus Usados, por Filipo Bruno Silva Amorim. E por último, fechando esta edição temos as NORMAS EDITORIAS da Revista da AGU, tudo que você precisa saber para que seu artigo seja publicado na Revista da AGU. A Escola da Advocacia-Geral da União, Ministro Victor Nunes Leal ao tempo que agradece, parabeniza os autores dos artigos desta 39ª edição pelos brilhantes trabalhos científicos aqui disponibilizados, e convida os apreciadores da boa leitura jurídica a se deleitarem com os ensinamentos que ora apresentamos. Juliana Sahione Mayrink Neiva Diretora da Escola da AGU Ministro Victor Nunes Leal leGitiMidAd deMocRÁticA y diÁloGo iNteR-iNstitUcioNAl: AlGUNos desAfíos PARA los sisteMAs débiles de coNtRol JUdiciAl leGitiMidAde deMocRÁticA e diÁloGo iNteRiNstitUcioNAl: AlGUNs desAfios PARA os sisteMAs fRAcos de coNtRole JUdiciAl Diego Moreno Rodríguez Alcalá Profesor de Direito na Escola Judicial da República do Paraguai e na Universidade Privada Columbia de Assunçao/Paraguai SUMÁRIO: Introdução; I La objeción democrática en una cáscara de nuez: introducción al problema; II Una caracterización de los sistemas “débiles” de control judicial; III Legitimidad democrática y diálogo interinstitucional: dos (aparentes) virtudes de los sistemas débiles de control judicial; IV Algunas dudas sobre los sistemas débiles y su capacidad para acomodar ideales de diálogo público y legitimidad democrática; V Dos puntos abiertos a discusión (para una reflexión ulterior); VI Observaciones finales: ¿resiliencia de la objeción democrática?; Referências. 10 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 10-46, jan./mar. 2014 RESUMO: Os sistemas fracos de controle judicial da lei, que não outorgan a palavra final sobre a interpretação dos direitos fundamentais aos órgãos juridiccionais, têm despertado interesse por sua capacidade de sortear as dificuldades que apresenta a “objeção democrática” ao controle judicial. Estes sistemas também têm sido valorados por sua suposta capacidade de fomentar um “diálogo inter-institucional” entre o legislativo e o judicial. Este artigo, porém, pretende oferecer algumas dúvidas importantes, primeiro, sobre a capacidade real de estes sistemas de neutralizar completamente a objeção democrática ao controle judicial, e em segundo lugar, sobre sua suposta capacidade para fomentar um “diálogo inter-institucional” significativo. Em consecuencia, se tenta argumentar que a objeção democrática ao controle judicial é mais persistente do que a primeira vista podera aparecer. PALAVRAS-CHAVE: Controle Judicial da Lei. Sistemas Fracos de Controle Judicial. Diálogo Inter-institucional. Direitos Fundamentais. Fificuldade contramaioritaria. Objeição Democrática ao Controle Judicial. ABSTRACT: So called “weak systems of judicial review”, which do not grant the final word to the judiciary on the interpretation of fundamental rights, have attracted considerable interest due to their capacity to successfully overcome the problems posed by the “democratic objection” to the institution of judicial review of legislation. At the same time, weak systems are praised for their alleged capacity to foster an “institutional dialogue”. Nevertheless, this article intends to cast some important doubts, in the first place, on the real capacitiy of weak systems of judicial review to completely neutralize the democratic objection to judicial review, and secondly, on its supposed capacity to foster a significant “institutional dialogue” among legislatures and courts. It is therefore argued that the democratic objection to judicial review is more persistent than it may appear at a first glance. KEYWORDS: Judicial Review of Legislation. Weak Sistems of Judicial Review. Institutional Dialogue. Fundamental Rights. Countermajoritarian Difficulty. Democratic Objection to Judicial Review Diego Moreno Rodríguez Alcalá 11 iNtRodUccióN Imaginemos por un instante que uno de los problemas más insondables y a la vez persistentes de la teoría constitucional de las últimas décadas –la cuestión de la objeción democrática al control judicial de la ley– pueda ser disuelto y relegado al museo de las ideas políticas con sólo modificar ligeramente el diseño institucional de manera a invertir el orden en el que se adoptan las decisiones finales sobre la interpretación de los derechos fundamentales. Acaso no sería una exageración afirmar que esto podría llegar a constituir una auténtica revolución en el ámbito del pensamiento constitucional, por cuanto que supondría una mutación de grandes proporciones en relación a nuestro entendimiento usual y a las categorías que actualmente empleamos para concebir al derecho constitucional. Y es nada menos que este cambio de paradigma lo que parecen prometer, al menos a primera vista, los denominados sistemas débiles de control judicial de la ley. Ello explica, por lo demás, la entusiasta adhesión que los mismos han recibido, incluso por parte de algunos de los críticos más severos del control judicial de la ley. ¿Pero pueden en verdad los sistemas débiles hacer realidad la aspiración de tutelar adecuadamente los derechos por medio del control judicial al tiempo de dejar intacta la dignidad democrática de las legislaturas? En efecto, la pregunta más interesante que plantean estos sistemas es la de si acaso sean realmente capaces de trascender la “objeción democrática” al control judicial de la ley sin merma alguna para las inquietudes que, en el marco de este problema, parecen apuntar hacia dos aspiraciones normativas que se hallan en una relación de potencial tensión, a saber, la protección de los derechos, por un lado, y el autogobierno comunal, por el otro. Teniendo presente la alternativa representada por los sistemas débiles de justicia constitucional, y sin pretensiones de agotar el tratamiento de la rica problemática de estos sistemas, en este estudio me propongo sugerir cuanto sigue. En primer lugar, que no es seguro que los sistemas débiles de justicia constitucional desactiven completamente algunos de los principales argumentos en contra de los sistemas tradicionales hacia los cuales la objeción democrática se ha dirigido, y en segundo término, que la teoría del diálogo inter-institucional, vinculada de forma muy directa a los sistemas débiles de justicia constitucional y asociada también a ideales democráticos, puede llegar a resultar problemática por diversas razones. En otras palabras, no resulta tan fácil dispensar de la crítica al control judicial de la ley con sólo señalar que es posible ensamblar las piezas constitucionales de manera tal a permitir 12 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 12-46, jan./mar. 2014 alguna forma matizada de control judicial en la que la última palabra no sea otorgada al órgano jurisdiccional, como han sugerido algunos autores. Por esta razón, y siempre y cuando se tome en serio la objeción democrática, existen al menos algunos motivos para ser cautos incluso con las formas más moderadas de control judicial. i lA obJecióN deMocRÁticA eN UNA cÁscARA de NUez: iNtRodUccióN Al PRobleMA Como es sabido, el problema de la objeción democrática al control judicial de la ley tiene su origen en la teoría constitucional norteamericana, y ha tenido una importancia capital hasta el punto de que podría ser calificado como el problema “central” de la teoría constitucional de las últimas décadas, a menos para quienes se toman en serio dicha objeción1. Existen desde luego distintas variantes de la objeción democrática y se ha ensayado una gran variedad de respuestas teóricas a la misma. Además de ser ajeno a mis propósitos, resultaría imposible pasar aquí revista a este rico y prácticamente inabarcable debate2. De todas formas, me propongo en esta sección aludir muy brevemente al problema, en razón de que el mismo subyace al análisis que tendrá lugar en este estudio sobre los sistemas débiles de control judicial, por lo cual es necesario referirnos a él antes de abordar más directamente algunos aspectos que se desprenden de dichos sistemas. En lo que sigue me centraré entonces en ofrecer una breve descripción de una versión específica de la objeción democrática que considero ha sido la que con mayor fuerza ha cuestionado los fundamentos de la institución del control judicial de la ley en los últimos años. Esta concepción se basa sobre todo en la obra del profesor Jeremy Waldron, aunque varios otros autores críticos hacia la institución del control judicial de la ley han hecho suyos muchos de sus planteamientos centrales3. La 1 En efecto, como señala el iusfilósofo español Juan Carlos Bayón, a veces se ha tendido “a subestimar la envergadura del problema y a dar por sentado con demasiada facilidad” que el problema no resulta especialmente severo, “[y] digo que con demasiada facilidad porque se ha entendido muchas veces que para demostrarlo basta con acudir a unos pocos argumentos aparentemente muy sencillos, de cuya solidez no parece dudarse lo más mínimo”. (J. C. Bayón, “Democracia y derechos: problemas de fundamentación del constitucionalismo”, en J. Betegón et al., Constitución y derechos fundamentales, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2004, p. 74.) 2 Desde la aparición de la obra de A. Bickel, The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics, Bobbs-Merrill, Indianapolis, 1962, la literatura ha sido profusa. En el ámbito estadounidense, al problema se lo ha denominado, con cierta imprecisión, como la “dificultad contramayoritaria”. Aquí preferimos la expresión “objeción democrática”. 3 Waldron ha planteado su crítica a través de varios trabajos. La última versión es “The Core of the Case Against Judicial Review”, 115 Yale Law Journal 1346 (2006), aunque me baso también aquí en la Diego Moreno Rodríguez Alcalá 13 crítica “waldroniana” consta de los siguientes elementos: a) un contexto que le da surgimiento; b) el argumento en sí mismo en contra de la institución y a favor de asignar la decisión final sobre la interpretación de los derechos a las asambleas legislativas; y c) una definición de los alcances precisos de la objeción. A continuación se ofrece un resumen de esta influyente crítica. Una vez hecha esta exposición, retomaré la discusión sobre los sistemas débiles en la siguiente sección. a) El contexto. Comencemos por lo primero. La crítica surge en el contexto de una sociedad signada por el “pluralismo razonable”. En su Liberalismo Político, John Rawls había llamado la atención sobre el hecho del pluralismo razonable y la importancia de acomodar este hecho al diseñar nuestras instituciones políticas. La idea básica de Rawls consistía en que, habida cuenta el hecho del pluralismo razonable que caracteriza a las sociedades bien ordenadas que gozan de instituciones libres, resultaría arbitrario para una concepción liberal el pretender imponer ciertas concepciones de la buena vida a otros conciudadanos por medio del aparato estatal. Según esta concepción, el Estado no debería tomar partido por ninguna de estas concepciones específicas, sino que debía limitarse a garantizar determinados derechos y otras condiciones que posibiliten a cada ciudadano perseguir sus propios planes de vida en tanto que seres autónomos4. Tomando como punto de partida estas premisas rawlsianas, Waldron fue más allá y afirmó que el pluralismo se extendía también al ámbito de los derechos, y en especial, al ámbito de los derechos consagrados en los catálogos de las constituciones modernas. Para Waldron, los ciudadanos mantienen desacuerdos no sólo sobre sus concepciones acerca de cómo vivir una buena vida, sino sobre cómo interpretar y dotar de significado concreto a los derechos fundamentales. Si con relación a dichos catálogos existían desacuerdos, Waldron sugería repensar la forma como adoptamos colectivamente nuestras decisiones finales sobre la interpretación de los derechos en ellos recogidos. Las condiciones de pluralismo razonable que permean a las sociedades democráticas contemporáneas y los desacuerdos a que éste da lugar –que se extienden incluso al ámbito de los derechos– constituyen entonces el contexto de la objeción democrática al control judicial de la ley. b) El núcleo del argumento. El segundo elemento, es decir, la forma como Waldron edifica su argumento en contra del control judicial, monografía previa del mismo autor, Law and Disagreement, Clarendon, Oxford, 1999. 4 RAWLS, John. Political Liberalism. Columbia: New York, 1996. 14 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 14-46, jan./mar. 2014 puede sintetizarse del siguiente modo. Una vez que constatamos que en función al hecho del pluralismo razonable existen desacuerdos sobre cómo interpretar los derechos, debemos asegurar que el procedimiento que empleemos para adoptar decisiones sobre el contenido y el alcance que habrá de dotarse a los derechos sea legítimo. En efecto, resultaría arbitrario imponer determinadas concepciones específicas de los derechos a otros ciudadanos que no están de acuerdo con ellas, salvo que al hacerlo empleemos un procedimiento que goce de legitimidad y que pueda ser aceptado por los afectados por la decisión. Para el autor, un procedimiento legítimo para la adopción de decisiones sobre los derechos debe revestir dos condiciones. En primer lugar, debe en cierta forma acomodar el ideal de la participación en igualdad de condiciones. En otras palabras, el procedimiento debe ser lo más participativo posible. De otra parte, el procedimiento debe ser capaz de generar respuestas adecuadas en materia de derechos. En cuanto a lo primero, el control judicial de la ley es un procedimiento escasamente participativo, en el cual la decisión se reserva a un puñado de jueces no electos democráticamente ni responsables ante la ciudadanía por sus actos y que deciden –en no pocas ocasiones por mayoría simple– sobre las complejas cuestiones de moralidad política que se esconden detrás de los derechos y sobre las cuales existen profundos desacuerdos en la sociedad. Aunque disten de ser ideales, las asambleas legislativas, con todas sus imperfecciones, son a todas luces superiores, en términos comparativos, al intentar acomodar el ideal participativo bajo un sistema de democracia representativa contemporáneo, en el cual los legisladores son electos a través del sufragio universal y deben responder por sus decisiones ante el electorado. En relación a la capacidad del control judicial de dar respuestas adecuadas en materia de derechos, tradicionalmente se ha tendido a sostener que el control judicial cuenta con algunas ventajas importantes en este sentido. Se menciona, por ejemplo, el relativo aislamiento de los jueces respecto de influencias políticas, lo cual tiende a la imparcialidad. Se alega además que la decisión en sede judicial es adoptada en el marco de un proceso destinado a brindar todas las garantías posibles, y además, que la decisión es adoptada por medio de métodos jurídicos que tienden a dar prevalencia a la razón y a la argumentación jurídica, etc. Sin embargo, el registro histórico nos muestra que muchas veces los tribunales de hecho adoptan decisiones sobre los derechos que muchos consideran erróneas. En contrapartida, se suele señalar que las asambleas legislativas muchas veces promueven los derechos, en ocasiones incluso a Diego Moreno Rodríguez Alcalá 15 pesar de las decisiones judiciales que tienden a restringirlos. El derecho constitucional norteamericano abunda en ejemplos de este tipo. Waldron considera que así como se ha tendido a resaltar ciertos aspectos institucionales que apuntalarían la capacidad de los órganos jurisdiccionales para dar respuestas correctas en materia de derechos, al mismo tiempo debería considerarse que las asambleas legislativas también tienen ciertas ventajas. Por ejemplo, su mayor tamaño para acomodar una mayor cantidad de voces y perspectivas, algo que resulta especialmente importante en condiciones de pluralismo; su potencial capacidad deliberativa, desembarazada de los tecnicismos legales que tienden a empobrecer el debate de cara a los componentes políticos y morales de los derechos; su mayor proximidad con los procesos deliberativos que se dan en la sociedad, y varios otros factores institucionales afines. Lo que el autor pretende demostrar –a mi criterio con acierto– es que a pesar de ciertos prejuicios muy arraigados, no puede demostrarse de forma inequívoca que un procedimiento sea superior al otro para dar con respuestas adecuadas en materia de derechos. Ambos tienen ventajas y desventajas. En consecuencia, sólo nos queda el criterio participativo, en el cual el órgano legislativo lleva las de ganar. La última palabra en materia de interpretación de los derechos constitucionales debería recaer entonces en las asambleas legislativas. Éste es, en resumidas cuentas, el “núcleo” del argumento en contra del control judicial de la ley. c) El ámbito de la crítica. Finalmente, es importante hacer notar que la objeción democrática resulta delimitada en varios sentidos. Es decir, tiene un alcance y un ámbito de aplicación bien definidos. Aquí sólo me referiré a dos elementos que tienden a definir dicho ámbito. En primer lugar, la crítica se refiere, sobre todo, al control judicial de la ley y no a otros actos normativos de inferior jerarquía. A su vez, el control que se objeta tiene sobre todo por finalidad verificar la adecuación constitucional de la ley con los derechos fundamentales reconocidos en la constitución. La razón de esto último guarda relación con el hecho de que es precisamente en el ámbito de los derechos –que en el fondo revisten una fuerte carga política y moral– en el que el pluralismo razonable resulta más agudo, sobre todo en contraste con las disposiciones orgánicas o estructurales de las constituciones modernas. No es mi propósito someter a examen la versión de la objeción democrática tal cual la misma ha sido recién delineada5. Aquí la he 5 Para un estudio exhaustivo, véase, D. Moreno Rodríguez Alcalá, Control judicial de la ley y derechos fundamentales. Una perspectiva crítica, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2011. 16 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 16-46, jan./mar. 2014 presentado en razón de que, como queda dicho, el problema de la objeción democrática al control judicial subyace a la discusión que tendrá lugar en las páginas que siguen al abordar los sistemas débiles de control judicial de la ley. En efecto, estos sistemas plantean un desafío enorme para quienes se toman en serio la objeción democrática. La razón de ello es que parecen estar diseñados precisamente para evadir el tipo de reticencias que se han señalado en contra de la institución del control judicial, pues no confieren la decisión final en materia de interpretación de los derechos fundamentales a los órganos jurisdiccionales. A su análisis de cara a la objeción democrática nos abocaremos en lo que resta de este trabajo. ii UNA cARActeRizAcióN de los sisteMAs “débiles” de coNtRol JUdiciAl Un sistema de control judicial puede catalogarse de “fuerte” o “débil” con arreglo a distintos criterios. Por “sistema fuerte” de control judicial entenderé aquí básicamente cualquier sistema de control de adecuación constitucional de la ley en el cual los órganos jurisdiccionales tienen la última palabra para decidir sobre el significado constitucional. Ello es así en razón de que los órganos jurisdiccionales poseen la atribución de no aplicar o incluso expulsar del sistema una ley en razón de considerarla contraria a la constitución. El efecto de estos sistemas fuertes es que, a la larga, los contornos precisos y la configuración de los derechos fundamentales van siendo delineados por medio de la institución del control judicial, sin que los órganos legislativos se hallen formalmente autorizados a realizar ningún tipo de respuesta legislativa destinada de forma específica a reaccionar ante una determinada orientación jurisprudencial contra la cual quepa razonablemente discrepar. De allí que estos sistemas consagran en la práctica el principio de supremacía judicial. A su vez, con la expresión “sistema débil” de control judicial, se alude a aquellas formas institucionales en las cuales los órganos jurisdiccionales poseen una facultad restringida para entender en impugnaciones de leyes sobre la base de su adecuación al catálogo de derechos fundamentales. Como se verá más abajo con mayor detalle, existen distintos sistemas débiles de control judicial. En algunos de estos sistemas, los tribunales se hallan facultados a declarar la invalidez de las leyes sometidas a su conocimiento, pero la asamblea legislativa retiene la palabra final al asignársele la posibilidad de acudir a una respuesta legislativa institucionalizada con la cual atribuir un significado distinto a la interpretación realizada en sede judicial. En otros sistemas más Diego Moreno Rodríguez Alcalá 17 débiles aún, los tribunales ni siquiera pueden dejar de aplicar las leyes en caso de considerarlas contrarias a los derechos, sino que a lo sumo pueden llamar la atención sobre la eventual incompatibilidad con éstos, o bien, intentar realizar una interpretación conforme al catálogo de derechos. En cualquiera de estas modalidades, bajo los sistemas débiles, la decisión final sobre cómo habrán de interpretarse los derechos fundamentales no es asignada a un órgano jurisdiccional sino al legislativo. Esta caracterización requiere, sin embargo, algunas matizaciones y aclaraciones adicionales. En primer lugar, bajo un sistema de tipo “débil” las exigencias de la cosa juzgada deben ser respetadas en cada caso, y no se trata de que el órgano legislativo pueda revocar el resultado de un determinado caso litigioso sobre el cual existe una sentencia firme, algo que iría en contra de uno de los principios básicos de un Estado de derecho moderno. Como podremos ver, lo que está en juego en la opción entre uno u otro modelo es más bien la determinación del órgano al que habrá de otorgarse la última palabra a fin de determinar la configuración definitiva que habrán de adquirir o el modo en que habrán de interpretarse los derechos fundamentales para una generalidad de casos futuros. En segundo término, a efectos de realizar la distinción entre un sistema fuerte y uno débil, no tomo en cuenta la posibilidad existente en los sistemas fuertes de proceder a realizar una reforma constitucional como respuesta a la interpretación efectuada por el órgano jurisdiccional, cuando la reforma exige algo más que una mayoría simple. Con la exigencia de mayorías calificadas (asumiendo que estemos ante una constitución rígida), este tipo de respuestas no parecen adecuadas para acomodar satisfactoriamente las exigencias de la objeción democrática al control judicial de las leyes, que como veremos más abajo, es precisamente una de las virtudes principales que se predican de los sistemas débiles. Por el contrario, los procedimientos de reforma constitucional están diseñados precisamente para dificultar la respuesta que pueda darse a la interpretación efectuada por el órgano al que se asigna la última palabra, lo cual otorga un mayor peso a las decisiones del órgano jurisdiccional. Además, y aun reconociendo que los procedimientos de reforma constitucional pueden variar de sistema en sistema, previéndose dispositivos más o menos exigentes según los casos, lo cierto es que en determinados contextos la probabilidad real y efectiva de que un procedimiento de este tipo prospere puede llegar a ser nula o, en el mejor de los casos, escasa. En el derecho constitucional norteamericano se suele citar el Child’s Labor case como un ejemplo paradigmático de las dificultades de acudir a este tipo de mecanismo 18 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 18-46, jan./mar. 2014 como respuesta ante una interpretación judicial de la constitución con la cual se esté en desacuerdo6. Cabe señalar además que en los sistemas fuertes que otorgan la decisión final a un órgano jurisdiccional también existen otras vías, aparte de la reforma constitucional, para revisar o modificar la configuración de los derechos según la interpretación efectuada en sede judicial. Por ejemplo, tal sería el caso de un sistema fuerte en el que el legislativo cuente con ciertas facultades e intente algo semejante al “court-packing plan” del Presidente Franklin D. Roosevelt, nombrando jueces de orientación ideológica distinta a los que actualmente integran el órgano judicial con la finalidad de provocar, por medio de una nueva conformación de los cuadros judiciales, un cambio en la jurisprudencia. Sin necesidad de llegar a este extremo, también cabe contemplar la posibilidad de que el propio tribunal, con el transcurso del tiempo, pueda llegar a modificar su propia interpretación, revisándose de esta manera la orientación jurisprudencial seguida en el pasado. Puesto que esto puede de hecho darse en la práctica, la teoría del diálogo inter-institucional a la cual se aludirá más abajo también ha sido predicada de sistemas como el norteamericano. Ahora bien, estos procedimientos de revisión de las interpretaciones efectuadas en sede judicial tienen sus desventajas, y por eso considero impropio considerar que los mismos se asemejen a las formas institucionales existentes bajo los sistemas débiles. En el primer caso, está claro que el adoptar una estrategia de tipo “court-packing” para responder a cada decisión judicial con la cual se mantiene un desacuerdo razonable puede generar más caos que otra cosa, y la legitimidad de la que pueda llegar a gozar una medida de este tipo en el derecho constitucional contemporáneo es más que dudosa7. En el segundo caso, el que se produzca o no una modificación en la interpretación judicial 6 Para una exposición del caso, véase S. M. Griffin, American Constitutionalism. From Theory to Politics, Princeton, Princeton, 1996, capítulo 3. De otra parte, como deja entrever V. Ferreres, “Una defensa de la rigidez constitucional”, en P. E. Navarro y M. C. Redondo (comps.), La relevancia del derecho. Ensayos de filosofía jurídica, moral y política, Barcelona, Gedisa, 2002, el análisis del mecanismo formal debe ser complementado con un examen de las peculiaridades de la cultura política en la que se inserta la constitución en cuestión. Puede que en una determinada cultura se hayan formado determinados prejuicios muy arraigados en contra de la reforma de la constitución. 7 Como nos recuerda B. Friedman, “The History of the Countermajoritarian Difficulty, Part Four: Law’s Politics”, University of Pennsylvania Law Review 971 (2000), p. 1061-2, estos métodos no gozan generalmente de legitimidad. En el contexto norteamericano, tras 1937, hubo sólo un episodio más en el que se intentó controlar políticamente a la Corte Suprema, el cual tuvo lugar en los años 50 a raíz de una serie de casos en los que el máximo tribunal había favorecido a determinadas personas tildadas de comunistas. Diego Moreno Rodríguez Alcalá 19 de los derechos siempre dependerá de la coyuntura de que el tribunal esté dispuesto o no a revisar su propia opinión. Además, normalmente estos procesos de cambio y evolución jurisprudencial se desarrollan en un espacio de tiempo más o menos extendido, lo cual puede resultar insuficiente cuando lo que se pretende es dar una respuesta eficaz e inmediata a una interpretación judicial que concibe a los derechos de un modo determinado con la que el parlamento puede estar en desacuerdo8. De allí que la posibilidad de brindar una respuesta institucional rápida y eficaz sea un rasgo definitorio de algunos sistemas débiles (en especial, de aquellos en los cuales los tribunales pueden en efecto declarar la inconstitucionalidad de las leyes). De conformidad a lo dicho hasta aquí, y aunque operen con ciertas diferencias, tanto el modelo norteamericano de como el europeo de justicia constitucional pueden catalogarse como sistemas “fuertes” de control judicial, por cuanto que: a) ninguno de ellos prevé un mecanismo institucionalizado de respuesta legislativa para rever una interpretación judicial con la cual se esté en desacuerdo; b) ambos permiten invalidar una ley considerada inconstitucional, aunque bajo diferentes modalidades y efectos; y c) los dos modelos otorgan al órgano jurisdiccional la decisión final. A su vez, tres ejemplos paradigmáticos de lo que serían sistemas débiles de justicia constitucional están dados por los casos de Canadá, Nueva Zelanda y el Reino Unido. Se trata de sistemas débiles en razón de que reúnen los siguientes rasgos: a) no permiten invalidar leyes a los órganos jurisdiccionales por considerarlas inconstitucionales o contrarias al catálogo de derechos en vigor, y si lo hacen, permiten una respuesta legislativa destinada específicamente a dejar de lado la interpretación judicial; y b) otorgan la palabra final sobre el significado de los derechos fundamentales al órgano legislativo. Es importante 8 Según M. Tushnet, “Forms of Judicial Review as Expressions of Constitutional Patriotism”, 22 Law and Philosophy 353 (2003), la diferencia entre un sistema débil y uno fuerte puede no ser tan decisiva, y limitarse únicamente al tiempo que tome el poder repeler una interpretación judicial. Así, por ejemplo, la manera en la que se desarrolla un sistema de “common law” daría resultados similares a los de un modelo débil (Id., p. 373). Este “tipo” de sistema débil, sin embargo, resultaría insatisfactorio, en razón de que no prevé un mecanismo institucional eficaz para otorgar una respuesta rápida y efectiva a las interpretaciones judiciales, sino que se basa en la práctica del “common law”, con lo cual resulta ajeno al control de los parlamentos y depende del desarrollo jurisprudencial a través del tiempo. Como bien señala J. C. Bayón, “Derechos, democracia y Constitución”, en M. Carbonell (ed.), Neoconstitucionalismo(s), Trotta, Madrid, 2003, p. 220, n. 8: “no importa sólo qué decisión prevalece: importa también que no se demore sin justificación el momento en que prevalece”. 20 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 20-46, jan./mar. 2014 hacer notar además que existen otros modelos “débiles”, aunque en este trabajo nos centraremos primordialmente en los citados9. iii leGitiMidAd deMocRÁticA y diÁloGo iNteR-iNstitUcioNAl: dos (APAReNtes) viRtUdes de los sisteMAs débiles de coNtRol JUdiciAl El surgimiento histórico de los modelos débiles en los países recién mencionados se sitúa concretamente en un período que abarca desde los años 1982 a 1998 (Canadá en 1982, Nueva Zelanda en 1990, y el Reino Unido en 1998)10. En los tres casos el ensamblaje de este peculiar modelo matizado de justicia constitucional al parecer obedeció, al menos en teoría, a la intención construir un modelo que fuese sensible hacia las críticas dirigidas a los sistemas fuertes, en especial la objeción democrática al control judicial. Se trata de países que habían sido tradicionalmente apegados al principio de supremacía parlamentaria, por lo cual la introducción de un sistema de control judicial debía en cierta forma ser sensible ante este hecho. La idea era hallar entonces un modelo que, sin abandonar por completo la doctrina de la supremacía parlamentaria a la que respondía la tradición constitucional de estos países, pudiera instituir un sistema de control judicial en el que los jueces habrían de jugar un papel en la interpretación de la constitución o de los catálogos de derechos, pero sin llegar a tener la última palabra en materia de interpretación de estos instrumentos11. El estudio de los sistemas débiles de justicia constitucional ha suscitado un considerable interés en los últimos años, precisamente porque, como se ha dicho, su diseño parece escapar, al menos prima facie, a las objeciones tradicionales formuladas al control judicial, en especial, a la 9 El caso de Suecia, por ejemplo, sería un candidato. Tampoco me ocuparé aquí de discutir o proponer fórmulas imaginarias para articular modelos débiles de justicia constitucional que no existen en ningún país, pues la gama de posibilidades sería demasiado amplia, con lo cual prefiero concentrarme en algunos modelos existentes para determinar sus eventuales fortalezas y debilidades. Quedan excluidas igualmente del análisis las distintas propuestas que se han hecho, sobre todo en los períodos revolucionarios francés y norteamericano, sobre distintas formas alternativas de control constitucional. 10 Sobre el punto, véase el excelente estudio de S. Gardbaum, “The New Commonwealth Model of Constitutionalism”, 49 American Journal of Comparative Law 707 (2001). 11 Ahora bien, el que este modelo ecléctico haya satisfecho a todo el mundo es otra cuestión. Por ejemplo, J. D. Whyte, “On Not Standing for Notwithstanding”, 28 Alberta Law Review (1990), p. 347, escribe: “Some scholars regard the override as a fatal flaw in the Charter, undermining the judiciary’s power to protect rights”. A su vez, Morton y Knopff, The Charter Review and the Court Party, 2000, señalan: “others regard even the limited judicial role as leading to an overjudicialization of government.” (Cit. en “Introduction”, T. Campbell, J. Goldsworthy y A. Stone (eds.), Protecting Human Rights. Instruments and Institutions, Oxford, Oxford, 2003, p. 10, nota 9.) Diego Moreno Rodríguez Alcalá 21 objeción democrática. Ello ha sido así hasta el punto de que incluso algún constitucionalista norteamericano, de la talla de un Michael Perry (conocido por su postura a favor del “judicial review”), ha llegado a afirmar que los “norteamericanos deberían tomarse en serio la posibilidad de importar la innovación canadiense”12. La razón de Perry para realizar esta sugerencia es precisamente la de que el autor considera importante hacer frente a las objeciones tradicionales al control judicial en la teoría constitucional norteamericana. A criterio de Perry, un sistema como el canadiense podría ser capaz de afrontar estos cuestionamientos de forma exitosa. Más recientemente, otros autores han considerado que las críticas al control judicial devienen simplemente irrelevantes desde la perspectiva de ciertos sistemas débiles de justicia constitucional, como el canadiense. Una vez que se confronta la crítica al control judicial con modelos institucionales de este tipo, estas críticas carecen ya de todo sentido13. De la misma opinión, aunque expresada en términos más generales, es el constitucionalista canadiense Peter Hogg, para quien siempre que la última palabra permanezca en manos del legislativo, “gran parte del debate americano sobre la legitimidad del control judicial deviene irrelevante”14. Como tendremos la oportunidad de ver más abajo, el modelo canadiense es el más fuerte de los tres modelos citados, por lo que, a fortiori, estos dos últimos juicios podrían hacerse extensibles a los modelos británico y neozelandés15. 12 PERRY, Michael J. The Constitution in the Courts. Law or Politics?, Oxford University Press, New York/ Oxford, 1994, pp. 197 y ss. Véase además M. J. Perry, “Protecting Human Rights in a Democracy. What Role for the Courts?”, 38 Wake Forest Law Review 635 (2003). Perry recoge igualmente la opinión del constitucionalista canadiense, que fue uno de los autores del “Charter”, P. C. Weiler, “Rights and Judges in a Democracy: A New Canadian Version”, 18 University of Michigan Journal of Law Reform 51 (1984), p. 80: “Perhaps one or another version of the Canada’s ‘override’ provision would be, for the United States, ‘an intrinsically sound solution to the dilemma of rights and courts’”. Otra propuesta similar a la de Perry ha sido la del conservador R. H. Bork, Slouching Towards Gommorah. Modern Liberalism and American Decline, Regan, New York, 1996, pp. 117-8, quien defiende una propuesta que permita al Congreso invalidar decisiones constitucionales mediante el voto mayoritario de cada una de las cámaras. 13 GOLDSWORTHY, j. “Judicial Review, Legislative Override, and Democracy”, 38 Wake Forest Law Review 451 (2003). La crítica ya había sido adelantada en la recensión que este autor hizo de la obra de Waldron: véase J. Goldsworthy, “Legislation, Interpretation, and Judicial Review”, 51 University of Toronto Law Journal 75 (2001). 14 HOGG, Peter W. Constitutional Law of Canada, 4. ed. Carswell, Toronto, 1997, 36.10-36.11. 15 Como acaba de verse, el interés de estos modelos radica precisamente en que prometen disolver las discusiones más tradicionales sobre la justificación del control judicial. Ilustrando la importancia de por lo menos uno de estos modelos, el comentarista canadiense T. Kahana, “Understanding the Notwithstanding Mechanism”, 52 University of Toronto Law Journal 221 (2002), p. 221, ha escrito: “En años recientes, Canadá ha adquirido reconocimiento internacional como un imperio constitucional. Comentadores allende los mares a menudo se refieren al Charter canadiense de derechos y libertades como un documento de protección de derechos ejemplar, y jueces a lo largo del globo, desde China a Sudáfrica a Israel, citan casos canadienses con comodidad”. 22 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 22-46, jan./mar. 2014 La explicación por la cual los sistemas débiles de justicia constitucional serían en principios inmunes a las tradicionales objeciones al control judicial no es difícil de comprender. Se trata de sistemas que al no otorgar la palabra final a un órgano de naturaleza jurisdiccional, no parecen violentar, al menos prima facie, las exigencias “democráticas” que deberían revestir los procedimientos para la adopción final de decisiones en materia de derechos fundamentales, que es lo que los críticos más agudos del “judicial review” señalan. Al mismo tiempo, quizás estos sistemas constituyan la mejor manera de compatibilizar los dos principios tradicionalmente opuestos de la supremacía judicial y de la soberanía parlamentaria. Es más, y aunque no me detendré en este lugar en ello, algunas de las justificaciones teóricas más importantes de los sistemas fuertes de justicia constitucional –sobre todo aquellos ofrecidos en el ámbito de la teoría constitucional norteamericana– parecen resultar más adecuadas cuando se las concibe como justificaciones de sistemas débiles. La primera virtud de los sistemas débiles entonces radicaría en que parecen sortear con cierto éxito la objeción democrática al control judicial de la ley bajo los sistemas fuertes. Otro argumento al que se ha apelado para intentar evidenciar las bondades de los sistemas débiles es el hecho de que promueven una especie de “diálogo inter-institucional”. La justificación de los sistemas débiles sobre la base de que promueven el diálogo entre órganos del Estado en cierta forma se hallaría conectada a la justificación anterior. Ello es así en razón de que quienes favorecen el diálogo inter-institucional aspiran al objetivo de contar con un debate público más vigoroso en torno a los grandes temas constitucionales, lo cual se relaciona en cierta forma con las concepciones deliberativas de la democracia, que en general consideran que el ideal democrático debe dar cabida a un amplio intercambio de opiniones en el espacio público a fin de enriquecer y legitimar el proceso de adopción de decisiones colectivas16. En ambos casos los argumentos de legitimidad democrática desempeñan un papel importante en la peculiar configuración de los sistemas débiles de justicia constitucional. Ahora bien, ¿qué se entiende por “diálogo inter-institucional” y de qué manera se supone que los sistemas débiles promueven este diálogo? Para intentar dar respuesta a estas preguntas, quizás sea útil concebir el proceso de diálogo inter-institucional en tres etapas17. En un primer 16 Por citar una obra representativa, véase J. Habermas, Facticidad y Validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, Trotta, Madrid, 1998. 17 S. Linares, La (i)legitimidad democrática del control judicial de las leyes, Marcial Pons, Madrid, 2008, p. 200 y ss. Diego Moreno Rodríguez Alcalá 23 momento, el parlamento dicta una ley (“opinión”). En un segundo momento, el órgano judicial “responde” y declara la invalidez de la ley o llama la atención sobre su eventual incompatibilidad con la constitución. En una tercera etapa, el órgano legislativo tiene la oportunidad de considerar la respuesta del órgano judicial y decidir si da una “réplica” manteniendo o no la interpretación judicial. Todo esto se asemejaría a un proceso de diálogo en el cual se busca llegar, a través del intercambio de razones, a una mejor decisión, siempre en el marco de un proceso que consta de al menos tres fases: opinión, respuesta y réplica. Esta concepción “dialógica”, realizada entre los órganos legislativo y judicial, contribuiría entonces a dotar de una mayor legitimidad al sistema político en su conjunto, al tiempo de convertir a los sistemas débiles no sólo en mecanismos institucionales compatibles con ideales democráticos, sino además, en activos promotores de estos ideales18. iv AlGUNAs dUdAs sobRe los sisteMAs débiles y sU cAPAcidAd PARA AcoModAR ideAles de diÁloGo Público y leGitiMidAd deMocRÁticA A. La legitimidad democrática de los sistemas débiles: algunos posibles problemas a) Diferencias básicas en la configuración específica de los tres sistemas débiles. Una de las razones que hace interesante al estudio de los sistemas débiles es que cada uno tiene sus especificidades propias. Para comprender mejor las diferencias entre los tres sistemas que aquí tomaremos como ejemplo, a saber, los de Canadá, Reino Unido y Nueva Zelanda, puede que resulte útil concebirlos como situados en distintos puntos de una línea continua entre dos polos opuestos a cuyos extremos se situarían, por un lado, el principio de la supremacía judicial, y por el otro, el principio de la soberanía parlamentaria19. El modelo más fuerte entre los tres, es decir, el que se sitúa más cerca del polo de la supremacía judicial, es el canadiense. La cláusula decisiva es el Charter 33. La misma establece lo que se conoce como el “mecanismo notwithstanding” [“non-obstante”], en función del cual una interpretación judicial puede ser sometida a un “override”, es decir, puede ser dejada de lado (sin afectar la cosa juzgada) mediante una nueva ley cuando el parlamento no esté de acuerdo con la interpretación que le ha dado el órgano judicial. La nueva ley dictada 18 Cabe señalar, empero, que existen distintas versiones de la teoría del diálogo inter-institucional. Aquí intento ofrecer una reconstrucción plausible de cómo debería operar adecuadamente un mecanismo que propicie un diálogo entre distintos órganos estatales. 19 GARDBAUM, “The New Commonwealth Model of Constitutionalism”, cit. 24 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 24-46, jan./mar. 2014 por medio de este mecanismo sólo tendrá una vigencia de cinco años, renovables por períodos sucesivos. Cabe añadir además que el “override” sólo resulta aplicable a determinados derechos del Charter canadiense, específicamente, los comprendidos entre las secciones 7 a 15. En una posición más cercana a la de la supremacía parlamentaria, puede decirse que el sistema más débil de todos es el neozelandés, en el que los jueces carecen de la facultad de inaplicar una ley que consideren que atenta en contra del “Bill of Rights” (el cual sólo tiene rango legal y no constitucional). Bajo este sistema, los tribunales tienen la obligación de interpretar las leyes de modo a hacerlas compatibles con el “Bill of Rights”, a lo cual suele aludirse con la expresión “mandato interpretativo”, y que viene a ser algo así como lo que se conoce como la técnica de la interpretación conforme a la constitución. Sin embargo, en caso de hallar una incompatibilidad que no pueda adecuarse ni siquiera por vía interpretativa al “Bill of Rights”, el tribunal no puede invalidar la ley ni emitir una declaración de ningún tipo, al menos en principio20. Podría cuestionarse entonces si es que cabría considerar que este sistema verdaderamente consagra alguna forma de control judicial. Lo cierto es que normalmente se asume de manera pacífica que el mandato interpretativo constituye en efecto una forma de control, ya que en función al mismo, los tribunales pueden dejar de lado los métodos más tradicionales de interpretación del common law, para discernir si es que la legislación en cuestión se ajusta o no al “Bill of Rights” de conformidad a los propósitos que la legislatura tuvo en cuenta al aprobar la ley. Al hacer esto, los tribunales pueden acabar otorgando a las leyes en cuestión una determinada interpretación que no obedezca a las mismas intenciones que la legislatura tuvo inicialmente en cuenta, con lo cual acaba incidiendo en la manera en que la ley habrá de aplicarse en la práctica. En el medio del sistema canadiense y del neozelandés se situaría el modelo del Reino Unido, producto de la incorporación, por medio del “Human Rights Act” de 1998, del Convenio Europeo de Derechos 20 El Bill reza, en su s. 4: “No court shall, in relation to any enactment (whether passed or made before or after the commencement of this Bill of Rights),Hold any provision of the enactment to be impliedly repealed or revoked, or to be in any way invalid or ineffective; or Decline to apply any provision of the enactment – by reason only that the provision is inconsistent with any provision of this Bill of Rights”. A su vez, la s. 6 establece: “Wherever an enactment can be given a meaning that is consistent with the rights and freedoms contained in this Bill of Rights, that meaning shall be preferred to any other meaning.” Diego Moreno Rodríguez Alcalá 25 Humanos, y que entró en vigor en el 2000. Bajo este sistema, los tribunales están obligados, al igual que en el caso neozelandés, a buscar siempre una interpretación conforme al convenio, pero en caso de no hallarla, pueden emitir una “declaración de incompatibilidad”. Esta declaración no tiene el efecto de invalidar la ley –facultad de la que carecen los jueces en este sistema–, pero sí puede provocar una respuesta política por parte del ministerio que promovió la ley. El procedimiento en este caso permite una vía rápida al ministro del gabinete que propuso la medida legislativa para hacer que la legislación resulte compatible con el o los derechos afectados21. De hecho el sistema está diseñado bajo la expectativa de que una “declaración de incompatibilidad” genere precisamente este tipo de respuesta, o cuando menos, que genere una ronda de debate político en torno a las disposiciones impugnadas, atrayéndose así la atención de la opinión pública. Lo cierto es que los jueces carecen de por sí de la facultad de negarse a aplicar una disposición que consideren contraria al “Human Rights Act”. b) Haciendo frente a la objeción democrática. De entre estos modelos, ¿cuál es el que aparece como mejor equipado para dar respuesta a la objeción democrática? Al parecer, el sistema más problemático de todos es el canadiense. Como vimos, se trata del modelo más “fuerte” de todos, ya que, a diferencia de los modelos neozelandés y británico, otorga a los órganos judiciales la facultad de inaplicar una ley cuando los tribunales consideren que la misma atenta contra los derechos fundamentales, cosa que no ocurre en los otros dos sistemas22. Ahora bien, desde su entrada en vigor, el “override” prácticamente no ha sido empleado, lo cual hace que, en los hechos, el sistema canadiense resulte muy parecido a un modelo fuerte de justicia constitucional como el norteamericano, en el 21 El “Human Rights Act” de 1998 prescribe en sus artículos más relevantes: “4(2) If the court is satisfied that the provision is incompatible with a Convention right, it may make a declaration of that incompatibility… 4(6) A declaration under this section (‘a declaration of incompatibility’)does not affect the validity, continuing operation or enforcement of the provision in respect of which it is given; and is not binding on the parties to the proceedings in which it is made... […] 10(1) This section applies if- a provision of legislation has been declared under section 4 to be incompatible with a Convention right… 10(2) If a Minister of the Crown considers that there are compelling reasons for proceeding under this section, he may by order make such amendments to the legislation as he considers necessary to remove the incompatibility.” 22 Waldron ni siquiera considera al sistema canadiense como un “sistema débil”. Véase “Some Models of Dialogue Between Judges and Legislators”, 23 Supreme Court Law Review (2d) 7 (2004); así como “The Core of the Case Against Judicial Review”, 115 Yale Law Journal 1346 (2006), p. 1357, nota 34. Cfr., sin embargo, la opinión de Bayón, “Democracia y derechos…”, cit., p. 131, nota 176, para quien el sistema canadiense le parece la mejor solución. El autor asume además la posibilidad del diálogo inter-institucional. 26 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 26-46, jan./mar. 2014 sentido de que los jueces acaban teniendo, de hecho, la última en materia de derechos. Incluso hay quien ha afirmado que hasta pudo haberse formado ya una convención constitucional en contra del empleo del Charter 3323, lo cual significaría que en la práctica, la única manera de revisar una decisión judicial sería a través del expediente de la reforma constitucional, al igual que ocurre con los sistemas fuertes. De hecho, el mecanismo establecido en la cláusula “notwithstanding” no habría sido utilizado a nivel federal desde su entrada en vigor, y apenas ha sido empleado un par veces por una provincia que no fuera la de Quebec. (A su vez, el empleo de la cláusula por esta última provincia se debió a motivos políticos internos propios del país que hacen a la delicada relación entre la minoría francófona y la mayoría anglófona, cuestión que no viene al caso analizar en este lugar24.) Dejando de lado este último caso, este estado de cosas en función del cual el “override” prácticamente no se ha empleado no resultaría objetable si es que la falta de una respuesta legislativa se debiera a la aceptación o aprobación de las legislaturas de la interpretación judicial efectuada con relación a los derechos. En estos casos, no habría ningún reparo que oponer al funcionamiento del sistema, ya que la falta de respuesta se debería al asentimiento del parlamento. Al fin y al cabo, los sistemas débiles solamente posibilitan una respuesta legislativa, pero no la exigen en cada caso, sobre todo si la legislatura está de acuerdo con la interpretación efectuada en sede judicial. Pero quizás la falta sistemática de una respuesta legislativa se deba a otros factores que sí tendrían un efecto deslegitimador sobre el sistema. Los sistemas débiles resultarían atractivos –al menos bajo las condiciones de “pluralismo razonable” que afectan a los derechos y que constituyen el contexto de la 23 GARDBAUM, “The New Commonwealth Model of Constitutionalism”, cit., p. 726. También alude a ello Goldsworthy, “Judicial Review, Legislative Override, and Democracy”, cit., p. 466. El papel que desempeñan las convenciones constitucionales en estos países que se derivan del modelo constitucional inglés es conocido. Para una introducción sintética, véase E. Barendt, An Introduction to Constitutional Law, Clarendon, Oxford, 1998. 24 La cláusula “notwithstanding” resultó incorporada a la Constitución canadiense a consecuencia de una concesión hecha a último momento a los gobiernos provinciales a fin de que apoyaran la reforma constitucional promovida en aquel entonces. Pero la cláusula es en general impopular, y la mayoría de los gobiernos casi nunca la invocan. Sobre el punto, véase Gardbaum, “The New Commonwealth Model of Constitutionalism”, cit., p. 722. Parte de las reticencias hacia el “notwithstanding” tiene que ver con lo que se considera como un abuso por parte de la provincia francófona de Québec. Celosa de su independencia, al entrar en vigor el “Charter”, el parlamento provincial insertó una disposición al amparo de la cláusula “notwithstanding” aplicable a toda la legislación entonces vigente. De este modo, se empleó el mecanismo “notwithstanding” de modo genérico, aplicándolo a toda legislación pasada y futura, con lo cual se habría desvirtuado el espíritu de la disposición, anulando de entrada cualquier posibilidad de control. Diego Moreno Rodríguez Alcalá 27 objeción democrática–, si es que aspiraran a reconocer las divergencias interpretativas razonables que pueden producirse entre dos órganos estatales distintos, otorgando no obstante la última palabra en materia de derechos al órgano que reviste una mayor legitimidad representativa. Pero el sistema de justicia constitucional canadiense no parece adecuarse a este esquema. En efecto, la cláusula pertinente dispone que “el Parlamento o la legislatura de una provincia puede declarar en una ley del Parlamento o de la legislatura, según el caso, que la ley o norma en cuestión tendrá vigencia no obstante [énfasis mío] una cláusula prevista en la sección 2 o en las secciones 7 a 15 de esta Carta”. Posteriormente, otro inciso establece que en este caso, la ley en virtud de la cual se procede a la respuesta legislativa tendrá una duración de cinco años, pero que puede ser prorrogada por períodos iguales sucesivos. Configurado de este modo, está claro que el diseño del sistema no parece obedecer a la idea de los desacuerdos razonables que pueden darse en el ámbito de la interpretación de los derechos y que fue puesta de relieve en la sección II. El sistema más bien parece consagrar la idea de que, una vez que los tribunales han considerado que una determinada ley viola alguno de los derechos del Charter, la legislatura puede optar por mantener la vigencia de la ley a pesar de reconocer que al hacerlo, se está violando uno o más derechos consagrados por el Charter. Pero el Charter no contempla la posibilidad de que el parlamento pueda tener interés no en emplear el “override” para legislar no obstante la violación de derechos, sino porque simplemente considera que su interpretación es preferible a la interpretación efectuada en sede judicial, y que puesto que ambas pueden ser perfectamente razonables, no hay razón alguna para que deba prevalecer la última ni para considerar que la de la legislatura viola los derechos. Desde el momento en que esto es así, en el diseño mismo del sistema puede percibirse un importante defecto del modelo canadiense25. Quizás esto explique además el hecho de por qué la palabra de los tribunales es la que termina en la práctica prevaleciendo de manera persistente. En efecto, dado el costo político, puede que los legisladores carezcan de incentivos suficientes para hacer prevalecer una legislación a pesar de que viola derechos fundamentales consagrados en el Charter. En primer lugar, puede que los legisladores no estén dispuestos a obrar de este modo con independencia a lo que piensen sus electores. Es decir, un legislador puede por sí mismo negarse a apoyar una iniciativa en 25 Sobre el punto, véase Goldsworthy, “Judicial Review, Legislative Override, and Democracy”, cit., pp. 467 y ss., quien sugiere una redacción distinta que especifique que los tribunales deberán interpretar los derechos en el sentido fijado en la ley. 28 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 28-46, jan./mar. 2014 relación a la cual ha habido un pronunciamiento judicial que sostiene que la ley afectada viola ciertos derechos. Y si añadimos el efecto que podría llegar a tener el hecho de que el legislador tome en cuenta la opinión del electorado, el costo político en este caso probablemente será aún mayor, ya que el mensaje que los legisladores tendrían que emitir ante la opinión pública sería que la iniciativa que están respaldando viola los derechos de los ciudadanos Un problema adicional consiste en que el plazo de vigencia de la ley que habrá de dictarse mediante el “override” esté fijado en cinco años, aunque prorrogables por períodos sucesivos26. Quizás un parlamento carezca de interés en tener que promulgar una ley en respuesta a una decisión judicial sabiendo que dicha ley tendrá una vigencia de sólo cinco años. Aun en el caso de que lo haga, y llegado el plazo de la renovación, el problema se manifiesta nuevamente al tener que volver a aprobarse una ley por otros cinco años, exponiéndose el parlamento nuevamente ante la opinión pública por intentar prorrogar la vigencia de una ley que según la interpretación judicial viola la constitución. Quizás todo esto logre disuadir a los legisladores, quienes finalmente opten por concentrar sus energías en otras iniciativas, habida cuenta el hecho de que en política las opciones deben ser administradas en función a sus costos, y que la concentración de energías en determinadas políticas normalmente va en detrimento de otras27. Otro argumento, enfatizado sobre todo por el constitucionalista norteamericano Mark Tushnet en varios artículos dedicados al estudio de los sistemas débiles, plantea como hipótesis la posibilidad de que la falta de respuesta legislativa se deba más bien a la incapacidad política de brindar una respuesta a la decisión judicial en cuestión que al asentimiento voluntario del legislativo. El argumento tiene que ver, al menos en parte, con ciertos rasgos estructurales de los procesos legislativos, los cuales indican que una iniciativa legislativa puede no llegar a prosperar no tanto en razón de que la mayoría acabe aceptando la interpretación judicial, sino mediante el ejercicio de una suerte de “veto” de ciertos grupos minoritarios ubicados estratégicamente y que pueden aparecer en el curso de un proceso legislativo para disuadir o hacer más difícil que ciertas mayorías puedan llevar a cabo sus objetivos. Estos 26 El establecimiento de este plazo no es arbitrario, ya que obedece a la finalidad de que una legislatura distinta sea la que se encargue de decidir la prórroga de la ley. 27 En otro orden de ideas, el hecho de que la cláusula “notwithstanding” se extienda únicamente a ciertos grupos de derechos también puede reflejar un defecto en la concepción general del modelo (salvo que se intente argumentar que ciertos derechos constitucionales gozan de primacía sobre otros). Diego Moreno Rodríguez Alcalá 29 sitios de veto pueden hallarse, siempre según Tushnet, tanto en sistemas presidencialistas (comisiones legislativas, veto del presidente, etc.), como también en los sistemas parlamentarios, como el canadiense. En este último caso, el fenómeno se daría, por ejemplo, al existir mayorías que en realidad son coaliciones de diversos grupos, cuando el gobierno considera que el costo político de imponer la disciplina de bloque a los diversos grupos puede llegar a producir un desgaste político, obstaculizando el apoyo hacia otras iniciativas legislativas que el gobierno también desea ver prosperar y para las cuales también debe asegurarse el apoyo de todos los grupos28. A todo esto podría replicarse que uno de los propósitos del control judicial en un sistema débil es justamente el de establecer un costo político que consista en obligar a la mayoría de gobierno a invertir un esfuerzo adicional en una medida que pueda vulnerar los derechos (en opinión del tribunal). Pero lo que este argumento sugiere más bien es que se imponen además otros costos adicionales, no inherentes a la teoría del control judicial débil sino a la estructura de los procesos legislativos, por lo cual el problema pasa muchas veces inadvertido en los debates sobre la justificación del modelo29. Está claro además que las situaciones concretas en las que podría suscitarse una situación de este tipo deberían evaluarse en cada caso de acuerdo a sus consecuencias sobre los derechos. Sin embargo, lo que aquí me interesa destacar es más bien que esta hipótesis arroja algunas dudas sobre la explicación según la cual la falta de respuesta se deba siempre a un asentimiento del legislador. La palabra más adecuada para describir situaciones como éstas sería la de “resignación”, y en este caso, ello podría tener un efecto deslegitimador sobre las razones del desuetudo en el que ha caído el mecanismo “notwithstanding”. Otros estudios señalan aún que los funcionarios públicos encargados de elaborar proyectos de leyes pueden ejercer una suerte de “deferencia anticipada”. Esta actitud resultaría motivada por una suerte de aversión al riesgo que el funcionamiento del sistema tiende a generar. En este sentido, los funcionarios encargados de redactar las 28 TUSHNET, M.“New Forms of Judicial Review and the Persistence of Rights- and Democracy- Based Worries”, 38 Wake Forest Law Review 813 (2003), p. 832 y ss. Las razones por lo que esto podría llegar a ocurrir son variadas. Por ejemplo, una minoría que integra la mayoría modifica la intensidad de sus preferencias como respuesta a la decisión judicial. O bien, puede darse el caso de que el transcurso del tiempo no modifique las preferencias de la mayoría legislativa pero sí la prioridad que ésta le asigna en balance con otras cuestiones políticas pendientes, etc. Véase además M. Tushnet, “Policy Distortion and Democratic Debilitation: Comparative Illumination of the Countermajoritarian Difficulty”, 94 Michigan Law Review 245 (1995), p. 293-4. 29 TUSHNET, op. cit., p. 832. 30 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 30-46, jan./mar. 2014 propuestas legislativas intentan de antemano dar con fórmulas para evitar que la ley pueda llegar a ser eficazmente impugnada, algo que en la práctica se denomina “Charter proofing”, y para lo cual normalmente reciben asesoramiento en derecho constitucional para asegurar la constitucionalidad de los proyectos. De este modo, se pretende blindar de antemano una propuesta legislativa a fin de que la misma no resulte invalidada por los tribunales una vez que ésta entre en vigor. Según esta explicación, los gobiernos parlamentarios desean evitar, dados los costos políticos, el tener que ser expuestos a una invalidación judicial, incluso cuando tengan a su disposición el “override”. Al ser esto así, se someten propuestas legislativas que tienen buenas probabilidades de ser aceptadas por los tribunales de conformidad a las interpretaciones en vigor. El problema con esta práctica es que no favorece la presentación de proyectos que podrían resultar más controvertidos desde el punto de vista de la óptica judicial, aunque siempre dentro del ámbito de lo razonable, y que empujen a los tribunales hacia los límites de las interpretaciones vigentes30. (Dicho sea de paso, esto constituye además una razón adicional que demuestra las limitaciones de la teoría del diálogo inter-institucional, que será analizada más abajo, ya que si las propuestas legislativas están siempre a tono con las interpretaciones vigentes, el diálogo parece perder relevancia.) Si el sistema realmente funciona de esta manera, entonces no parece que el mismo sea capaz recoger cabalmente las divergencias profundas que pueden presentarse en el seno de una sociedad pluralista cuando lo que está en juego es la interpretación de cómo una determinada medida legislativa afecta los derechos, sino que sólo es capaz de acomodar ciertas interpretaciones específicas, a saber, las que mantienen los jueces. c) El caso de los sistemas más débiles. Estos son sólo algunos argumentos sobre los defectos estructurales y sobre el entramado de incentivos institucionales que ofrecen los críticos del modelo canadiense. Desde esta perspectiva, los modelos británico y neozelandés aparecen, al menos formalmente, mejor diseñados para evitar por lo menos las objeciones principales al sistema anteriormente comentado. Esto no es casualidad, ya que, dada su fecha posterior, el diseño de estos modelos se realizó previa observación, aprendizaje y adaptación de la experiencia canadiense, la cual constituyó su punto de partida31. Bajo los modelos británico y neozelandés se invierte la situación de incentivos que se da 30 TUSHNET, M. “Marbury v. Madison Around the World ”, 71 Tennessee Law Review Association 251 (2004), p. 268. (El autor se apoya en J. L. Hiebert.) 31 GARDBAUM, op. cit., p. 719. Diego Moreno Rodríguez Alcalá 31 en el ámbito canadiense, lo cual puede contribuir a evitar la inercia que se da en este último. En efecto, en los sistemas más débiles los jueces no se hallan autorizados a declarar la invalidez de una ley, ni tampoco a inaplicarla a un caso concreto cuando consideren que la misma vulnera determinados derechos. A lo sumo, en el caso británico, pueden únicamente emitir una “declaración de incompatibilidad”, la cual está destinada a llamar la atención al legislador, alertándolo de que quizás haya un problema con la ley en cuestión y su afectación a uno o más derechos. Como vimos, esta declaración autoriza al ministro del gabinete que promovió la ley a emplear un procedimiento rápido [“fast track”] para enmendar la ley, en caso de que considere que la interpretación judicial resulta preferible a la efectuada en sede parlamentaria. De esta forma, al no procederse a la invalidación ni tampoco a la inaplicación de la ley, se evita el riesgo señalado en el sistema canadiense de que, en la práctica y debido en parte a la inercia que propicia el diseño del sistema, sean los tribunales quienes acaben teniendo la última palabra. Conviene señalar además que la declaración de incompatibilidad no debe verse como un mecanismo absolutamente impotente, ya que la finalidad del mismo es la de llamar la atención, tanto de los legisladores como por parte de la opinión pública, sobre lo que los tribunales consideran una eventual violación de derechos, lo cual puede acabar propiciando un debate para airear más detenidamente la cuestión32. Es decir, se espera que este mecanismo no resulte inútil sino que genere algún tipo de respuesta política. La inquietud que este último modelo podría generar es la de determinar si puede en efecto brindar una protección adecuada a los derechos. La respuesta a esta inquietud nos lleva hasta el núcleo mismo de la objeción democrática al control judicial de la ley: quien asuma que el órgano legislativo posee una capacidad para alcanzar decisiones correctas en materia de interpretación de los derechos que al menos no resulta menor a la de los tribunales –conforme se vio en la sección II–, sumado a la apreciación de que los últimos reflejan más adecuadamente la dimensión participativa de la que deben estar revestidos los órganos encargados de la adopción de decisiones colectivas, no tiene ningún motivo para sospechar de la disposición institucional que presenta un modelo de este tipo. 32 Ibid., p. 738. En el caso británico, puede decirse que se parte en dos la función de control: por un lado, los tribunales detectan una supuesta infracción; por otro lado, es la legislatura la que se encarga de invalidar la disposición. 32 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 32-46, jan./mar. 2014 Pero aún a pesar de las apariencias, no debe pensarse que los dos sistemas más débiles han sido inmunes a la crítica. Incluso en el caso neozelandés, que como se dijo constituye el más débil de todos ya que no prevé la posibilidad de emitir una declaración incompatibilidad y en el que el control se limita al mandato interpretativo, no han faltado voces críticas que han manifestado su preocupación ante lo que consideran una escalada hacia formas más fuertes de control judicial. Un comentarista ha empleado la sugestiva metáfora según la cual en este sistema “Clark Kent se ha convertido en Superman”33. En efecto, en 1999 un tribunal neozelandés –atribuyéndose facultades no expresamente conferidas– dejó entrever, en Moonen v. Film and Literature Board of Review, que el mandato interpretativo entrañaba la facultad de emitir, de forma similar al modelo inglés, declaraciones de incompatibilidad34. Esto resulta de suma relevancia sobre todo por lo siguiente. En el sistema inglés, se ha señalado que la emisión reiterada de declaraciones de incompatibilidad puede llegar a tener un efecto significativo sobre la voluntad legislativa. Y si esta hipótesis llega a anclarse en la cultura política inglesa determinando una tendencia firme hacia la acogida sistemática de declaraciones de incompatibilidad, ello podría convertir a este sistema formalmente débil en un sistema fuerte de facto35 . (Debe tenerse presente además que no abordo el problema de las interrelaciones de este último sistema con el sistema europeo de protección de los derechos humanos, lo cual también traería aparejado importantes consecuencias sobre el funcionamiento del sistema inglés36.) De cualquier manera, acaso resulte algo apresurado aventurar juicios genéricos sobre el funcionamiento tanto del sistema 33 Véase J. Allan, “Turning Clark Kent into Superman: The New Zealand Bill of Rights Act 1990” 9 Otago Law Review 613 (2000); y del mismo autor, “The Effect of a Statutory Bill of Rights Act Where Parliament is Sovereign: The Lesson from New Zealand”, en T. Campbell, K. D. Ewing y A. Tomkins (eds.), Sceptical Essays on Human Rights, Oxford, Oxford, 2001; así como “Take a Heed Australia – A Statutory Bill of Rights and Its Inflationary Effect”, disponible en: http://www.austlii.edu.au/au/ journals/DeakinLRev/2001/7.html#fnB35. 34 Linares, La (i)legitimidad democrática del control judicial de las leyes, cit., p. 216. 35 Cfr., sin embargo, ibid., pp. 228-9, donde se sugiere una tendencia contraria: los jueces tenderán a acudir a la técnica de la interpretación conforme a fin de no verse obligados a aplicar una ley que consideran violatoria de los derechos. 36 En este sentido, Perry, “Protecting Human Rights in a Democracy...”, cit., pp. 671-2 señala lo siguiente: “Because in cases of conflict the transnational system trumps the domestic system - because, that is, a judgment by the European Court of Human Rights that the United Kingdom has violated, or is violating, a Convention right, which judgment Parliament is treaty-bound to respect, takes precedence over a judgment to the contrary by a UK court - perhaps we should say that the overall legal system in the United Kingdom is, with respect to Convention rights, one of judicial ultimacy”. Esta observación plantea sin duda algunos desafíos importantes. Sin embargo, como queda dicho y por razones de una adecuada delimitación de mi objeto de estudio, no aludiré aquí a los problemas que se generan por la inserción del Reino Unido en el sistema europeo de protección de derechos humanos. Diego Moreno Rodríguez Alcalá 33 británico como neozelandés, por lo que estas consideraciones deben tomarse sólo como especulativas y no concluyentes37. Lo que esta brevísima exposición sugiere es que hay razones para considerar con alguna seriedad la tesis de la inestabilidad que según Tushnet se desprendería del funcionamiento de estos sistemas. Según esta tesis, puede que los sistemas débiles de justicia constitucional resulten inestables, mostrando una tendencia a escalar hacia formas más fuertes de control judicial, con lo cual, en la práctica, los beneficios teóricos que se predican de los sistemas débiles quizás tendrían dificultades de materializarse en la práctica38. En consecuencia, la “promesa según la cual el control judicial débil puede en la práctica reducir sustancialmente las preocupaciones democráticas en torno al control judicial…pueden no resultar satisfechas”39. B. ¿Puede tener lugar un diálogo significativo en el marco de los sistemas débiles de control judicial? Así como sosteníamos que el diseño de los sistemas débiles parece hacerlos, al menos en principio, menos vulnerables a las objeciones tradicionales hacia el control judicial, también podemos afirmar que la teoría del diálogo inter-institucional al parecer adquiere más sentido en el contexto de los sistemas débiles. Ello es así en razón de que los sistemas fuertes, al otorgar la palabra final al legislativo, acaban, 37 Para una aproximación, en el caso del Reino Unido, véase I. Leigh, “The UK’s Human Rights Act 1998: An Early Assessment”, en G. Huscroft y P. Rishworth, Litigating Rights. Perspectives from Domestic and International Law, Hart, Oxford/Portland, 2002; o bien, J. L. Hiebert, “Parliament and the Human Rights Act: Can the JCHR help facilitate a culture of rights?”, 4 I. CON. 1 (2006); así como, de la misma autora, “New Constitutional Ideas: Can New Parliamentary Models Resist Judicial Dominance When Interpreting Rights?”, 82 Texas Law Review 1963 (2004). De cualquier manera, dada la rápida proliferación de la literatura emergente, resulta difícil ofrecer en este lugar una guía adecuada. 38 El autor también explora la posibilidad opuesta de que estos sistemas se conviertan en la práctica en sistemas plenos de soberanía parlamentaria, extremo éste que no será abordado aquí. (Véanse las referencias en la nota siguiente.) 39 TUSHNET, “New Forms of Judicial Review and the Persistence…”, cit., p. 815, y también en “Marbury v. Madison Around the World”, cit., p. 267: “I have become skeptical about the claims made on behalf of weak-form systems of review, largely because such systems seem to me to degenerate into strong-form systems”. Cabe añadir que, en el primero de estos trabajos, Tushnet no considera en detalle, por falta precisamente de una experiencia de funcionamiento más dilatada, los casos británico y neozelandés. El autor sí aborda paralelamente una forma de justicia constitucional débil, que estaría dada por el “experimentalismo democrático” propiciado por autores como Dorf y Sabel. No exploro este extremo aquí en razón de que no lo considero como un modelo débil de justicia constitucional propiamente hablando, sino como una estrategia interpretativa cercana al minimalismo o a la deferencia. 34 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 34-46, jan./mar. 2014 al menos formalmente, con toda discusión posible40. De modo que, a pesar de que bajo los sistemas fuertes algunos autores también hayan intentado emplear la metáfora del “diálogo”, las versiones más plausibles de la teoría del diálogo inter-institucional acaso hallen mejor acomodo bajo los sistemas débiles de justicia constitucional, donde no está todo dicho una vez que órgano judicial se pronuncia41. Sin embargo, aun en el caso de los sistemas débiles, no ha faltado quien se haya mostrado escéptico con relación a la posibilidad de que se desarrolle algún tipo significativo de diálogo por medio del control judicial. En efecto, si como se ha sugerido en el apartado anterior, en la práctica la interpretación de los tribunales es la que acaba imponiéndose sistemáticamente, con lo cual en los hechos los sistemas débiles no lograrían diferenciarse del todo de los sistemas fuertes, entonces no existirían demasiadas perspectivas para el diálogo, asumiendo la tesis de que en los sistemas fuertes resulta improbable que el diálogo pueda tomar lugar de manera significativa. De otra parte, existen además otras razones de distinta naturaleza que contribuyen arrojar algunas dudas sobre la teoría del diálogo inter-institucional bajo los sistemas 40 En efecto, esta teoría no sólo se ha pretendido para justificar los modelos débiles. Aunque de diversas maneras, algunos constitucionalistas norteamericanos también han pretendido aplicar alguna versión de esta teoría a su propio sistema. (Véase K. Roach, “American Constitutional Theory for Canadians (And the Rest of the World)”, 52 University of Toronto Law Journal 503 (2002)). El problema en general con esta justificación es que resulta dudoso que la teoría del diálogo inter-institucional pueda justificar satisfactoriamente el control judicial en un modelo fuerte en el que la última palabra la tenga el órgano judicial, sin posibilidad de réplica. Un ejemplo de cómo el diálogo entre distintos órganos del Estado difícilmente pueda prosperar en el marco de un sistema fuerte podría ser el caso City of Boerne v. Flores, 521 U.S. 507 (1997) y sus antecedentes, que más bien guarda analogía con un monólogo que con un diálogo. Esto es en efecto lo que cabe esperar de un sistema de supremacía judicial en el que las posibilidades de brindar una respuesta que facilite el diálogo se reducen considerablemente. Una crítica en este sentido en Waldron, “Some Models of Dialogue…”, cit. Otros autores, sin embargo, conciben al sistema constitucional norteamericano no como un sistema de supremacía judicial sino en clave “departamentalista”, con lo cual las perspectivas serían más auspiciosas. En parecidos términos, otros abogan por una suerte de “minimalismo” en las decisiones judiciales que permita un cierto margen de respuesta al legislativo. 41 Según L. B. Tremblay, “The legitimacy of judicial review: The limits of dialogue between courts and legislatures”, 3 I.CON 617 (2005), p. 617, se trata de una contribución canadiense al debate sobre la legitimidad del control judicial. En Canadá, han defendido la teoría P. W. Hogg y A. A. Bushell, “The Charter Dialogue Between Courts and Legislatures (Or Perhaps the Charter of Rights Isn’t Such a Bad Thing Alfer All”, 35 Osgoode Hall Law Journal 75 (1997). Una respuesta a estos autores en C. Manfredi y J. Nelly, “Six Degrees of Dialogue: A Responde to Hogg and Bushell”, 37 Osgoode Hall Law Journal 513 (1999). Otra de la teoría del diálogo en este ámbito sería el “deliberative disagreement approach” de T. Kahana, “Understanding the Notwithstanding Mechanism”, cit. Por lo demás, la teoría del diálogo ha sido expresamente recogida en algunos fallos de la Corte Suprema canadiense, paradigmáticamente en Vriend v. Alberta, [1998] 1 S.C.R. 493. Diego Moreno Rodríguez Alcalá 35 débiles. En lo que sigue, y sin pretensiones de exhaustividad, me limitaré a mencionar brevemente algunas de ellas, con una finalidad más bien sugestiva que definitiva y concluyente. Por ejemplo, el profesor de la Universidad de Montreal, Luc Tremblay, ha afirmado que si bien puede existir alguna forma de diálogo entre los tribunales y el parlamento, “el tipo de diálogo que sería necesario para conferir fuerza legitimatoria a la institución y práctica del control judicial no existe ni puede existir. Consiguientemente, el carácter normativo de la teoría del diálogo institucional, así como ha sido concebido hasta ahora, es en definitiva de naturaleza retórica”42. Si lo interpreto adecuadamente, para llegar a esta conclusión el autor se basa principalmente (aunque no de modo exclusivo) en una tesis bastante trivial aunque muy pertinente sobre la manera adecuada en que debe ser ejercida la función judicial. La intuición detrás de esta idea es la siguiente. Los tribunales deben interpretar la constitución de acuerdo a su leal saber y entender, ponderando las razones jurídicas pertinentes a fin de llegar a una convicción sobre el asunto sometido a su decisión. Pero resulta contrario a nuestras intuiciones más arraigadas sobre cómo debería funcionar un órgano jurisdiccional el hecho de que éste se disponga a entablar un diálogo a la hora de determinar la decisión que debe adoptar. El argumento sugiere entonces que la propia naturaleza de la función judicial y la responsabilidad e independencia con la cual deben actuar los jueces obstaculizarían la viabilidad de una genuina forma de diálogo. De otra parte, hemos visto que la práctica de los sistemas débiles puede llegar a desembocar en una prevalencia de la decisión de los órganos jurisdiccionales, incluso cuando formalmente se halle contemplada una respuesta institucional. Pero supongamos que en efecto el órgano legislativo haga uso efectivo de la capacidad de respuesta. En este punto resulta sugestivo un ejemplo de Walter Sinnot-Armstrong quien, aunque intentando contrarrestar las críticas a un sistema fuerte como el norteamericano, realiza la siguiente apreciación sobre la supuesta capacidad de promover el diálogo de la que gozarían los sistemas débiles. Así como no puede haber diálogo cuando una esposa objeta a su marido el que éste desee llevar a cabo una acción, y el marido responde, “No me importa, lo haré igual”, lo mismo puede decirse de una legislatura que, en respuesta a una decisión judicial, decida emplear la facultad de 42 TREMBLAY, “The legitimacy of judicial review…”, cit., p. 619. Una crítica similar en Tushnet, “Policy Distortion and Democratic Debilitation…”, cit. 36 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 36-46, jan./mar. 2014 revisar una determinada interpretación judicial que invalida una ley del siguiente modo: “No nos importa, haremos prevalecer la ley de cualquier manera”43. Desde luego que esta dinámica tampoco parece ser una manera atractiva de promover una suerte de diálogo genuino en función del cual los órganos en cuestión se disponen a escuchar las razones del otro para adoptar una decisión que tome en consideración todos los argumentos posibles vertidos en el curso del diálogo. (A su vez, en los sistemas fuertes, donde los órganos jurisdiccionales tienen la última palabra, son los jueces quienes pueden responder de conformidad a este peculiar modelo que en realidad representa la negación de un diálogo genuino.) Este argumento sugiere que no existe nada inherente a la construcción de los sistemas débiles que necesariamente los predisponga hacia un tipo de diálogo que sea capaz de legitimar la interacción de los órganos legislativo y judicial y que resulta de la atribución a los jueces de la facultad de ejercer el control judicial. Las siguientes dos objeciones son de una naturaleza diferente. La primera de ellas insinúa que el diálogo inter-institucional –en caso de ser viable– puede resultar simplemente redundante, y apuntaría más bien a justificar una atribución de dudosa legitimidad democrática a los jueces (el control judicial) antes que añadir un elemento legitimador distinto, en este caso el diálogo. Según este argumento, aún admitiendo la posibilidad de que legislatura se halle dispuesta a tomar seriamente en cuenta la opinión de los tribunales, puede que los elementos de diálogo que los tribunales aporten a una legislatura para su consideración no hagan sino reproducir posturas que ya son bien conocidas en la legislatura a raíz del tratamiento originario de la cuestión. Dada la manera en que se estructuran los procesos legislativos en las sociedades democráticas contemporáneas, con todo el cúmulo de debates, ronda de discusiones y de reuniones, tratamiento en comisiones, asesoramiento en derecho constitucional por parte de expertos, tratamiento en dos cámaras distintas en los sistemas políticos bicamerales, etc., etc., es muy probable que el tribunal acabe intentando entablar un diálogo sobre temas harto debatidos y conocidos por los miembros de la legislatura44. 43 W. Sinnot-Armstrong, “Weak and Strong Judicial Review”, 22 Law and Philosophy 381 (2003), p. 385. 44 Para este argumento, véase Waldron, “Some Models of Dialogue...”, cit., pp. 25 y ss. Desde otra perspectiva, esta vez en el contexto norteamericano, S. M. Griffin, “Has the Hour of Democracy come Round at Last? The New Critique of Judicial Review”, 17 Constitutional Commentary 683 (2000), pp. 698-9, también ha cuestionado a quienes pretenden aplicar la teoría del diálogo a este sistema político poniendo énfasis en el proceso de designación de los magistrados, lo cual produciría como resultado una especie de redundancia que arrojaría dudas sobre la capacidad de los tribunales de promover el diálogo: “The politization or democratization of the Supreme Court appointment process...makes it unlikely Diego Moreno Rodríguez Alcalá 37 Todo ello obligaría a repensar el verdadero alcance justificatorio de la teoría en cuestión de cara al problema que representa el hecho de que los jueces puedan invalidar una decisión del órgano que reviste una mayor legitimidad democrática y una capacidad no inferior a la de los órganos jurisdiccionales para dotar de contenido a los derechos. Finalmente, un último argumento llama la atención sobre una suerte de actitud paternalista detrás de la teoría del diálogo inter-institucional. Según este argumento, y asumiendo la validez de la teoría del diálogo, la función que desempeñan los jueces a través del control judicial sería la de “ayudar” a una legislatura incapaz de deliberar adecuadamente por sí misma o de tomar en cuenta con seriedad los valores constitucionales a la hora de adoptar sus decisiones45. De conformidad a esta lectura de la teoría del diálogo, a pesar de que las legislaturas son cuerpos colegiados integrados por cientos y cientos de representantes electos libre y democráticamente sobre la base del sufragio universal, los jueces deben cumplir la función de “tutelar” la calidad del proceso político, ya que al parecer se presume que los legisladores no son capaces por sí mismos de tomarse en serio los valores constitucionales. El atractivo que pueda llegar a tener este argumento o el rechazo que el mismo pueda generar dependerá, por supuesto, de la actitud que se adopte hacia la idea de una democracia tutelada, aunque creo que no resultaría muy controvertido afirmar que esta noción adolece de serios problemas normativos46. Ahora bien, esta discusión no pretende sugerir que no pueda darse ninguna forma de diálogo entre los órganos afectados. Además, como queda dicho, los argumentos traídos a colación tienen una finalidad más bien sugestiva y en modo alguno pretenden agotar este complejo debate47. Sin embargo, acaso podamos aventurar un par de ideas tentativas que se desprenden de lo dicho hasta aquí. Por un lado, para que exista un genuino diálogo capaz de enriquecer, a través del intercambio that the Court can perform a special function in educating the citizenry or assuming a vanguard role to promote a national dialogue on rights”. “Instead, the democratization of the Court means that it is ensnared in the same contentious politics of rights that occupies the political branches.” 45 WALDRON, “Some Models of Dialogue”, cit., pp. 27-8 y ss. 46 Sobre el concepto de democracia tutelada, véase R. A. Dahl, La democracia y sus críticos, Paidós, Barcelona, 1992. 47 En efecto, véase, por ejemplo, P. W. Hogg y A.A. Bushell Thornton y W. K. Wright, “Charter Dilogue Reviseted-Or ‘Much Ado About Metaphors’”, 45 Osgoode Hall Law Journal 1 (2007); y K. Roach, “Sharpening the Dialogue Debate: The Next Decade of Scholarship”, 45 Osgoode Hall Law Journal 169 (2007), quienes al confrontar las críticas más importantes, han refinado y reafirmado sus respectivas concepciones del diálogo inter-institucional, sugiriendo incluso una agenda futura para el debate. 38 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 38-46, jan./mar. 2014 de razones, la toma de una decisión adecuada sobre los grandes valores constitucionales, es menester que las partes involucradas en el diálogo tengan en efecto la capacidad institucional de tomar en cuenta estas razones y actuar motivadas por las mismas. En caso contrario, es dudoso que pueda desarrollarse un genuino diálogo entre las partes. Dada la naturaleza de la función jurisdiccional, y dado el tipo de respuesta que pueden dar los órganos legislativos –cuyas motivaciones pueden no llegar a tener mucho que ver con las razones esgrimidas por el órgano judicial–, abrigo mis dudas sobre si lo que surge de esta dinámica pueda constituir en realidad un auténtico diálogo capaz de brindar legitimidad democrática a estos sistemas o a hacer más imparcial el proceso de toma de decisiones colectivas, como sugieren las concepciones deliberativas de la democracia. En segundo término, el diálogo y la deliberación pública sobre temas de relevancia constitucional constituyen sin duda elementos con los cuales todos estaríamos de acuerdo, sobre todo si con ello se logra una cultura política más consciente y comprometida con los valores constitucionales (¿quien podría sostener que una democracia constitucional no debería favorecer el diálogo?). Pero más allá de las eventuales bondades del diálogo y de la deliberación, lo que verdaderamente importa de cara a la objeción democrática es quién tiene la facultad de adoptar la decisión final sobre la interpretación de los derechos constitucionales. Aun asumiendo que pueda darse en efecto un diálogo muy intenso y fructífero entre ambos órganos en juego, el problema de legitimidad subsistiría si a final de cuentas la palabra final la retiene el órgano judicial. Por esta razón considero que más importante que el diálogo inter-institucional es la manera en que los sistemas débiles hacen frente a la objeción democrática, algo acerca de lo cual nos hemos ocupado en la sección anterior. v dos PUNtos AbieRtos A discUsióN (PARA UNA ReflexióN UlteRioR) Es probable que este estudio, de carácter más bien explorador y tentativo que concluyente y exhaustivo, deje más cuestiones abiertas que resueltas. Veamos dos de ellas. En un sistema de justicia constitucional fuerte, en el que no existe otra manera de mitigar el enorme poder conferido a los jueces –al menos no a través de mecanismos formales institucionalizados específicamente para dicho efecto–, como es el caso norteamericano, es normal que las teorías de la interpretación ocupen una parte importante del debate sobre la justificación de la institución. Diego Moreno Rodríguez Alcalá 39 Como ha ocurrido durante una buena parte de la historia de la objeción democrática en la teoría constitucional norteamericana, el problema se centra en qué tipo de interpretación sería aceptable que un órgano con semejante poder adopte. Quien asuma la validez de la objeción democrática probablemente preferirá, en el contexto de un sistema fuerte, una teoría deferente y minimalista, por más complicado que pueda resultar llevar este tipo de teorías a la práctica. Sin embargo, bajo un sistema débil de justicia constitucional, ¿cabría deducir la misma conclusión? Michael Perry ha dicho que en “cualquier caso, en un sistema de instancia judicial penúltima [lo que aquí llamamos “sistema débil] …que funcione de modo adecuado, casi no hay necesidad de emplear una deferencia de estilo Thayeriana”48. La razón por la cual Perry mantiene esta posición tiene que ver con la finalidad de promover el diálogo inter-institucional que él considera viable y para lo cual un control más agresivo sería a su criterio más conducente. Habida cuenta este dilema, y más allá de la opinión específica de este autor, ¿cuál es, entonces, la actitud que deben asumir los jueces constitucionales en un sistema débil? ¿Deben ser “deferentes” o “activistas”? Para responder adecuadamente a esta pregunta, quizás habría que realizar una distinción basada en cuanto se ha expuesto en este trabajo. Si el sistema débil de justicia constitucional en vigor se vuelve fuerte en la práctica, en este caso el ejercicio del control judicial debería ser deferente; en caso contrario, la justicia constitucional podría actuar de manera más agresiva siempre y cuando ello no genere efectos colaterales negativos sobre el sistema en su conjunto. Exactamente cómo debería producirse esta intervención más activa es algo a lo que una adecuada teoría de la interpretación constitucional debería poder responder49. Una segunda cuestión que ha quedado abierta tiene que ver con el problema de la “juridificación” del discurso sobre los derechos fundamentales que los críticos hacia la institución del control judicial suelen señalar cuando consideran la capacidad de cada órgano de brindar respuestas adecuadas en esta materia. Según esta inquietud, el discurso técnico-legal quizás no sea el más adecuado para abordar cuestiones de moralidad política como lo son aquellas en las que aparecen involucrados los derechos fundamentales. Para quienes van las cosas de este modo, un discurso altamente tecnificado puede contribuir a empobrecer el debate 48 PERRY, “Protecting Human Rights in a Democracy...”, cit., p. 686. 49 En el mismo sentido, alegando que en los sistemas débiles el debate sobre activismo o el “restraint” no se cancela, M. Tushnet, “Judicial Activism or Restraint in a Section 33 World”, 52 University of Toronto Law Journal 89 (2002). 40 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 40-46, jan./mar. 2014 sobre los derechos, y en consecuencia, a hacer más difícil la empresa de hallar soluciones adecuadas a problemas vinculados con los derechos. Sin embargo, una vez que introducimos en un sistema político una instancia de justicia constitucional, por débil que la misma sea, la consecuencia inevitable será la de producir, al menos en un cierto grado, la juridificación del discurso sobre los derechos. A fin de cuentas, ¿qué otro tipo de discurso puede exigirse de un órgano jurisdiccional? Por eso me parece que, a diferencia de Tushnet, Waldron admite con demasiada rapidez la falta de problematicidad de ciertos sistemas débiles, y en este sentido, puede que no sea del todo consecuente con algunas de las posiciones que el autor ha intentado defender en su crítica a la institución del control judicial50. Por otro lado, este argumento sugiere que en la medida en que la juridificación del discurso pueda ser un obstáculo para que prevalezca un lenguaje más adecuado con el cual abordar los derechos, quizás deberíamos abrir la imaginación hacia formas no judiciales de control constitucional51, siempre y cuando consideremos que alguna forma débil de control pueda en efecto realizar una contribución valiosa al sistema político de una sociedad bien ordenada. vi obseRvAcioNes fiNAles: ¿ResilieNciA de lA obJecióN deMocRÁticA? Más allá de las cuestiones que han podido quedar abiertas, aunado a la intención de este trabajo, cual es la de provocar preguntas antes que ofrecer respuestas concluyentes, creo que las consideraciones vertidas a lo largo del mismo por lo menos permiten extraer algunas conclusiones importantes. En primer lugar, los modelos débiles parecen ser inmunes, al menos prima facie, a la objeción democrática en razón de que, al menos formalmente, otorgan la última palabra a la legislatura (caso canadiense), o bien, no otorgan la facultad de inaplicar las leyes que se consideren contrarias al catálogo de derechos (casos del Reino Unido y Nueva Zelanda), con lo cual producen el efecto de dejar la decisión final en manos del legislador. De este modo, a diferencia de los modelos fuertes, 50 Sobre la posición de Waldron, véase “The Core of the Case…”, cit., p. 1370; así como su exposición en Tribe, L. H., Waldron, J., Tushnet M., (debate), “On Judicial Review”, Dissent, summer (2005). Para un análisis crítico de la juridificación del discurso sobre los derechos en Canada, véase, por ejemplo, J. L. Hiebert, “Parliament and Rights”, en Campbell, Goldsworthy y Stone (eds.), Protecting Human Rights…, cit. 51 Para una propuesta interesante de diseño institucional, véase C. Zurn, Deliberative Democracy and the Institutions of Judicial Review, Cambridge, Cambridge, 2007. Diego Moreno Rodríguez Alcalá 41 no parecen violentar los criterios de legitimidad democrática que debería revestir un procedimiento para la adopción final de decisiones colectivas en materia de derechos. Aun así, cabe ser cautos con relación a admitir que los sistemas débiles han logrado eliminar completamente las preocupaciones “democráticas” sobre la institución del control judicial. Si la hipótesis de Tushnet y otros autores sobre la inestabilidad de los sistemas débiles y su proclividad a escalar hacia formas más fuertes de control es verdadera, entonces resulta claro que dichas preocupaciones podrían llegar a persistir. El caso canadiense parece corroborar precisamente esta hipótesis, aunque su funcionamiento tal vez se deba a un diseño defectuoso del mecanismo “notwithstanding”, que quizás podría correr una suerte distinta en caso de que sus deficiencias sean corregidas. La experiencia dirá cuál ha sido el resultado de los demás sistemas débiles discutidos en este trabajo (el neozelandés y del Reino Unido), aunque al menos a primera vista parecen estar mejor diseñados formal e institucionalmente para no caer en la inercia del sistema canadiense. Puede decirse entonces que, en balance, los sistemas débiles se sustraen en principio a la crítica que plantea la objeción democrática, pero en la medida en que tiendan a degenerar hacia formas fuertes de control judicial, los mismos podrían muy bien volverse problemáticos sobre la base de las mismas objeciones tradicionales esgrimidas en contra de los sistemas fuertes. Finalmente, en cuanto a la promoción del diálogo interinstitucional, existen igualmente algunos problemas para aceptar con facilidad esta teoría en el marco de los sistemas débiles. A quienes sostienen que se trata de una mera concepción retórica antes que una teoría descriptiva o normativa plausible parece asistirles un cierto grado de razón. Por lo demás, si bien el diálogo y la deliberación son importantes previo a la toma de una decisión colectiva, la preocupación fundamental para la objeción democrática en todo caso sigue siendo, a final de cuentas, quién tiene la palabra final. En el contexto de los sistemas débiles, más allá de las formas, debemos observar también la práctica a la que da lugar el ejercicio del control judicial y su impacto sobre el comportamiento de los órganos legislativos a fin de determinar cómo se resuelve esta cuestión en el seno de dichos sistemas. En definitiva, y para responder a la pregunta que formulábamos al inicio mismo de este trabajo, es probable que los sistemas débiles no sean del todo capaces de relegar completamente al olvido al problema 42 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 42-46, jan./mar. 2014 de la objeción democrática al control judicial de la ley. Al final del día, parecería ser que la objeción democrática posee más resiliencia de la que acaso sospechábamos. 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First it analyzes major international rules in this area and after it proposes some solutions for new international regulations to control and reduce the water consumption such as: good practices and standards, recycling and reusing of water, and green government management. KEYWORDS: Water. Scarcity. International. Rules. Agreements. Reduce. Consumption. Good Practices. Standards. Recycling. Reusing. Green. Government. Management. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 49 iNtRodUctioN The great importance of water for human life, for human well being, for the ecosystem and for life in general is currently well known. Furthermore, it is widely accepted that water has been contributing to the development of human society. As a consequence of this development different kinds of freshwater uses are growing. These water uses, such as energy power, industrial, agricultural and cities have had an increased impact on the water supply2 generating a great concern about water scarcity and the necessity to find more sources of water. This concern is even higher in this millennium, a time of climate change and growing human population. As a result, states and the international community have become more aware about problems related to the freshwater supply, especially the ones related to pollution, allocation and sharing a single river basin between countries. In order to deal with water scarcity and conflicts generated by different kinds of water uses, states have entered into many agreements, bilateral, regional, and multilateral, among countries trying to solve their conflicts in sharing the same river basin. Besides that, the international community is also realizing the limits on supply solutions because of the increased demand due to the growing population and the development of new uses for water and also climate change, all this impacting the availability of freshwater. As a consequence, some states have been developing new approaches that focus on reducing the demand for freshwater. However the issues related to reducing the demand for freshwater have not yet been well developed in the international scenario when compared to the other supply related problems, such as pollution control and allocation of water for different uses. The new approaches on reducing the demand for freshwater focus on efficiency of water uses and the decrease of water waste. One approach that has been discussed is the market solution that for some points of 2 CHOPRA, Kanchan et al. Findings of the Responses Working Group of the Millennium Ecosystem Assessment. Ecosystems and Human Well-being: Policy Responses, v. 3, Islandpress, p. 218. Available at International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material page 419. 50 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 50-66, jan./mar. 2014 view can push consumers toward efficiency in water use through the market and price regulation. In this article this solution will not be considered because the market solution would be an entire article itself. The other issue this article will not address is about the possibilities of punishment for individuals and states that do not comply with the rules about efficient water use. Whether to punish misuse or not, and how to develop a system for monitoring user responsibility is an issue for another article as well. Therefore this article will focus on solutions, new practices and standards, except for the market solution, that can lead to the efficiency in water use. Also this article will address the lack of international regulation in this matter3 and offer suggested solutions for how an international regulation can contribute to the development of the efficiency in water uses. I will analyze how this regulation could and should work, taking into consideration some drafts of practices, specifically recycling and reuse of water, and government management programs, already developed in some countries. In order to develop these ideas the article will first show how major International rules about water resources address the problem of reducing water demand of water problem, analyzing the most broad and influential rules in this issue: the 1997 Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Water Courses; the UNECE Convention on the Use of Transboundary Watercourses and International Lakes; and the International Law Association Berlin Rules. Second, I present a brief overview of important examples of good practices and standards, recycling and reusing water and government management, addressing their meaning and importance in the development of more efficient use and in reducing the water demand. Third, this article will develop how these practices can be adopted by these international rules, the meaning and importance of them in the international scenario. In the end, some conclusions and prognostics for this issue will be described. 1 MAJoR iNteRNAtioNAl wAteR ResoURces RUles: How tHey AddRess tHe PRobleM of RedUciNG tHe deMANd foR fResHwAteR. First international document to be analyzed is the Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses 3 WEISS, Edith Brown. The Evolution of International Water Law, Recueil des cours, 2007. page 229-230. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 51 because of its importance and broad reach as a convention adopted by the United Nations. The Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses was adopted by the General Assembly of the United Nations on May 21, 1997. This Convention has it sources in the provisions of the Charter of United Nations – articles 1, 2 and 13 paragraph 1 (a) – and in the necessity to address the problems of increasing demand and pollution of watercourses, as stated in the considerations of the preamble of the document.4 Nonetheless the 1997 Convention on the Law of the Nonnavigational Uses of International Watercourses begins with this general accomplishment to address the increasing demand problem, as this article demonstrates, it seems that this commitment did not lead the Convention to develop rules about reducing demand in comparison to what they do with pollution. It is not the purpose of this article to discuss the reasons behind this lack of reduced water demand rules, but only to analyze it as a source of the necessity for new rules, that this article has the aim to develop. According to article 3, the 1997 Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses is a non-binding convention with the important purpose of developing guidelines for international agreements, bilateral or multilateral, on watercourses. Article 5 of this UN Convention inaugurates the equitable and reasonable utilization of international watercourse. The states are called to “utilize an international watercourse in equitable and reasonable manner … with a view to attaining optimal and sustainable utilization … consistent with the adequate protection of the watercourse.” It is clear that these ideas of reasonable, optimal and sustainable use are related to the reduction of water demand and the efficiency in water use. Especially this idea about “optimal” can be interpreted toward an efficient use, while the other words, sustainable and reasonable, are more vague. Depending on the context, reasonable or sustainable can be related, for example, to pollution issues. 4 Available at International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material, page 35. 52 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 52-66, jan./mar. 2014 As a general principle this purpose can be stated broadly and generally but these words alone do not say too much. The necessity of developing more detailed provisions, this is the lack of rules that this article analyzes and tries to address. Article 6 of the 1997 Convention describes the “factors relevant to equitable and reasonable utilization” and has the purpose of developing the provisions of article 5. However, in the issue of efficiency in water use, this article does not have any more detailed rule, only the letter “f ” that speaks generally about “economy of use”. Part IV of this UN Convention is about “protection, preservation and management”. This part has some more detailed rules about pollution but in article 24 about management and in paragraph 2 letter (b) there are the same general and broad words such as “promoting the optimal and rational utilization” that can be interpreted as related to the issue of reducing the demand for water. Consequently, one can conclude that the 1997 Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses has no detailed rules about the reduction of water demand. The Convention has only very general and vague wording, such as “rational”, “optimal”, “sustainable” related to the utilization of international watercourses, that can or cannot be related to reducing water use, and accepts different kinds of interpretation. Then one can state the necessity of developing rules about the ideas of “rational”, “optimal”, “sustainable” use which must include provisions about how to reduce demand for water, specific directions about the efficiency of water use. Another important instrument is the UNECE Convention on the Use of Transboundary Watercourses and International Lakes. This is a convention state by the United Nations Economic Council for Europe (UNECE) on March 17, 1992 and has the main purpose to address pollution problems in the European rivers. Likewise, the 1997 UN Convention in article 2 about the general provision and paragraph 2 that states the “appropriate measures to ensure that transboundary water are used” letter b “with the aim of ecologically sound and rational water management”. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 53 The UNECE Convention on the Use of Transboundary Watercourses and International Lakes in the above cited article 2 paragraph 5 letter c) states that for the paragraph 2 measures the Parties have to be guided by the general principle that the “water resources shall be managed so that the needs of the present generation are met without compromising the ability of future generations to meet their own needs”. This principle is important because there should be a general assumption that it is related to the reduction of water demand. This article is not the space to better develop this idea, but it comes from the general assumption that the problems of water scarcity and security in a time of growing population and climate change have to be addressed by the reduction of water demand or else the needs of the next generations will not be guaranteed. Another important aspect of the UNECE Convention is the presence of detailed rules about pollution. These rules address issues such as sharing information among states, research, public information, cooperation, mutual assistance, monitoring etc. Nonetheless the UNECE Convention does not have the same provisions about the reduction of water demand, but it provides a model used for pollution that can be adapted to the issues related to efficiency in water use and the reduction of water demand that will be developed later in this article. Another important document is the more recent International Law Association Berlin Rules.5 Before this Berlin Rules launched in 2004, there were the Helsinki Rules created in 1966, on the same purpose to suggest a framework of rules about the uses of the water of international rivers. The International Law Association was founded in 1873 and is a private association with approximately 4000 members worldwide that studies and advances the international law.6 This association is a kind of council of experts from many countries. The 2004 International Law Association Berlin Rules have been developed according to its preface with the purpose of addressing 5 International Law Association Berlin Conference (2004) Water Resources Law available at: <http:// www.internationalwaterlaw.org/documents/intldocs/ILA_Berlin_Rules-2004.pdf>, last consulted on: Dec., 20, 2012. 6 Editors’ Introductory Note Regarding the International Law Association’s Helsinki and Seoul Rules. Available at International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material, page 53. 54 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 54-66, jan./mar. 2014 the problems created by the increased water demand, the supply limited by pollution and climate change that has become a source of conflict between countries. They are not an agreement but they reflect the customary international law and they are applied not only as law between countries but law that regulates water resources at all, according to the article 1. Then the purpose of these Rules is to propose management water solutions. In the article 3 about definitions in the paragraph 19 the meaning of sustainable use is “the integrated management of resources to assure efficient use of and equitable access to waters for the benefit of current and future generations…” Management is understood in a broad view that includes the terms of this article 3, paragraph 14, development, use, protection, allocation, regulation, and control of waters. Despite addressing the efficiency in use in the definition of sustainable use, when chapter 2 states the principles that shall regulate the management of water in article 7 again the idea is expressed only vaguely in words such as “manage water sustainably.” Moreover there is the article 13 about reasonable use and the relevant factors related to it. In the list of these relevant factors there are again vague words such as “the sustainability of proposed and existing use” in letter “h”. And again there is no direct reference to the reduction of water issue, only the same broad words as the 1997 Convention, “economy in use” in letter “f ”. This lack of regulation about efficiency in water use is sensible when related, for example, to assessment and responsibility. These two critical areas must take into consideration the efficiency in use. Article 29 is about the assessment and that its content does not give any reference to the efficiency in use or the avoidance of waste of water. At the same time, article 68 only states that responsibility is related to the sustainable management, but whether this idea of sustainable management is described in the other articles is not linked clearly, in a more detailed way, to the issue of a reduction in the demand for water. As a result, it becomes difficult to demonstrate the responsibility that any state should have for activities that lead to the waste of water. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 55 The International Law Association Berlin Rules were established in 2004, so they are recent and they have some considerable advancement in many areas, including integrating groundwater, navigation and nonnavigation, extreme and war rules, relationship between states, pollution, allocation, primacy of human vital uses, assessment, public participation, cooperation. There are many new important rules but it is very surprising that there is no specific rule about efficiency in use, measures to reducing the demand of water that clearly are needed to fulfill the purpose of the Berlin Rules to collaborate on the development of the International Law and to address the increasing demand of water in a situation of decreasing supply. So, for these Berlin Rules, the same comments are applicable as those stated above about the other documents. In conclusion, it is fair to say that there is a clear demonstration that the international documents analyzed above have not developed detailed rules or even a more clarified principle that includes the issue of a reduction of water demand, adopting the efficiency in water use as a central problem that should have measures to be addressed, such as the development and adoption of good practices and standards, as this article will analyze bellow. 2 towARd New Good PRActices ANd stANdARds This part of the article describes two new good practices and standards used in different activities that have been adopted by some countries and that develop new solutions and ways of addressing the efficiency in water use and the reduction of the demand for water problem. There are other practices and standards that could be brought here and in the same way with an important impact for the efficiency in water use, for example some agricultural new practices that can avoid the waste of water and produce good quality food. The article analyzes these two examples only to illustrate and show that the government has a very important role in both. These two examples come along with a necessity for regulation, new laws and government leadership in directing the solutions. This is important for the role that could be played by the international law as well. 56 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 56-66, jan./mar. 2014 2.1 RecycliNG ANd ReUsiNG wAteR In recent years the development of the recycling and reusing of water has increased as an important solution regarding the growing water demand. The costs and benefits analysis related to the recycling and reusing of water has pushed Governments to consistently find solutions to avoid barriers and better develop these practices. One example of this development on the reuse and recycling of water is in the western states of the United States. In these states there is already a general assumption that their problems regarding population growth, scarcity of water and the lack or cost of new water supplies has directed them to the solutions offered by the reuse and recycling of water.7 The reuse of wastewater is a practice that has been growing especially because of the improvement of technology for water treatment. The reclaimed water is a kind of water effluent, a wastewater that had certain kind of treatment utilizing the wastewater treatment plant (WWTP) effluent. The reclaimed water can be use in many ways but recently this practice is being developed in many cities to provide tap water for the population.8 In many kinds of water reuse the effluent is treated and goes back to watercourse and then back to houses. However there are other reuse or recycling practices that do not need a treatment or that the water does not go back to the watercourse. In these reuse and recycling practices the efficiency is improved and avoid the costs of treatment or the loss of water in dry climate areas. One example is the use of effluent in industries that have their own equipment to treat water and use it again in the same facility for the cooler.9 Another example is the grey water that does not need specific treatment for the effluent. The grey water use means to reuse the nontoilet household water, for example, in agriculture and garden watering. 7 BRACKEN, Nathan S. Water Reuse in the West: State Programs and Institutional Issues. A Report Complied by the Western States Water Council, 18 Hastings W.- N.W. Journal Environmental Law & Policy 451, 528-29 (2012). 8 CHAPMAN, Ginette. From Toilet to Tap: The Growing Use of Reclaimed Water and the Legal System’s Response. Arizona Law Review 47, 773 (2005). 9 Ibid. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 57 This is one example of recycling water that has been adopted successfully in the US’ western states.10 The advantages related to this practice are low cost compared to other supply solutions; the ecological benefits related to recycling as wastewater because there is an abundance of wastewater due to a growing population that at the same time provides an increased source for recycling water.11 There are some barriers that have to be addressed in order to implement recycling and reusing water as an effective program. The western States in the US have for example addressing problems regarding legal drafts to adapt the reuse and recycle issue to the water rights already established.12 Therefore there are many different legal frameworks that have been developed not only in the U.S. but around the world that are able to regulate and stimulate this practice. The solutions have to come from a better development of policies related to education and funding too. The implementation of the reuse and recycling water policy needs a strong political will and at the same time more public participation and society’s involvement.13 2.2 GReeN GoveRNMeNt MANAGeMeNt Some countries, such as Brazil, United States, Canada and Israel are developing governmental programs in order to stimulate new water management practices in public administration. These practices happen inside the government, in its own facilities and offices. The programs can be called green government or green government management or green public administration. These programs have a focus first on public procurement in order to purchase products that in their production use less water or energy or 10 SNODGRASS, Michael R.F. Greywater - the Reuse of Household Water: A Small Step Toward Sustainable Living and Adaptation to Climate Change. Georgetown International Environmental Law Review, 22, 591 (2010). 11 Ibid. 12 STEIN, Jay F. et al. Water use and reuse: the new hydrologic cycle. Rocky Mountain Mineral Law Foundation-Institute 29-1 (2011). 13 STEIN, Jay F. et al. op. cit. 58 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 58-66, jan./mar. 2014 can reduce the waste of water, improve energy efficiency and recycling in government buildings. This public procurement can be called green procurement and has a focus in buying products that help to improve water efficiency not only in the government, but also outside, in industry and agriculture, because the government will give preference to products that use less water in their production or products that come from a process that uses recycled or reused water or that has been developed in a way to avoid the waste of water. These programs have the importance to stimulate a new market for products, in the case of water, that leads to efficient water use and to a recycling and reusing water operation. Also these programs focus on a changing pattern of using water, energy and other goods and promoting a culture to avoid waste inside the government. In order to achieve these targets, some of them, such as the Brazilian program, rely more on changing civil servants’ habits, others rely more on management changing and equipment purchasing or everything combined. Moreover, for example in Brazil14, there are educational programs for the civil servants to stimulate the efficiency in water use in order to change their habits and culture of water waste. This educational approach is equally important to stimulate not only the civil servants but the entire society to be more careful about the waste of water. The government has an important role as a leader in stimulating the efficient use of water, the production of these products and new technology that is more efficient in water use. Another way to achieve the targets of reduction of water use is the governmental green buildings equipped with equipment in restrooms, for example, to avoid the waste of water. Another interesting example is the adoption of a reservoir on the top of governmental buildings that can collect rainwater and use this water directly in the toilets. This technology is easy to install, 14 FERREIRA, Maria Augusta. Apontamentos sobre Gestão Socioambiental na Administração Pública Brasileira. In: BLIACHERIS, Marcos Weiss and FERREIRA, Maria Augusta, Sustentabilidade na Administração Pública: Valores e Práticas de Gestäo Socioambiental. Belo Horizonte: Forum, 2012. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 59 has a low cost and is important in some Brazilian cities that have been suffering with floods during the rainy season. In these Brazilian cities and states, the government has been adopting laws that require this kind of equipment in order to give permits for new buildings. However this practice has to begin in the government building itself to set the example and the directions to the entire society. Another good example of green government management is the US program implemented by the Executive Order 13514. Specifically in the water issue the EO 13514 directs the federal agencies and offices to an efficient use of water.15 This US program has been developing reduced water consumption goals to be achieved by the agencies and a monitoring system to assure the achievements. It has a special focus on a management system that can lead to achieving the targets, measuring concrete results of less use of water and monitoring this achievement.16 The US government structure is well developed in the hierarchy system beginning with the President and the EO 13514 and continues up to the high levels of the agencies commanding the staff to achieve the goals and reporting the achievements to a central committee that directs the information back to the President’s office. These programs are examples of how the government can play a special role to indicate and stimulate a new path toward more efficient water use. As President Barack Obama said: “As the largest consumer of energy in the U.S. economy, the federal government can and should lead by example when it comes to creating innovative ways to reduce greenhouse gas emissions, increase energy efficiency, conserve water, reduce waste and use environmentally responsible products and technologies.”17 Despite all this contribution as a leadership program, these governmental programs have to address some internal problems, such 15 FIORINO, Daniel. Implementing Sustainability in Federal Agencies an early assessment of President Obama’s Executive Order 13514. Available at:<http://www.businessofgovernment.org/sites/default/files/ Implementing%20Sustainability%20in%20Federal%20Agencies.pdf>. Last consulted on: Dec., 20, 2012. 16 Ibid. 17 FIORINO, op. cit. 60 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 60-66, jan./mar. 2014 as lack of resources, internal political conflicts and economic sector resistances. In some countries there are legal problems too. Even in Brazil, for example, where new laws were established in order to support these green governmental approaches, there are some problems to accept these new laws when they generate a conflict with old laws well established in the Brazilian courts, especially in green procurement issues, challenging governmental lawyers to develop and promote a new interpretation of the old laws in order to conciliate them with the new ones.18 Furthermore there is no specific provision in international law about the government’s role or responsibility in developing these programs. The green government management is not explicitly stated in any International document. International declarations and covenants in the environmental area address green or sustainable management issues but without mentioning the governmental management and the specific role that has to be played by the public administration in this area. The public green procurement is one exception. It is stated in the plan of implementation of Johannesburg Declaration at item III, paragraph 19, letter “c”. This item is about “changing unsustainable patterns of consumption and production” and paragraph 19 is about the actions that have to be taken from authorities in all levels including: “c - promote public procurement policies that encourage development and diffusion of environmentally sound goods and services”.19 However the Johannesburg implementation plan does not largely consider the role of the government as a big consumer and as, in certain way, a producer of some goods as well. This international document does not cite the government’s special role in order to change these patterns of production and consumption, beginning inside the government and spreading to the society through new ones. As President Barack Obama said, the kind of leadership that comes with his own actions in consumption and production inside the government. 18 FERREIRA, Maria Augusta. As Licitações Públicas e as Novas Leis de Mudança Climática e de Resíduos Sólidos. In: SANTOS, Murillo Giordan and BARKI, Teresa Villac Pinheiro. Licitações e Contratações Públicas Sustentáveis. Belo Horizonte: Forum, 2011. 19 Plan of Implementation of the Johannesburg World Summit on Sustainable Development. Available at: <http://www.un-documents.net/jburgpln.htm#V>. Last consulted on: Dec., 19, 2012. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 61 The necessity of International provisions about green government programs goes in the direction that this article is trying to address: international law supporting and pushing for the development of these programs which can help the government to fight its own internal resistances and problems that attempt to harm the development of this programs. 3 PRoPosAl RUles All these practices, standards, and examples, ways to reduce the waste of water, listed above are feasible and easy to implement but they do have to face some challenges to a better and broad development. The most important challenges are the political will and society’s involvement. On the other hand, these practices are not clearly expressed in any major international agreement or rule. As seen above the International rules are vague in their references about the efficiency in water use and the reduction of the waste of water, despite the urgency of these issues in this century’s international water scenario. The existence of rules incorporating the practices and standards exemplified above in a context of a major international agreement or rule does not necessarily need to be a binding instrument, but at least a framework of a model that can be followed and adapted by the countries in their bilateral, regional or multilateral agreements. This article demonstrates that the three documents analyzed above could have been inserted, in an easy way, not confronting already existing rules, the practices and standards above described. The adoption of these rules, even in a broad way, would be very important to push the governments and societies in order to facilitate the adoption of these practices as much as possible. These rules could be included, for example, in the article 6 of the 1997 UN Convention cited above. This article describes “factors relevant to equitable and reasonable utilization”. So a new letter “h” could talk about the existing practices and standards used by the watercourse states or other states that are able to promote efficiency in water use and the recycling and reusing of water. In the article 24 of this UN Convention that is about management, in paragraph 2 a new letter (c) there could be a mandate to promoting 62 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 62-66, jan./mar. 2014 best practices to avoid the waste of water and another letter (d) to promote the recycling and reuse of water. The UNECE Convention on the Use of Transboundary Watercourses and International Lakes in the above cited article 2 about the general provision and paragraph 2 that could have a new letter stating about the “appropriate measures to ensure that transboundary water are used with the application of the best practices and standards available to reduce the waste of water, specially considering the use of recycled and reused water”. The UNECE Convention has also, as cited above, detailed rules about pollution. The same kind of rules can be used to efficiency in water use too. These related rules are adequate to be applied or adapted to the efficiency issue as well. The best practices, recycling and reuse issues need rules such as the UNECE Convention has about pollution directed to share data and information; promote research, public information and participation; cooperation and mutual assistance between the countries for the adoption and development of the good practices. The 2004 International Law Association Berlin Rules in the article 3 about definitions paragraph 14 about management could include recycling and reuse. This paragraph 14 states that “management of water and to manage waters includes the development, use, protection, allocation, regulation, and control of waters.” So it is clearly possible to add after use, recycling and reuse. Also the chapter 2 about the principles that shall regulate the management of water in article 7 could add the word efficiently in its terms and becoming: “States shall take all appropriate measures to manage waters sustainably and efficiently.” Article 13 is about the relevant factors to consider about a reasonable use including “economy in use” in letter “f ” and “the sustainability of proposed and existing use” in letter “h”. Here could be added another letter about best practices and standards and another about recycling and reuse of water as a relevant factor to consider in order to address the reasonable use. In the Berlin Rules the impact assessment is regulated in article 29. this impact assessment could include the analyses of alternative solutions using the best practices and the recycling and reuse to analyze the possibility of other solutions. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 63 The responsibility aspect that is addressed by the Berlin Rules is very important as well, but at least initially, in our opinion, the best way to promote the water efficiency is to stimulate these good practices and standards than to punish the waste of water. The punishment can be a second measure when the good practices are already well developed and broadly applied. Other issues addressed by these international documents are very important in the good practices promotion as well. The articles in these documents that address issues such as, public participation, international cooperation, sharing information and funding, for example, should be integrated in this reducing of water demand problem too. The proposing rules developed here aim to show that is easy to include the efficiency, recycling, reuse, best practices and standards in conventions, international rules, and other kinds of international documents. Furthermore, the international rules about efficiency in water use would play the same influence as the already better developed pollution rules. The increasing and expanding detail of the pollution rules has been very helpful for the pollution decrease and control in many countries. The same idea can be applied to the waste water control and decrease. The more detailed the rules the easier to apply them, to comply and even to demand responsibility if they are not observed. The results can be followed and monitored by the riparian countries that can win in more quantity of water and sharing technology, research and information in a spirit of mutual assistance and cooperation. Otherwise, the reference to these practices or standards in an international agreement or rule would influence the bilateral or regional agreements to include them and to rely on the possibility of reducing the waste of water in one feasible alternative for conflict solution. At the same time, these new international rules about water efficiency could be spread not only to riparian countries and their basin, but other basins and countries in a virtuous cycle. And it is not necessary that these international rules be binding. Some of the agreements or rules discussed in this article are non binding, however they have been influencing many countries to adopt their model of rules in the basin agreements as well as in regional or multilateral agreements. 64 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 64-66, jan./mar. 2014 On the other hand, as in almost all environmental issues, the public participation and information have a central role in the issues related to efficiency in water use. The civil society, NGOs, environmental groups, business groups and other stakeholders have important roles to play in the development and expansion of the reduction of the waste of water in each country and in the international community. This involvement of the society and the international community can be pushed and developed by the adoption of the efficiency in water use in the International agreements and rules. It does not matter if these rules are binding or non-binding instruments because in the current international law scenario the only existence of these rules would play a very important role in promoting these practices in many countries and would help to improve the practices already existent in other countries. 4 coNclUsioN As discussed above, given the current consensus about the necessity of states and the international community to address the increasing problems related to water scarcity and given the limits of the supply solutions that have already been developed, reactions direct the states and the international community to the adoption of solutions aiming at the reduction of the water demand. One of those kinds of solutions are the best practices and standards such as the two examples explained above. These examples give an idea about how these practices have already been adopted by some countries, the important role that they play in the issue of reducing the demand for water and some general problems that these countries have been facing in order to improve the implementation of these new practices. In addition to that, this article explained the necessity and the lack of an approach for the reduction of water demand, and especially the best practices idea, in international agreements or rules, as frameworks, binding or non-binding rules. Moreover, the adoption of the reduced demand of water focus is not difficult to be included in these kinds of international documents. This inclusion would play a very important role by contributing Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 65 to the development and improvement of these practices in many countries through the involvement and participation of society and the international community. In conclusion, the adoption of international rules on the reduction of water demand will indeed contribute to the most important purpose of all the discussion stated above: water security and quality of life for present and future generations. RefeRÊNciAs BRACKEN, Nathan S. Water Reuse in the West: State Programs and Institutional Issues. A Report Complied by the Western States Water Council, 18 Hastings W.- N.W. Journal Environmental Law & Policy 451, 52829 (2012). CHAPMAN, Ginette. From Toilet to Tap: The Growing Use of Reclaimed Water and the Legal System’s Response. Arizona Law Review 47, 773 (2005). CHOPRA, Kanchan et al. Findings of the Responses Working Group of the Millennium Ecosystem Assessment. Ecosystems and Human Well-being: Policy Responses, v. 3. Islandpress, p. 218. Available at International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material. FERREIRA, Maria Augusta. Apontamentos sobre Gestão Socioambiental na Administração Pública Brasileira. In: BLIACHERIS, Marcos Weiss and FERREIRA, Maria Augusta, Sustentabilidade na Administração Pública: Valores e Práticas de Gestäo Socioambiental. Belo Horizonte: Forum ed. 2012. FERREIRA, Maria Augusta. As Licitações Públicas e as Novas Leis de Mudança Climática e de Resíduos Sólidos. In: SANTOS, Murillo Giordan and BARKI, Teresa Villac Pinheiro. Licitações e Contratações Públicas Sustentáveis. Belo Horizonte: Forum, 2011. FIORINO, Daniel. Implementing Sustainability in Federal Agencies an early assessment of President Obama’s Executive Order 13514. Available at: <http://www.businessofgovernment.org/sites/default/files/ Implementing%20Sustainability%20in%20Federal%20Agencies.pdf >. Last consulted on: Dec., 20, 2012. 66 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 66-66, jan./mar. 2014 International Law Association Berlin Conference (2004) Water Resources Law available at: <http://www.internationalwaterlaw.org/documents/ intldocs/ILA_Berlin_Rules-2004.pdf>, last consulted on: Dec., 20, 2012. Plan of Implementation of the Johannesburg World Summit on Sustainable Development. Available at: <http://www.un-documents.net/jburgpln. htm#V>. Last consulted on: Dec., 19, 2012. SNODGRASS, Michael R.F. Greywater - the Reuse of Household Water: A Small Step Toward Sustainable Living and Adaptation to Climate Change. Georgetown International Environmental Law Review, 22, 591 (2010). STEIN, Jay F. et al. Water use and reuse: the new hydrologic cycle. Rocky Mountain Mineral Law Foundation-Institute 29-1 (2011). WEISS, Edith Brown. The Evolution of International Water Law, Recueil des cours, 2007. page 229-230. _______International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material. o veto PResideNciAl No diReito coNstitUcioNAl NoRte-AMeRicANo tHe PResideNtiAl veto iN tHe AMeRicAN coNstitUtioNAl lAw Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy Procurador da Fazenda Nacional, Consultor-Geral da União1 Doutor e Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP. Pós-doutor em Direito Comparado (Universidade de Boston) e em Teoria Literária (Universidade de Brasília-UnB). 1 Livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP. Professor visitante na Faculdade de Direito da Universidade da California-Berkeley. 68 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 68-88, jan./mar. 2014 A atuação legislativa do presidente norte-americano se dá também mediante o exercício do direito do veto2. Nesse caso, tem-se atuação presidencial aparentemente negativa no processo legislativo norte-americano. Há expressa previsão constitucional para esse poder3. A assertiva, de algum modo, também se projeta no direito constitucional brasileiro; argumento que o poder de veto é menos simbolico do que efetivamente prospectivo. O veto promove, de fato, ativismo presidencial. Há equívoco em quem sustente que o poder legislativo presidencial se realiza, tão somente, na utilização de medidas provisórias e decretos. Não há, no entanto, ao que consta, estudo sistemático sobre o veto no direito brasileiro. No presente artigo trato do tema do veto presidencial, no modelo norte-americano. Franklyn Delano Roosevelt foi o presidente norte-americano que vetou o maior número de projetos de lei; foram 635 negativas de promulgação de leis que o Congresso havia encaminhado4. Grover Cleveland segue na lista, com um total de 584 vetos. Grover Cleveland foi o único presidente norte-americano a exercer por duas vezes a chefia do Executivo federal nos Estados Unidos, descontinuadamente. Vetava intensamente, firme na convicção de que a Presidência tinha como missão restringir os excessos do Congresso5. Harry Truman, que viveu delicadíssimo momento histórico marcado pela guerra fria, valeu-se do veto por 250 vezes. Dwight David Eisenhower, que também chefiou o Executivo norte-americano no contexto da guerra fria6 lançou 181 vetos a lei encaminhadas para sua apreciação. Inclusive, tratou por intermédio de veto matérias de importância menor, pela relevância e pelo alcance. Ilustrando a assertiva o registro de que Eisenhower vetou projeto de lei que dispunha sobre melhoramentos de postos de gasolina no Distrito de Columbia, invocando que a medida contrariava os planos de ocupação da capital 2 O presente artigo é excerto de pesquisa realizada na Faculdade de Direito da Universidade da CaliforniaBerkeley ao longo de estudos realizados em janeiro e fevereiro de 2014. Agradecimentos a Kate Jastram, professora de Direito Internacional na referida faculdade. 3 Constituição dos Estados Unidos, art. I, sec 7, parágrafos 2 e 3. 4 Cf. JIMSEY, George Mc. The Presidency of Franklyn Delano Roosevelt. Lawrence: University Press of Kansas, 2000. 5 Cf. GERHARDT, Michael. The Forgotten Presidents: Their Untold Constitutional Legacy, Oxford: Oxford University Press, 2013. p 127. 6 Cf. PACH JR., Chester J.; RICHARDSON, Elmo. The Presidency of Dwight D. Eisenhower. Lawrence: University Press of Kansas, 1991. p. 75 e ss. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 69 norte-americana7. Nesse caso, matéria urbanística, predominante local, fora objeto de veto presidencial. Ulisses S. Grant, herói da guerra civil norte-americana, vetou 93 projetos de leis. Theodore Roosevelt, na década de 1910, utilizou o instituto do veto 82 vezes8. Na opinião de estudioso do presidencialismo norte-americano, “o veto era apenas uma arma de autodefesa para o presidente; era o que propiciava ao presidente meios para manter seu juramento, no sentido de que se comprometia a preservar, proteger e defender a Constituição; não se prestando para nenhum outro propósito”9. Ao longo da história norteamericana o veto se transformou em importantíssimo mecanismo de enfrentamento do Congresso e de implemento de políticas publicas forjadas na agenda presidencial. O instituto do veto reflete paradoxo, na compreensão de professor norte-americano, em livro clássico, de 1890. Porquanto presentemente o veto pareça tão somente o poder de se barrar a passagem de proposta em lei, fora concebido inicialmente como prerrogativa para a construção (positiva) de lei. Isto é, o veto é, na essência, importante instrumento de legislação positiva, de criação de norma e não, necessariamente, poder de obstrução ou de resistência ao processo legislativo. Esse paradoxo seria explicado pelo fato de que o processo legislativo permite que se exerça o direito de se aceitar ou de se rejeitar uma determinada proposição legislativa que se esteja discutindo. O veto, assim, exprime funções positivas e negativas; e sua função mais recente consiste no poder de se obstruir ou negar10. É o que se constata na experiência norte-americana, a exemplo do que ocorre na experiência constitucional brasileira. 7 EISENHOWER, Dwight D. Public Papers of the Presidents of the Unites States (1953). Washington: Office of the Federal Register, 1953. p. 525. 8 Cf. BURSCH, Noel T., T.R. The Story of Theodore Roosevelt and his influence on our times. New York: Reynal and Company, 1963. 9 CORWIN, Edward S. The President- Office and Powers- 1787-1984. New York and London: New York University Press, 1984, p. 319. No original: “The veto was solely a self-defensive weapon of the President; it was means furnished him for carrying out his oath, to preserve, protect and defend the Constitution and was not validly usable for any other purpose”. 10 Cf. MASON, Edward Campbell. The Veto Power- its Origin, Development and Function in the Government of the United States (1789-1889). Boston: Ginn and Company, 1890. p. 11. No original: “The veto power which today seems purely a power to prevent the passage of proposed laws, originated as a part of the power to make them. This paradox is explained by the fact that legislation includes the right of the legislating body either to accept or to to reject the propositions which it discusses. It has a positive and a negative function, and this latter function is in its nature a power to veto or deny”. 70 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 70-88, jan./mar. 2014 Em linhas gerais, o veto presidencial precede e controla a promulgação de uma lei11; confere ao presidente boa margem de controle do processo legislativo12; é arma poderosa na ação negativa de presidentes e de governadores13. Trata-se de arranjo institucional contra-fático em um direito prioritariamente parlamentar14. Conforme afirmou um autor cuja primeira edição de seu livro é de 1917, o veto qualifica-se por manifestar um poder efetivamente rescisório15. Originalmente, ao que parece, o uso do veto por parte dos presidentes norte-americanos era muito raro. Quando o faziam, registravam objeções às leis encaminhadas, exercendo de algum modo um controle prévio de constitucionalidade16. Andrew Jackson notabilizou-se por ter usado o veto por sete vezes, sendo que o Congresso não conseguiu derrubar nenhum dos vetos então lançados17. Em 10 de julho de 1832 Andrew Jackson vetou um projeto que pretendia garantir a criação de um segundo banco nacional norte-americano. Foi Andrew Jackson que fez do veto uma arma muito poderosa, especialmente quando da referida discussão em torno da certificação de um segundo banco nacional18. O banco funcionava desde o tempo de James Madison, seguia o modelo de Alexander Hamilton (criador do primeiro banco nacional norte-americano). A negativa de Jackson conduziu a privatização desse banco, em 1836. Considera-se esse veto de Andrew Jackson como o mais celebrado de todos os vetos da história constitucional norte-americana. Deu-se em um clímax nas relações entre o executivo e o legislativo, continuando disputa que se ampliava desde 1830. Verifica-se a coragem de Andrew 11 JORDAN, E. Theory of Legislation- An Essay on the Dinamics of Public Mind. Chicago: The University of Chicago Press, 1952. p. 366 e ss. 12 Cf. DAVIES, Jack. Legislative Law and Process in a nutshell. St. Paul: West Publishing, 1986. p. 82. 13 Cf. JEWELL, Malcolm; PATTERSON, Samuel C. The Legislative Process in the United States. New York: Random House, 1973. Conferir também PLACE, Lucille. Parlamentary Procedure Simplified: A Complete Guide to Rules of Order, New York: Frederick Fell, 1976. 14 Cf. KARCHER, Joseph T. Handbook on Parliamentary Law. Charlotesville: The Michie Company Law Publishers, 1959. 15 Cf. FREUND, Ernst. Standards of American Legislation. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1965. 16 Cf. CORWIN, Edward S.; KOENIG, Louis W. The Presidency Today. New York: New York University Press, 1956, p. 87. No original: “Early presidents used the veto rarely, mainly to register objections on constitutional grounds […]”. 17 Cf. KOENIG, Louis W. The Chief Executive. New York: Harcourt, Brace and World Inc., 1964. p. 18. 18 Cf. CORWIN, Edward S.; Koenig, Louis W. cit., loc. cit. No original: “ […] but Andrew Jackson made it [the veto] a major weapon in his wars on the Bank of the United States”. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 71 Jackson em enfrentar uma rejeição pelo Congresso, enfrentando-a como uma consequência imprevisível. Andrew Jackson interpretou audaciosamente a Constituição norte-americana, com conclusões perigosas que poderiam conduzir a consequências desastrosas. Esse é o raciocínio de um estudioso do presidencialismo norte-americano, observando que o mencionado veto teria garantido a reeleição de Andrew Jackson em 1832, ainda que seus seguidores não pudessem prever que seria esse o resultado do embate com o Congresso19. George Washington, por exemplo, vetou apenas dois projetos a ele encaminhados. Em 5 de abril de 1792 lancou objeções a um projeto que definia o número de representantes na Câmara dos Deputados com base no censo de 1790. Trata-se do primeiro veto que se tem notícia na história constitucional norte-americana. Washington invocou inconstitucionalidade na pretensão do Congresso. Ainda que os congressistas tentassem derrubar o veto de Washington, não obtiveram o quorum necessário. Comprovou-se a dificuldade que há na movimentação e na articulação do legislativo com vistas a derrubada de veto presidencial. A par de enfrentamento político, o veto também suscita discussão em torno de importantíssimas questões de fundo constitucional. James Madison (que vetou 7 projetos de lei) insurgiu-se contra projeto do Congresso que pretendia incorporar a Igreja Episcopal de Alexandria (no estado da Virginia) ao Distrito de Columbia. Em 21 de fevereiro de 1811 vetou a iniciativa, com base em emenda constitucional que previa a liberdade religiosa. Foi essa a mesma justificativa utilizada por James Madison para vetar, uma semana depois (em 28 de fevereiro de 1811), um projeto do Congresso que pretendia distribuir terras públicas no Estado do Mississipi em favor da Igreja Batista. Transita-se no complexo tema das relações entre Estado e Igreja; vige nos Estados Unidos a 19 Cf. Jackson, Carlton, Presidential Vetoes- 1792-1945, Athens: University of Georgia Press, 1967, p. 29. No original: “Executive disapproval of the Bank Rechartering Bill of 1832 remains the most celebrated veto in American history. It marked the climax of the presidential – legislative dispute which had been steadly developing since 1830. It showed the courage of Jackson in handing out a rejection whose consequences could not be foreseen. It also appeared to introduce a startling interpretation of the Constitution which could have momentous consequences if carried to its ultimate conclusions. Finally, it assured Jackson of reelection in 1832, althought the Jacksonians could not be certain that this would result”. 72 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 72-88, jan./mar. 2014 denominada Establishment Clause Standard, que impõe que o governo não pode manifestar preferência por nenhuma religião20. Andrew Johnson, em 27 de marco de 1866, vetou o Civil Rights Act, documento que garantia aos afrodescendentes o gozo de direitos civis. Vivia-se momento histórico de muita dificuldade, a Guerra Civil se encerrara no ano anterior. O Congresso derrubou o veto de Andrew Johnson. A Nação sentia-se ultrajada depois do assassinato de Lincoln, a quem se reportava a lei que Andrew Johnson quis vetar21. Até o momento da redação do presente trabalho (fevereiro de 2014) são contabilizados 2564 vetos presidenciais nos Estados Unidos. Desse total, 1497 foram vetos regulares, enquanto que se registra também 1067 vetos de bolso, modalidade que será explicada mais adiante. Comprovando-se a força do instrumento, observa-se que apenas 110 vetos foram derrubados. Isto é, apenas 4% dos vetos lançados pelo presidentes norte-americanos foram enfrentados e derrubados pelo Congresso. Entende-se que o moderno veto presidencial possua uma qualidade dupla. Trata-se também de um poder substantivo, e efetivamente potente. Porém, pode ser politicamente perigoso para o presidente que o usa intensamente. O veto, nessa concepção, detém também qualidade simbólica que, ainda que de forma etérea, possa ser altamente útil para os presidentes22. No modelo norte-americano, além do veto presidencial há também os vetos dos governadores estaduais, com exceção do Estado da Carolina do Norte, no qual tal arranjo constitucional não é utilizado23. É compreensão comum que o veto do modelo constitucional norteamericano não seja absoluto; trata-se, no entanto, de um veto qualificado, no sentido de que o chefe do Executivo deve informar ao Legislativo suas razões, que podem ser derrubadas pelo Congresso24. 20 Cf. BERG, Thomas C. The State and Religion in a nutshell. St. Paul: West Group, 1998. p. 25 e ss. 21 Cf. HARRIS, William C. Lincoln’s Last Months. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2004. p. 225. 22 SPITZER, Robert J. The Presidential Veto- Touchstone of the American Presidency. Albany: State University of New York Press, 1988. p. 145. No original: “The modern veto power possesses a dual quality. As a substantive power, it is potent, but politically dangerous for presidents who use it too much. The veto also has a symbolic quality that, though, ethereal, can be highly unseful for presidents”. 23 Cf. ANTIEAU, Chester James. The Executive Veto. London: Oceana Publications, 1988. 24 Cf. ANTIEAU, op. cit., p. 4. No original: “ The American veto is not an absolute veto, but only a qualified one, in the sense that the executive must provide the legislative with his objection and that it can be overriden by the legislature”. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 73 Franklyn Delano Roosevelt foi o presidente norte-americano que mais leis vetou25; Truman26, Eisenhower27 e Ronald Reagan28 impuseram vetos a massiva legislação em matéria economica, a eles submetida por Congressos abertamente hostis ao Executivo29. São presidentes de personalidade forte e combativa, que enfrentaram Congressos igualmente ativos e ativistas. Ronald Reagan, contraditoriamente, por exemplo, vetou projeto de lei que daria direito ao acesso ao Parque Nacional de Buffalo a proprietário rural cuja área era adjacente ao referido parque. Reagan argumentou que os parques deveriam servir a todos, sem discriminação, a par do que, acrescentou, os parques deveriam ser preservados30. Gerald Ford vetou um projeto que tratava de subsídios ao leite; argumentou que iria onerar os contribuintes31. Nesse último caso trata-se de veto corajoso, na medida em que desagradou setor produtivo, não conseguindo também cortejar ao consumidor, porque os preços não cairiam; mostra-se, no entanto, visão realista, dado que a conta seria paga pelos cofres públicos, que são alimentados por recursos extraídos dos contribuintes, por meio de tributos ou de políticas inflacionárias. Compreende-se também que o uso recorrente do mecanismo do veto seja arranjo institucional de grande importância política, porquanto mantém o Congresso permanentemente avisado de que deva compor com o Presidente32. Vários presidentes norte-americanos não vetaram leis 25 Cf. KOENIG, op. cit., loc. cit. 26 Harry Truman apresentou 250 vetos. Desse total, 180 foram vetos regulares e 70 foram vetos de bolso. 27 Dwight David Eisenhower apresentou 181 vetos. Desse total, 73 foram vetos regulares e 108 foram vetos de bolso. 28 Ronald Reagan apresentou 78 vetos. Desse total, 39 foram vetos regulares e tambem 39 foram os vetos de bolso. 29 Cf. KOENIG, op. cit., p. 18-19. 30 REAGAN, Ronald. The Puplic Papers of the Presidents of the United States (1988-1989). Washington: United States Government Printing Office, 1991. p. 1316. 31 FORD, Gerald R. The Public Papers of the Presidentes ot the United States (1976-1977). Washington: United States Government Printing Office, 1979. p. 115. 32 Cf. CORWIN; KOENIG, op. cit., p. 88. No original: “[…] used frequently, the veto keeps the legislators aware that they must reckon with the President”. 74 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 74-88, jan./mar. 2014 encaminhadas para promulgação33. Há também registros de presidentes que apresentaram número pouco significativo de vetos34. Na medida em que avaliamos mandatos mais recentes, o número de vetos aumenta, o que reflete conflitos do Executivo com o Congresso, circunstância potencializada pela complexidade das matérias submetidas ao presidente. Nessa lista pode-se incluir Benjamin Harrison35, William Mc Kinley36, Theodor Roosevelt37, Woodrow Wilson38, Calvin Coolidge39, Herbert Hoover40, John Kennedy41, Lyndon Johnson42, Richard Nixon43, Gerald Ford44, Jimmy Carter45, Ronald Reagan46, George H. W. Bush47 e Bill Clinton48. George W. Bush lançou poucos vetos, o que naturalmente reflete o controle do partido republicano nas agendas do Senado e do Congresso49. Embora, bem entendido, na campanha presidencial de 2000, Bush mostrou-se preocupado com a diminuição da autoridade presidencial, o que explicava do ponto de vista moral: pregou que restauraria a moral na Casa Branca. Essa suposta insuficiência moral que Bush combatia teria fortalecido o Congresso em relação ao Executivo. Por isso, comprometeu33 São eles: John Adams, Thomas Jefferson, John Quincy Adams, William Henry Harrison, Zachary Taylor, Millard Filmore e James Garfield. 34 São eles: James Monroe (1 veto), Martin Van Buren (1 veto), John Tyler (10 vetos), James Polk (3 vetos), Franklin Pierce (9 vetos), James Buchanan (7 vetos), Abraham Lincoln (7 vetos), Rutherford Hayes (13 vetos), Chester Artur (12 vetos), Warren Harding (6 vetos). 35 19 vetos regulares e 25 vetos de bolso, com um total de 44 vetos. 36 6 vetos regulares e 36 vetos de bolso, com um total de 42 vetos. 37 42 vetos regulares e 40 vetos de bolso, com um total de 82 vetos. 38 33 vetos regulares e 11 vetos de bolso, com um total de 44 vetos. 39 20 vetos regulares e 30 vetos de bolso, com um total de 50 vetos. 40 21 vetos regulares e 16 vetos de bolso, com um total de 37 vetos. 41 12 vetos regulares e 9 vetos de bolso, com um total de 21 vetos. 42 16 vetos regulares e 14 vetos de bolso, com um total de 30 vetos. 43 26 vetos regulares e 17 vetos de bolso, com um total de 43 vetos. Entre os vetos regulares, em 17 de outubro de 1972 Richard Nixon vetou o Clean Water Act, substancialmente em matéria ambiental. Esse veto foi derrubado pelo Senado norte-americano. 44 48 vetos regulares e 18 vetos de bolso, com um total de 66 vetos. 45 13 vetos regulares e 18 vetos de bolso, com um total de 31 vetos. 46 39 vetos regulares e 39 vetos de bolso, com um total de 78 vetos. 47 29 vetos regulares e 15 vetos de bolso, com um total de 44 vetos. 48 36 vetos regulares e 1 veto de bolso, com um total de 37 vetos. 49 11 vetos regulares e 1 veto de bolso, com um total de 12 vetos. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 75 se a proteger o Executivo contra o Congresso, negando-se a se portar como um refém do Poder Legislativo50. O veto é componente de técnica política que se realiza no tempo e que radica no tema clássico da separação dos poderes. Verifica-se em livro de meados do seculo XX informação que nos dá conta de que os autores da Constituição norte-americana levavam muito a sério as palavras e ensinamentos de William Blackstone e de Montesquieu. Ambos enfatizavam a importância da separação entre funções legislativas, executivas e judiciais no governo. Esse modelo de separação fora observado pelos autores da Constituição dos Estados Unidos, sem que se registrase formalmente no texto constitucional uma declaração de adesão a essa concepção51. Na opinião de outro estudioso norte-americano o veto seria, na essência, um instrumento defensivo para o chefe do Poder Executivo. E também deve ser visto como uma das armas mais poderosas que presidentes e governadores contam na tentativa de influenciarem o comportamento do Poder Legislativo52. O crescimento das expectativas públicas e das demandas para a ação governamental fomentam conflitos entre o Congresso e o Executivo, realçando a importância da prerrogativa do uso do veto, por parte do Presidente da República53. O veto também é, na essência, uma ultima ratio para uma tentativa de se garantir uma agenda política; o veto de Bush (pai) em matéria de leis de cotas é dessa assertiva um exemplo importante54. 50 Cf. RUDALEVIGE, Andrew. The New Imperial Presidency- Renewing Presidential Power After Watergate. Ann Harbor: The University of Michigan Press, 2008. p. 211. 51 Cf. CLARK, Georg L. Summary of American Law. Rochester: The Lawyers Cooperative Publishing Company, 1949. p. 462. No original: “ The framers of the United States Constitution had before them the words of Blackstone and Montesquieu each of whom had emphasized the importance of a general separation of the legislative, executive and judicial departments of Government and his separation was observed by them in framing the United States Constitution without including therein any formal statement of the theory”. 52 Cf. KEEFE, William J.; OGUL, Morris S. THE AMERICAN LEGISLATIVE PROCESSCONGRESS AND THE STATES. New Jersey: Prentice Hall, 1999. p. 356. No original: “Essentially, the veto is a defensive weapon for the chief executive. Yet it also should be seen as one of the most powerful weapons in the arsenal of presidents and govenors as they attempt to influence legislative behaviour”. 53 Cf. KEEFE; OGUL, op. cit., p. 356. 54 Cf. EASTLAND, Terry. Energy in the Executive- The Case for the Strong Presidency. New York: The Free Press, 1992. p. 108. 76 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 76-88, jan./mar. 2014 Em livro que data originariamente de 1872, concebido como uma introdução ao direito norte-americano, e republicado cem anos depois, fez-se uma exposição do direito presidencial ao veto com fundamento na experiência constitucional inglesa. Segundo o autor, os atos do Congresso dependem de um escrutínio antes de se consumarem como lei. Trata-se de um julgamento que é de competência do Presidente da República. Na Inglaterra, prossegue o autor, o rei tinha um poder negativo absoluto em relação aos atos do Parlamento. Porém, a negativa do presidente, comparada com a negativa do rei, revelava-se como uma negativa qualificada. A lei é remetida para o presidente com expectativa de aprovação. Aprovando, ele a assina. Caso contrário, o presidente reenvia o texto para a Casa legislativa originária, instruindo o retorno com suas objeções55. A natureza conceitual do veto, na história mais recente, é indubitavelmente inglesa. Informa um autor norte-americano que, quando o presidente recusa honrar um projeto de lei vindo do Congresso, vetando-o, e invocando inconstitucionalidade, exerce poder que não se distingue do poder real de suspender e desconsiderar outros poderes, duas das prerrogativas mais excepcionais que no passado eram do detentor da Coroa Britânica. Prossegue esse autor, observando que da Idade Media até o fim do século XVII, reis e rainhas da Inglaterra rotineiramente suspendiam e desconsideravam leis, sempre invocando que eram inconstitucionais, ainda que os ingleses não contassem com um texto constitucional assim considerado em sentido estrito. Depois de séculos de luta entre a Coroa e o Parlamento, a Declaração de Direitos de 1689 aboliu definitivamente essa prerrogativa da Coroa. Nos Estados Unidos, no fim do século XX, os presidentes argumentavam que tinham o mesmo poder para ignorar leis que reputassem inconstitucionais56. Patina-se na história do direito inglês, espaço no qual, por muito tempo, era o rei quem fazia a lei57. 55 Cf. WALKER, Timothy. Introduction to American Law. New York: Da Capo Press, 1972. p. 89. No original: “ But the acts of Congress must pass another ordeal before their consummation; and that is the scrutinity of the President. In England the King has an absolute negative upon the acts of Parliament; but the negative of the President is qualified. The bill is send to him for approval. If he approves it, he signs it. If not, he sends it back to the house where it originated, with his objections”. 56 Cf. MAY, Cristopher M. Presidential Defiance of Unconstitutional Laws. Westport: Greenwood Press, 1998. 57 Cf. STIMSON, Frederic Jesup. Popular Law-Making- A Study of the Origin, History, and Present Tendencies of Law-Making by Statute. New York: Charles Scribner’s and Sons, 1912. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 77 E em texto de 1868, republicado em 1998, também a propósito de uma introdução ao direito norte-americano, observou-se que ao Presidente dos Estados e aos governadores estaduais não apenas se exigia que tomassem cuidado para que as leis fossem fielmente executadas. O poder de veto os habilitava para controlar o Poder Legislativo, a menos que esse derrubassem os vetos com dois terços de seus votos58. A constituição norte-americana é muito clara quanto ao procedimento do veto presidencial. Dispôs-se que toda proposta de lei aprovada pela Câmara ou pelo Senado deve ser apresentada ao Presidente para promulgação. Com a aquiescência do chefe do Executivo a lei é aprovada, o que se confirma com a assinatura presidencial lançada junto à minuta que lhe foi pelo Congresso encaminhada. Na hipótese do Presidente não concordar com o texto que lhe foi encaminhado, poderá devolver o projeto à Casa legislativa originária, juntanto as razões de suas objeções. Essa negativa consiste no veto presidencial. A Casa legislativa que encaminhou o projeto de lei vetado pelo presidente irá apreciar e discutir o conteúdo das objeções. O veto presidencial poderá ser derrubado por intermédio de dois terços dos votos colhidos na Câmara ou no Senado, dependendo de onde o projeto de lei fora originalmente aprovado. Com a coleta de dois terços dos votos o texto segue para a outra Casa legislativa, para confirmação da derrubada do veto, o que demanda também mais dois terços dos votos dos parlamentares. Estatisticamente, revela-se que pequeno percentual de vetos são derrubados. Como já indicado, 2.564 vetos apresentados por presidentes norte-americanos, o Congresso derrubou apenas 110 deles, isto é, algo em torno de 4%. Os presidentes que tiveram o maior número de vetos derrubados foram Andrew Johnson59, Gerald Ford60 e Richard Nixon61. Pode-se acompanhar reflexão de professor norte-americano, admitindo-se que o modelo norte-americano de separação de poderes é raramente um espaço de guerra por ele mesmo. Porém, a Constituição 58 Cf. WEDGWOOD, William. The Government and Laws of United States. Littleton: Rothman, 1998. p. 86. No original: “The President of the Nation and the governors of the States are not only required ‘to take care that the laws are faithfully executed, but by their veto they can control the legislature, unless two thirds in Congress and in most of the State legislatures can be obtained in opposition to such veto”. 59 15 vetos derrubados de um total de 29 vetos apresentados. Isto é, em torno de 52%. 60 12 vetos derrubados de um total de 66 vetos apresentados. Isto é, em torno de 18%. 61 7 vetos derrubados de um total de 43 vetos apresentados. Isto é, em torno de 33%. 78 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 78-88, jan./mar. 2014 norte-americana parece fazer um perene convite para a luta entre os três poderes. O modelo de freios e contrapeso concebido para enfrentar a tirania também outorga a cada um dos poderes ferramentas para que possam barganhar em torno de políticas. Na arena legislativa, prossegue, o veto é o instrumento primário que o presidente detém. Pergunta, em seguida, se o presidente não seria sistematicamente incentivado a usar o mecanismo do veto, com o objetivo de perseguir seus objetivos políticos62. Há outro procedimento também, por intermédio do qual se processa uma aprovação tácita, pelo presidente, do projeto de lei que lhe foi encaminhado por uma das duas Casas do Congresso. É que, não devolvendo a lei em dez dias (não contados os domingos), tem-se então que a lei foi efetivamente aprovada, ainda que de modo tácito. Uma questão interessante, ainda que substancialmente acadêmica, foi levantada por outro autor norte-americano aqui estudado. Pode-se supor que o presidente venha a falecer dentro do período de dez dias que lhe é reservado para apreciar uma lei que lhe foi encaminhada. Indagou-se se o vice-presidente poderia suprir a ausência do presidente, por esse relevante motivo justificado, aprovando efetivamente a lei encaminhada à chefia do Executivo. Entendeu-se que essa situação não seria justificativa de paralização do processo legislativo. O vice-presidente não teria a seu favor a interrupção do prazo, de modo que ainda disporia de mais dez dias para lançar seu aprovo ou, no limite, vetar a proposição que lhe foi encaminhada. O curioso é que a solução dada ao caso se fez com base nas práticas constitucionais inglesas, quando, até 1867, quando se produziu lei nesse sentido, a morte do monarca tinha como efeito a dissolução do Parlamento63. 62 Cf. CAMERON, Charles M. Veto Bargaining- Presidents and the Politics of Negative Power. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. No original: “ The American separation of powers system is rarely at war itself. Nonetheless, the Constitutuion is an invitation to struggle […] The checks and balances intended to stop the slide into tyranny also provide each organ with tools for bargaining over policy. In the legislative arena, the veto is the president’s primary tool. The question is, does the president have a systematic incentive to use the veto to pursue his policy goals?”. 63 Na construção da solução para esse problema abstrato o curioso estáa na metodologia, centrada na referência ao direito inglês. CORWIN, op. cit., p. 321. No original: “[…] suppose that a President died while still considering a bill: could the suceeding Vice-President sign effectively? I see no reasons why the legislative process should be stalled in any of these situations. Formely, it is true, the death of the British Monarch involved the dissolution of Parliament, since Parliament meets on his personal summons; but this usage, which was abolished by statute in 1867, obviously furnishes the guidance by practice under the Constitutuion”. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 79 O exercício do poder do veto presidencial se insere na questão do acompanhamento da continuidade do processo legislativo, por parte do presidente. A produção normativa é intermitente. Segundo autor norte-americano, uma boa parte da legislação dá início a programas governamentais efetivamente tangíveis, outorga benefícios, regula, organiza, procedimentaliza. Leis autorizam o gasto de dinheiro público. Propiciam que se apropriem de fundos. Instruem agentes públicos a cobrarem tributos. Leis são comportamentais, organizacionais, deixando resíduos estruturais uma vez de que aprovadas64. Já se registrou que se o presidente faz algo que a maioria do Congresso desaprove, pode este último alterar as leis e previnir o presidente que não deve repetir a ação ou omissão. Porém, registra-se também, essa possibilidadeé mais uma concepção teórica do que um fato da vida real. O presidente detem o poder de vetar leis; isto é, se pretende continuar do modo como censurado pelo Congresso, uma minoria de um terço mais um voto em cada Casa legislativa é suficiente para sustentar o veto65. O conflito entre o Presidente e o Congresso pode revelar o nacionalismo e o particularimo daquele e o universalismo desse último; a percepção presidencial é substancialmente focada em discurso nacionalista66. De qualquer modo, há bases constitucionais que fomentam a rivalidade entre Executivo e Congresso67, especialmente porque, em princípio, há problemas em se falar de delegação de poderes legislativos, no regime de separação de poderes68. 64 Cf. JONES, Charles O. The Presidency in a Separated System. Washington: The Brookings Institution, 1994. p. 183. No original: “Lawmaking is continuous. Most laws create tangible programs, benefits, regulations, organizations, or processes. They authorize the spending of money, then apropriate the funds. They instrued agents how to collect taxes. They are behavioural, organizational, and structural residues once laws are passed”. 65 Cf. SUNDQUIST, James L. in: Nikolaieff, George A. (ed.), The President and the Constitution. New York: The H. W. Wilson Company, 1974, p. 77. No original: “ If the President does something the majority in Congress disapproves, it can ammend the law to prevent the President from doing it again. But this possibility is more theory than fact. The President retains the power of veto, and if he wants to go on doing what the congressional majority objects to, a minority of one third plus one of either house is sufficient to sustain his veto”. 66 Cf. HEINEMAN JR., Ben; HESSLER, Curtis A. Memorandum for the President- A Strategic Approach to Domestic Affairs in the 1980’s. New York: Random House, 1980. p. 91. 67 HARRIS, Joseph P. Congressional Control of Administration. Washington: The Brookings Institution, 1964. 68 LEVY, Richard E. The Power to Legislate- A Reference Guide to the United States Constitution. Westport: Praeger, 2006. p. 123. 80 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 80-88, jan./mar. 2014 O desejo do presidente no sentido de efetivamente comandar o governo decorre de disputa permanente com o Congresso; presidente que comanda é justamente aquele que vence de um modo tão forte que, na opinião de estudioso aqui citado, não se pode negar ao presidente legitimidade para propor ou desistir de uma agenda política69. Houve também varias tentativas de presidentes norte-americanos vetarem apenas excertos e fragmentos de textos legais encaminhados para promulgação. Esse tipo de veto, parcial, fragmentário, é denominado pela doutrina norte-americana de line-item veto. Essa fórmula foi considerada inconstitucional pela Suprema Corte norte-americana, no celebre caso Clinton v. City of New York70. Ao que consta, membros do partido republicano argumentaram, ao longos das décadas de 1980 e de 1990, que o poder do veto parcial (line-item veto) permitiria que o presidente deixasse a seu arbítrio o nível de aplicação parcial da norma questionada71. Nessa mesma época, os republicanos lançaram e divulgaram conjunto de propostas, que denominaram de “contrato com a América”, e que dependia da manutenção do mecanismo do veto parcial72. Porém, ironicamente, mais tarde, os republicanos repudiaram Bill Clinton, quando este presidente utilizou o veto parcial para invalidar propostas normativas aprovadas por maiorias republicanas. No caso Clinton v. City of New York o que se discutia, no limite, era constitucionalidade de uma ordem presidencial, ainda que fosse materializada por veto, de natureza parcial. O Congresso havia aprovado uma lei, em 1966, na qual se permitiu que o Presidente vetasse parcialmente textos normativos a ele encaminhados; trata-se do Line Item Veto Act. Com base nessa disposição legal, o Presidente Clinton vetou algumas partes de uma lei orçamentária de 1997. A municipalidade de Nova Iorque, sentindo-se prejudicada pelo veto parcial, judicializou a questão, a luz de fortíssimo impacto constitucional. 69 Cf. JONES, op. cit., p. 3. No original: “Surely if any president is to command the government, it will be one who wins so overwhelmingly that no one in Washington can deny his legitimacy for setting and cleaning the agenda”. 70 Cf. CRENSON, Matthew; GINSBERG, Benjamin. Presidential Power: Unchecked and Unbalanced. New York and London: W.W. Norton and Company, 2007. p. 348. 71 Cf. CRENSON; GINSBERG, op. cit. 72 Cf. CRENSON; GINSBERG, op. cit. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 81 O veto que Clinton havia parcialmente lançado na lei orçamentária que então se discutia teve como consequência o fato de que a municipalidade de Nova Iorque deveria pagar ao governo federal valores devidos ao programa federal de saúde (Medicaid), fazendo-o por intermédio da suspensão de alguns créditos fiscais que foram garantidos a cooperativas de produtores de alimentos. Junto à municipalidade de Nova Iorque, algumas empresas que foram diretamente prejudicadas pelo veto presidencial, provocaram o judiciário. A questão chegou à Suprema Corte norte-americana, em julgamento marcado por muita expectativa. Na Suprema Corte, o relator, Juiz Stevens, opinou que as disposições da lei discutida eram inconstitucionais. A referida lei autorizava que o presidente dos Estados Unidos poderia vetar integralmente três modalidades de disposições contidas em um projeto de lei. O presidente poderia vetar a alocação de valores que poderiam ser utilizados discricionariamente, nos termos da lei orcamentária. Poderia vetar qualquer rubrica de novos gastos. Poderia também vetar beneficios fiscais contidos em leis orçamentárias. Nos termos da lei questionada, para que o presidente exercesse o direito de veto parcial, nas situações acima descritas, deveria comprovar que a medida diminuiria o deficit orçamentário federal norte-americano, que não paralisaria nenhuma das funções essenciais do governo e que não resultaria em ameaça ao interesse público. O Congresso poderia derrubar esses vetos por maioria, não se necessitando do quorum exigido para a derrubada do veto convencional. O Juiz Kennedy votou com o relator, porém por outros motivos. Justificou sua decisão com a doutrina da separação dos poderes, que fora concebida para proteger a liberdade, na medida em que a concentração de poderes em só orgão governamental seria ameaça absoluta à liberdade. O Juiz Scalia percebeu a questão sob uma outra ótica. Entendeu que a lei autoriza ao Presidente a não gastar valores previstos na lei orcamentária, o que seria distinto do que simplesmente cancelar a alocação de dinheiro público. O Juiz Breyer também discordou do relator, argumentando que o veto parcial, em questõe orcamentárias, permitiria que o governo representativo funcionasse mais apropriadamente. Ainda antes da Suprema Corte decidir pela inconstitucionalidade do veto parcial, o Congresso tomou importante medida para proteger o conjunto da legislação que encaminhava para sanção presidencial. O 82 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 82-88, jan./mar. 2014 Congresso adotou a tese de que deveria preparar textos legislativos longos, que tratassem de varios assuntos (tese da omnibus bill). De acordo com estudioso norte-americano, o Congresso procurou agrupar em uma mesma lei o maior número possivel de temas, apresentados em bloco normativo único. O presidente hesitaria em vetar a lei toda, previdente com o veto parcial, justamente porque poderia estar deixando de aprovar medidas legislativas que fossem importantes e necesárias. No dizer do constitucionalista aqui estudado, o presidente “ jogaria o bebê para fora da banheira, com o propósito de se livrar da água”. Há notícias de peças legislativas que contavam centenas de páginas. De tal modo, ao vetar um determinado parágrafo, o presidente corria o risco de deixar de lado matéria legislativa substancialmente importante73. Por outro lado, prossegue esse autor, os presidentes têm defendido a possibilidade do uso do veto parcial como uma medida para enfrentamento da tese do omnibus bill adotada pelo Congresso norte-americano. Em várias unidades federadas norte-americanas se permite e utiliza o instituto do veto parcial. O objetivo é garantir que os governadores possam selecionar parcelas de legislação que realmente queiram aprovar. Assim, poderiam deixar de aprovar o que não interessa, e mesmo assim, garantir o andamento de legislação que se apresente como socialmente benéfica74. Em 1996 o Congresso surpreendemente aprovou uma lei que permitia que o presidente opusesse vetos parciais aos textos legais encaminhados a Casa Branca para promulgação. A Suprema Corte, no entanto, não considerou a medida constitucional, argumentando que o veto parcial permite que o presidente reescreva as leis que lhe são submetidas para apreciação75. 73 Cf. KOENIG, op. cit., p. 19. No original: “Principally, it [the Congress] can group so many itens together in one package, called an ominibus bill, that the president may hesitate to veto the bill for fear of throwing the baby out with the bathwater. Much legislation currently runs hundreds of pages, so the risk – of vetoing the offending paragraphs is that hundreds of pages of beneficial legislation may never be enacted”. 74 Cf. KOENIG, op. cit., No original: “Presidents have long advocated a line item veto to counteract the power of omnibus bills, as exists in many states. In that way, presidents can pick and choose which congressional provisions to aprove. They can disaprove of so-termed pork and yet retain socially beneficial legislation”. 75 Cf. KOENIG, op. cit. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 83 Entendem os constitucionalistas norte-americanos que o veto é instrumento absolutamente poderoso, em favor do presidente, dado que o Congresso precisa de dois terços dos votos para derrubá-lo. Porém, o veto, porque não pode ser parcial, substancializa um grave defeito; isto é, o presidente deve aceitar uma lei integralmente ou rejeitá-la também integralmente: não pode vetar fragmentos ou passagens da lei que lhe foi submetida para aprovação, pura e simplesmente76. O veto é fonte permanente de problemas para o Congresso norteamericano, dado que realça o poder presidencial de um modo espantoso. A necessidade dos dois terços dos votos, acima mencionada, torno a derrubada do veto uma proeza politicamente memorável77. Há ainda outra variável do veto, denominada de veto de bolso (pocket veto), e que também já foi muito utilizada na história política dos Estados Unidos. Ocorre esse veto quando, no curso ordinário dos fatos, o presidente ainda esta apreciando a lei que lhe foi enviada e então, por força do calendário do Legislativo, os congressistas entram em recesso ou saem de férias. Isto é, se o projeto se encontra nas mãos do presidente no momento em que o Congresso suspende as atividades, tem-se como resultado a absoluta invalidade da proposta. Assim, recebendo o projeto de lei em momento que antece ao recesso legislativo pode o presidente se recusar a devolver o texto (desde que no período de dez dias contados do recebimento), fulminando definitivamente a lei que dependia de apreciação presidencial78. Esses vetos de bolso possuem características interessantes. Mais uma vez de acordo com outro professor norte-americano, os vetos de bolso são absolutos, isto é, uma vez ocorrida a preclusão no tempo não há como o Congresso derrubá-los. E ainda, devido a tendência do Congresso norte-americano em completar boa parte do trabalho devido 76 Cf. KOENIG, cit., p. 139. No original: “The Constitution endows the President with the veto, a most powerful weapon in the game of open politics. The veto’s grave defect is that it is total and not partial. The President must accept ou reject a bill as a whole; he cannot veto particular itens and aprove the rest”. 77 Cf. SHANE; BRUFF, op. cit. p. 102. 78 Cf. CORWIN; KOENIG, op. cit., p. 171. No original: “In the ordinary course of events, if the president does not sign or veto a bill within ten weekdays after receiving it, it becomes law without the chief executive signature. But if Congress adjourns within the ten days, the president, by taking no action, can kill the bill”. 84 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 84-88, jan./mar. 2014 ao fim das sessões legislativas, o veto de bolso acaba se transformando em instrumento absolutamente importante. Contando-se de George Washington a Ronald Reagan os presidentes lancaram 2.453 vetos; desse número, 1.040 vetos decorreram da não devolucao do texto ao longo de recesso legislativo79. Avançando-se ate Barack Obama esses números aumentaram, como acima demonstrado. Quanto as chamados vetos de bolso tem-se que Franklyn Delano Roosevelt foi o presidente que mais o utilizou: foram 263 projetos de lei vetados por intermédio dessa fórmula. Grover Cleveland lancou 238 vetos de bolso. Dwight Eisenhower também utilizou frequentemente a fórmula: Ike usou do veto de bolso por 108 vezes. O veto de bolso é arranjo institucional que parece indicar um poder absoluto do presidente em relação ao Congresso, cumpridas as condições que a Constituicao norte-americana exige. De fato, o presidente não devolve para o Legislativo um texto legal que não aprovou, com a indicação precisa de suas objeções. O Congresso entrou em recesso. A lei não pode ser aprovada. E poderá ser novamente proposta e discutida apenas na sessão legislativa superveniente80. O veto é importante instrumento a favor do presidente norteameriacano, também na medida em que permite ao chefe do Executivo daquele país obstaculizar legislação que vá de encontro a agenda política que desenvolva, e da qual depende. O presidente, assim, por intermédio do direito de veto pode influenciar, se não mesmo controlar, a pauta do Poder Legislativo. A própria ameaca do uso do veto já indica ao Congresso que há necessidade de revisão ou abandono de legislação em discussão81. Os núcleos conceituais do veto também foram estudados sistemática e profundamente em monografia de William Howard Taft, refletindo a 79 Cf. MC DONALD, Forrest. The American Presidency- an Intelectual History. Lawrence: University Press of Kansas, 1994. p. 349. No original: “Pocket vetoes have some quirky characteristics. They are absolute, not subject to override, and because of a tendency of Congress to complete much of its work a the end of sessions, the instrument become a potent one: 1,040 of the 2,453 bills killed by the presidents from George Washington through Ronald Reagan were pocket vetoes”. 80 Cf. SHANE; BRUFF, op. cit. p. 106. 81 Cf. KRENT, Harold J. Presidential Powers. New York and London: New York University Press, 2005. p. 17. No original: “The power to block legislation also permits presidents to shape, if not control, the legislative agenda. The threatened use of a veto itself can cause Congress to revise or abandon planned legislation”. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 85 experiência de quem ocupou a presidência norte-americana82 e, anos depois, a presidência da Suprema Corte dos Estados Unidos83. Para Taft (e o livro e de 1916) a natureza do veto é puramente legislativa. É disposição constitucional que determina que, passado projeto de lei pelas duas Casas do Congresso, deve este ser encaminhado para o presidente. Aprovando, deve o presidente assinar o texto. Porém, desaprovando, deve reenviá-lo ao Congresso, com suas razões anotadas, para a casa que originariamente enviou o projeto. Esta deverá reconsiderá-lo, e por dois terços de seus membros poderá derrubar o veto. O projeto originariamente vetado torna-se lei84. Observou também Taft que já se sugeriu que o veto teria uma natureza executiva. Dessa premissa Taft discordava. De fato, o presidente não teria poder para introduzir um projeto de lei junto ao Congresso. Ele tem somente o poder de recomendar medidas que julgue necessárias e expedientes, e que as submete à consideração do Congresso85. O presidente, continua Taft, não participa das discusssões no Congresso. O presidente não tem poder para vetar partes do texto discutido, de modo a permitir que apenas uma parte dele seja promulgada como lei. Ao presidente cumpre aceitar ou rejeitar a lei, integralmente. A rejeição, registra Taft, não é final e definitiva, a menos que mais um terço de uma das Casas sustente o veto lançado. Porém, conclui Taft, ainda que com essas características, é o presidente uma figura participante no processo legislativo norte-americano86. Em seu mandato, Taft apresentou 39 vetos. Desse total, 30 foram vetos regulares, e nove foram vetos de bolso. 82 Há especulações no sentido de que William Howard Taft teria se sentido humilhado quando não se reelegeu em 1912, o que o manteve obstinado com uma cadeira na Suprema Corte. Cf. MASON, Alpheus Thomas. William Howard Taft: Chief Justice. New York: Simon and Schuster, 1965. p. 66. 83 TAFT, William Howard. Our Chief Magistrate and his Power. Durham: Carolina Academic Press, 2002. 84 Cf. TAFT, op. cit., p. 14. No original: “The character of the veto power is purely legislative. The Constitution provides that after both Houses shall have passed a bill, it shall be presented to the President; that if he approve it, he shall sign it, but, if not, that House he shall return it, with his objection, to the House in which it originated, which shall proceed to reconsider it and that if two-thirds of he House where it shall be reconsidered, and if approved by two-thirds of that House, it shall become law”. 85 Cf. TAFT, op. cit. No original: “It has been suggested by some that the veto power is executive. I do not see quite how. Of course the President has no power to introduce a bill into either House. He has the power of recommending expedient to the consideration of Congress”. 86 Cf. TAFT, op. cit. No original: “But he [the President] takes no part in the the running discussion of the bill after it is introduced or in its ammendments. He has no power to veto parts of the bill and allow the rest to become a law. He must accept it or reject it, and his rejection of it is nor final unless he can find one more than one-third of the one of the Houses to sustain him in his veto. But even with these qualifications, he is still participant in the legislation”. 86 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 86-88, jan./mar. 2014 biblioGRAfiA ANTIEAU, Chester James. The Executive Veto. London: Oceana Publications, 1988. BERG, Thomas C. The State and Religion in a nutshell. St. Paul: West Group, 1998. BURSCH, Noel T. T.R.- The Story of Theodore Roosevelt and his influence on our times. New York: Reynal and Company, 1963. CAMERON, Charles M. Veto Bargaining- Presidents and the Politics of Negative Power. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. CLARK, Georg L. 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PRiNcíPios dA ARbitRAGeM PRiNciPles of ARbitRAtioN Arthur Rabay 1 Advogado em São Paulo-SP SUMÁRIO: Introdução; 1 Noções gerais e conceito de arbitragem; 2 A atual crise do Poder Judiciário e os meios alternativos de solução de controvérsias; 3 Princípios – conceituação; 4 Funções dos princípios; 5 Princípios da arbitragem; 5.1 Princípio da autonomia privada; 5.2 Princípio da boa-fé; 5.3 Princípio da autonomia da cláusula da convenção de arbitragem 1 Mestrando em Direito Civil pela PUC-SP, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP, especialista em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduado lato sensu em Obrigações e Contratos, com capacidade docente, pela ESA-OAB-SP, pós-graduado lato sensu em Direito Empresarial, com capacidade docente, pela EPM, pós-graduado lato sensu em Direito Civil, com capacidade docente, pela UNISUL, especialista em Direito Imobiliário, pelo SECOVI-SP 90 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 90-108, jan./mar. 2014 em relação ao contrato; 5.4 Princípio da competênciacompetência; 5.5 Princípio da força vinculante e obrigatoriedade da cláusula arbitral; 5.6 Princípio da temporariedade; 5.7 Princípio das garantias processuais; 6 Conclusão; Referências. RESUMO: O presente trabalho aborda a arbitragem, como meio alternativo de solução de controvérsias, em especial os princípios que a regem. Inicia abordando os aspectos históricos, as noções gerais e o conceito, acerca da arbitragem, perpassa pela análise crítica da crise do Poder Judiciário na atualidade, ensejadora de lentidão no término dos processos judiciais, e termina por vislumbrar a arbitragem como modalidade eficaz de composição de litígios. Ao depois, discorre acerca das funções atinentes aos princípios, no campo jurídico. Aborda, finalmente, um a um, princípios regentes de tal instituto jurídico, que propiciam a melhor compreensão do seu sentido e do seu alcance, bem como sua melhor interpretação e aplicação. PALAVRAS-CHAVE: Arbitragem. Meio Alternativo de Solução de Controvérsias. Princípios. ABSTRACT: This paper deals with arbitration as an alternative means of dispute resolution, in particular the principles which govern it. Start addressing the historical aspects, the general concepts and concept about arbitration, embraced by the critical analysis of the crisis of the judiciary today, occasioning the slowness at the end of court proceedings, and ends with a glimpse of arbitration as a means of effective dispute settlement . By then, talks about the functions pertaining to the principles in the legal field. Discusses finally one by one governing principles such legal institution, which provide a better understanding of its meaning and scope, as well as its best interpretation and application. KEYWORDS: Arbitration. Medium Alternative Dispute Resolution. Principles. Arthur Rabay 91 iNtRodUção De fato, conhecer o passado auxilia o exegeta a bem interpretar o instituto jurídico em análise no presente. Conforme ensinança de Carlos Maximinano: O Direito não se inventa; é um produto lento da evolução, adaptada ao meio; com acompanhar o desenvolvimento desta, descobrir a origem e as transformações históricas de um instituto, obtém-se alguma luz para o compreender bem. Só as pessoas estranhas à ciência jurídica acreditam na possibilidade de se fazerem leis inteiramente novas2. Eis, pois, motivo relevante para justificar esta introdução, que abarca um breve histórico acerca da arbitragem como meio alternativo de solução de conflitos de interesses. A doutrina estudiosa do assunto3 destaca que a arbitragem é um instituto jurídico vetusto, dos mais antigos que se tem notícia na história do Direito, já datando desde a época da jurisdição ou justiça privada, na Babilônia, 3000 anos a.C., na Grécia antiga e em Roma. Inicialmente, utilizava-se a justiça de mão própria ou autotutela, devido à ausência de mecanismos próprios e organizados de solução de conflitos de interesses particulares ofertados pelas civilizações primitivas mais rudimentares, como forma de satisfação do sentimento de justiça. Posteriormente, com o desenvolvimento social e político das civilizações, adotou-se a justiça pública ou estatal para dirimir as respectivas controvérsias. Assim, em linhas gerais, a evolução histórica da solução de controvérsias, no campo do Direito, pode ser dividida em duas fases bem distintas: a justiça privada e a justiça pública. Na atualidade, entretanto, a distribuição da justiça encontra-se desumanizada com a lentidão e a massificação dos processos, e notase que as partes litigantes, diante da estatização da justiça efetivamente “perderam” a capacidade de diálogo e de autocomposição, sujeitando-se 2 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Forense, 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,1990. p. 137. 3 CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. São Paulo: RT, 2011. p. 26-29. 92 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 92-108, jan./mar. 2014 a posição mais angustiante do que cômoda, de aguardar pelo julgamento da causa. Efetivamente, as Faculdades de Direito ensinam aos alunos que no caso de conflito de interesses, resultante de pretensão resistida, conhecida como “lide”, em que duas ou mais partes litigam em torno de um objeto ou de uma relação jurídica, não havendo acordo / transação entre as mesmas, incumbe ao Poder Judiciário, por força de preceito constitucional, consistente no princípio da inafastabilidade da jurisdição estatal, derivado da própria Constituição Federal, apreciar e julgar as lides forenses, via de regra, mediante heterocomposição, isto é, o magistrado de primeira instância “decide” a causa, e os tribunais reapreciam tal decisão judicial, em caso de recursos, salvo os casos de conciliação no curso do processo. Nota-se, assim, um total “esquecimento”, ou quando não, ao menos “desprezo” de ensinar e de despertar nos cidadãos a capacidade inata, latente e dormente de autocomposição, o que configura ao mesmo tempo lastimável erro e verdadeira heresia, pois a Justiça é um sentimento e um valor que transcende a jurisdição estatal e a justiça privada, podendo ser realizada tanto por aquela, quanto por esta, indistintamente, eis que é ubíqua, atemporal e inerente ao coração e à razão de cada ser humano. Neste contexto social, em boa hora foi promulgada a Lei de Arbitragem (Lei n.º 9.307 de 23/09/1996), disciplinando a arbitragem no Brasil, a qual de maneira esparsa, fracionária e esporádica, encontrava previsão legal, tais como em leis domésticas de 1831 e 1837, que impunham a solução arbitral às questões relativas aos seguros e locação de serviços, na Constituição Imperial de 1824 (art. 160), nas Ordenações do Reino, no Código Comercial de 1850, na Constituição de 1988 (art. 114, §§ 1º e 2º), nas Leis dos Juizados Especiais – Lei n.º 7.244/84 e Lei n.º 9.099/95 (arts. 24/26), no Código Civil de 1916 (arts. 1.037 a 1.048) e no Código de Processo Civil de 1939 (arts. 1.031 a 1.036)4. A supracitada Lei de Arbitragem (Lei n.º 9.307 de 23/09/1996), cumpre destacar, foi originada da Lei Modelo UNCITRAL, aprovada pela Assembléia das Nações Unidas através da Resolução 40/72, de 11/12/1985, tendo sido esta oriunda de comissão formada nas Nações Unidas em 1966, com sede em Viena, através de comitê constituído à época por representantes de 58 países, inclusive o Brasil, e 18 organizações 4 CRETELLA NETO, José. Comentários à lei de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense. 2007. p. 11. Arthur Rabay 93 internacionais, o qual durante três anos discutiu os termos de uma leimodelo sobre arbitragem, visando harmonizar as diversas leis internas de diversos países. 1 Noções GeRAis e coNceito de ARbitRAGeM A arbitragem, como meio alternativo de solução de controvérsias, distinto da jurisdição estatal, apresenta traços bastante marcantes e extremamente característicos5, a saber: 1) meio alternativo de solução de controvérsias, distinto da jurisdição estatal; 2) tendo como objeto direito patrimonial disponível (art. 1º, LArb); 3) instituída através da autonomia privada (vontade / consenso) das partes envolvidas para tanto (sejam pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou público, nacional ou internacional), que podem elegê-la e adotá-la em detrimento da jurisdição estatal (arts. 1º e 2º, LArb), mediante convenção arbitral de regime jurídico contratual (cláusula compromissória ou compromisso arbitral art. 3º, LArb); 4) com livre escolha do(s) árbitro(s) que decidirá(ão) a controvérsia, sempre em número ímpar (art. 13, § 1º, LArb), e com delimitação da questão / do objeto a ser apreciada(o) (art. 10º, inciso III, LArb); e 5) pela qual as partes envolvidas submetem-se a aceitar e a cumprir a decisão arbitral a ser proferida, vale dizer, decisão arbitral com força vinculante e obrigatória entre as partes envolvidas (art. 31, LArb), a qual terá a mesma eficácia de decisão judicial (art. 31, LArb), sem direito a recurso (art. 18, LArb). Segundo leciona Francisco José Cahali: a arbitragem, ao lado da jurisdição estatal, representa uma forma heterocompositiva de solução de conflitos. As partes capazes, de comum acordo, diante de um litígio, ou por meio de uma cláusula 5 Lei n.º 9.307/96 - Art. 1º - As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. 94 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 94-108, jan./mar. 2014 contratual, estabelecem que um terceiro, ou colegiado, terá poderes para solucionar a controvérsia, sem a intervenção estatal, sendo que a decisão terá a mesma eficácia que uma sentença judicial6. Já de acordo com José Cretella Júnior: A arbitragem pode ser entendida como “sistema especial de julgamento, com procedimento, técnica e princípios informativos próprios e com força executória reconhecida pelo direito comum, mas a este subtraído, mediante o qual duas ou mais pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou de direito público, em conflito de interesses, escolhem de comum acordo, contratualmente, uma terceira pessoa, o árbitro, a quem confiam o papel de resolver-lhes a pendência, anuindo os litigantes em aceitar a decisão proferida7. Bem de se ver que a arbitragem, e o respectivo processo arbitral, quando instituídos para dirimir controvérsias, deverão sempre respeitar determinados princípios, dentro os quais, determinadas garantias processuais (art. 21, § 2º, LArb), vale dizer, contraditório, igualdade das partes, imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento, e ainda outros próprios, informadores de tal instituto jurídico, os quais serão abordados adiante, os quais assegurarão higidez e plena validade à arbitragem. Dentre outras vantagens e atributos positivos da arbitragem, tais como celeridade, previsão de estimativa de custos e de despesas, e possibilidade de as partes litigantes estabelecerem sigilo a respeito da arbitragem e do seu respectivo procedimento em face de terceiros, urge também destacar que por tratar-se de iniciativa e de eleição das próprias partes litigantes, de maneira livre e espontânea, de submeterem o litígio ao julgamento perante árbitro ou câmara arbitral, as mesmas apresentam predisposição a cumprir a decisão arbitral, observando-se como ensinava Platão (De Legibus, Libros 6 e 12) – “o mais sagrado dos tribunais é aquele que as partes mesmas hajam constituído e escolhido de comum entendimento”8 . 6 CAHALI, op. cit., p. 75. 7 CRETELLA JÚNIOR, José. Da Arbitragem e seu Conceito Categorial. Revista de Informação Legislativa, n.º 98, Brasília, abr./jun. 1998. p. 128. 8 ALVIM, José Eduardo Carreira. apud Tratado Geral da Arbitragem - Interno, Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 78, nota 100. Arthur Rabay 95 2 A AtUAl cRise do PodeR JUdiciÁRio e os Meios AlteRNAtivos de solUção de coNtRovéRsiAs É apropriado e correto auto-intitular unicamente o Poder Judiciário de JUSTIÇA? Apenas e tão somente o Poder Judiciário é a única via exclusiva de acesso à JUSTIÇA? Diante da morosidade da máquina judiciária, mesmo diante de vedação expressa a respeito inserida na Constituição Federal9, da produtividade ruim quanto à prolação de decisões judiciais, da enormidade do número de leis, e da atual insegurança e incerteza, não raras vezes, de interpretação das mesmas pela magistratura, bem como da dissonância de determinadas decisões judiciais frente a valores sociais universalmente almejados pela sociedade, fundir os conceitos de Poder Judiciário e Justiça, olvidando-se de outros modos de solução de conflitos, não se revela apropriado, nem tampouco correto. Apesar de o Poder Judiciário cumprir relevante função essencial, e distribuir a Justiça em muitas causas (apesar de deixar a desejar em muitas outras), não pairam dúvidas que carece de aprimoramentos que ensejem credibilidade, respeito, celeridade e efetividade à jurisdição estatal, como bem demonstram a atual reforma do Código de Processo Civil, a constante atuação das Corregedorias Gerais de Justiça dos tribunais estaduais, e a consolidação do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, enquanto órgão de controle externo que tem por missão contribuir para que a prestação da jurisdicional estatal seja realizada com moralidade, eficiência e efetividade em benefício da sociedade10. Dados obtidos no CNJ – Conselho Nacional de Justiça, evidenciam que há insuficiência de magistrados e de servidores e deficiência de aparelhamento e estrutura do Poder Judiciário. 9 Art. 5º, inciso LXXVIII – “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. 10 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um órgão voltado à reformulação de quadros e meios no Judiciário, sobretudo no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual. O CNJ foi instituído em obediência ao determinado na Constituição Federal, nos termos do art. 103-B. Criado em 31 de dezembro de 2004 e instalado em 14 de junho de 2005, o CNJ é um órgão do Poder Judiciário com sede em Brasília/DF e atuação em todo o território nacional, que visa, mediante ações de planejamento, à coordenação, ao controle administrativo e ao aperfeiçoamento do serviço público na prestação da Justiça. 96 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 96-108, jan./mar. 2014 No Brasil, a média é de 1 (um) magistrado para cada 16.000 (dezesseis mil) habitantes, enquanto em outros países têm-se 1 (um) juiz para no máximo 3.000 (três mil) jurisdicionados11. No Estado de São Paulo, temos aproximadamente 2.508 magistrados, 61.499 servidores, e uma população de cerca de 41.737.337 de habitantes12. Tendo em vista que o Poder Judiciário mostra-se não raras vezes incapaz de compor lides de maneira efetiva e célere, evidencia-se que a “cultura da sentença” (solução de conflitos via decisão judicial única e exclusivamente por intermédio do Poder Judiciário – heterocomposição), de há muito pregada nas academias de Direito, merece reflexão, para ceder espaço à “cultura da pacificação” (solução de conflitos de maneira negociada, participativa e amigável entre as próprias partes litigantes autocomposição)13. Logo, a distribuição e o acesso à ordem jurídica justa, de forma efetiva, eficaz, tempestiva e adequada, em cumprimento e aplicação do Princípio do Acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV, Constituição Federal), pode e deve ser assegurado não somente através da justiça estatal, como também através de meios alternativos de solução de controvérsias, tais como, arbitragem, mediação, conciliação, transação, dentre outros. Neste sentido, de acordo com as lições de José Eduardo Carreira Alvim Até então a jurisdição tem sido prestada, preferencialmente, pelo Estado, no suposto de que este, com a força de sua autoridade, fosse o único em condições de fazer justiça, em tempo e hora; a realidade, no entanto, mostrou não ser essa suposição de todo exata. Em quase todos os países do mundo, o Estado tem-se mostrado impotente diante de embates... para os quais vem-se buscando novas soluções, ao largo do processo judicial. É nesse contexto que entra em cena a jurisdição do consenso que caracteriza a arbitragem14. 11 ALVIM, op. cit., p. 77. nota 99. 12 Fonte: “Justiça em Números - 2010” – CNJ – Conselho Nacional de Justiça - www.cnj.jus.br 13 WATANABE, Kazuo. Cultura da Sentença e Cultura da Pacificação, in: Estudos em Homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover (org. Flávio Luiz Yarchell e Maurício Zanoide de Moraes), São Paulo: DPJ, 2005. p. 684-690. 14 ALVIM, op. cit., p. 83. Arthur Rabay 97 3 PRiNcíPios JURídicos – coNceitUAção Longe da pretensão de conceituar princípio, há que se destacar, entretanto, de início, que o sentido e o alcance das expressões do Direito, sempre que possível e/ou sempre que necessário for, merecem ser interpretadas e efetivadas através da efetiva aplicação do princípio jurídico, o qual, enquanto viga mestra de sustentação de todo o seu arcabouço, lhe enseja harmonia, coesão e coerência. Para Genaro Carrio: Principio de derecho, es el pensamiento directivo que domina y sirve de base a la formación de las singulares disposiciones de Derecho de uma institución jurídica, de um Código o de todo um Derecho positivo. El principio encarna el más alto sentido de una ley o institución de Derecho, el motivo dominante, la razón informadora del Derecho [ratio juris], aquella idea cardinal bajo la que se cobijan y por la que se explican los preceptos particulares, a tal punto, que éstos se hallan com aquélla em la propia relación lógica que la consecuencia al principio de donde se derivan15 16. Para De Plácido e Silva: Princípios, no plural, significam as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa [...] traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica [...] mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em perfeitos axiomas [...] significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito17. Para Miguel Reale princípios são: 15 CARRIÓ, Genaro. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1970. p. 33. 16 “Princípio de direito é o pensamento diretivo que domina e serve de base à formação das singulares disposições de Direito de uma instituição jurídica, de um Código ou de todo o Direito positivo. O princípio representa o mais alto sentido de uma lei ou instituição de Direito, o motivo determinante, a razão informadora do Direito [ratio juris], aquela idéia cardeal abaixo da qual abrigam e pela qual se explicam os preceitos particulares, a tal ponto, que estes relacionam-se com aquela na própria relação lógica que a conseqüência ao princípio de onde derivam-se” (tradução nossa). 17 SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 639. 98 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 98-108, jan./mar. 2014 verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis18. A norma jurídica (seja infra-constitucional, seja constitucional) pode ser o meio de positivação do princípio jurídico, podendo com este confundirse ou não. Caso positivado através da norma jurídica, o princípio jurídico pode estar explícita ou implicitamente contido na mesma. Outrossim, observa-se que o princípio jurídico pode também dimanar ainda de outras fontes do direito, que não somente a lei, tal como a doutrina, a jurisprudência, ou até mesmo o direito natural, conforme o caso. 4 fUNções dos PRiNcíPios JURídicos Dentre as inúmeras funções dos princípios jurídicos, e em caráter meramente exemplificativo (“numerus apertus”), pode-se destacar as seguintes: • • FUNÇÃO ESTRUTURAL – Os princípios jurídicos tem função estrutural, eis que mantém coerência e harmonia e propiciam coesão ao sistema jurídico. Neste sentido, são os ensinamentos de Celso Antonio Bandeira de Melo: e “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda estrutura neles esforçada”19. FUNÇÃO INTERPRETATIVA – Além disso, os princípios jurídicos revelam-se nortes hermenêuticos seguros, que auxiliam e contribuem tanto para interpretação das 18 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 299. 19 MELO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. p. 230. Arthur Rabay • • 99 normas jurídicas em geral, como também nos casos de lacunas em que a lei seja omissa, indicando o direito a ser aplicado ao caso concreto, e inclusive prestam-se a dissipar dúvidas e/ou obscuridades no ordenamento jurídico. A respeito, têm-se as palavras de Celso Antonio Bandeira de Melo: “Princípio - já averbamos alhures - é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo”20. FUNÇÃO AXIOLÓGICA – Quando houverem conflitos principiológicos na aplicação ao caso concreto, cada qual ostentando valores diversos, pode-se, dentre outras alternativas, submeter os princípios em colisão à ponderação e fim de resolver a questão, através do princípio da proporcionalidade21. FUNÇÃO SOCIAL – A própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, também estabelece a função social dos princípios, ao prescrever que a aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum22. Bem de se ver, assim, que as funções dos princípios jurídicos revelam-se extremamente relevantes no campo jurídico. 5 PRiNcíPios dA ARbitRAGeM Em apertada síntese, pode-se arrolar, dentre outros, os seguintes princípios da arbitragem: autonomia da vontade e limites (arts. 1º e 39, I e II, LArb); boa-fé (art. 20, LArb); autonomia da cláusula da convenção 20 MELO, op. cit., p. 230. 21 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estúdios políticos y constitucionales, 2002. p. 147. 22 Art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. 100 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 100-108, jan./mar. 2014 de arbitragem em relação ao contrato (art. 8ª, LArb); competênciacompetência (art. 8º, p.ú., LArb); temporariedade (arts. 12, III, 11, III e 23, LArb); garantias processuais (devido processo legal / ampla defesa / contraditório / igualdade das partes / imparcialidade do árbitro / competência do árbitro / livre convencimento - arts. 13, § 6º, 21, § 2º, 38, IIILArb); homologação única de sentença arbitral estrangeira (art. 35, LArb); e do ônus da prova em desfavor do réu (homologação de sentença arbitral proferida no exterior - art. 38, LArb). Estes e outros são abordados a seguir. 5.1 PRiNcíPio dA AUtoNoMiA PRivAdA O princípio da autonomia privada, confere aos particulares a autoregulamentação e a auto-determinação de seus interesses, desde que não sejam contrários à ordem pública, aos bons costumes e às normas cogentes / imperativas (art. 5º, inciso II, CF; art. 17, p.ú., LICC; arts. 1º, 2º, §§ 1º e 2º, e 39, I e II, LArb; e art. 51, VII, CDC). Na arbitragem, a lei de regência da matéria, qual seja, Lei n.º 9.307/96 – Lei de Arbitragem (LArb) autoriza expressamente que os particulares valham-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis23, podendo-se valer tanto de regras de direito material , quanto de regras de direito instrumental. Com efeito, tal liberdade conferida aos particulares de há muito já consistia o norte e a regra em matéria de Direito Privado, consubstanciado no antigo brocardo jurídico PERMITTITUR QUOD NON PROHIBETUR: “Tudo o que não é proibido, presume-se permitido“, que garante ao particular que ele pode fazer tudo que não for proibido por lei, diferentemente do Direito Público, que é regido pelo princípio da legalidade, só se podendo fazer o que a lei permitir expressamente. Dentro de tal liberdade, há que se destacar, encontra-se tanto a liberdade de contratar (liberdade para contratar ou não, e escolher com quem fazê-lo), como também a liberdade contratual (liberdade para estabelecer livremente o conteúdo do contrato24. 23 Art. 1º - As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. 24 AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Verbete liberdade contratual. Enciclopédia Saraiva do Direito 49/370-371, São Paulo: Saraiva, 1977. Arthur Rabay 101 5.2 PRiNcíPio dA boA-fé Na esteira da consagração pelo Código Civil vigente do princípio da eticidade, segundo o qual devem os contratantes observar nas fases pré-negocial, de execução do contrato e pós-contratual os ditames da probidade e boa-fé25 26 27, também na arbitragem prevalece o princípio da boa-fé, que veda o abuso de direito, o comportamento contraditório, o ato emulativo e/ou eivado de má-fé, bem como a alegação em juízo a própria torpeza, por parte de quaisquer dos litigantes que voluntariamente elegeram a arbitragem como meio alternativo de solução do litígio a que se encontram submetidos. Efetivamente, como ensina Selma Maria Ferreira Lemes: Não pode uma parte, após ter eleito espontaneamente a instância arbitral, deixar de honrar o compromisso assumido. É tendo também como substrato o princípio da boa-fé que o legislador outorgou caráter obrigatório e efeito vinculante à convenção de arbitragem28 . Neste mesmo diapasão, a jurisprudência confirma a plena validade do juízo arbitral instituído pelas partes que o elegeram livre e voluntariamente, eis que “... se nulo fosse este juízo arbitral a parte que a ele acorreu, que com ele concordou, que dele participou, não pode, depois de vencida, invocar sua nulidade” (STJ - Resp 616-RJ – 890009853-5 – j. 24/04/1990). Bem assim, a fim de se evitar “surpresa”, diante de comportamento abusivo e/ou eivado de má-fé, é que o legislador determina que “a parte que pretender argüir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem” (artigo 20, LArb). 25 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 26 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 27 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 28 FERREIRA LEMES, Selma Maria. Princípios e Origens da Lei de Arbitragem. Revista do Advogado n.º 51, Edição AASP – Associação dos Advogados de São Paulo, out. 1997. p. 32/35. 102 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 102-108, jan./mar. 2014 Outrossim, com a mesma intenção, a Lei de Arbitragem estabelece prazo de 90 (noventa) dias para propositura da demanda de decretação de nulidade da sentença arbitral, após o recebimento da notificação da mesma ou de seu aditamento (artigo 33, LArb). 5.3 PRiNcíPio dA AUtoNoMiA dA clÁUsUlA dA coNveNção de ARbitRAGeM eM RelAção Ao coNtRAto Como todos bem sabem, em matéria de Direito Contratual prevalece o Princípio da Conservação dos Contratos, o qual pode ser subdividido em (i) preservação (art. 184, do Código Civil); (ii) conversão (art. 170, do Código Civil); e (iii) aproveitamento (“na cláusula suscetível de dois significados, interpretar-se-á em atenção ao que pode ser exeqüível – princípio do aproveitamento”29). As nulidades, por seu turno, podem ser de duas ordens: nulidade absoluta e nulidade relativa (artigos 166 e 171, do Código Civil). No âmbito da arbitragem, por sua vez, prevalece o princípio da autonomia da cláusula da convenção de arbitragem em relação ao contrato, ou seja, mesmo diante da nulidade deste, aquela permanece hígida e válida, não havendo que se falar em relação principal / acessório. A respeito, a lei é clara e peremptória: “Art. 8º A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória” (LArb). De acordo com os esclarecimentos de Luiz Antonio Scavone Junior: A cláusula arbitral ou compromissória não é acessória do contrato. Portanto, como é autônoma, a nulidade do contrato não implica em nulidade da cláusula arbitral. O significado do dispositivo, portanto, indica que qualquer alegação de nulidade do contrato ou da cláusula arbitral... deve ser dirimida pela arbitragem e não pelo Poder Judiciário30. 29 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – v. I – Parte Geral, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 302. 30 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Manual de Arbitragem. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 87. Arthur Rabay 103 5.4 PRiNcíPio dA coMPetÊNciA-coMPetÊNciA De origem alemã, tal princípio da competência-competência (Kompetenz-Kompetenz), quer significar que cabe ao(s) próprio(s) árbitro(s) a decisão acerca de eventual invalidade da cláusula arbitral e/ ou do respectivo contrato (art. 8º, p.ú., LArb)31. Ou nas palavras de Francisco José Cahali, “... atribui-se ao árbitro a capacidade para analisar sua própria competência, ou seja, apreciar, por primeiro, a viabilidade de ser por ele julgado o conflito, pela inexistência de vício na convenção ou no contrato”32. Efetivamente, diante de corolário lógico irrefutável, não há como se admitir a eleição da via arbitral, e ao mesmo tempo permitir-se ao Poder Judiciário que trate de sua validade, conforme de há muito já ensinavam os antigos romanos, no adágio electa una via non datur regressus ad alterum (eleita uma via não se pode substituí-la por outra – tradução livre). E isto porque, se coubesse primeiramente ao Poder Judiciário a competência para conhecer e julgar a validade / invalidade da convenção de arbitragem e/ou do contrato, haveria postergação por longo período acerca da efetiva solução da controvérsia, favorecendo inclusive intuito meramente procrastinatório de quaisquer das partes envolvidas, e configuraria verdadeira aniquilação do instituto da arbitragem e afastamento da via arbitral. 5.5 PRiNcíPio dA foRçA viNcUlANte e obRiGAtoRiedAde dA clÁUsUlA ARbitRAl Como cediço, de há muito prevalece o princípio da força obrigatória das convenções (pacta sunt servanda), segundo o qual as partes devem cumprir com as estipulações ajustadas entre si. Com relação à cláusula de convenção arbitral (cláusula compromissória ou compromisso arbitral), o caráter vinculante de tal ajuste, uma vez livre e espontaneamente estabelecido entre as partes, obriga-as a submeterem-se à arbitragem para solução de lides entre as mesmas, com exclusão da Jurisdição Estatal. 31 Art. 8º [...] - Parágrafo único - Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória – LArb. 32 CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. São Paulo: RT, 2011. p. 75. 104 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 104-108, jan./mar. 2014 Acerca do tema, J.E. Carreira Alvim leciona que: A arbitragem traduz o modo de resolução de conflitos que se contrapõe a jurisdição estatal; o juízo arbitral é o órgão encarregado da resolução do litígio, substituindo o juízo judicial; a convenção da arbitragem nada mais é do que o acordo das partes de submeter o litígio à decisão dos árbitros33. De fato, a Lei de Arbitragem reconhece tal caráter vinculante e força obrigatória à cláusula de convenção de arbitragem: Art. 7º - Existindo cláusula compromissória e havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, poderá a parte interessada requerer a citação da outra parte para comparecer em juízo a fim de lavrar-se o compromisso, designando o juiz audiência especial para tal fim. Assim, em havendo resistência e/ou recalcitrância por parte daquele que firmou cláusula de convenção de arbitragem, a parte interessada e prejudicada pelo descumprimento poderá força-lo a submeter-se à arbitragem para solução de controvérsia. 5.6 PRiNcíPio dA teMPoRARiedAde A relação obrigacional, a fim de não se configurar sujeição eterna, ostenta caráter transitório, como regra geral. Se assim não o fosse, a obrigação poderia transformar-se em verdadeira “escravidão”, não mais admitida no mundo civilizado. A respeito do tema, ensina Álvaro Villaça de Azevedo que a obrigação ostenta caráter transitório, eis que, “se fosse perpétua, importaria servidão humana, escravidão, o que não mais se admite nos regimes civilizados”34. Neste contexto, a sujeição ao juízo arbitral, não pode e não deve prolongar-se indefinidamente no tempo, sem que haja prolação de sentença arbitral, ressaltando-se não ter sido esta a intenção do legislador ao promulgar a Lei de Arbitragem. 33 ALVIM, J.E. Carreira. Comentários à Lei de Arbitragem. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. 34 AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Curso de Direito Civil – teoria geral das obrigações. 5. ed. São Paulo: RT. 1994. p. 31. Arthur Rabay 105 Com efeito, se é vedado o non liquet (não julgamento), bem como o retardamento indefinido no julgamento da causa, conforme previsto no art. 126, do Código de Processo Civil35, aplicável à jurisdição estatal, do mesmo modo não há como se permitir a ausência de julgamento arbitral, aplicandose o seguinte argumento: pior do que decidir errado, é não decidir. Ademais, com o descumprimento do prazo para prolação de sentença arbitral, indefinidamente, sem sanção, restaria malferido o princípio constitucional de acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV, Constituição Federal). Assim, resta consagrado o princípio da temporariedade, segundo qual, decorrido o lapso temporal previsto na cláusula de convenção de arbitragem para prolação da sentença arbitral, ou nada tendo sido convencionado, decorrido o prazo de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro, e desde que a parte interessada tenha notificado o árbitro, ou o presidente do tribunal arbitral, concedendo-lhe o prazo de dez dias para a prolação e apresentação da sentença arbitral, restará extinta tal cláusula contratual, e aberta a possibilidade de ajuizamento de ação perante o Poder Judiciário para solução da controvérsia (arts. 12, III, 11, III e 23, LArb)36. 5.7 PRiNcíPio dAs GARANtiAs PRocessUAis Para que a arbitragem seja considerada válida, deve-se assegurar à mesma que se façam presentes no curso do procedimento arbitral garantias processuais mínimas, através das quais as partes litigantes possam exercer suas prerrogativas processuais (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, igualdade das partes, imparcialidade e livre 35 Art. 126 - O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. 36 Art. 11. Poderá, ainda, o compromisso arbitral conter [...] III - o prazo para apresentação da sentença arbitral; [...] Art. 12. Extingue-se o compromisso arbitral: [...] III - tendo expirado o prazo a que se refere o art. 11, inciso III [...] Art. 23. A sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada tendo sido convencionado, o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro, desde que a parte interessada tenha notificado o árbitro, ou o presidente do tribunal arbitral, concedendo-lhe o prazo de dez dias para a prolação e apresentação da sentença arbitral. 106 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 106-108, jan./mar. 2014 convencimento do árbitro, decisão fundamentada, etc.)37, e sem as quais a sentença arbitral sequer pode gozar de credibilidade e confiança, quer das partes litigantes, quer da sociedade. Trata-se, à toda evidência, da Teoria Garantista – Espanha, de lavra do Prof. Antonio M. Lorca Navarrete, segundo a qual: Não pairam dúvidas que os Princípios Informadores do Processo Judicial encontram guarida no procedimento arbitral, ou seja, os Princípios da Tutela Jurisdicional e do Devido Processo Legal... a existência da arbitragem implica o desenvolvimento de um sistema de garantias processuais que possuem projeção constitucional. Constituem as garantias do cidadão, espelhadas nos princípios de direito constitucional processual (art. 5º, incisos XXXV, LIV e LV)38. Ou como ensina José Eduardo Carreira Alvim: A arbitragem, ex vi legis, é informada por alguns princípios (art. 21, § 2º, Larb), aos quais, em razão da função que cumprem, denomino de princípios ‘diretores’ do processo arbitral. São eles os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e do seu livre convencimento. Aliás, a grande diferença entre o processo arbitral e o judicial não está na natureza jurídica de ambos – que é precisamente a mesma - , mas em permitir a arbitragem que as partes escolham árbitros e as regras do procedimento arbitral, o que não se admite no processo judicial39 40 . 37 arts. 13, § 6º, 21, § 2º, 32, inciso VIII, 38, III, LArb. 38 FERREIRA LEMES, op. cit., p. 33 39 ALVIM, op. cit., p. 169. 40 REFERÊNCIAS LEGISLATIVAS: - Art. 5º, inciso LV, CF – “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” - Art. 93, inciso IX, CF – “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” - Larb - Art. 26. São requisitos obrigatórios da sentença arbitral: [...] II - os fundamentos da decisão, onde serão analisadas as questões de fato e de direito, mencionando-se, expressamente, se os árbitros julgaram por eqüidade; - LArb - Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. [...] § 6º No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência [...] Arthur Rabay 107 6 coNclUsão Conclui-se que a arbitragem é meio alternativo de solução de controvérsias, e enquanto instituto jurídico sujeita-se a diversos princípios que lhe asseguram higidez, validade, coerência, estrutura e harmonia sistêmicas. Também em caso de interpretações múltiplas o operador do direito deve socorrer-se e buscar solução nos princípios da arbitragem, afastando dúvidas, lacunas e/ou obscuridades, bem como situações e/ou ocorrências absurdas e desequilibradas. A tão almejada confiança e credibilidade da arbitragem perante a sociedade, decerto que trespassa pela consolidação de principiologia própria e dela carece. A função social dos princípios da arbitragem transcendem os interesses meramente privados e particulares, e a reposiciona e a consolida como ferramenta célere e eficaz de interesse e relevância social para acesso à Justiça. Em suma, a principiologia da arbitragem confere maioridade e o consolida enquanto instituto jurídico. RefeRÊNciAs ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estúdios políticos y constitucionales, 2002. ALVIM, José Eduardo Carreira. Comentários à Lei de Arbitragem. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. ______. Tratado Geral da Arbitragem - Interno. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Curso de Direito Civil – teoria geral das obrigações. 5. ed. São Paulo: RT, 1994. ______. Verbete liberdade contratual. Enciclopédia Saraiva do Direito 49/370371. São Paulo: Saraiva. 1977. 108 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 108-108, jan./mar. 2014 BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 1983. CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. São Paulo: RT, 2011. CARRIÓ, Genaro. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1970. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números - 2010. Disponível em: <www.cnj.jus.br>. CRETELLA JUNIOR, José. Da Arbitragem e seu Conceito Categorial. Revista de Informação Legislativa n. 98, abr./jun. 1998, Brasília. CRETELLA NETO, José. Comentários à lei de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense. 2007. FERREIRA LEMES, Selma Maria. Princípios e Origens da Lei de Arbitragem. Revista do Advogado n.º 51 – out. 1997. Edição AASP – Associação dos Advogados de São Paulo. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – v. I – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. MAXIMILIANO, Carlos. 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As cooPeRAtivAs de tRAbAlHo NAs licitAções PúblicAs – UMA NecessÁRiA MUdANçA de PARAdiGMA cooPeRAtives woRKiNG iN PUblic biddiNGs – A NecessARy PARAdiGM sHift Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão Procurador Federal SUMÁRIO: Introdução; 1 Necessidade de análise do instituto do termo de ajustamento de conduta; 2 A possibilidade cooperativas de participação em licitações e o combate às falsas cooperativas; 3 A alteração do contexto normativo gera a retirada de eficácia da sentença determinativa; 4 Conclusão; Referências. 110 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 110-132, jan./mar. 2014 RESUMO: O presente estudo visa analisar a superação do termo de conciliação firmado na justiça do trabalho que proibiu a participação de cooperativas de trabalho em licitações no âmbito da Administração Pública Federal, considerando o atual quadro normativo. O foco da pesquisa foi buscar a máxima eficácia da nova legislação, evitando a interpretação retrospectiva. Foi fixado que a não há violação à coisa julgada pela aplicação da nova legislação, levando em consideração que se trata de sentença determinativa, sujeita à cláusula rebus sic standibus. PALAVRAS-CHAVE: Cooperativa. Termo de Ajustamento de Conduta. Lei n. 12.690/2012. Interpretação Retrospectiva. Sentença Determinativa. ABSTRACT: The purpose of this study is to analyze the overcoming of the Labor´s Court conciliation agreement term that had prohibited the cooperatives’ participation in (Public) bids. It was considered the current regulatory framework in the context of the federal administration. The focus of the research is to apply the new legislation maximum effectiveness by avoiding the retrospective interpretation. It was concluded that there is no res judicata violation by applying the new legislation, and considering that this is a determinate sentence, it is subjected to the rebus sic standibus clause. KEYWORDS: Cooperative. Settlement Class. Law no. 12.690/2012. Retrospective Interpretation. Determinate Sentence. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 111 iNtRodUção O presente estudo visa analisar a questão relativa à participação de cooperativas de trabalho em Licitações no âmbito da Administração Pública Federal, considerando o novo quadro normativo inaugurado com a edição da Lei nº 12.349, de 15 de dezembro de 2010 que alterou a Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993, e da Lei nº 12.690, de 19 de julho de 2012, passando a vedar qualquer forma de restrição em relação às referidas associações. O ponto central da discussão diz respeito à superação das restrições constantes no Termo de Conciliação Judicial homologado pela Justiça do Trabalho nos autos da ação civil pública nº 01082-2002-02010-00-0, firmado entre o Ministério Público do Trabalho e a União, onde ficou acordado que a Administração Pública Federal abster-se-ia de “contratar trabalhadores, por meio de cooperativas de mão-de-obra, para a prestação de serviços ligados às suas atividades-fim ou meio, quando o labor, por sua própria natureza, demandar execução em estado de subordinação, quer em relação ao tomador, ou em relação ao fornecedor dos serviços, constituindo elemento essencial ao desenvolvimento e à prestação dos serviços terceirizados”. Para enfrentar tão complexa questão será necessário superar os seguintes pontos: (i) a natureza jurídica do termo de conciliação homologado pela Justiça do Trabalho nos autos da ação civil pública nº 01082-2002-020-10-00-0; (ii) a manutenção das restrições trazidas pelo termo de conciliação com as Leis n.º 12.690/2012 e 12.349/2010; (iii) a coisa julgada formada no âmbito da demanda coletiva trabalhista em decorrência da homologação por sentença do termo de conciliação. 1 NecessidAde de ANÁlise do iNstitUto do teRMo de AJUstAMeNto de coNdUtA Entendemos justificada a insegurança causada no espírito do Administrador diante da sucessão de atos estatais divergentes sobre um mesmo tema, principalmente levando-se em consideração uma provável contradição entre atos normativos federais posteriores ao termo de Conciliação Judicial firmado em sede de ação civil pública de âmbito nacional. O Termo de Conciliação foi homologado nos autos da Ação Civil Pública proposta perante a 20ª Vara do Trabalho de Brasília (Processo 01082-2002-020-10-00-00) movida pelo Ministério Público do 112 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 112-132, jan./mar. 2014 Trabalho, depois de constatado que algumas cooperativas só tinham sido criadas para burlar a legislação trabalhista. O mencionado Termo de Conciliação contem os seguintes compromissos: Cláusula Primeira – A UNIÃO abster-se-á de contratar trabalhadores, por meio de cooperativas de mão-de-obra, para a apresentação de serviços ligados às suas atividades-fim ou meio, quando o labor, por sua própria natureza, demandar execução em estado de subordinação, quer em relação ao tomador, ou em relação ao fornecedor dos serviços, constituindo elemento essencial ao desenvolvimento e à prestação dos serviços terceirizados, sendo eles: a) Serviços de Limpeza; b) Serviços de Conservação; c) Serviços de segurança, de vigilância e de portaria; d) Serviços de recepção; e) Serviços de copeiragem; f) Serviços de reprografia; g) Serviços de telefonia; h) Serviços de manutenção de prédios, de equipamentos, de veículos e de instalações; i) Serviços de secretariado e secretariado executivo; j) Serviços de auxiliar de escritório; k) Serviços de auxiliar administrativo; l) Serviços de office boy (continuo); m) Serviços de digitação; n) Serviços de assessoria de imprensa e de relações públicas; o) Serviços de motoristas, no caso de os veículos serem fornecidos pelo próprio órgão licitante; p) Serviços de ascensorista; q) Serviços de enfermagem; e r) Serviços de agentes comunitário de saúde. Parágrafo Primeiro – O disposto nesta Cláusula não autoriza outras formas de terceirização sem previsão legal. Parágrafo Segundo – As partes podem, a qualquer momento, mediante comunicação e acordos prévios, ampliar o rol de serviços elencados no Caput. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 113 Cláusula Segunda - Considera-se cooperativa de mão-de-obra, aquela associação cuja atividade precípua seja a mera intermediação individual de trabalhadores de uma ou várias profissões (inexistindo assim vínculo de solidariedade entre seus associados), que não detenham qualquer meio de produção, e cujos serviços sejam prestados a terceiros, de forma individual (e não coletiva), pelos seus associados. Cláusula Terceira - A UNIÃO obriga-se a estabelecer regras claras nos editais de licitação, a fim de esclarecer a natureza dos serviços licitados, determinando, por conseguinte, se os mesmos podem ser prestados por empresas prestadoras de serviços (trabalhadores subordinados), cooperativas de trabalho, trabalhadores autônomos, avulsos ou eventuais; Parágrafo Primeiro - É lícita a contratação de genuínas sociedades cooperativas desde que os serviços licitados não estejam incluídos no rol inserido nas alíneas “a” a “r” da Cláusula Primeira e sejam prestados em caráter coletivo e com absoluta autonomia dos cooperados, seja em relação às cooperativas, seja em relação ao tomador dos serviços, devendo ser juntada, na fase de habilitação, listagem contendo o nome de todos os associados. Esclarecem as partes que somente os serviços podem ser terceirizados, restando absolutamente vedado o fornecimento (intermediação de mão-de-obra) de trabalhadores a órgãos públicos por cooperativas de qualquer natureza. Apesar de ter sido nominado de Termo de Conciliação Judicial, o instrumento firmado nos autos da ação civil pública em tela não importou numa transação judicial, sendo necessário lançar algumas considerações a respeito dos acordos firmados em sede de tutela coletiva de diretos. O Ministério Público do Trabalho, conforme a lição de Emerson Garcia1, possui atribuição para perquirir irregularidades, de ordem comissiva e omissiva, envolvendo a realização de concurso para a contratação de servidores públicos ou a terceirização de serviços, por força do art. 83, III2, da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, 1 GARCIA, Emerson. Ministério Público - Organização, Atribuição e Regime Jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2005. p. 87. 2 Art. 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho: […] III - promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos; 114 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 114-132, jan./mar. 2014 sendo competente a Justiça do Trabalho para julgar eventual demanda coletiva a respeito do tema. Conforme reza o § 6o do art. 5o da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 19853 (Lei da Ação Civil Pública), qualquer legitimado para a propositura da ação civil pública pode firmar compromisso de ajustamento de conduta com aquele que, reconhecendo implicitamente que sua conduta ofende interesse difuso ou coletivo, assume o compromisso de eliminar a ofensa através de adequação de seu comportamento às exigências legais4. Cumpre salientar que o ajustamento de conduta não se confunde com a transação (art. 840 do Código Civil), pois esta última consubstancia concessões recíprocas, ao passo que o ajustamento, como o próprio nome diz, visa ao reconhecimento de uma obrigação legal a ser cumprida, ou, como explica Cezar Fiúza5, “[é] negócio Jurídico Bilateral em que credor e devedor, por meio de concessões recíprocas, põem fim a uma obrigação”. Explica Rogério Pacheco Alves6 que, de modo a evitarem-se equívocos interpretativos, é necessário distinguir transação e termo de ajustamento de conduta. A transação, negócio jurídico que importa em concessões recíprocas, está absolutamente vedada pelo sistema em razão da indisponibilidade dos interesses difusos. Quanto a eles, os difusos, em razão de sua dimensão dispersa e sua enorme significado para a sociedade, não se pode conceber qualquer disposição pelos legitimados, chegando-se a tal resultado, conforme apontado por Fernando Grella Vieira7, pelo próprio “descompasso entre a legitimidade e a titularidade dos interesses”. Tal entendimento é reforçado pela redação peremptória do art. 841 do Código Civil, vazado nesses termos, verbis: Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação. 3 § 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial. 4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2001. p. 202. 5 FIÚZA, Cezar. Direito Civil - Curso Completo. 3. ed. Belo Horizonte, MG: DelRey, 2009. p. 582. 6 ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2006. p. 615. 7 VIEIRA, Fernando Grella. A transação na defesa da tutela dos interesses difusos e coletivos: compromisso de ajustamento de conduta. 2001. p. 225. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 115 Quanto a esse aspecto de não se permitir qualquer tipo de concessão em favor do interessado, merece fazer menção à lição de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro8, no sentido de que: O compromisso de ajustamento de conduta não pode implicar em qualquer tipo de renúncia de direitos, ou mesmo de outras concessões que possam implicar na aceitação de uma conduta, por parte de terceiro, que não espelhe o total atendimento, de acordo com a lei, à proteção do direito difuso em discussão. Forte nessas premissas, mesmo que tenha sido nominado de Termo de Conciliação Judicial, o instrumento firmando no seio da Ação Civil Pública Trabalhista n° 01082-2002-020-10-00-00 entre o MPT e a União tem o regime jurídico típico do Termo de Ajustamento de Conduta. Assim, por força do § 6º do art. 5º da Lei 7.347/1985, uma vez confirmada a violação ao conteúdo do termo de ajustamento firmado, cabível será a propositura de ação de execução visando a tutela específica para ver cumprida as obrigações de fazer constantes no referido instrumento, cabendo colacionar as graves sanções previstas na cláusula quarta do mencionado termo de ajustamento, verbis: DAS SANÇÕES PELO DESCUMPRIMENTO Cláusula Quarta – A UNIÃO obriga-se ao pagamento de multa (astreinte) correspondente a R$ 1.000,00 (um mil reais) por trabalhador que esteja em desacordo com as condições estabelecidas no presente Termo de Conciliação, sendo a mesma reversível ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Páragrafo Primeiro – O servidor público que, em nome da Administração, firmar o contrato de prestação de serviços nas atividades relacionadas nas alíneas “a” a “r” da Cláusula Primeira, será responsável solidário por qualquer contratação irregular, respondendo pela multa prevista no caput, sem prejuízo das demais cominações legais. Parágrafo Segundo – Em caso de notícia de descumprimento dos termos firmados neste ajuste, a UNIÃO, depois de intimada, terá prazo de 20 (vinte) dias para apresentar sua justificativa perante o Ministério Público do Trabalho. 8 Apud José dos Santos Carvalho Filho, op cit, p. 207. 116 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 116-132, jan./mar. 2014 Com a edição da Lei 12.690/2012 e da Lei 12.349/2010 houve uma ampla alteração legislativa, inaugurando uma nova situação jurídica, que merece ser confrontada com as obrigações constantes no mencionado Termo de Conciliação Judicial. 2 A PossibilidAde cooPeRAtivAs de PARticiPAção eM licitAções e o coMbAte Às fAlsAs cooPeRAtivAs Para melhor entendimento, cabe transcrever os dispositivos pertinentes da Lei 8666/93, com a redação dada pela Lei 12.349/2010, e da Lei 12.690/2012, que assim dispõem respectivamente: Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. § 1o É vedado aos agentes públicos: I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5o a 12 deste artigo e no art. 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991;[…] Art. 10. A Cooperativa de Trabalho poderá adotar por objeto social qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu Estatuto Social. […] § 2o A Cooperativa de Trabalho não poderá ser impedida de participar de procedimentos de licitação pública que tenham por escopo os mesmos serviços, operações e atividades previstas em seu objeto social. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 117 Percebe-se que a intenção do legislador foi a de dar concreção ao comando constitucional de estimular o cooperativismo, previsto no § 2º do art. 174 da Constituição da República9, reconhecendo a grave crise instaurada em torno das cooperativas, vislumbrando tanto a necessidade de estimular a criação, como de preservar os direitos dos cooperados contra a utilização como intermediadora de mão de obra e fraudadora dos direitos dos trabalhadores. A respeito do tema, pertinentes são as considerações constantes da exposição de motivos do Projeto de Lei nº 7009/2006, que deu que origem à Lei 12.690/20012, nos seguintes termos: 3. A Constituição da República Federativa do Brasil determina, no § 2 º do artigo 174, que a lei apóie e estimule o cooperativismo e outras formas de associativismo, ficando claro que as cooperativas revelamse como um instrumento de desenvolvimento local e regional que permite o estabelecimento de formas democráticas no espaço da produção e, por isso, devem ser aprendidas como um valioso recurso no processo de construção da cidadania. 4. Desde a publicação da Lei nº 8.949/94, porém, sérias ameaças ao cooperativismo e aos direitos trabalhistas materializaram-se por meio da criação de cooperativas que, no processo de terceirização largamente instalado nas empresas brasileiras, vêm substituindo postos formais de emprego e inserindo trabalhadores subordinados no mercado de trabalho, tolhendo-lhes, todavia, o acesso aos direitos sociais. É a mercancia da mão-de-obra que não cria oportunidades novas, mas, ao contrário, torna precários os postos de emprego, de forma nunca vista em nosso país. 5. A par da necessidade de se regulamentar adequadamente o fenômeno de terceirização nas empresas, faz-se, premente, o regramento do cooperativismo de trabalho que, como se sabe, está na própria raiz das virtudes e dos problemas acima apontados. 6. A presente proposta visa a coibir as fraudes, vedando, terminantemente, a intermediação de mão-de-obra sob o subterfúgio das cooperativas de trabalho. Esta prática abusiva vem se revelando 9 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. […] § 2º - A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo. 118 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 118-132, jan./mar. 2014 como meio degradante de prestação de trabalho, uma vez que o trabalhador presta serviços em condições próprias de emprego, privado dos direitos reconhecidos pela Constituição Federal e pela legislação trabalhista. 7. Estas cooperativas de intermediação de mão-de-obra apresentam mera aparência de cooperativas, uma vez, não obstante formalizemse como tal, obedecendo aos requisitos legais para tanto, substancialmente não o são, pois o trabalhador `cooperado´ que presta serviços pessoais e subordinados a terceiros, nada mais é, senão empregado. Sua força de trabalho transfere lucro aos tomadores, o que é compatível com o vínculo de emprego, mas não com o cooperativismo. Trata-se, portanto, de emprego precário, porque não protegido pelos direitos sociais que lhe seriam inerentes. Em reforço, observa-se que a Instrução Normativa no 02, de 30 de abril de 2008 da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento (SLTI/MP) estabelece expressamente a possibilidade de participação de cooperativas nos certames licitatórios, exigindo-se, contudo, o preenchimento de alguns requisitos, a saber: Art. 4º A contratação de sociedades cooperativas somente poderá ocorrer quando, pela sua natureza, o serviço a ser contratado evidenciar: I - a possibilidade de ser executado com autonomia pelos cooperados, de modo a não demandar relação de subordinação entre a cooperativa e os cooperados, nem entre a Administração e os cooperados; e II - a possibilidade de gestão operacional do serviço for compartilhada ou em rodízio, onde as atividades de coordenação e supervisão da execução dos serviços, e a de preposto, conforme determina o art. 68 da Lei nº 8.666, de 1993, sejam realizadas pelos cooperados de forma alternada, em que todos venham a assumir atribuição. Parágrafo único. Quando admitida a participação de cooperativas, estas deverão apresentar modelo de gestão operacional adequado ao estabelecido neste artigo, sob pena de desclassificação. Art. 5º Não será admitida a contratação de cooperativas ou instituições sem fins lucrativos cujo estatuto e objetivos sociais não prevejam ou não estejam de acordo com o objeto contratado. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 119 Parágrafo único. Quando da contratação de cooperativas ou instituições sem fins lucrativos, o serviço contratado deverá ser executado obrigatoriamente pelos cooperados, no caso de cooperativa, ou pelos profissionais pertencentes aos quadros funcionais da instituição sem fins lucrativos, vedando-se qualquer intermediação ou subcontratação. Por outro lado, cabe registrar que a Lei 12.690/2012 conferiu extenso rol de direitos aos cooperados, rol este disposto em termos muito próximos do conferido aos trabalhadores em geral, tornando em grande medida esvaziada a preocupação da utilização da cooperativa como instrumento de fraude aos direitos trabalhistas do cooperado, conforme dispõe o art. 7º da mencionada lei, verbis: Art. 7o A Cooperativa de Trabalho deve garantir aos sócios os seguintes direitos, além de outros que a Assembleia Geral venha a instituir: I - retiradas não inferiores ao piso da categoria profissional e, na ausência deste, não inferiores ao salário mínimo, calculadas de forma proporcional às horas trabalhadas ou às atividades desenvolvidas; II - duração do trabalho normal não superior a 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais, exceto quando a atividade, por sua natureza, demandar a prestação de trabalho por meio de plantões ou escalas, facultada a compensação de horários; III - repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; IV - repouso anual remunerado; V - retirada para o trabalho noturno superior à do diurno; VI - adicional sobre a retirada para as atividades insalubres ou perigosas; VII - seguro de acidente de trabalho. Percebe-se que a Lei 12.690/12 foi clara em vedar as chamadas falsas cooperativas, que servem como meras intermediadoras de mão de obra, oferecendo a prestação de serviços de pessoas que em nada se assemelham a de um cooperado, servindo como uma simulação de contrato de trabalho, conforme dispõe o art. 5°: 120 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 120-132, jan./mar. 2014 Art. 5o A Cooperativa de Trabalho não pode ser utilizada para intermediação de mão de obra subordinada. Nota-se, especialmente, que a nova sistemática do trabalho mediante a coordenação prevista no § 6º do art. 7º da Lei 12.690/1210 tem o propósito de caracterizar a cooperativa e eliminar eventual possibilidade de subordinação ao terceiro tomador do serviço. O coordenador dos cooperados está para os serviços prestados pela cooperativa, assim como o preposto (art. 68 da Lei 8.666), para os empregados das empresas locadoras de mão de obra especializada, mas sem hierarquia11. Tão séria é essa figura do coordenador dos cooperados, e dos pressupostos mencionados no § 6º do art. 7º, que a Lei 12.690 estabelece presunção legal da intermediação de mão de obra caso não haja observância de tal sistemática, conforme disposto nos §§ 1º e 2º do art. 17: Art. 17. Cabe ao Ministério do Trabalho e Emprego, no âmbito de sua competência, a fiscalização do cumprimento do disposto nesta Lei. § 1º A Cooperativa de Trabalho que intermediar mão de obra subordinada e os contratantes de seus serviços estarão sujeitos à multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) por trabalhador prejudicado, dobrada na reincidência, a ser revertida em favor do Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT. § 2º Presumir-se-á intermediação de mão de obra subordinada a relação contratual estabelecida entre a empresa contratante e as Cooperativas de Trabalho que não cumprirem o disposto no § 6o do art. 7o desta Lei. […] 10 § 6o As atividades identificadas com o objeto social da Cooperativa de Trabalho prevista no inciso II do caput do art. 4 o desta Lei, quando prestadas fora do estabelecimento da cooperativa, deverão ser submetidas a uma coordenação com mandato nunca superior a 1 (um) ano ou ao prazo estipulado para a realização dessas atividades, eleita em reunião específica pelos sócios que se disponham a realizá-las, em que serão expostos os requisitos para sua consecução, os valores contratados e a retribuição pecuniária de cada sócio partícipe. 11 PÉRCIO, Gabriela Verona. Cooperativas, licitação e Lei 12.690/12: ainda vige o Termo de Conciliação entre a União e o MTB? Disponível em: <http://gestaopublica-gabrielapercio.blogspot.com.br/2012/08/ cooperativas-licitacao-e-lei-1269012.html>. Acesso em: 27 set. 2013. Joinville, SC: Gestão Pública, 20 de agosto de 2012. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 121 Importantes são as considerações de Gabriela Verona Pércio12, que bem esclareceu o contexto em que surgiu o novo regramento das cooperativas de trabalho em relação às terceirizações, conforme trecho que merece ser colacionado: Frente a tais constatações, não é crível supor que a Lei em comento [Lei 12.690] tenha vindo a lume alheia à atual crise da terceirização no serviço público e para promover mudanças nas práticas que vinham sendo adotadas. Some-se a ela o anterior julgamento da ADI 16 pelo STF e a consequente reformulação da Súmula 331 pelo TST, diretamente relacionadas ao tema, provavelmente propulsores da aprovação do projeto de lei que tramitava no Congresso desde 2006. O reconhecimento da constitucionalidade do §1º do art. 71 da Lei 8.666, que a princípio gerou a sensação de queda da referida Súmula, apenas consolidou a responsabilização subsidiária trabalhista, pois, apesar de permanecerem as discordâncias no meio acadêmico, não mais sobrevivem dúvidas sobre o assunto. É de clareza solar a prevalência da proteção do trabalhador e de seus direitos fundamentais sobre a proteção do erário e do interesse público. Aliás, a rigor, seguese na linha de prioridades estabelecida pela própria Constituição da República, a despeito de todas as críticas que possam ser tecidas pelos adeptos da impossibilidade de responsabilização da Administração Pública. […] Assim, a Lei 12.690/12 autoriza o funcionamento de cooperativas de trabalho tendo quaisquer serviços como objeto social, estabelece regras a serem observadas para garantir o respeito aos trabalhadores e ao instituto do cooperativismo, especialmente em situações com potencial para burlarem esse sistema institucionalizado de proteção ao trabalhador, como é o caso dos serviços eminentemente subordinados. Dessa forma, diferentemente do entendimento constante no Termo de Conciliação Judicial assinado entre o MPT e a União, para a nova lei, o ponto central não é a subordinação da mão de obra na prestação do serviço, mas, sim, o fato de se tratar de uma verdadeira cooperativa que preste um serviço, seja ele qual for, desde que lícito, e que a cooperativa seja constituída e atue com observância dos requisitos trazidos pela Lei 12.690/2012. 12 PÉRCIO, op. cit. 122 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 122-132, jan./mar. 2014 A premissa que o Ministério Público do Trabalho, à qual a União aderiu, aparentemente, foi uma eventual impossibilidade legal de constituir cooperativas para a prestação de serviços “cujo labor, por sua própria natureza, demandarem execução em estado de subordinação”, partindo do pressuposto de que tais serviços não representariam um “meio de produção” próprio, suficiente para se tornar objeto social de uma cooperativa, pois sempre seriam executados individualmente por terceiros (cf. Cláusula Segunda do Termo de Conciliação13). No regime anterior não havia regra com o objetivo de proteger os trabalhadores e os cofres públicos, o que caracterizava uma lacuna legislativa grave. Desse modo, por uma questão de prudência, a proibição da contratação frearia as ações das “falsas cooperativas” e reduziria a possibilidade de responsabilização trabalhista da Administração Pública. Contudo, não parece haver dúvida quanto à modificação da ordem jurídica expressa, conforme disposições acima transcritas. Verifica-se, aliás, que a Lei 12.690/12 regulamentou a atuação das cooperativas de trabalho de forma bastante completa quando garantiu aos associados direitos similares aos dos empregados regidos pela CLT e tornando tal forma de cooperação bastante próxima – mas não igual, frise-se - ao próprio vínculo empregatício. Percebe-se que a Lei 12.690/12 gerou verdadeira virada de Copérnico no tratamento jurídico das cooperativas, com a necessária reformulação de todos os paradigmas que deram ensejo à assinatura do Termo de Conciliação, em grande medida pelo fato de a nova normatização ter trazido uma série de direitos aos cooperados que antes lhes eram negados, permitindo que as verdadeiras cooperativas possam fornecer serviços de qualidade, com cooperados qualificados, que participam da gestão coletiva da instituição de maneira democrática, e que possuem direitos à semelhança dos direitos garantidos aos trabalhadores em geral14. 13 Cláusula Segunda - Considera-se cooperativa de mão-de-obra, aquela associação cuja atividade precípua seja a mera intermediação individual de trabalhadores de uma ou várias profissões (inexistindo assim vínculo de solidariedade entre seus associados), que não detenham qualquer meio de produção, e cujos serviços sejam prestados a terceiros, de forma individual (e não coletiva), pelos seus associados. 14 Lei 12.690/2012: Art. 3o A Cooperativa de Trabalho rege-se pelos seguintes princípios e valores: I - adesão voluntária e livre; II - gestão democrática; III - participação econômica dos membros; IV - autonomia e independência; V - educação, formação e informação; VI - intercooperação; VII - interesse pela comunidade; Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 123 Pensamento diverso, contudo, foi externado por Fernanda Mesquita Ferreira15 em brilhante artigo sobre o tema envolvendo a participação de cooperativas de trabalho em licitações públicas, tendo essa autora concluído que o Termo de Conciliação celebrado no âmbito da Justiça do Trabalho permanece válido, não obstante o advento da Lei n° 12.690/2012, conforme excerto que ora colaciono: Como se vê, mesmo após a nova redação do artigo 3º, § 1º da Lei nº 8.666/1993, e da Súmula TST nº 331, e ainda com o advento da Lei nº 12.690/2012, o Termo de Conciliação Judicial celebrado entre a União Federal e o Ministério Público do Trabalho permanece válido. Tal ocorre porque o objetivo deste Termo não é afastar toda e qualquer sociedade cooperativa das licitações públicas, mas tão somente aquelas que pretendam prestar serviço que demande trabalho subordinado. Note-se que para prestarem serviço de caráter subordinado, as sociedades cooperativas estariam violando um dos requisitos legais de sua constituição, qual seja: a autonomia dos cooperados. Na verdade, chega-se à conclusão que o Termo de Conciliação Judicial pretendeu afastar a participação de falsas cooperativas nas licitações públicas. Para as demais hipóteses de licitação de serviços que não demandem mão-de-obra com vínculo de subordinação, não haverá impedimento legal para participação de sociedades cooperativas, já que o serviço será prestado com absoluta autonomia dos cooperados. Aliás, esta previsão vem expressa no Parágrafo Primeiro da Cláusula Terceira do referido Termo de Conciliação Judicial, e pode ser depreendida do art. 5º da Lei nº 12.690/2012. Com todo o respeito que merece tal posicionamento, ouso divergir. VIII - preservação dos direitos sociais, do valor social do trabalho e da livre iniciativa; IX - não precarização do trabalho; X - respeito às decisões de asssembleia (sic), observado o disposto nesta Lei; XI - participação na gestão em todos os níveis de decisão de acordo com o previsto em lei e no Estatuto Social. 15 FERREIRA, Fernanda Mesquita. A Participação das Cooperativas nas Licitações Públicas: análise à luz da doutrina, jurisprudência e legislação, incluindo-se a nova lei de cooperativas de trabalho (Lei nº 12.690/2012). Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 30 jan. 2013. Disponível em: <http://www. conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.41925&seo=1>. Acesso em: 27 set. 2013. 124 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 124-132, jan./mar. 2014 Como toda mudança legislativa, necessário se faz que busquemos na nova normatização sua máxima eficácia, garantindo que o novo seja implementado, e a ordem anterior seja considerada superada, afastando a síndrome da interpretação retrospectiva das leis. A interpretação retrospectiva é uma patologia jurídica que, conforme leciona Uadi Lammego Bulos16, tem como resultado o de que o texto novo deve ficar, tanto quanto possível, igual ao velho. Assim, o ato interpretativo não inova em coisa alguma. O atraso permanece. A mesma exegese de outrora é mantida. Não se olha o presente, tampouco o futuro, mas, tão só o passado. Com a mesma sensibilidade, os professores Maurício Portugal Ribeiro, Mário Engler Pinto Junior e Lucas Navarro Prado17 destacam que [m]uito comum no meio jurídico é a suposição de que a Constituição Federal incorpora, como parte de seu núcleo duro de sentido, o conjunto de decisões institucionais tomadas por lei, por instrumentos normativos infralegais e também o conjunto de percepções e ideias que formam o senso comum jurídico. Essa suposição se manifesta com frequência quando uma nova disposição legal altera normas ou práticas tradicionais, e é, por isso, taxada de inconstitucional. De uma perspectiva cognitiva, seria possível explicar isso pelo maior impacto que as experiências reais, palpáveis e atuais possuem sobre os sentidos humanos, quando comparadas a experiências imaginadas, abstratas ou passadas. Ainda segundo os referidos autores18, [e]ssa força da realidade projetada sobre a atividade de interpretação do texto constitucional cria tendência ao escamoteio da multiplicidade de sentidos e de interpretações que lhe pode ser dada, de maneira a considerar toda a inovação, todo o que contraria o senso comum jurídico e os textos infraconstitucionais como inconstitucional. 16 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2012. p. 466. 17 RIBEIRO, Mauricio Portugal; PINTO JUNIOR, Mário Engler; PRADO, Lucas Navarro. Regime Diferenciado de Contratação - Licitação de Infraestrutura pára Copa do Mundo e Olimpíadas. São Paulo, SP: Atlas, 2012. p. 10-11. 18 Ibidem, p. 11. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 125 Dessa forma, e pedindo vênia para quem entende em contrário, não cabe sustentar que as normas trazidas pelas Leis 12.690/2012 e 12.349/2010 em nada inovaram e que cumpre manter a anterior interpretação sobre o regime jurídico das cooperativas, com a manutenção de todas as vedações trazidas pelo Termo de Conciliação Judicial firmado entre o MPT e a União. Diante da Lei 12.690/12, o Termo de Conciliação celebrado entre o MPT e a União em 2003 não pode mais prevalecer, merecendo uma leitura à luz do novo quadro normativo instaurado. O referido Termo obsta, absolutamente, a participação em licitação e posterior contratação pela União de “genuínas cooperativas” para os serviços listados nas alíneas “a” a “r” da sua Cláusula Primeira, o que não pode subsistir diante da nova ordem jurídica. Com maior ênfase, sustenta o Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho19 a inconstitucionalidade do próprio Termo de Conciliação, tamanha foi a restrição imposta às contratações das cooperativas de trabalho pela Administração Pública, conforme trecho abaixo: […] Justamente por isso, causa espécie o termo de conciliação judicial imposto pelo Ministério Público do Trabalho à União, para que não admitisse em licitações de serviços cooperativas de trabalho. O termo de ajuste de trabalho, a par de inconstitucional, já que vai de encontro aos arts. 5º, XVIII, e 174, § 2º, da Constituição Federal, atenta contra a própria normativa internacional, alijando cooperativas e seus associados do mercado de trabalho ofertado pelo setor público. Com efeito, a Carta Política, além de colocar como missão do Estado estimular e apoiar o cooperativismo, impede a intervenção estatal no funcionamento das cooperativas. O termo de conciliação representa intervenção indevida na própria sobrevivência das cooperativas, desestímulo à sua atuação, a par de atentar flagrantemente contra um dos pilares do devido processo legal, que é a garantia do contraditório, uma vez que o termo foi tomado em processo ajuizado contra a União, sem defesa das 19 Apud, PÉRCIO, Gabriela Verona. Cooperativas, licitação e Lei 12.690/12: ainda vige o Termo de Conciliação entre a União e o MTB? Disponível em: <http://gestaopublica-gabrielapercio.blogspot.com.br/2012/08/ cooperativas-licitacao-e-lei-1269012.html>. Joinville, SC: Gestão Pública, 20 de agosto de 2012. Acesso em: 27 set. 2013. 126 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 126-132, jan./mar. 2014 cooperativas atingidas ou do ente confederativo que as congrega, em matéria que as afeta diretamente! […] Sem adentrar na questão da inconstitucionalidade do multicitado termo de conciliação, a nova legislação leva à conclusão de que deve ser reputado o mencionado instrumento como superado. Os editais não poderão vedar a participação de cooperativas de trabalho em licitações para contratar serviços com cessão de mão de obra, inclusive com dedicação exclusiva, que comprovem ser “genuínas cooperativas” e atendam às condições estabelecidas pela referida Lei. A Administração, nas licitações, deverá se certificar quanto à regularidade de tais sociedades e também da relação mantida com seus cooperados, seguindo as orientações da Instrução Normativa nº 02/2008-SLTI/ MPOG, cujo texto, aliás, não contradiz a Lei 12.690, além de exigir a prestação do serviço de forma coordenada, nos termos do art. 7º, § 6º do novo Estatuto das Cooperativas. Frise-se que tal entendimento inclusive é necessário para o sucesso do Programa Nacional do Fomento às Cooperativas de Trabalho – PRONACOOP, na medida em que tal programa, conforme disposto no capítulo IV da Lei 12.690/12, tem por finalidade promover o desenvolvimento e a melhoria do desempenho econômico e social da Cooperativa de Trabalho (art. 19), e as contratações governamentais são fundamentais para o estímulo e desenvolvimento da atividade cooperada, não havendo qualquer razão para recusar, em licitações públicas, as cooperativas de trabalho licitamente constituídas e em regular funcionamento, seja qual for o seu objeto. Até porque, como já dito, tal recusa violaria o texto expresso contido no §1º do art. 3º da Lei nº 8.666/93, com a nova redação dada pela Lei nº 12.349/2010, e todo o espírito da Lei nº 12.690/2012, notadamente o § 2º do seu art. 10. É a importância social das cooperativas, e não simplesmente o seu interesse individual, que justifica esta assunção de responsabilidades por parte dos entes governamentais. As cooperativas nascem da iniciativa dos cidadãos e funcionam com autonomia e independência, mas dependem na sua capacidade de ação do ambiente que as envolve. E um ambiente promotor e facilitador das cooperativas resulta das decisões que a esse respeito são tomadas no âmbito econômico e social, mas igualmente na esfera política. Anote-se que tal entendimento vai ao encontro do compromisso internacional assumido pelo Brasil quando da 90ª Conferência Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 127 Internacional do Trabalho em Genebra, já que tal compromisso busca resolver o problema das “pseudocooperativas”, e a referida recomendação além de prever a necessidade de garantia dos direitos dos trabalhadores, incluiu a necessidade de os Governos promoverem o papel das cooperativas, conforme dispositivos que ora colacionamos, verbis: 8. (1) As políticas nacionais deveriam sobretudo: […] (b) assegurar que não se formem ou sejam usadas cooperativas para escapar à observância das leis trabalhistas ou usadas para mascarar relações de emprego, e combater falsas cooperativas que violam direitos trabalhistas, garantindo a aplicação da legislação trabalhista em todas as empresas; […] 9. Os governos deveriam promover o importante papel das cooperativas na transformação de atividades freqüentemente marginais de sobrevivência (algumas vezes referidas como “economia informal”) em trabalho legalmente protegido, plenamente integrado no contexto da vida econômica. (Recomendação 193 - 90ª sessão, da OIT – Organização Internacional do Trabalho, em junho de 2002). Forte nessas premissas, cabe garantir às cooperativas a participação nas licitações promovidas pelo Poder Público, para qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu Estatuto Social, e desde que haja observância dos ditames da Lei 12.690/2012 e da Instrução Normativa nº 02/2008-SLTI/MPOG. 3 A AlteRAção do coNtexto NoRMAtivo GeRA A RetiRAdA de eficÁciA dA seNteNçA deteRMiNAtivA Cumpre, por fim, analisar se o entendimento que reputa superado o termo de conciliação homologado em juízo, pela superveniência das Leis 12.349/2010 e 12.690/2012, prejudica a coisa julgada, prevista o art. 5º XXXVI, da Constituição da República. A coisa julgada material incidente nas relações jurídicas de trato sucessivo alcança tão somente as prestações vencidas e exigíveis, dada a repercussão da cláusula rebus sic stantibus sobre o princípio da 128 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 128-132, jan./mar. 2014 imutabilidade das sentenças, na medida em que cuida de decisões proferidas consoantes o arcabouço fático-jurígeno existente ao tempo da prolação, que pode sofrer alteração superveniente. A norma encontra-se consagrada no inciso I, do art. 471, do Código de Processo Civil, verbis: Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; Conforme leciona Alexandre de Paula20 a respeito do referido dispositivo legal: 3. O que a norma, em síntese, consagra, é a repercussão da cláusula rebus sic stantibus sobre o princípio da imutabilidade da sentença. No fundo, a revisão se opera em homenagem mesmo à coisa julgada, de vez que a sentença considerou, no momento de sua emissão, fatos e circunstâncias relevantes que não mais perduram, que sofreram alterações de tal ordem, que traduziria summa injuria, verdadeira denegação da Justiça, mantê-la intocável na sua letra, per omnia secula […] Sobre o tema, cumpre registrar a precisa lição do eminente Ministro Teori Albino Zavascki21: Quanto às relações jurídicas sucessivas [...], a regra é a de que as sentenças só têm força vinculante sobre as relações já efetivamente concretizadas, não atingindo as que poderão decorrer de fatos futuros, ainda que semelhantes. Isso se deve à própria natureza da função jurisdicional, que, conforme se viu, tem por matéria de trato os fenômenos de incidência das normas em suportes fáticos presentes ou passados. O campo do direito tributário é fértil nessa discussão, sendo no sentido acima indicado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Elucidativa desta linha de pensar é a Súmula 20 PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil Anotado v. 4, 7. ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 1998. p. 1903. 21 ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2001. p. 84-89. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 129 239, segundo a qual “decisão que declara indevida a cobrança de imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores”. A mesma orientação norteou os precedentes em que ficou assentado que ‘a declaração de intributabilidade, no pertinente a relações originadas de fatos geradores que se sucedem no tempo, não pode ter o caráter de imutabilidade e de normatividade a abranger eventos futuros. Nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a respeito da superação de sentença transitada em julgado de relação jurídica continuativa no caso de superveniência de lei, verbis: PROCESSUAL CIVIL. COBRANÇA DE TARIFA PROGRESSIVA DE FORNECIMENTO DE ÁGUA A PARTIR DA VIGÊNCIA DA LEI N. 11.445/07. NOVA SITUAÇÃO JURÍDICA. NÃO OFENSA À COISA JULGADA. 1. Noticiam os autos que o agravante - Condomínio Santa Mônica - ajuizou ação ordinária contra a CEDAE, com vistas a afastar a cobrança de água pela tarifa progressiva, sob o fundamento de ilegalidade. O pedido foi julgado procedente, transitando em julgado em 2006. Em 2007, entrou em vigor a Lei n. 11.445, que chancelou expressamente essa modalidade de cobrança progressiva. 2. Cinge-se a controvérsia ao momento em que a tarifa progressiva instituída pela Lei n. 11.445/07 poderia ser cobrada do Condomínio, no caso de haver sentença transitada em julgado em sentido contrário. 3. O art. 471, inciso I, do CPC reconhece a categoria das chamadas sentenças determinativas. Essas sentenças transitam em julgado como quaisquer outras, mas, pelo fato de veicularem relações jurídicas continuativas, a imutabilidade de seus efeitos só persiste enquanto não suceder modificações no estado de fato ou de direito, tais quais as sentenças proferidas em processos de guarda de menor, direito de visita ou de acidente de trabalho. 4. Assentadas essas considerações, conclui-se que a eficácia da coisa julgada tem uma condição implícita, a da cláusula rebus sic stantibus, norteadora da Teoria da Imprevisão, visto que ela atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando da prolação da sentença. 130 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 130-132, jan./mar. 2014 5. Com base nos ensinamentos de Liebman, Cândido Rangel Dinamarco, é contundente asseverar que “a autoridade da coisa julgada material sujeita-se sempre à regra rebus sic stantibus, de modo que, sobrevindo fato novo ‘o juiz, na nova decisão, não altera o julgado anterior, mas, exatamente, para atender a ele, adapta-o ao estado de fatos superveniente’.” 6. Forçoso concluir que a CEDAE pode cobrar de forma escalonada pelo fornecimento de água a partir da vigência da Lei n. 11.445/2007 sem ostentar violação da coisa julgada. Agravo regimental improvido.22 Dessa forma, em se tratando de relação jurídica continuativa, mutável no prolongamento do tempo, não é menos cediço que a sentença que dela cuide – denominada em doutrina como “sentença determinativa” – traz em si, implicitamente, a cláusula rebus sic standibus, vez que, ao promover o acertamento definitivo da lide, leva em consideração a situação de fato e de direito existente, prevalecendo enquanto este contexto perdurar. Destarte, se, por um lado, a sentença transitada em julgado que cuide de relação jurídica continuativa ostenta, sim, “eficácia” de coisa julgada, por outro lado, não tem o condão de impedir as variações dos elementos constitutivos daquela relação continuativa, vale dizer, não obsta que lei nova regule diferentemente os fatos ocorridos a partir de sua vigência. Assim, constatado que houve alteração do quadro normativo que conferia base para o termo de ajustamento de conduta firmado, não há que se falar em violação à coisa julgada pela aplicação da Lei nº 12.690/12 para as novas licitações deflagradas a partir da vigência da nova legislação. 4 coNclUsão Vistos os principais pontos relativos à inovação normativa das cooperativas de trabalho na legislação brasileira, chegou a hora de sistematizar algumas considerações acerca de sua potencial participação em matéria de contratações públicas. 22 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1193456/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 07/10/2010. DJe 21/10/2010. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 131 (i) deve ser considerado superado Termo de Conciliação Judicial homologado pela Justiça do Trabalho nos autos da ação civil pública nº 01082-2002-020-10-00-0, firmado entre o Ministério Público do Trabalho e a União, por força edição da Lei nº 12.690/2012 e da Lei nº 12.349/2010 que alterou a lei 8666/93; (ii) cabe garantir às cooperativas a participação nas licitações promovidas pelo Poder Público, para qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu Estatuto Social, e desde que haja observância dos ditames da Lei 12.690/2012 e da Instrução Normativa nº 02/2008-SLTI/ MPOG; (iii) por se tratar de relação jurídica continuada, não viola a coisa julgada a aplicação da nova legislação para as novas licitações deflagradas a partir da vigência. RefeRÊNciAs ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2006. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1193456/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em: 07/10/2010. DJe 21/10/2010. BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2012. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2001. FERREIRA, Fernanda Mesquita. A Participação das Cooperativasnas Licitações Públicas: análise à luz da doutrina, jurisprudência e legislação, incluindo-se a nova lei de cooperativas de trabalho (Lei nº 12.690/2012). Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com. br/?artigos&ver=2.41925&seo=1>. Acesso em: 27 set. 2013. Conteudo Juridico. Brasilia, DF, 30 de Janeiro de 2013. FIÚZA, Cezar. Direito Civil - Curso Completo. 3. ed. Belo Horizonte, MG: DelRey, 2009. 132 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 132-132, jan./mar. 2014 GARCIA, Emerson. Ministério Público - Organização, Atribuição e Regime Jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2005. PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil Anotado v. 4, 7. ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 1998. PÉRCIO, Gabriela Verona. Cooperativas, licitação e Lei 12.690/12: ainda vige o Termo de Conciliação entre a União e o MTB? Disponível em: <http:// gestaopublica-gabrielapercio.blogspot.com.br/2012/08/cooperativas-licitacaoe-lei-1269012.htm>. Acesso em: 27 set. 2013. Joinville, SC: Gestão Pública, 20 de agosto de 2012. RIBEIRO, Mauricio Portugal, PINTO JUNIOR, Mário Engler, PRADO, Lucas Navarro. Regime Diferenciado de Contratação - Licitação de Infraestrutura pára Copa do Mundo e Olimpíadas. São Paulo, SP: Atlas, 2012. VIEIRA, Fernando Grella. A transação na defesa da tutela dos interesses difusos e coletivos: compromisso de ajustamento de conduta. 2001. ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2001. ANÁlise dAs PesqUisAs dA fGv e UfRGs sobRe o PANoRAMA PRocessUAl bRAsileiRo e A NecessÁRiA iNteRveNção dA AdvocAciA PúblicA AN ANAlysis of tHe ReseARcH ANd fGv UfRGs PRocess oveRview oN bRAziliAN ANd NecessARy Role of PUblic AdvocAcy Fernando Menegueti Chaparro Procurador Federal. Professor Universitário da Unipar – Mestre SUMÁRIO: Introdução; 1 O panorama processual envolvendo o Estado-Administração e o Estado-Juiz: as pesquisas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); 2 O acesso à Justiça como conceito amplo: a concretização extrajudicial de direitos devidos pelo Estado através da Advocacia-Geral da União; 3 Da previsão constitucional da Advocacia-Geral da União; 4 A experiência da AGU: Câmara de Conciliação e Arbitragem; 5 Conclusão; Referências. 134 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 134-172, jan./mar. 2014 RESUMO: A demanda por direitos não foi absorvida pela Administração Pública que, ainda por adotar o modelo positivista do Direito, agravado pela influência da informática, adota um sistema extremamente fechado para a análise de demandas subjetivas, massificando e generalizando situações concretas, gerando uma crise de administração de direitos que converge para uma outra crise estatal, desta vez em relação ao Poder Judiciário, que chega ao ponto de substituir-se na função de administrador para analisar direitos constitucionais dos cidadãos. Esse problema foi enfrentado por duas grandes pesquisas acadêmicas feitas a pedido do CNJ, uma pela FGV e outra pela UFRGS. Essa tensão entre os Poderes Executivo e Judiciário, sua repercussão no processo civil, pode ser dirimida ou relativizada através da Advocacia-Geral da União, órgão jurídico presente no corpo constitucional, que deve ser um intermediário entre cidadão e Judiciário, atuando pré-processualmente como instituição conciliadora ou julgadora, contribuindo, assim, para a redução de demandas judiciais, duração razoável do processo e resgate das funções constitucionais originárias dos citados poderes políticos. PALAVRAS-CHAVE: Processo Civil. Advocacia-Geral da União. Meios alternativos. Conciliação. Pesquisa. ABSTRACT: The demand for rights was not absorbed by the Public Administration, yet to adopt the positivist model of law, exacerbated by the influence of information technology, adopts an extremely closed to the analysis of subjective demands, massifying and generalizing concrete situations, creating a crisis management rights which converges to another state crisis, this time in relation to the judiciary, which goes so far as to replace the administrator role to analyze the constitutional rights of citizens. This problem was faced by two major academic research done at the request of the CNJ, and another one FGV UFRGS. This tension between the executive and judicial branches, its impact on civil procedure, can be resolved or relativized through the Attorney General’s Office, the legal body in this constitutional body, which must be an intermediary between citizens and the judiciary, acting as pre-procedurally institution conciliatory or judgmental, thus contributing to the reduction of litigation, reasonable duration of the process and rescue the constitutional functions of the originating cited political powers. KEYWORDS: Civil Process. Attorney General of the Union Alternative means. Conciliation. Research. Fernando Menegueti Chaparro 135 iNtRodUção As transformações sociais pelas quais o mundo contemporâneo tem passado, principalmente após as duas grandes guerras mundiais, influenciaram todo o perfil da atual sociedade. O modo de vida econômico implementado pela revolução industrial, rompendo com as tradições do feudalismo, fez florescer o capitalismo, que se firmou como modelo insuperável de sistema econômico. Até mesmo as guerras mundiais, que causaram horrores indescritíveis, são fontes históricas para o direito que atualmente vivemos, na medida em que foram a gênese das transformações tecnológicas e as sementes dos direitos humanos tão propalados em sede internacional. A ininterrupta evolução social passou a influenciar novos ramos do Direito, seja na seara cível, com a codificação napoleônica, que se espalhou pelo mundo como modelo perfeito de regras, baseado no positivismo de Hans Kelsen, bem como sobre o processo civil, tradicionalmente aclamado como a principal forma de resolução de conflitos. Esse foi um período em que predominou a filosofia liberal, na qual vale a interpretação extremada da liberdade individual em detrimento, por exemplo, da solidariedade e da coletividade. Os códigos de leis eram o ápice da regulação das condutas sociais, de modo que rigidamente previam os fatos a serem regulados pelo Direito, contendo uma ideia de totalização de regramento infalível. Todavia, com o passar do tempo, verificou-se que a normatização hermeticamente fechada era contraditória em relação aos avanços sociais, na medida em que a massificação e a complexidade das relações não “cabiam” mais nos códigos. Velhos direitos passaram a ser considerados novos direitos, em regra para defesa das minorias (preconceitos em relação à raça, cor, orientação sexual, entre outros) e nichos específicos da sociedade com algum traço de hipossuficiência (crianças, idosos, mulheres, consumidores). Destarte, o modelo tradicional de direito não foi capaz de regular todas estas relações sociais, que implicam necessariamente um tratamento desigual, rompendo com o dogma da igualdade rigidamente formal, que sempre foi injusta e se prestava, anteriormente, à legitimação de abusos econômicos e justificação da exploração do homem pelo homem. 136 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 136-172, jan./mar. 2014 Nesse prisma, o processo civil era voltado para problemas individuais e de cunho eminentemente patrimonialista. É fácil notar essa conotação processual quando o Código de Processo Civil estabelece os procedimentos especiais, notoriamente voltados para proteção da propriedade privada. Entretanto, os direitos coletivos, difusos e sociais necessitavam de um novo instrumental para se fazerem efetivos. Essa necessidade vem sendo suprida aos poucos, com sucessivas reformas nas normas processuais e edições de leis específicas sobre a temática, valendo citar a Lei da Ação Civil Pública e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Os estudiosos do Direito passaram, pois, a procurar razões filosóficas para justificar a alteração do paradigma liberal do Direito. E foi na humanização do Direito que se sustentaram as novas balizas hermenêuticas atuais. Do foco patrimonial para o ser humano, da lei formal para a principiologia constitucional, do sistema fechado de normas para uma linguagem jurídica aberta e flexível, enfim, o Direito passa por uma transformação que merece a devida atenção da doutrina. O presente trabalho procura identificar e correlacionar os fatores socioeconômicos a partir de dois grandes estudos solicitados pelo Conselho Nacional de Justiça, a cargo da Fundação Getúlio Vargas – Direito GV e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Não se pode negar que a segunda metade do século XX e o início do século XXI se tornaram um marco temporal para mudanças paradigmáticas na forma de atuação do jurista, momento propício para romper com tradições seculares e buscar novos rumos e novas técnicas para realização de direitos, notadamente aqueles de cunho essencial devidos pelo Estado. A democratização do acesso à Justiça deve receber interpretação amplíssima, de modo a integrar instituições e poderes com vistas à efetivação, celeridade, qualidade e segurança da prestação desta obrigação estatal. Novos atores devem ser inseridos no espaço público decisório, novos procedimentos podem ser trabalhados para facilitar a prestação jurisdicional, enfim, os novos direitos multifacetários devem receber tratamento especializado, otimizado e seguro. Dessa forma, a atuação do advogado público merece revisão, de modo a interpretar a Constituição Federal a partir de uma visão hermenêutica-concretizadora, possibilitando ao cidadão um acesso à Justiça até então fornecido apenas formalmente junto à administração, contribuindo para o crescimento jurídico do Estado e para solução Fernando Menegueti Chaparro 137 alternativa de conflitos, utilizando-se da técnica mais saudável possível, que é a conciliatória com informação. Propõe-se no presente trabalho a inclusão do órgão constitucional da Advocacia Pública como alternativa decisória ao cidadão, buscando atribuir ao membro da Advocacia Pública a prerrogativa de decidir, com força vinculante, sobre determinadas matérias envolvendo procedimentos administrativos entre órgãos federais e cidadãos, de forma obrigatória e pré-processual, transformando a judicialização do conflito em ultima ratio para o particular. 1 o PANoRAMA PRocessUAl eNvolveNdo estAdo-AdMiNistRAção e o estAdo-JUiz: As PesqUisAs dA fUNdAção Getúlio vARGAs (fGv) e dA UNiveRsidAde fedeRAl do Rio GRANde do sUl (UfRGs) A relação entre administração e jurisdição tem sido cada vez mais objeto de estudos por especialistas não só da área jurídica, como também dos campos econômicos e sociais. A crise pela qual tem passado o Poder Judiciário, alvo de críticas acerbas, tem instigado pesquisadores a desvendar os motivos pelos quais a Justiça é taxada de morosa, dispendiosa e ineficiente. O processo civil como disciplina da ciência do Direito passou a ser questionado em outras dimensões, para além da esfera exclusivamente dogmática, desafiado que está para protagonizar alterações de cunho sociais e econômicas no país. A crescente possibilidade de acesso à Justiça, fruto da democracia iniciada no final da década de 70, consolidada nos anos 80 e estabilizada a partir da Constituição Federal de 1988, causou uma revolução perante o Poder Judiciário. A demanda por direitos caminhou paralelamente com outras iniciativas estatais, como, por exemplo, a criação dos juizados de pequenas causas, posteriormente transformados em juizados especiais, a institucionalização das Defensorias Públicas, a interiorização do Poder Judiciário, bem como pela crescente, embora ainda tímida conscientização dos cidadãos pelos seus direitos, notadamente aqueles de estatura constitucional. Essa fase do sistema judicial ainda focava a necessidade de ampliação do acesso à Justiça pelo cidadão, que vivia à margem do sistema jurídico e era constantemente negligenciado quando violado seus direitos básicos. Embora ainda não estivesse consolidada no início dos anos 2000, a nova roupagem do sistema judicial, mais informal e capilar, passou a 138 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 138-172, jan./mar. 2014 representar outra fonte de problemas de política judiciária, valendo como marcos desta transição a consolidação dos juizados especiais estaduais e a implantação dos juizados especiais federais, estes últimos priorizando a interiorização das varas. As inovações legislativas não foram acompanhadas por medidas estruturais efetivas para dar vazão à nova demanda de serviços judiciários. A ampliação da procura pelo cidadão por resolução de conflitos através do processo civil não encontrou eco na resposta do Judiciário. Varas abarrotadas de processos, sem juízes, sem servidores administrativos, burocráticas, enfim, tudo permanecia da mesma forma que antes. Era o tempo das pilhas de processos judiciais à espera de uma decisão, que não raro demorava anos. A situação do sistema judiciário brasileiro era de certa forma incompatível com as expectativas da sociedade do novo milênio, fundada na velocidade da informação e na instantaneidade dos negócios. Passou-se, pois, a dar cada vez mais valor à celeridade, seja pelo culto às liminares, notadamente com a instituição da antecipação da tutela jurisdicional no processo civil, além da idealização, ainda embrionária, dos processos eletrônicos. A despeito de todas essas ideias inovadoras dos pensadores do processo civil dito moderno, verificou-se, e é de certa forma notório, que o processo judicial ainda não alcançou níveis satisfatórios junto à opinião pública, e a cúpula do Poder Judiciário nacional, bem como setores da sociedade civil, têm procurado estabelecer um debate sobre as consequências da morosidade judicial, além das causas da apontada ineficiência do Estado na prestação desse serviço essencial. Combater os efeitos da crise institucional do Judiciário é importante, porque de forma paliativa garante-se a prestação da jurisdição e certa efetividade das decisões processuais. Todavia, o que se percebe nas últimas décadas é um pensamento voltado apenas para os efeitos e não para as causas do aumento impressionante das demandas judiciais, que nos dias atuais é praticamente invencível pelos magistrados e demais operadores do direito, notadamente aqueles que pertencem a Instituições de Estado (Advocacia Pública, Defensoria Pública, Ministério Público). As demandas coletivas estão sendo objeto de amplos debates para racionalização do processo judicial, através da construção de um Fernando Menegueti Chaparro 139 verdadeiro código de processo coletivo1. No entanto, a aplicabilidade do processo coletivo é restrita à situações envolvendo unidade fática, ou matéria de direito, comum a um grupo de pessoas, porém, não resolve o problema da litigância individual de massa, notadamente envolvendo o setor público, que ainda necessita de um processo individual para resolução da lide. Em recente divulgação na mídia, o Conselho Nacional de Justiça2, fez um diagnóstico sobre a movimentação de processos judiciais e procurou nominar os principais litigantes nacionais. Nesse documento se constatou dois polos de litigância: o primeiro capitaneado pelo setor público e o outro pelo setor bancário. Apenas o setor público federal responde, nacionalmente, por 45,25% das ações em trâmite perante o Poder Judiciário, ocupando as cinco primeiras colocações no ranking da litigância, tendo como primeiro colocado o INSS (22,33%); na segunda colocação a Caixa Econômica Federal (8,5%), seguido pela Fazenda Nacional, com 7,45% e pela União, com 6,97%3. Na sequência desta “lista negra” do Judiciário encontram-se alternadamente instituições bancárias, empresas de telefonia, Estados e grandes municípios. Dessarte, embora tardiamente, verifica-se que os órgãos responsáveis pela política judiciária têm procurado identificar gargalos judiciais e compreender como a sociedade moderna utiliza os serviços processuais e como o Judiciário tem lidado com esta demanda. O processo civil tradicional, embasado na tutela individual e patrimonial que predominava na década de 70, do século passado, cada vez mais se mostra insuficiente para lidar com as novas tutelas requeridas pelo modelo social da atualidade. A massificação contratual, polarizando grandes conglomerados prestadores de serviços (bancos, telefonia), e a intervenção crescente do Estado na implementação e execução de políticas públicas sociais, são dois grandes fatores que corroboram os resultados da pesquisa do Conselho Nacional de Justiça. Observando os dois maiores setores litigantes do país, é possível concluir que há uma semelhança entre ambos: serviços essenciais (e o 1 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. 2. ed. revista e ampliada, São Paulo: SRS, 2008. 2 BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. 100 maiores litigantes em 2011. Disponível em: <www.cnj.jus.br/ images/pesquisas.../pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2013. 3 Idem. 140 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 140-172, jan./mar. 2014 setor bancário tornou-se essencial), intensa demanda pelos serviços, mas baixa qualidade da resposta ao cidadão, seja pela insuficiência de trabalhadores no setor privado, fruto da busca do lucro ilimitado; ou, no setor público, pela pífia situação dos órgãos públicos responsáveis pelo gerenciamento destas demandas (estrutura física inadequada, quantidade e qualidade de servidores, burocracia infralegal, etc). Dois importantes estudos foram solicitados pelo Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2009, um deles intitulado “Diagnóstico sobre as causas de aumento das demandas judiciais cíveis, mapeamento das demandas repetitivas e propositura de soluções pré-processuais, processuais e gerenciais à morosidade da Justiça”, sob a responsabilidade da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo – Direito GV4; e outro denominado “Inter-relações entre o processo administrativo e o judicial (em matéria fiscal) a partir da identificação de contenciosos cuja solução deveria ser tentada previamente na esfera administrativa”, conduzido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Faculdade de Direito5. Em ambas perquirições foram ouvidos diversos atores do cenário jurídico nacional, que direta ou indiretamente contribuem para a construção e também desconstrução da relação tensa entre Administração e Judiciário. Ministros do Executivo, membros do Judiciário, do Ministério Público, da Advocacia Pública, Advogados, agentes de órgãos administrativos e sociedade civil contribuíram com opiniões e respostas às indagações dos pesquisadores. As duas pesquisas se relacionam em vários pontos, a primeira, capitaneada pela Fundação Getúlio Vargas, tem a incumbência de mapear as demandas cíveis que assoberbam o Judiciário e propor soluções préprocessuais para resolução do litígio. Não se perquire se a litigância é privada ou pública, mas sim qual é o motivo pelo qual a Justiça é morosa. No corpo do documento é possível verificar o seu tema central: 4 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Direito GV. Diagnóstico sobre as causas de aumento das demandas judiciais cíveis, mapeamento das demandas repetitivas e propositura de soluções pré-processuais, processuais e gerenciais à morosidade da Justiça. São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-aa-z/formacao-e-capacitacao/cnj-academico/pesquisas-aplicadas-cnj-academico. Acesso em: 02 Ago. 2013. 5 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Direito. Porto Alegre, 2010. Inter-relações entre o processo administrativo e o judicial (em matéria fiscal) a partir da identificação de contenciosos cuja solução deveria ser tentada previamente na esfera administrativa. Disponível em: <http:// www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/formacao-e-capacitacao/cnj-academico/pesquisas-aplicadas-cnjacademico>. Acesso em: 02 Ago. 2013. Fernando Menegueti Chaparro 141 As questões centrais que direcionaram a pesquisa foram: (i) quais são as causas de aumento da litigiosidade nos tribunais brasileiros? (ii) qual é o papel que as demandas repetitivas têm no aumento da litigiosidade? (iii) qual é o perfil destas demandas e as suas causas mais comuns? (iv) como estas demandas são gerenciadas pelo Judiciário e fora dele? (v) quais são as possíveis soluções e filtros (pré-processuais, processuais e gerenciais) para estas demandas?6 Já na introdução da pesquisa foi constatado que o Poder Público é o responsável por grande parte do ambiente de litigiosidade, apontando como grandes causas da crescente litigância como sendo as práticas gerenciais dos órgãos administrativos, as constantes implementações e modificações das políticas públicas, a execução fiscal e, finalmente, a deficiência da regulamentação infralegal das relações entre cidadão e Estado ou mesmo entre partes privadas, quando o Estado atua como órgão regulador7. A pesquisa conduzida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul teve a incumbência de avaliar as condições processuais envolvendo a execução fiscal, que, como já salientado, responde por grande parte das demandas judiciais, além de envolver matéria inerente aos órgãos da administração direta e indireta, no âmbito federal, estadual e municipal. Muito embora tenha havido delimitação do objeto desta última pesquisa, inexoravelmente a questão da relação entre Administração e Judiciário haveria de ser investigada a fundo. Nada mais salutar, porquanto o problema da Justiça está justamente na relação entre controvérsias entre administração e cidadãos, em todos os ramos do direito público. A pesquisa gaúcha esteve sensível a esta conclusão, quando registrou: Ora, à Administração é vedada, como deve ser, declaração de inconstitucionalidade e, máxime, construções constitucionais. Sendo, porém, tais poderes admitidos, em nossa cultura jurídica atual, ao Juiz Ordinário, mesmo em primeiro grau, cria-se, desde logo, um espaço real e efetivo que tende a opor, crescentemente, a instância administrativa à instância judicial. O Administrador obrigatoriamente lança e “jurisdiciona” os tributos sempre a partir da lei e dos atos administrativos inferiores. O Juiz pode e, mesmo, para nossa cultura jurídica, deve decidi-los a partir da Constituição. 6 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 7. 7 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 9 142 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 142-172, jan./mar. 2014 Destarte, a duplicidade de instâncias entre as esferas administrativa e judicial, ocorre, no Brasil, com uma amplitude e uma dramaticidade ímpares no direito comparado. Pode-se mesmo dizer que o próprio direito que as duas esferas aplicam não é exatamente o mesmo.8. Há, pois, um choque hermenêutico, um paradigma decisório distinto que é utilizado pelo Poder Executivo, de um lado, inclinado a decidir através de normas fechadas e positivadas; de outro lado, o Poder Judiciário, que detém o poder de declarar a inconstitucionalidade de normas, bem como aplicar princípios e normas abertas na resolução dos conflitos concretos entre cidadão e administração. A pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, embora originariamente não tenha sido incumbida para avaliar o setor público e o setor privado, optou por agir em dois segmentos: as lides de consumidor e o processo previdenciário: Como visto, o mapeamento das demandas repetitivas fundamentou a escolha do estudo de caso em matéria de direito previdenciário, especificamente voltado para as demandas envolvendo concessão de benefícios previdenciários movidas por pessoas físicas em face do Instituto Nacional da Previdência Social – INSS.9 (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2010, p. 34). Interessa para o presente estudo os números e conclusões envolvendo o setor público em juízo, embora seja relevante a questão das grandes empresas privadas alcançando números impressionantes de litigância. Assim como na pesquisa do sul do Brasil, os paulistas também encontraram razões semelhantes que explicam a litigiosidade, tanto em processos fiscais, como previdenciários, principalmente na origem do conflito judicial: Diversos fatores, de variadas natureza e projeção, podem ser hipoteticamente apontados como causadores de potenciais de conflito em matéria previdenciária, por exemplo: (i) o crescimento demográfico e aumento da expectativa de vida da população; (ii) os ciclos de instabilidade econômica e de conseqüente desemprego; (iii) a regulamentação legislativa, instável e pouco clara, que provocaria conflitos ao invés de preveni-los; (iv) a atuação estatal administrativa, formalista e ineficiente, que conduziria a população a buscar a tutela 8 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, op. cit., p. 21. 9 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 34. Fernando Menegueti Chaparro 143 previdenciária pela via judicial; (v) o sentido conferido às políticas econômicas governamentais, que resultariam em redução da tutela previdenciária, o que geraria reação através da propositura de demandas judiciais; (vi) a própria atuação do Poder Judiciário, lento, instável e pouco uniforme, seria também um convite à litigiosidade; dentre outros.10. Dos possíveis fatores citados acima, os dois primeiros referem-se a situações sociais, não jurídicas. Os demais refletem exatamente a causa principal da litigiosidade estatal, notadamente o item que reporta à atuação estatal formalista e ineficiente. E mais, as demandas previdenciárias têm uma particularidade: algumas são de cunho repetitivo, quando veiculam apenas controvérsia jurídica; ou são classificadas como de massa, pois atingem um número gigantesco de cidadãos. As demandas repetitivas são de resolução mais simplificada, na medida em que uma ação civil pública, uma súmula vinculante ou mesmo uma súmula administrativa da Advocacia-Geral da União põe fim à discussão no âmbito administrativo. A complexidade do problema aumenta significativamente quando a controvérsia envolve uma demanda individual, com pressupostos de fato, como é o caso da maioria dos benefícios previdenciários (aposentadoria, auxílios, pensões, etc.), vez que exigem análise individualizada do problema, com a interpretação do conjunto probatório dos autos. Nessa área, a litigiosidade é em sua maioria individualizada e quantitativamente representativa, pois os pedidos são veiculados através de demandas individuais que repercutem no volume de processos e na morosidade do sistema de justiça brasileiro. Seja no âmbito tributário, objeto de pesquisa da Universidade Federal, ou na seara previdenciária, tema da Fundação Getúlio Vargas, o pano de fundo é a atuação decisória no processo administrativo e o posterior conflito, através de uma decisão do Estado-Juiz substitutiva. Os porquês dessa dupla instância decisória, que atualmente se tornou praticamente obrigatória, são os principais anseios das pesquisas. Um dos entrevistados da pesquisa, Advogado-Geral da União, declarou suas impressões sobre os motivos que levam a Fazenda Pública em juízo: Ao serem interrogados sobre habituais insensibilidades da instância Administrativa a uma aplicação mais justa do Direito, ou até que ponto devam ser consideradas pelo poder judiciário as razões do fisco, 10 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 35. 144 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 144-172, jan./mar. 2014 os respondentes apresentaram argumentos divergentes para compor os seus respectivos pontos de vista. Neste sentido, um ministro apresentou o seguinte importante argumento a ser observado: ‘Esse é um fator importantíssimo e talvez seja o principal motivo pelas elevadas demandas do judiciário. Muito em decorrência de uma insensibilidade da administração. Nós mesmos, até pouco tempo atrás, na União, associado ao déficit orçamentário e do período de inflação, tínhamos como parâmetro recorrer de tudo. Dessa maneira, a AGU tinha como linha o retardamento do reconhecimento da causa, levando a uma discussão muito grande no judiciário. Hoje, a AGU tem parâmetros mais claros, ou seja, do que se tem jurisprudência não se recorre. Como Advogado Geral da União eu tinha essa percepção de que a má atuação do poder público de forma geral era responsável por uma impressão de que o poder público era arbitrário. Frente a isso, acho que isso (insensibilidade) ocorra sim. A combinação de ações entre o grupo judicial e administrativo é fundamental para superar essa percepção. Com o auxílio de peritos e com especialização isso poderia ser solucionado.’ (Entrevistado 1).11. Um procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União, em entrevista contributiva para a pesquisa, discorrendo sobre o excesso de regulamentação normativa no âmbito previdenciário, bem definiu a origem do grande número de ajuizamentos contra o EstadoAdministração, pois “muitas vezes, o funcionário indefere o benefício porque ele tem dúvida se a pessoa teria ou não o direito, tem uma zona cinzenta.”12. Em suma: Essa atuação do INSS, pautada nos princípios da legalidade estrita, visa à higidez e à lisura na concessão do benefício, e é vista por muitos como excessivamente burocrática e rígida, em especial no que se refere à avaliação da prova trazida pelo interessado. Segundo os entrevistados que assim se manifestaram, a conduta do INSS implica o aumento do volume de processos judiciais na medida em que o indivíduo que tem seu pedido negado pode submetê-lo à apreciação do Judiciário, onde em regra há uma maior amplitude da instrução probatória e uma avaliação menos rígida das provas produzidas.13. 11 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, op. cit., p. 48. 12 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 63. 13 Ibidem, p. 68. Fernando Menegueti Chaparro 145 A denominada zona cinzenta de regulamentação é um dos grandes fatores que contribuem para a alta litigiosidade do Estado. Mas não é só. É preciso identificar a razão pela qual o Estado regulamenta minudentemente a prestação de seus serviços públicos, através de decretos, instruções normativas, regulamentos, ordens de serviço, etc. Talvez seja até necessária referida densidade normativa, porém, não é aí que reside o problema maior. Este último se encontra na aplicação da norma ao caso concreto, no momento em que o agente público aprecia os fatos e os confronta com as normas abstratas e uniformes. Todavia, como é sabido, os cidadãos não são iguais e não há flexibilidade do servidor administrativa na interpretação da norma, notadamente porque não é dotado de formação jurídica adequada. Analisando a conclusão da pesquisa de campo levada a cabo pela Fundação Getúlio Vargas, observa-se, entre as dez soluções propostas, que várias passam por alguma intervenção da Advocacia Pública na produção da norma administrativa ou na rotina decisória dos órgãos públicos. A primeira solução foi a revisão das normas administrativas previdenciárias, para que “estejam em consonância com a legislação vigente e com a Constituição Federal, com o entendimento do Judiciário e da PFE-INSS”14. Outra importante recomendação foi a adoção de soluções consensuais (conciliação processual e pré-processual), além da dispensa de recorribilidade de alguns temas jurídicos, em todos os casos invocando o envolvimento direto da Advocacia-Geral da União. A conclusão da pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, embora com algumas características próprias, na essência, concluiu que a melhor forma de equacionar e racionalizar a questão da alta litigância em matéria tributária seria atribuir um maior peso do Poder Executivo no momento decisório, afirmando-se, categoricamente, que a atual dupla instância decisória (administrativa e judiciária) não tem razão de ser, pois contribui com a morosidade e descrédito tanto do Poder Judiciário como em relação à Administração Tributária. Nas derradeiras linhas do estudo, registrou que: Enfim, há no País, desarticulação geral entre Judiciário e Administração. Pode-se constatar a falta de diálogo entre esses dois blocos institucionais. De um lado o Judiciário parece não escutar a Administração; e, por via reflexa, a Administração pouco escuta o Judiciário. Essa desarticulação é uma das principais causas da 14 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p.144. 146 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 146-172, jan./mar. 2014 crescente litigiosidade em matéria fiscal. A pesquisa constatou que 79,4% dos entrevistados concordam com a existência dessa desarticulação entre ambas as esferas.15. Destarte, verifica-se que o processo civil passa por graves problemas de efetividade, a ponto da mais alta cúpula do Poder Judiciário abrir diálogo com segmentos acadêmicos a fim de mapear os principais motivos que impedem a fluidez das demandas judiciais. Dois grandes estudos apontaram categoricamente que as causas principais da morosidade e inefetividade da Justiça encontram-se na relação entre Estado-Administração e Estado-Juiz, principalmente no que concerne à interpretação das normas jurídicas efetivadas pelos agentes administrativos. Várias soluções foram propostas, desde à alteração das normas administrativas, tornando-as mais claras, o incentivo à conciliação processual, passando pela criação de Tribunais Fiscais, no âmbito tributário, melhor aparelhamento da Justiça e da Administração, em termos tecnológicos e de pessoal, enfim, tentativas válidas para amenizar ou equacionar o problema da jurisdição. Não obstante, a crise do Estado e do Judiciário em matéria de direito público reflete um comportamento decisório antagônico, de modo que o Poder Judiciário utiliza-se do modelo constitucional, aberto, principiológico, e a Administração confia sua decisão sobre direitos dos cidadãos no sistema fechado e abstrato, inflexível, positivista, acreditando piamente que seus regulamentos contém toda a matéria suscetível de ser tutelada no mundo dos fatos. Eis o ponto que demonstra o desentendimento filosófico entre juiz e administrador, pois enquanto a Jurisdição evoluiu para novos rumos hermenêuticos, considerando a transformação da sociedade multicultural e desigual da modernidade, as normas administrativas ainda mantém o rígido sistema da lógica aristotélica, através de premissas maior e menor, o que se tornou insuficiente nos últimos tempos. Assim, à vista dos estudos acima citados, propõe-se uma incursão na formação dos sistemas decisórios que embasam o modelo administrativo e o modelo judicial, para então propor uma alternativa 15 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, op. cit., p. 192, do segundo volume. Fernando Menegueti Chaparro 147 que, se bem implementada, poderá equacionar grande parte dos problemas identificados na prestação jurisdicional. 2 o Acesso À JUstiçA coMo coNceito AMPlo: A coNcRetizAção extRAJUdiciAl de diReitos devidos Pelo estAdo AtRAvés dA AdvocAciA-GeRAl dA UNião Muito já se escreveu sobre o tema intitulado acesso à Justiça, assunto que não é monopólio dos doutrinadores processualistas. O termo acesso poderia sugerir o processo judicial que leva à Justiça, na acepção restrita da palavra como expressão do Poder Judiciário. Evidentemente, não é o âmbito de interpretação do tema. O conceito de acesso à Justiça não se relaciona, exclusivamente, com processo civil ou penal. Enfim, não está limitado ao clássico modelo de prestação de jurisdição, que no Brasil ainda é de cunho liberal-individual, caminhando para a coletivização do processo civil. Destarte, necessário se faz investigar quais os meios disponíveis ao cidadão para que ele, como destinatário da norma constitucional, tenha efetivamente garantido direitos constitucionais fundamentais. O meio ou instrumento acima citado é de conceito aberto, na medida em que, tradicionalmente, o processo jurisdicional tem sido o mecanismo utilizado pelos cidadãos para reparar ofensas a direitos devidos pelo Estado. Mas há outros meios de solução? A resposta é positiva. Basta interpretar a Constituição Federal com vistas à realização do Direito. Nota-se que o legislador constitucional garante o direito de petição (art. 5º, XXXIV, ‘a’), endereçado a qualquer dos Poderes Públicos, para a defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abuso de poder. Além disso, reconhece a existência do processo administrativo como forma de atuação dos diversos órgãos públicos. No atual panorama processual “Os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais servem a funções sociais; que as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada...”16. Paralelamente ao direito de se manifestar perante os Poderes Públicos, a Constituição Federal reafirma em relação ao Poder Judiciário o direito de ação, assegurando que nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser afastada do Poder Judiciário. Esse modus de atuação se desenvolve através do processo. Estaria, então, diante do comando 16 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 12. 148 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 148-172, jan./mar. 2014 constitucional, plenamente garantido o acesso à Justiça para o cidadão? A resposta é negativa. A palavra de ordem é a efetividade. O processo civil deve se transformar e adaptar-se às demandas da realidade social. Essa é a tônica que tem prevalecido na doutrina que analisa controvérsias judicializadas, mas que devem ser aproveitadas também no âmbito extrajudicial. Postula-se uma tutela diferenciada no processo, que, no entender de Wambier e Wambier17: Mas a tutela diferenciada, sempre ancorada na conveniência de que haja um processo mais rente à realidade, não abrange só possíveis diferenças no que tange só a aspectos meramente procedimentais. Diz respeito também, em seu sentido mais amplo, à divisão de competência, que implica, por exemplo, a existência de varas de família e de registros públicos. Açambarca os processos coletivos e suas peculiaridades, que, se se apresentam na forma de características procedimentais realmente diferenciadas, a estas não se limitam. Institutos como a legitimidade e a coisa julgada estão adaptadas ao fenômeno coletivo e aqui não se está diante de aspectos puramente procedimentais. Postular perante o Judiciário exige requisitos, entre eles a condição econômica do interessado, diante dos custos processuais e de honorários do advogado. Exige, outrossim, que o Poder Judiciário esteja próximo do cidadão, bem como que proporcione uma resposta efetiva. No ponto, Baptista da Silva18 registra que: Devemos, então, tratar da crise do Direito que, em verdade, é antes de tudo crise do processo, com olhos verdadeiramente críticos e realistas, sem perder de vista, no entanto, a premissa de que os fatores que a provocam e sustentam, encontram-se fora de seu domínio; ou decorrem de um descompasso entre as concepções jurídicas ainda dominantes no mundo moderno, embora concebidas para servir a sociedades menos complexas, e a estrutura, as exigências e as aspirações das novas organizações sociais extremamente complexas da sociedade pós-industrial. No fundo, não seria o direito processual, como técnica de tratamento de conflitos sociais, que estaria submerso 17 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. Tutela diferenciada. Revista de Processo, São Paulo, v. 142, p. 42-54, fev. 2010. p. 42-43. 18 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Democracia moderna e processo civil. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 99-100. Fernando Menegueti Chaparro 149 em crise irremediável, e sim a forma tradicional de processo civil, ainda muito ligada e dependente de conceitos e princípios herdados do Direito Romano. (grifo do autor). A experiência processual na sociedade contemporânea não tem sido das melhores. O processo civil tradicional, baseado em valores individuais e em problemas jurídicos individuais de caráter econômico, não é mais adequado como técnica processual para fins de solucionar os conflitos que a sociedade moderna proporciona. Há muito Dinamarco19 advertira da superficialidade de tratamento com o assunto: Existe um leque mais ou menos aberto de causas dessa lamentada estreiteza. Situam-se no campo econômico (pobreza, alto custo do processo), no psicossocial (desinformação, descrença), e no jurídico (legitimidade ativa individual). Como se vê, o tema do acesso ao processo não equivale, em extensão, à ‘questão social’. Além disso, falar do acesso ao processo não significa somente cuidar da possibilidade de valer-se dele como demandante, mas igualmente da defesa, a qual também sofre limitações de ordem psicossocial e econômica. Nesse contexto, o custo do processo e a miserabilidade das pessoas ocupam, apesar de não preencherem todo o espaço, lugar e muito destaque nas preocupações acerca da universalidade da tutela jurisdicional. (grifo do autor). Especificamente no que se refere à Administração Federal, parece óbvio, porém a questão é pouco explorada na processualística, no sentido de que o processo civil tradicional é falho na realização da Justiça. No trato desta questão, verifica-se que a União e suas autarquias (INSS, INCRA, IBAMA, ANATEL, ANEEL, FUNAI, etc.), além das fundações (universidades federais e institutos federais de ensino, por exemplo), são a todo tempo demandadas por ações individuais, questionando um fato isolado, ou mesmo por milhares de ações individuais, controvertendo sobre determinado fato comum, e, ainda, por demandas coletivas, propostas pelos legitimados legais.20 Além disso, são também demandantes em executivos fiscais e ações diversas, no interesse da sua atuação finalística. 19 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 392-393. 20 NUNES, Dierle José Coelho. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisória. Revista de Processo, São Paulo, v. 199, p. 41-82, set. 2011, p. 43-44. 150 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 150-172, jan./mar. 2014 Esse fenômeno processual é denominado de litigância de interesse público por Nunes: Lutas de movimentos sociais, do movimento negro, de grupos religiosos, ambientais, entre outras minorias, encontram espaço processual para serem exercidos, em face da garantia constitucional processual de acesso à justiça, que viabiliza a busca perante o Poder Judiciário de qualquer pretensão. Ao mesmo tempo, coloca-se em discussão em qual medida esse exercício de questões de variado matiz, perante a Jurisdição, teriam legitimidade em face das incontáveis ressonâncias que podem conduzir. Nesse aspecto, é emblemática a questão da judicialização da saúde no Brasil, na qual, de um lado, temos milhares de cidadãos que precisam de medicamento e tratamento não ofertados por políticas públicas idôneas, e de outro lado, temos decisões que desequilibram o orçamento público de saúde. Seria preciso induzir o cumprimento de um verdadeiro financiamento da saúde para tornar desnecessária a propositura das demandas; mas até lá como resolver tal paradoxo? Em face de toda essa complexidade posta o direito processual deve se descortinar a novos conteúdos e a novos desafios. E no momento em que contamos um projeto de lei para delineamento de um novo Código de Processo Civil (LGL\1973\5) (PL 8.046/2010) precisamos meditar se a lei projetada está embasada em fundamento e compreensão idônea desta litigiosidade, pontuando-se, desde já, que não se pode resolver os problemas de nosso sistema jurídico nos limitando à mera análise legislativa. Portanto, não se pode dizer que somente pelo volume de atuação é possível se utilizar do processo coletivo para resolução de conflitos envolvendo o Estado-Administrador em juízo, posto que há questões individuais e específicas. Watanabe21 abordando a alta litigiosidade estatal, pondera que: 21 WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p.131. Fernando Menegueti Chaparro 151 Exceção feita a algumas demandas coletivas (v.g., as chamadas ‘ações civis públicas’ e ação popular), todas as demais são tratadas como se tivessem configuração interindividual e as técnicas processuais a elas aplicadas são as tradicionais, consistentes em atomização e solução adjudicada de conflitos. Entretanto, não se pode dizer que o Estado é uma pessoa comum, um litigante qualquer, que merece tratamento idêntico àquele que pela primeira vez propõe ou contesta uma ação. É o que Cappelletti e Garth22 registram em seu conhecido estudo: O professor Galanter desenvolveu uma distinção entre o que ele chama de litigantes ‘eventuais’ e ‘habituais’, baseado na freqüência de encontros com o sistema judicial. Ele sugeriu que esta distinção corresponde, em larga escala, à que se verifica entre indivíduos que costumam ter contatos isolados ou pouco freqüentes com o sistema judicial e entidades desenvolvidas, com experiência judicial mais intensa. Baseado nesse fator discriminante é possível concluir que os litigantes habituais podem ser tratados diversamente, principalmente na adoção de novas técnicas de solução de conflitos, na medida em que, pela reiteração da litigiosidade destas pessoas, verifica-se que o processo não cumpre seu escopo fundamental, que é a pacificação social e a segurança jurídica. A conciliação judicial tem sido uma bandeira diversas vezes levantada pelos dirigentes máximos do Poder Judiciário, como meio mais racional de solução de conflitos judicializados. Trata-se de importante iniciativa, porém, não resolve o gravíssimo problema da imensa litigância que envolve órgãos públicos em juízo. Grinover23 obtempera: Assim como a jurisdição não tem apenas o escopo jurídico (o de atuação do direito objetivo), mas também escopos sociais (como a pacificação) e políticos (como a participação), assim também diversos fundamentos podem ser vistos na adoção das vias conciliativas, alternativas ao processo: até porque a conciliação, como vimos, se insere o plano da política judiciária e pode ser enquadrada numa acepção mais ampla de jurisdição, visa numa perspectiva funcional e teleológica. 22 Cappelletti; Garth, op., cit., p. 25. 23 GRINOVER, Ada Pelegrini. A conciliação extrajudicial. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 283. 152 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 152-172, jan./mar. 2014 A conciliação pré-processual e de natureza não jurisdicional deve se inserir no pensamento de todos os atores do Direito, como uma espécie de política judiciária, uma técnica de solução efetiva de conflitos. É inegável que a complexidade das sociedades contemporâneas, com os novos mecanismos de informação e do surgimento de novos direitos, ou releituras de direitos clássicos, como o direito de família e a amplitude deste conceito, enfim, o direito tradicional, segregado em matérias estanques e definidas, foi superado por novas relações sociais, altamente complexas, que exigem do Poder Judiciário um nível de especialização e conhecimento fora da área jurídica que ele não possui. Destarte, não se quer apenas reafirmar a existência dos institutos da conciliação, mediação ou arbitragem. É preciso que se adote a possibilidade de equivalentes jurisdicionais legitimados pela própria Constituição Federal, independentemente de legislação ordinária. Reale24 atribui de forma lapidar o locus da negociação no cenário nacional, afirmando ser um verdadeiro modelo jurídico, ao lado do modelo jurisdicional: No Estado Democrático de Direito, nos moldes da Carta Magna vigente, que consagra, como fundamentos da ordem econômica, os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, mister é atentar para a relevância dos modelos negociais, superando-se a cediça asserção de que eles só existem porque assim o dispõe a lei. Na realidade, eles haurem sua vigência na matriz da Lei Maior, de tal modo que o legislador ordinário não tem poderes para suprimir o mundo dos contratos, mas tão-somente para regulá-los na medida dos imperativos da livre coexistência das múltiplas vontades autônomas concorrentes, tendo como base o bem comum, a começar pelo direito do consumidor, também ele considerado basilar na ordem sócio-econômica. (grifo do autor). É fato que, além dos entraves econômicos para o acesso à Justiça, a realidade brasileira convive com outro fator relevante a ser superado, qual seja a falta de informação dos cidadãos sobre seus próprios direitos. No âmbito das concretizações de direitos fundamentais devidos pelo Estado, a relação jurídica base é desenvolvida entre um agente do Estado, normalmente um servidor de carreira e o cidadão, que, em se tratando de direitos sociais, carrega a hipossuficiência própria da sua condição. 24 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 73. Fernando Menegueti Chaparro 153 Destarte, quando é desenvolvida a pretensão administrativa, colhem-se os dados fáticos preconcebidos nos sistemas de informação do órgão estatal e se produz então a decisão administrativa, fruto do silogismo extraído da programação do sistema adotado naquela hipótese. E aqui, como já dito alhures, começa o problema central da jurisdição em matéria de direitos fundamentais. Se a pretensão do cidadão é acolhida pelo agente público, concretiza-se o direito e o comando constitucional é preservado, ressalvadas, evidentemente, as hipóteses de fraude ou erro administrativo, consideradas como excepcionais. Porém, quando a resposta é negativa, surge para o postulante um conflito de interesses com o Estado. Sua pretensão não se subsumiu ao comando legal ou infralegal determinado pelo órgão público. A cultura nacional tradicional prega que esse cidadão está “amparado” pelo direito, pois deve ingressar com a competente ação judicial. E é exatamente isso que ocorre, porém, em escala de milhões de demandas. Pode-se aduzir que há meios administrativos para corrigir eventual falha na decisão. É verdade, os recursos administrativos são legalmente previstos, todavia, a resposta da instância superior será dada nos mesmos moldes da decisão recorrida. Os advogados de Estado são os membros das instituições previstas como função essencial à Justiça, sendo a Advocacia-Geral da União (AGU) no âmbito federal, e as Procuradorias-Gerais dos Estados, em sede estadual. Em suma, esses órgãos representam judicialmente o Estado – e não o governo – perante juízos e tribunais, além de serem incumbidos da consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo respectivo. A participação proativa da Advocacia Pública no espaço decisório administrativo é um meio de se aprimorar a construção do direito de forma pré-judicial, através de um pronunciamento de maior qualidade jurídica e hermenêutica, promovendo a aproximação da interpretação constitucional hodiernamente aplicada pelo Judiciário com o sistema de contencioso administrativo, ainda refém dos silogismos jurídicos do positivismo. 3 dA PRevisão coNstitUcioNAl dA AdvocAciA-GeRAl dA UNião A Advocacia Pública é instituição com estatura constitucional (artigo 131 da Constituição Federal de 1988). A Constituição Federal de 1988 consagrou a teoria da separação dos poderes entre executivo, legislativo e judiciário. Além disso, criou as denominadas Funções Essenciais à Justiça, em capítulo próprio, destinado ao Ministério Público, à Advocacia Pública, à Advocacia privada e à Defensoria Pública. 154 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 154-172, jan./mar. 2014 Bem analisada a disposição constitucional, é possível verificar o tamanho da importância atribuída aos atores jurídicos, pois, ao lado dos poderes tradicionais, asseverou como essenciais à justiça a advocacia privada e as demais procuraturas constitucionais: a representação da sociedade, realizada pelo Ministério Público, a representação do Estado, efetivada pelos advogados públicos e a representação dos necessitados, implementada pelas defensorias públicas25. Sendo a atuação dos advogados públicos uma advocacia de Estado, é preciso evidenciar que não se trata de desempenho da denominada advocacia de governo. São situações bem distintas. O advogado do governo, normalmente ocupado pelos cargos comissionados, de nomeação livre do agente eleito, atende exclusivamente aos interesses transitórios e particulares dos governantes da ocasião, enquanto os advogados do Estado, concursados e organizados em carreira, trabalham em prol da concretização do interesse público e sustentação do Estado Democrático de Direito. Em relação à dicotomia Estado e governo, Macedo26 informa: O Estado é dotado de caráter permanente, representando a unidade social; já o governo é temporário, na medida em que exprime a opinião político-partidária dominante num certo período. Em sentido estrito, governo designa o grupo que, num determinado Estado em dado momento, exerce a função executiva do Estado. A Advocacia-Geral da União, não pertence ou se subordina a qualquer poder político, pelo contrário, é representante judicial dos três, e não pode ser aparelhada ou utilizada pelo interesse partidário de plantão. Tratase de órgão alheio, equidistante, de natureza técnica, que empresta seus conhecimentos jurídicos a fim de garantir a legalidade ampla das políticas públicas propostas pelos governantes, eleitos democraticamente pelo povo: À luz do papel de controle de legalidade e de legitimidade desempenhado pela Advocacia-Geral da União, garantidor de um verdadeiro Estado Democrático de Direito (vide tópico 4.2.2.1.1 desta obra), a resposta a estas indagações se mostra clara: trata-se, em ambos os casos, de uma advocacia de Estado, na medida em que se age na defesa de princípios constitucionais que não se alteram pela simples mudança de governo, nem se submetem aos momentâneos interesses partidários. Ademais, caso se empregue o termo ‘governo’ 25 MACEDO, Rommel. Advocacia-Geral da União da Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2008. p. 23-24. 26 Ibidem, p. 129. Fernando Menegueti Chaparro 155 como sinônimo de ‘governante’, mais claro ainda se mostra que a Advocacia-Geral da União não se trata de uma advocacia do Governo, mas sim do Estado, vez que, em regra, representa judicial e extrajudicialmente, bem como empresta consultoria e assessoramento jurídicos à União (enquanto pessoa jurídica de direito público) e não a pessoas físicas. (grifo do autor).27 A concepção de que a Advocacia Pública não se confunde com a advocacia de governo é de suma importância para redefinição do papel que deve desenvolver no Estado Democrático de Direito. O assessoramento jurídico previsto constitucionalmente deve ser compreendido na acepção mais ampla possível do termo, não se limitando a respostas sobre consultas eventualmente realizada pelo Poder Executivo. A atuação passiva deve dar lugar à proatividade, deve ceder diante da efetiva participação da Advocacia Pública no espaço decisório administrativo, de modo que sua inclusão no processo de decisão tenha influência capaz de determinar o julgamento da demanda, proporcionando, em última análise, a adequação da norma administrativa à hermenêutica constitucional, e, por conseguinte, realizando o direito do cidadão. A advocacia, abrangendo todas as suas formas, pública, privada ou dos necessitados, tem o condão de traduzir juridicamente os fatos postos sob conflito ou análise. Onde há duas ou mais pretensões antagônicas, normalmente entre leigos em letras jurídicas, o advogado pode proporcionar o melhor entendimento possível, ainda que a solução não seja integralmente favorável a uma das partes. Esse pressuposto básico da conciliação deve migrar para as demandas públicas, na medida em que há de um lado o órgão público, que não tem formação jurídica e, de outro, o cidadão, que, da mesma forma, não conhece o direito técnico. É importante ressaltar que já existe uma relação de subordinação das decisões jurídicas emanadas da Advocacia-Geral da União e a Administração Pública Federal. Trata-se do cumprimento obrigatório dos pareceres jurídicos firmados pelo Advogado-Geral da União e aprovados pelo Presidente da República, consoante norma cogente da Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União: Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República. 27 MACEDO, op. cit., p. 131. 156 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 156-172, jan./mar. 2014 § 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. § 2º O parecer aprovado, mas não publicado, obriga apenas as repartições interessadas, a partir do momento em que dele tenham ciência. Assim, excepcionalmente, as decisões do órgão de assessoramento jurídico da União são obrigatórias para os demais órgãos administrativos. Esse mecanismo de assessoramento e controle da Administração é importante para consolidar a melhor interpretação de determinada norma jurídica, evitando decisões equivocadas dos órgãos administrativos, servindo também para balizar a atuação jurídica dos membros da Advocacia Pública se existir litígio judicial sobre o tema. Trata-se de uma atuação preventiva e abstrata do órgão jurídico, sem se imiscuir nas questões de fato do procedimento administrativo. Verifica-se, então, que a regulação jurídica por meio de pareceres se aplica tão-somente na matéria de direito, na qual não se discute problemas de fato, de prova. Mas a atuação do órgão jurídico nas questões administrativas não pode ser apenas prévia e abstrata, como em um silogismo. É preciso criar mecanismos para que o administrador esteja amparado juridicamente para proferir a melhor decisão possível em consonância com a Constituição. O processo civil moderno tem sido fértil em apresentar soluções para as questões repetitivas, nas quais se discute uma questão jurídica, sem se perquirir a base fática da pretensão. Milhares de ações podem ser suspensas caso o Supremo Tribunal Federal reconheça a repercussão geral de uma matéria tributária, por exemplo, e, ao final, sua decisão prevalecerá e vinculará todos os julgamentos, racionalizando a prestação jurisdicional. Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça pode solucionar várias ações se submeter determinada interpretação jurídica ao sistema de julgamento repetitivo do recurso especial. As ações coletivas são outro exemplo de maior otimização no que toca às demandas em massa, cabendo, ao final, a resolução do direito e a execução individualizada da pretensão. No projeto de Código de Processo Civil há disposição possibilitando um incidente de resolução de demandas repetitivas, que permitirá ao magistrado identificar uma demanda com potencial multiplicação de processos, e elegê-la como paradigma estadual vinculante, em julgamento proferido pelo tribunal. Todavia, malgrado a fertilidade de Fernando Menegueti Chaparro 157 ideias revolucionárias que atualmente existem em nosso ordenamento jurídico, nenhuma delas enfoca a prevenção de litígios, a oxigenação de ações no Poder Judiciário e a especialidade que envolve a questão da Fazenda Pública em juízo. A importância deste ator processual para a política judiciária já foi demonstrada em números, através de amplos estudos acadêmicos. Assim como houve a abertura do processo civil tradicional para receber novos procedimentos em demandas coletivas, de interesses transindividuais e coletivos, é preciso que o processo civil moderno tenha consciência de que existe uma nova categoria de demandas, que são as individuais de caráter social, que não são coletivas porque não pressupõem base fática idêntica, posto que cada indivíduo tem uma história particular de vida; também não são puramente individuais, já que envolvem o mesmo devedor da prestação, que é o Estado. O problema é que cada uma destas lides compõe um estudo de caso concreto, um fato, e a judicialização destes casos concretos pode se multiplicar em milhões de casos, como ocorre em ações envolvendo a previdência social, a assistência social, habitação, medicamentos, etc. Por estas e outras razões que se deve pensar o processo civil tradicional em conexão com um direito processual público. Esse é o pensamento de Sundfeld28, que por meio de indagações, ensina a relação que existe entre Administração Pública e Judiciário: Inicialmente, as perguntas que devemos propor são as seguintes: Quais as relações existentes entre Judiciário e a Administração Pública? Em que medida eles se relacionam? Qual a profundidade desta relação? Quais os instrumentos para seu estabelecimento? Quais os limites desta relação? Quais os seus problemas? Quais suas características? Há um segundo conjunto de questões que, à primeira vista, confundemse com as anteriores, mas que nos conduzem a um campo mais abrangente de reflexão. Quais são as relações entre Administração Pública e processo? Em que medida a Administração depende do processo? Em que medida o processo condiciona a ação administrativa? Em que medida a ação administrativa depende do processo? Em que medida a ação administrativa pode ser mais extensa ou menos extensa em função do processo? Em que medida a ação administrativa deve ser de 28 SUNDFELD, Carlos Ari. O direito processual e o direito administrativo. In: SUNDFELD, Carlos. Ari; BUENO, Cássio Scarpinella. (Orgs.). Direito processual público: a Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 17. 158 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 158-172, jan./mar. 2014 um modo ou de outro em função do processo ou de processos judiciais? (grifo do autor). É íntima e de longa data a relação entre administrador e juiz. Entre decisão administrativa e decisão judicial. No entanto, a preocupação dos administrativistas, constitucionalistas e processualistas sempre se direcionou para o estudo dos limites de atuação judicial na esfera administrativa, ou seja, pressupondo a existência de um processo judicial instaurado, nunca na prevenção de litígios, tema hoje central para desenvolvimento saudável do Poder Judiciário. Propõe-se, destarte, que a atuação da Advocacia Pública seja amplificada para influenciar a decisão administrativa e até mesmo vinculá-la, nas hipóteses de direitos individuais envolvendo matéria fática, situações estas impossíveis de se tutelar pela via coletiva (ação civil pública, ação coletiva), por envolverem decisão sobre a prova da matéria de fato que enseja a concessão do direito fundamental. O advogado público, utilizando-se de seus conhecimentos jurídicos e pautados na nova hermenêutica constitucional, deve atuar como revisor e julgador das questões administrativas quando houver negação do direito pela administração, seja pela má apreciação das provas, seja pela aplicação mecânica da norma administrativa, que é fria e estanque, muitas vezes em descompasso com a realidade social do caso concreto. Para desenvolvimento desse novo mister processual administrativo, é preciso reconhecer na Advocacia Pública e em seus membros um órgão com independência funcional em relação ao governo, sobretudo para que a decisão jurídica prevaleça independentemente de ingerências administrativas, ficando imune a revisões, evitando, de toda forma, o ajuizamento de uma demanda judicial questionando aquela decisão. Trata-se de uma instância decisória que transita entre a Administração, pois exerce a função de assessoria jurídica, e o Poder Judiciário, posto que a Advocacia Pública possui os mesmos conhecimentos hermenêuticos deste Poder, exercendo apenas função distinta, possibilitando o casamento perfeito entre demanda do cidadão, aplicação do princípio da legalidade, na sua nova roupagem constitucional, e efetivação do direito fundamental previsto constitucionalmente. A atuação dar-seia tanto na orientação para decisão do servidor administrativo no caso concreto, como pela decisão substitutiva da Administração, quando houver negativa do ente público na concessão de um direito, desde que a decisão Fernando Menegueti Chaparro 159 governamental esteja em confronto com a interpretação constitucional – e não meramente normativa – sobre o tema. Não se trata de uma ideia utópica ou inconstitucional, basta existir vontade política e investimentos em estrutura de pessoal. A experiência desta Advocacia Pública constitucional já existe, e pode ser verificada nas câmaras de conciliação prévia da Advocacia-Geral da União. 4 A exPeRiÊNciA dA AGU: câMARA de coNciliAção e ARbitRAGeM A Advocacia Pública ganhou nova roupagem após a Constituição Federal de 1988 (artigos 131 e 132). De mais relevante, cita-se a sua inclusão como uma função essencial à Justiça, de modo que não pode ser mais interpretada como mero representante judicial do governo, mas sim como instrumento de realização do Direito, seja judicial ou administrativamente. Nos termos constitucionais, a Advocacia Pública compõe-se das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal e da Advocacia-Geral da União. Destarte, no âmbito federal, qualquer política pública governamental (transportes, segurança, educação, previdência, saúde, etc.) deve passar pelo crivo da Advocacia-Geral da União. A lei orgânica da Advocacia-Geral da União (BRASIL, 1993) atribuiu ao AdvogadoGeral da União a prerrogativa para efetuar conciliações, acordos ou compromissos nas ações de interesse da União (art. 4º, inciso VI). Além disso, facultou-lhe a competência para prevenir e dirimir controvérsias entre órgãos da Administração Pública federal (inciso XI). A instituição de Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal é expressão do comando legal para conciliar interesses de órgãos federais. Destarte, sempre que houver litígio entre União e suas autarquias e fundações, ou entre estas, é possível a instituição de um procedimento incidental ao processo civil para que a controvérsia seja dirimida interna corporis. Segundo o Ato Regimental nº 5, de 27 de setembro de 2007: Art. 17. Compete à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal - CCAF: I-identificaroslitígiosentreórgãoseentidadesdaAdministraçãoFederal; II - manifestar-se quanto ao cabimento e à possibilidade de conciliação; III - buscar a conciliação entre órgãos e entidades da Administração Federal; e 160 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 160-172, jan./mar. 2014 IV - supervisionar as atividades conciliatórias no âmbito de outros órgãos da Advocacia-Geral da União. A regulamentação do normativo ocorreu na mesma data, através da Portaria nº 1281/2007, valendo citar seus principais comandos: Art. 1º O deslinde, em sede administrativa, de controvérsias de natureza jurídica entre órgãos e entidades da Administração Federal, por meio de conciliação ou arbitramento, no âmbito da AdvocaciaGeral da União, far-se-á nos termos desta Portaria. Art. 2º Estabelecida controvérsia de natureza jurídica entre órgãos e entidades da Administração Federal, poderá ser solicitado seu deslinde por meio de conciliação a ser realizada: I - pela Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal - CCAF; II - pelos Núcleos de Assessoramento Jurídico quando determinado pelo Consultor-Geral da União; III - por outros órgãos da Advocacia-Geral da União quando determinado pelo Advogado-Geral da União. Art. 9º O conciliador e os representantes dos órgãos e entidades em conflito deverão, utilizando-se dos meios legais e observados os princípios da Administração Pública, envidar esforços para que a conciliação se realize. Art. 10. Havendo a conciliação, será lavrado o respectivo termo, que será submetido à homologação do Advogado-Geral da União. Parágrafo Único. O termo de conciliação lavrado pelos órgãos referidos nos incisos II e III do art. 1º e homologado pelo AdvogadoGeral da União será encaminhado à CCAF. Art. 11. A Consultoria-Geral da União, quando cabível, elaborará parecer para dirimir a controvérsia, submetendo-o ao AdvogadoGeral da União nos termos dos arts. 40 e 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Art. 13. Poderão ser designados conciliadores: Fernando Menegueti Chaparro 161 I - os integrantes da Consultoria-Geral da União, por ato do Consultor-Geral da União; II - os integrantes da Advocacia-Geral da União, por ato do Advogado-Geral da União. Inicialmente, o órgão jurídico da União parecia despreocupado com a questão da litigiosidade interna da Administração Pública. Portanto, não causava espanto que duas autarquias federais litigassem no Poder Judiciário sobre determinada pretensão. E se trata de fato relativamente comum. Imagine-se uma controvérsia do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, quando em fiscalização de rotina autua um órgão federal pela transgressão de normas ambientais. Ou, ainda, que a ANS – Agência Nacional de Saúde divirja de uma decisão sobre medicamentos proferida pela ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Enfim, a controvérsia entre os órgãos federais seria decidida pelo Poder Judiciário, não obstante cada ente público possuir seu corpo jurídico qualificado e especializado no assunto finalístico do órgão. A ideia de uma câmara de conciliação e arbitragem surgiu para racionalizar a concretização da justiça entre os litigantes federais, na medida em que se torna absolutamente desnecessária a judicialização do conflito, quando a melhor decisão pode surgir de um corpo jurídico que se compromete com a imparcialidade e a realização dos ditames constitucionais, representado pela Advocacia Pública federal. O advogado público seria o instrumento processual para implementar a conciliação judicial, caso a controvérsia já tivesse ajuizada, ou extrajudicial, como prevenção de litígio. Nesse caso, após a normatização sobre o tema, tornou-se possível a submissão da controvérsia entre órgãos federais à Câmara de Conciliação da Administração Pública Federal. Em suma, não há mais necessidade de judicialização, porque: se há conciliação, o termo é homologado pelo Advogado-Geral da União e se encerra a controvérsia; se não há acordo, a Consultoria-Geral da União emite um parecer e o submete ao Advogado-Geral para despacho do Presidente da República, que o torna vinculante e obrigatório para os órgãos envolvidos, nos termos dos artigos 40 e 41 da Lei Complementar 73/1993. Eis um caso evidente de que o acesso à Justiça se dá independentemente do Judiciário e é exclusivamente realizado de forma extrajudicial, com intervenção de órgãos jurídicos da advocacia, 162 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 162-172, jan./mar. 2014 colaborando com a rápida solução do litígio e a redução da litigância estatal perante o Judiciário. Mais recentemente a Advocacia-Geral da União estendeu a atribuição da Câmara de Conciliação e Arbitragem para resolução de conflitos entre Estados e Distrito Federal (administração direta e indireta) com a União e suas autarquias e fundações, ampliando o rol de situações passíveis de resolução conciliatória envolvendo os órgãos jurídicos dos polos da relação. Trata-se da otimização dos instrumentos processuais existentes, através de uma interpretação constitucional muita mais ampla da função da Advocacia Pública. Se os advogados públicos pertencem a um órgão que é designado como função essencial à Justiça, possuem atribuições legais e constitucionais voltadas ao interesse público, não há porque desperdiçar esse potencial jurídico para resolução de conflitos e submeter a pretensão de órgãos estatais ao julgamento impositivo e substitutivo da jurisdição. O processo civil moderno não prevê soluções como a que se expôs acima, limitando-se a prever, genericamente, a conciliação, inclusive como objeto de busca incessante e a qualquer momento pelo magistrado, mas não há o estancamento de ações judiciais. Ocorre que, a despeito das ideias sugestivas da Câmara de Conciliação da Administração Federal, a repercussão na política processual judiciária é ínfima, pois não existe um grande número de demandas envolvendo órgãos públicos litigando entre si. Como já dito alhures, atualmente, o grande problema do Judiciário e do processo civil é equacionar a altíssima litigância entre o indivíduo e o Estado. São milhões de ações individuais que abarrotam os foros judiciais e envolvem decisão administrativa indeferitória de alguma pretensão realizada perante o Poder Público. A cada negativa da administração a um pedido individual surge o direito ao ajuizamento de uma ação judicial questionando o ato. Imaginese o potencial multiplicador de demandas que envolve essa relação Administração-Judiciário. Como exemplo, pode-se citar um benefício previdenciário ou assistencial, ambos geridos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (que foi objeto da pesquisa efetuada pela Fundação Getúlio Vargas). Não se trata, pois, de matéria de direito, na medida em que estas prestações estatais dependem de uma avaliação do substrato fático da pretensão, que é necessariamente individualizada (incapacidade, trabalho rural, Fernando Menegueti Chaparro 163 miserabilidade, número de contribuições, tempo de serviço, etc.). Ou, ainda no âmbito público, demandas sobre obrigação de entregar medicamentos, que dependem da avaliação médica do interessado. Essas demandas individuais de conteúdo específico não têm tratamento diferenciado no processo civil tradicional ou mesmo nas novas reformas processuais realizadas nos últimos anos. O julgamento tradicional destas questões – uma a uma – contribuiu para a inefetividade da Justiça. Isso porque, pelo número de ações, a tendência é a extrema demora da resolução do conflito, que envolve, na maioria dos casos, produção de prova pericial ou testemunhal. Segundo, porque a repetição dos casos tende a banalizar o julgamento, criando um sistema de precedentes em relação à matéria de fato, o que é contraditório, vez que cada caso concreto deve ser analisado individualmente. O desenvolvimento de um sistema pré-processual de julgamento destas questões é urgente e contribuirá para a racionalização da prestação jurisdicional e da concretização de direitos perante a Administração Pública. Discorrendo especificamente sobre a Advocacia Pública federal, Bernardo29 explica que: Certamente, um número razoável de litígios poderia ser solucionado sem que fosse movimentada a já abarrotada e dispendiosa máquina do judiciário. De outro lado, a AGU atuaria diretamente como verdadeira promotora na agilização da garantia das políticas públicas previstas no ordenamento em favor da população. A proposta, logicamente, não intenciona a substituição da jurisdição pelo julgamento administrativo, concretizado pela Advocacia Pública. Absolutamente, trata-se apenas de um espaço decisório qualificado, integrador e independente das amarras que a administração impõe através de normativos cada vez mais minuciosos, fechados, sem qualquer margem de flexibilização do agente público. Somente são contemplados pelas prestações sociais aqueles que formalmente se inserirem nos moldes jurídicos dos sistemas de informática do órgão. Não é difícil imaginar a vasta gama de cidadãos que sofrem abusos em seus direitos em decorrência desse positivismo exacerbado praticado pelas decisões administrativas. 29 BERNARDO, Leandro Ferreira. A câmara de conciliação e o novo papel da Advocacia-Geral da União. Revista da AGU – Advocacia-Geral da União. Brasília, n. 25, p. 163-184, jul./set. 2010. p. 181. 164 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 164-172, jan./mar. 2014 Destarte, nas hipóteses de indeferimento de pretensões envolvendo órgãos estatais, deve-se possibilitar a intervenção do órgão jurídico para solução da controvérsia, antes que o interessado proponha a demanda judicial. Nestas hipóteses, proporcionando a participação efetiva do cidadão no contraditório, com direito a voz e produção de provas, ainda que “vedadas administrativamente”, em confronto com o representante do órgão administrativo, produzir-se-ia nova decisão, intermediada pelo advogado público, que, revestido de amplas garantias e prerrogativas, poderá atribuir o direito ao cidadão, contrariamente à decisão governamental, desde que fundamente e justifique, através de elementos probatórios específicos, a rejeição da norma geral no caso concreto. Em texto jus-filosófico, Baptista da Silva30, conclui: Seria realmente quimérico que os juristas pretendessem conquistar novos espaços de participação democrática, limitando-se a pedir aos políticos que lhes desses novos Códigos, ou que se editassem mais leis, particularmente de processo civil, sem que eles próprios estivessem preparados para o desempenho de suas funções de coparticipantes na produção do direito, autenticamente democrático, na medida em que puder ser produzido por quem os aplica e consome. A coparticipação para produção do direito pode ser alcançada quando o cidadão é aproximado do Estado através de um órgão facilitador, independente. O Poder Judiciário, a rigor, tem a função de julgar e adjudicar o direito a quem tem razão, segundo a decisão judicial, em função substitutiva da vontade da parte. A Advocacia Pública, em interpretação constitucional integradora, não é apenas um órgão para responder e propor ações na Justiça, mas sim para viabilizar políticas públicas e assessorar adequadamente a administração, em todos os atos. A aproximação entre advocacia e administração da Justiça, tanto no controle como na colaboração, também é defendida na Argentina, consoante explica Berizonce31: Contralor a cargo de los Colegios profesionales Desde otro vértice parécenos que los Colegios de abogados deben asumir más plenamente la tarea de colaboración con la Administración de Justicia, que constituye uno de los principales 30 BAPTISTA DA SILVA, op. cit., p. 110-111. 31 BERIZONCE, Roberto Omar. Contralor de La labor jurisdicional y estado de derecho. In: GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R.; WATANABE, K. (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 145. Fernando Menegueti Chaparro 165 fundamentos de su reconocimiento legal. Esta legitimación básica que en todas las legislaciones que consagran la colegiación, les autoriza para llevar acusación ante los jurados de enjuiciamiento de Magistrados, implica obviamente el ejercicio del controlador del la actuación de los mismos. Labor transcendente que, en nuestro sistema, las Comisiones internas de Administracion de Justicia no cumplen sino de una manera parcial y discontinua. Nessa ordem de ideias, seria interessante que fossem criadas células de julgamento em casos de indeferimento da pretensão do cidadão. Não se desconhece a pouca estrutura proporcionada pelo EstadoAdministração para o desenvolvimento dos serviços administrativos, e a proposta deste trabalho vai em posição oposta ao pensamento dominante da administração. Todavia, não se trata de inflar a Administração com mais cargos obsoletos e burocráticos, mas somente estruturar um órgão de estatura constitucional para otimizar o mister que lhe atribuiu a Assembleia Constituinte de 1988. Destarte, a questão sobre disponibilidade orçamentária para desenvolvimento das câmaras de julgamento é secundária, que se for devidamente avaliada traz economicidade para o erário, na medida em que bem utilizada evita pagamento de juros moratórios, custas e honorários advocatícios, além de aliviar a estrutura do Poder Judiciário e dos próprios órgãos administrativos envolvidos. Paulatinamente, assuntos como saúde, previdência social e execução fiscal poderiam se inserir no projeto piloto de intervenção da Advocacia Pública na solução de conflitos entre administração e cidadão. Questões como a entrega de medicamentos, aposentadorias, benefícios, execuções fiscais, além de outras correlatas seriam objeto de análise jurídica específica nos casos de dúvida do servidor administrativo ou de indeferimentos, possibilitando ao cidadão uma nova análise, agora através de membros de um órgão jurídico constitucional. A inserção deste mecanismo julgador contribui para a melhoria da prestação dos serviços administrativos do Estado, pois cria uma “jurisprudência de valores” no âmbito interno, além de proporcionar ao advogado público um aprofundado conhecimento da rotina decisória da administração, abrindo clareiras para uma eficiente orientação jurídica prospectiva. Em relação ao processo civil, cumprem-se os novos valores fundados na efetividade, bem como na pedagogia dos direitos para o cidadão, que, participando pessoalmente do contraditório administrativo, busca e 166 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 166-172, jan./mar. 2014 obtém a prestação na sua forma primária, isto é, sem a interposição de outro Poder, que coercitivamente impõe o cumprimento do direito. Trata-se de fazer valer o escopo político do processo, conforme visão de Dinamarco32: Assim é que, situando-se na perspectiva política, o processualista moderno vê a estabilidade do poder, o culto à liberdade e a institucionalização da participação democrática como objetivos que legitimam nessa ótica a própria existência do sistema processual e o exercício continuado da jurisdição. Quando se diz, portanto, que o processo é um instrumento, é preciso lembrar que ele constitui meio para a realização de todos os fins da ordem processual, inclusive destes que se situam na ordem política. É mais uma faceta do princípio da colaboração ou cooperação no processo civil, que, muito embora seja direcionado para o magistrado, pode ser aplicado ao advogado público, por exercerem funções constitucionais semelhantes, no que toca ao funcionamento da Justiça. É o que pensa Didier Jr.: “o princípio da cooperação gera os seguintes deveres para o magistrado (seus três aspectos) a) dever de esclarecimento; b) dever de consultar; c) dever de prevenir”.33 Oliveira34, relacionando a cooperação processual com a atual complexidade da sociedade moderna, expõe: Semelhante cooperação, além disso, mais ainda se justifica pela complexidade da vida atual, mormente porque a interpretação regula iuris, no mundo moderno, só pode nascer de uma compreensão integrada entre o sujeito e a norma, geralmente não unívoca, com forte carga de subjetividade. Entendimento contrário padeceria de vício dogmático e positivista. Exatamente em face desta realidade, cada vez mais presente na rica e conturbada sociedade de nossos tempos, em permanente mudança, ostenta-se inadequada a investigação solitária do órgão judicial. Ainda mais que o monólogo apouca necessariamente a perspectiva do observador e em contrapartida, o diálogo, recomendado pelo método dialético, amplia o quadro 32 DINAMARCO, Cândido Rangel. Escopos políticos do processo. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 124. 33 DIDIER JÚNIOR. Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 51. 34 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Garantia do contraditório. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério (Org.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 139. Fernando Menegueti Chaparro 167 de análise, constrange à comparação, atenua o perigo de opiniões preconcebidas e favorece a formação de um juízo mais aberto e ponderado. (grifo do autor). O processo civil e suas instituições, entre elas a Advocacia Pública e a conciliação podem constituir alternativa segura e eficiente para o aperfeiçoamento da jurisdição e da efetivação dos direitos fundamentais, contribuindo para o desenvolvimento social do país e fluidez da administração do ordenamento jurídico nacional. Juridicamente, não há empecilho para a instituição de uma Câmara de Conciliação e Julgamento no âmbito da Advocacia-Geral da União. É preciso apenas aprimorar a legislação já existente. De antemão, afasta-se qualquer pecha de inconstitucionalidade, pois o princípio da inafastabilidade da jurisdição permanece hígido, vez que sempre estará aberta a via judicial em caso de indeferimento da pretensão. O cidadão, destarte, em caso de negatória da Administração, poderia trilhar por três caminhos: (i) recurso administrativo; (ii) provocação de decisão da Advocacia Pública; (iii) ação judicial. Culturalmente, o cidadão não confia nas decisões administrativas recursais, conforme demonstra a ampla pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: A pesquisa aponta que 68,6% (Tabela 32, p. 81 do v. 1) dos entrevistados desconfiam da imparcialidade/isenção da administração pública no julgamento dos recursos administrativos. Tal desconfiança aumenta, consideravelmente, a demanda pelo Poder Judiciário.35 Entretanto, não seria factível sujeitar obrigatoriamente o cidadão a uma decisão da Advocacia Pública em todas as hipóteses de indeferimento. Os órgãos jurídicos da União, por exemplo, também não possuem estrutura física e de pessoal para tanto. É preciso pensar para o futuro, estruturando órgãos e aprimorando as hipóteses de intervenção do órgão jurídico. De início, poder-se-ia pensar em alguns temas recorrentes como obrigatórios para uma solução pré-processual, a critério dos administradores. Paulatinamente, com a estruturação administrativa e verificação das vantagens do novo sistema pela população, outras matérias 35 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, op., cit., p. 190. 168 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 168-172, jan./mar. 2014 poderiam ser abrangidas. A regulamentação englobaria alteração na Lei Complementar nº 73/1993, pois esta somente prevê a vinculação dos órgãos federais aos pareceres da Advocacia-Geral da União aprovados pelo Presidente da República. Destarte, não se tratando de parecer, mas de decisão administrativa em sede pré-processual, este último caso deve estar previsto no rol de atos vinculantes. No mais, superado este óbice, a regulamentação fica ao inteiro talante do Advogado-Geral, que, por meio de Portaria, poderia identificar as matérias sujeitas à decisão do advogado público e o procedimento para tanto. Paulatinamente, temas relevo político e judicial poderiam ser incluídos, mas já se trata de um avanço em relação ao processo tradicional, superdependente do Poder Judiciário. Trata-se de um sistema que necessariamente dependerá de prévia e forte estruturação administrativa e apoio da sociedade civil para obter sucesso. É preciso, pois, eliminar a cultura do ajuizamento, fortalecendo o papel dos advogados na sociedade contemporânea, através da solução pré-processual de litígios. A Advocacia Pública, regida que é pelos princípios constitucionais da Administração Pública e pelos ditames éticos do Estatuto do Advogado, pode desempenhar papel fundamental na resolução dos conflitos sociais envolvendo o Poder Público, contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento saudável do Poder Judiciário. 5 coNclUsão A Revolução Francesa, pregando a liberdade, igualdade e fraternidade, estabeleceu um novo modelo de vida social, preconizado pelo repúdio ao sistema absolutista e marcado pela ideia da vontade geral do povo. O iluminismo influenciou praticamente todos os ramos da ciência, porém, no direito, foi determinante. A busca incessante pela igualdade e liberdade causou um desequilíbrio social insustentável, pois o poderio econômico daqueles que influenciaram a revolução era inigualável ao cidadão comum. A adoção de normas gerais e abstratas, fruto do positivismo e da lógica jurídica, deu azo à produção do Direito através da codificação. A regulação da sociedade através dos códigos e da lei produziu uma gama de desamparados, em meio à sociedade que só voltava os olhos para o Direito Privado (pacta sunt servanda), sem se Fernando Menegueti Chaparro 169 perquirir da condição socioeconômica do cidadão, numa espécie de patrimonialização do Direito. Este denominado Estado Liberal de Direito deu entrada ao Estado Social, caracterizado por uma maior intervenção estatal com vistas a suprir a hipossuficiência da população. A superdependência imposta pelo Estado aos seus cidadãos, através de prestações sociais, é politicamente perigosa, porque pode se converter em autoritarismo e ditadura, com a alienação da massa eleitora em decorrência da sua própria condição de miserável. Por outras palavras, o Estado apenas substituiu o poderio econômico pela sua supremacia política, a fim de explorar ideologicamente o povo. Essa é a razão pela qual se afirma hoje o Estado Democrático de Direito, que se distingue pela produção democrática do Direito, pela participação política e pela intervenção plural de instituições constitucionais e sociais. Não se concebe mais o Estado meramente prestador de benefícios sociais, exige-se que o cidadão tenha oportunidade de por si só alcançar a cidadania pelo conhecimento, pelo trabalho e pela participação política. Nessa esteira, diversos institutos jurídicos foram repensados e constitucionalizados, o que significa dizer que o império da lei foi substituído pelo predomínio da Constituição. Especificamente em relação ao processo civil, defende-se primeiramente uma atuação mais ativa do juiz, de modo que não seja um mero autômato no cumprimento das normas processuais, além disso, a instrumentalidade do processo deve prevalecer, de modo que não seja um fim em si mesmo, mas sim uma das técnicas de solução de conflitos. Nessa ordem de ideias, verificou-se que o Poder Judiciário, responsável pela resolução dos conflitos sociais, não tem acompanhado a evolução plural da sociedade e de seus problemas multiculturais, cuja complexidade não é absorvida pelo modelo tradicional de processo civil, de cunho individual-liberal. Desta forma, ao lado do Judiciário, outros atores jurídicos devem fazer frente para a resolução de conflitos. O incentivo diuturno à conciliação, a lei de arbitragem, aos juizados especiais, enfim, toda uma gama de alternativas foi proposta para equacionar de forma paliativa a crise do Estado, que também é a crise do Direito e do processo. No entanto, embora louváveis todas as iniciativas, não se viu uma frente que mirasse especificamente a litigância estatal, que consome 170 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 170-172, jan./mar. 2014 mais de 70% dos serviços judiciários. Não se buscou tratar a causa da superlativa presença do Estado em juízo, enfocando as origens jusfilosóficas que justificam o número anormal de demandas envolvendo órgãos públicos. No presente trabalho, abordou-se excelentes estudos capitaneados pela FGV e UFRGS, que procuraram as origens da crise do Judiciário, da insuficiência do modelo administrativo decisório e sua relação direta com a judicialização das relações entre indivíduo e administração, apontando pela necessária inserção de um novo conceito resolução de conflitos. Nesse ponto, defende-se uma função nova a ser desincumbida pelo advogado público, que deixa de ser um mero protocolador de petições para se introduzir no âmago da decisão administrativa e adequá-la à nova hermenêutica constitucional, eminentemente principiológica. A conexão entre função essencial à Justiça, na pessoa do advogado público; e processo civil, através da transação/conciliação, e acesso à Justiça como conceito amplo, possibilita concluir que não existe monopólio da prestação da Justiça, sendo legítimo atribuir a outros órgãos constitucionalmente estabelecidos a função de decidir sobre a concretização de direitos fundamentais, sem desprezar, contudo, o acesso ao processo judicial. RefeRÊNciAs BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Democracia moderna e processo civil. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. BERIZONCE, Roberto Omar. Contralor de La labor jurisdicional y estado de derecho. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. BERNARDO, Leandro Ferreira. A câmara de conciliação e o novo papel da Advocacia-Geral da União. 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São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. o sisteMA de ReGistRo de PReços No ReGiMe difeReNciAdo de coNtRAtAções (lei Nº 12.462/11) tHe ReGistRAtioN systeM PRices iN diffeReNtiAl tReAtMeNt of coNtRActs (RUle Nº 12.462/11) Juliano Heinen1 Procurador do Estado do Rio Grande do Sul SUMÁRIO: Introdução; 1 Natureza jurídica da Lei nº 12.462/11; 2 Premissas constitucionais sobre o tema; 3 Procedimentos auxiliares no RDC; 4 Sistema de Registro de Preços; 4.1 Objeto; 4.2 Atores do regime de preços; 4.3 A natureza jurídica e os efeitos da ata oriunda do Sistema de Registro de Preços; 4.4 Etapas do registro de preços; 4.5 Critérios de julgamento; 4.6 Da revisão e da revogação (cancelamento) dos preços registrados; 4.7 Adesão; 5 Conclusão; Referências. 1 Mestre em Direito (UNISC). Ministra aulas na Universidade de Caxias do Sul (Extensão), Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (Pós-Graduação), na Faculdade IDC (Extensão e Pós-Graduação), na Escola Superior da Magistratura Federal (ESMAFE), na Fundação Escola Superior da Defensoria Pública (FESDEP), na Escola Superior da Advocacia Pública (ESAPERGS), no Curso Verbo Jurídico. 174 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 174-200, jan./mar. 2014 RESUMO: O presente trabalho aborda, por meio de uma análise crítica, os principais aspectos no que se refere ao procedimento auxiliar do Registro de Preços do Regime Diferenciado de Licitações, modalidade de seleção pública, pela qual a Administração Pública registra em ata as propostas de preços para aquisições futuras e periódicas. Contudo, esta sistemática foi redimensionada a partir da edição da Lei nº 12.462/11. Para tanto, a pesquisa desenvolvida traz à tona possíveis soluções às incongruências compreendidas frente aos textos legais que tratam da matéria. Conclui-se, por fim, o estudo sobre o mencionado procedimento auxiliar ainda é prematura, a ainda revelar, portanto, intensos debates. PALAVRAS-CHAVE: Licitação. Regime Contratações. Sistema de Registro de Preços. Diferenciado de ABSTRACT: This paper discusses, through a critical analysis of the main aspects regarding the auxiliary procedure registry pricing, inclued in Rule off Differential Treatment of Contracts, public screening modality by which the Public records minutes at the proposed prices for future acquisitions and periodicals. However, this system was resized from the enactment of Rule n. 12.462/11. Therefore, the study conducted brings out possible solutions to the inconsistencies understood against legal texts dealing with the matter. It is concluded finally, the study of the mentioned auxiliary procedure is premature, the still prove therefore intense debate. KEYWORDS: Public Selection. Regime Differentiated Contracts. Registration System Prices. Juliano Heinen 175 iNtRodUção Foram os eventos esportivos importantes que o Brasil vai sediar que começaram a lançar questionamentos sobre a vetusta e atual Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93), especialmente por esta não dar cabo de lançar soluções a contento aos problemas atuais. Sua defasagem é considerada notória2. Dessa forma, como dito, esta responsabilidade de sediar eventos de repercussão mundial fez com que se percebesse ser imprescindível a modificação do regime licitatório tradicional, apresentando-se outro modelo, que foca em resolver a complexidade das contratações necessárias a partir do momento em que o Brasil passa a ser sede destes acontecimentos esportivos. Assim, a princípio, ter-se-ia um modelo licitatório transitório. Contudo, tanto o legislador, como a própria doutrina apostam que este procedimento será o novo arranjo jurídico que tomará o papel protagonista no que se refere ao regime das licitações e dos contratos administrativos. Até porque, como será percebido adiante, não só já se produziram mudanças ao modelo geral, como o regime diferenciado foi estendido perenemente a outros setores nodais à Administração Pública (v.g. saúde e educação). Antes do advento do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), surgiram outras tentativas de implementar um novo regime jurídico, como a Medida Provisória (MP) nº 489/10, que não foi apreciada no tempo devido, o que fez com que ela perdesse seu objeto; após, foi editada a MP nº 503/10, a qual sofreu uma série de emendas, sendo, por fim, este ato normativo rejeitado por inteiro; além disso, a MP 521/10, que também tratava da matéria, teve o mesmo destino. Quando da edição e apreciação da MP nº 527/10, que tratava sobre a estrutura e o regime jurídico dos aeroportos, foi apresentada uma emenda que acabou levando a efeito e vigência o modelo atual do RDC. Então, esta Medida Provisória acabou sendo convertida na Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, a qual disciplina o procedimento licitatório denominado de “Regime Diferenciado de Contratações” ou “RDC”3. 2 HEINEN, Juliano. A contratação integrada no Regime Diferenciado de Contratações - Lei nº 12.462/11. Fórum de Contratação e Gestão Pública. v. 145, Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 37-45. 3 Essa legislação foi alterada pelas Leis Federais nº 12.688/12, nº 12.722/12 e nº 12.745/12, e o Decreto Federal nº 7.581/11 regulamentou a referida lei. 176 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 176-200, jan./mar. 2014 Cabe destacar que justamente é esta uma das críticas feitas ao regime, porque foi apresentado e gestado em um contexto completamente diverso, ou seja, como se fosse um rescaldo de uma legislação que, definitivamente, não tratava de licitações e de contratos administrativos4. Era como se este novo modelo licitatório tivesse sido “encaixado” em outra legislação não afeta diretamente ao tema. Contudo, muito do que se questiona no que se refere ao RDC é fruto de um rompimento de paradigma, o que naturalmente causa certa contingência. É trivial que todo câmbio normativo cause um atrito à harmonia jurídiconormativa estabelecida. Ao longo da exposição, será percebido que o RDC não necessariamente trouxe novidades bastantes a se perfazer tamanha celeuma em relação a ele, dado que ele se aproxima, em larga medida, com o procedimento do pregão (Lei nº 10.520/02). Há, aqui, uma conjunção de boas técnicas constantes nos outros modelos licitatórios, agregando-se, no texto legal, outras soluções já apontadas pela doutrina e pela jurisprudência, principalmente do Tribunal de Contas da União (TCU)5. Dessa maneira, o RDC tem por escopo, em essência, romper com o anacrônico modelo licitatório atual, viabilizando boas práticas que intentam conseguir dar maior celeridade aos procedimentos licitatórios, combater eventuais fraudes nesta seara, permitir a eficiência na viabilização das obras e nos serviços públicos tão necessários à Nação etc. Assim, o RDC é uma tentativa de perfazer um câmbio na conjuntura que se processa atualmente. Há a necessidade de que se perceba que estas “inovações” trazidas por este prematuro regime muito refletem práticas já desenvolvidas por organismos estatais, por pessoas jurídicas de direito privado da Administração Pública indireta ou por organismos internacionais. E assim, o RDC passa a positivar as práticas consideradas já popularizadas no limiar da própria Nação brasileira6. Deve ser salientado que, nem bem a MP nº 527/11, convertida na Lei nº 12.462/11, entrou em vigor, já é objeto de Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI), tombada sob o nº 4.655, a qual foi promovida pela Procuradoria-Geral da República. A primeira alegação é de natureza 4 Tanto é verdade que a Medida Provisória em questão foi gestionada na Secretaria de Aviação Civil, sendo que em nenhum momento fez-se menção à criação de um regime diferenciado de contratação. 5 HEINEN, Juliano. Procedimentos auxiliares no Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/13). Interesse Público. v. 80, Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 125-138. 6 SCHWIND, Rafael Wallbach. Remuneração Variável e Contratos de Eficiência no Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC). Revista Brasileira de Direito Público. v. 36, Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 177-206. Juliano Heinen 177 formal, já que a referida medida provisória acabou por converter, em lei, tema estranho à proposta original, conforme salientado logo antes. Além disso, outros vícios de ordem material são ventilados, como a inconsistência do art. 1º, em não especificar quais as obras e serviços seriam disciplinados pelo RDC7; alega-se, ainda, a violação do princípio da igualdade por mecanismos como a adoção prioritária da empreitada integral em certos objetos, o sistema de pré-qualificação etc.8 Da mesma maneira, a Lei nº 12.462/11 ainda é questionada pela ADI nº 4.645, proposta pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, pelo Democratas – DEM e pelo Partido Popular Socialista - PPS (art. 103, inciso VIII, da CF/88). Alegam, entre outros fundamentos, justamente o abuso no poder de emendar as medidas provisórias, dado que, no presente caso, o objeto original do mencionado ato normativo foi completamente modificado9. O que é certo é a convicção de que o modelo atual não está a contento. E, a partir desta verdade é que se deve passar a visualizar o RDC como uma nova modalidade que visa a trazer inéditas soluções à área de licitações e de contratos. E estas incursões inserem-se em um modelo gerencial de Administração. Temos a certeza de que ainda há muito que se debater sobre o tema, e, para tanto, deve-se dar os devidos passos neste sentido. Para os limites deste trabalho, optar-se-á por estudar apenas um dos procedimentos auxiliares do RDC, qual seja, o Sistema de Registro de Preços (SRP). Porque incluído neste tema, far-se-á uma análise também dos meandros do instituto da adesão, também denominada de “carona”. 1 NAtURezA JURídicA dA lei Nº 12.462/11 A Lei nº 12.461/11 não foi clara em estabelecer a natureza jurídica das regras do RDC. Não há dúvidas que foi estabelecida uma nova modalidade licitatória10, na linha do que já dispunha a Lei nº 8.666/93 7 Consideramos essa alegação débil, porque mesmo a Lei nº 8.666/93 não especifica as obras a serem tuteladas por um regime geral de procedimentos licitatórios. 8 KRAWCZYK, Rodrigo. Contratação pública diferenciada RDC. Entendendo o novo regime - Lei nº 12.462/11. In: Âmbito Jurídico. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/%20 http:/www.dgmarket.com/AppData/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11678&revista_ caderno=4>. Acesso em: 17 abr. 2014. 9 Neste aspecto, o próprio § 4º do art. 4º da Resolução nº 1 de 2002, oriunda do Congresso Nacional, veda a apresentação de emendas que versem sobre matérias estranhas ao objeto da medida provisória. 10 Para os limites teóricos deste trabalho, utilizar-se-ão, como sinônimos, os termos “modalidades” e “procedimentos” licitatórios. 178 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 178-200, jan./mar. 2014 – e suas várias espécies de procedimentos licitatórios (concorrência, tomada de preços, convite, concurso, leilão e registro de preços) e a Lei nº 10.520/02 (que trata do rito de pregão). A questão é definir quais os artigos tratariam de normas gerais e quais deles seriam afetos somente ao ente federado União. Enfim, quais normas seriam de caráter nacional, e quais delas teriam a natureza de normas federais. Cabe referir, por oportuno, que o uso do RDC é opcional, ou seja, lastreado na oportunidade e conveniência do administrador público. Convive, assim, em paralelo com a atual Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93). 2 PReMissAs coNstitUcioNAis sobRe o teMA A primeira premissa que deve ser trazida à tona reflete a certeza de que o RDC deve estar compatível com os parâmetros estabelecidos no inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal de 198811 (CF/88). Assim, p. ex., este modelo licitatório deve ser pautado a partir dos seguintes parâmetros: imperioso ter presente a igualdade de condições a todos os concorrentes, incluindo-se cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento. Além disso, devem ser mantidas as condições efetivas da proposta, bem como somente permitirá as exigências de qualificação técnicas e econômicas indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Veja que deverá ser reputada inconstitucional qualquer exigência no RDC que rompa com a igualdade entre os concorrentes, ou mesmo que exija uma qualificação técnica não pertinente ao objeto licitado. Da mesma forma, o art. 22, inciso XXVII12, do texto constitucional, determina que compete privativamente à União legislar sobre normas gerais sobre licitações. Sendo assim, o RDC é típica regra geral de licitação – sendo esta típica “lei quadro” –, tendo natureza de lei nacional, ou seja, vale, de maneira uniforme, a todos os entes federados, até porque atinge interesses de todos eles, sendo que seu objeto transborda de uma 11 CF/88, Art. 37, inciso XXI: “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. 12 CF/88, Art. 22, inciso XXVII: “Compete privativamente à União legislar sobre: normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;”. Juliano Heinen 179 perspectiva particularizada. Nada impede que os Estados, Municípios e Distrito Federal editem regras específicas sobre o regime diferenciado, respeitando, por óbvio, as normas de caráter geral. Importante perceber, nesse aspecto, se o Decreto federal nº 7.581/12, que regulamenta a Lei nº 12.462/11 no âmbito da União, pode ser estendido aos Estados federados. Para isso devemos partir das premissas estruturais dos arts. 22 a 24, da Constituição Federal de 1988, que dão a base orgânica à federação brasileira. A partir disso, evidenciou-se quem faz o quê. Tomando por base de um elementochave inserido na estrutura federativa, a regulamentação impositiva e infralegal pelo Presidente da República aos demais entes federados seria impensável em matérias legislativas em que sua competência não é plena ou privativa, mesmo diante de um modelo federativo brasileiro, vamos dizer, “híbrido”. Mas, avançando, a partir disso temos de que evidenciar os limites normativos do art. 84, inciso IV, CF/88 – poder deste Chefe da Nação em fazer cumprir as leis. Assim, conclui-se preliminarmente que: a) assume-se que a Lei nº 12.462 é regra que estabelece normas gerais e, portanto, Estados, DF e Municípios estão vinculadas a ela; estes só podem editar, no seu âmbito, a legislação de normas especiais que se baseia na lei geral; contudo, conservase, aqui, a devida autonomia federativa; b) Nesse sentido, o Decreto federal nº 7.581/12 só tem validade no âmbito da União, não tendo natureza nacional; desse modo, cada Poder Executivo dos demais entes federados deveria ou poderia editar o seu decreto; Ademais, por estes e outros fundamentos, também se considera impossível a compreensão de que os Estados, DF e Municípios possam aplicar o Decreto federal por analogia, salvo previsão expressa em lei local, nas matérias em que este trata de temas específicos à lei local. 3 PRocediMeNtos AUxiliARes No Rdc Os procedimentos auxiliares são ferramentas que visam a prestar uma assistência ao administrador público que quer adquirir produtos ou serviços pelo regime diferenciado instituído pela Lei nº 12.462/11. Apesar disso, tais procedimentos conservam a sua autonomia em relação 180 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 180-200, jan./mar. 2014 ao rito principal do RDC. São ferramentas que serão criadas para auxiliar vários procedimentos licitatórios realizados sob esta modalidade13. O RDC, no art. 29, discriminou quais são os procedimentos auxiliares das licitações regidas pelo disposto nesta Lei: (a) pré-qualificação permanente – art. 30; (b) cadastramento – art. 31; (c) sistema de registro de preços – art. 32; e (d) catálogo eletrônico de padronização – art. 33. 4 sisteMA de ReGistRo de PReços O sistema de registro de preços, em igual medida do que se viu no que se refere a outros procedimentos auxiliares, já não é nenhuma novidade, até porque, há muito, previsto expressamente no art. 15, §§ 1º a 8º, da Lei nº 8.666/93. A lei geral adota esta ferramenta para aquisições, a fim de viabilizar um procedimento mais célere aos entes estatais, no intuito de estes obterem produtos de que se necessita corriqueiramente. Embora autoaplicável, o referido dispositivo pode sofrer limitações por regulamento estadual ou municipal, como previsto no § 3º do mencionado art. 1514. E esta normatização infralegal, no âmbito da União, tem assento no Decreto federal nº 7.892/1315. Contudo, a legislação do RDC (falo, aqui, tanto da Lei nº 12.482/11, como do Decreto nº 7.581/11) deu cabo de cumprir com uma agenda ainda a ser preenchida: a regulamentação mais completa e minuciosa desta modalidade licitatória. Esta medida tributou uma adaptação do registro de preços à realidade atual, no intuito de superar eventuais inconvenientes surgidos a partir da legislação de outrora. Enfim, pode-se dizer que o sistema de registro de preços é a modalidade de licitação apta a viabilizar diversas contratações 13 DIOS, Laureano; ZYMLER, Benjamin. Regime Diferenciado de Contratação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 195-196. 14 GUIMARÃES, Edgar; NIEBUHR Joel de Menezes. Registro de preços – aspectos práticos e jurídicos. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 15 STJ, REsp. nº 15.647/SP, Segunda Turma, j. 25/03/2003 Juliano Heinen 181 concomitantes ou sucessivas, sem a realização de um específico procedimento licitatório para cada uma delas. Este sistema pode servir a um ou a mais órgãos da Administração Pública. Normalmente é empregado para o caso de compras corriqueiras de determinados bens ou serviços, quando não é conhecida a quantidade que será necessária adquirir. Ou, ainda, quando estas compras tiverem a previsão de entregas parceladas. Visa, com isto, a agilizar as contratações e a evitar a formação de estoques, os quais geram um custo de manutenção muito grande, sem contar no risco de que tais bens possam vir a perecer ou a se deteriorar16. O Decreto federal nº 7.581/11 definiu o Sistema de Registro de Preços (SRP) no art. 88, inciso I, com redação dada pelo Decreto federal 8.080/13: “Sistema de Registro de Preços - SRP - conjunto de procedimentos para registro formal de preços para contratações futuras, relativos à prestação de serviços, inclusive de engenharia, de aquisição de bens e de execução de obras com características padronizadas.”. Em verdade, a parte final do dispositivo veio a incorporar o entendimento do TCU na matéria, qual seja, de que é possível contratar a execução de obras, desde que elas adotem uma metodologia comum, ou seja, padronizada. Antes, discutia-se muito se este tipo de contratação seria viável por esta modalidade de licitação, tendo em vista que uma obra, no mais das vezes, possui peculiaridades casuísticas e uma complexidade bastante a inviabilizar um padrão. Contudo, na prática, percebeu-se que, em certas situações, as obras podem receber uma padronização que franqueie a contratação pelo registro de preços. De outro lado, consegue-se, além destas vantagens, propiciar a transparência quanto aos bens e serviços que são frequentemente contratados, uma vez que qualquer sujeito tem legitimidade para impugnar preço constante na tabela geral, quando distorcidos ou incompatíveis com o mercado (art. 15, § 6º). Com essa modalidade de licitação quer-se evitar problemas como o desabastecimento de produtos de que se necessita corriqueiramente, ou a perda de produtos perecíveis quando não utilizados. Afinal, conseguese, com o registro de preços, uma aquisição corriqueira ou em momentos específicos, evitando-se a burocracia de um procedimento licitatório 16 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários ao RDC: (Lei 12.462/11 e Decreto 7.581/11). São Paulo: Dialética, 2013. p. 345-355. 182 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 182-200, jan./mar. 2014 complexo. Enfim, visa a regularizar situações em que não se tem a condição de se ter aquisições uniformes. Essa concepção impõe que a Administração Pública fique dispensada de mencionar, no instrumento convocatório, o montante mínimo a ser adquirido. Contudo, há necessidade de estipulação do quantitativo máximo a ser contratado, até para se auferir, já de início, o quanto os fornecedores poderão ser demandados, bem como os limites à figura da adesão, a seguir estudada. Segundo decidiu o TCU, no caso de eventual prorrogação da ata de registro de preços, dentro do prazo de vigência não superior a um ano, não se restabelecem os quantitativos inicialmente fixados na licitação, sob pena de se infringirem os princípios que regem o procedimento licitatório, indicados no art. 3º da Lei nº 8.666/9317. É um sistema muito profícuo para a aquisição de produtos ou para a prestação de serviços aos entes estatais. Tanto que o art. 15, inciso II, da Lei nº 8.666/93, preceitua que as compras feitas pelo Poder Público, na medida do possível, devem ser adquiridas por este sistema. Com ele consegue-se um ganho muito importante: a potencial participação de empresas menores, uma vez que o fornecimento é parcelado ao longo do prazo de validade da ata de registro de preços. Quando mais de uma unidade administrativa pretende adquirir os mesmos produtos ou serviços, pode se utilizar do mesmo procedimento de registro de preços, sendo desnecessário que cada órgão ou ente repita o certame. Neste caso, encarrega-se um determinado órgão ou ente de conduzir a licitação, gerir o sistema, formar o cadastro, etc., sendo denominado de “órgão gerenciador”. Assim, o legislador percebe que o registro de preços poderia bem ser aplicado ao RDC, momento em que o insere a partir das premissas alocadas no art. 3218, podendo ser utilizado para várias espécies contratações. Uma diferença candente entre o sistema de registro de preços inserido na lei geral de licitações (art. 15, § 3º, inciso I, da Lei nº 8.666/93), para com aquele previsto pelo RDC (art. 32, § 2º, inciso II, da Lei nº 12.462/11) é a seguinte: enquanto que o primeiro adota, inexoravelmente, a modalidade de concorrência para a formação do registro, no regime diferenciado este certame é feito de acordo com os procedimentos previstos em regulamento. 17 TCU, Acórdão nº 991/2009, Pleno j. 13/05/2009. 18 Decreto federal nº 7.581/11, art. 87 e ss. Juliano Heinen 183 4.1 obJeto No RDC, o registro de preços está previsto no art. 32, sendo mais bem detalhado nos art.s 87 e ss., do Decreto federal nº 7.581/11. Para se ter uma ideia de quais seriam os objetos desta espécie de procedimento, o art. 89 do referido decreto traz uma lista19. Contudo, é de se referir que o registro de preços, com o tempo, passou a ser considerado como um mecanismo muito eficiente a inúmeros tipos de contratações, porque é notadamente mais ágil, reduzindo significativamente a necessidade de se realizar um certame para cada objeto idêntico de que se necessitar. Hoje se discute se este sistema poderia ser estendido a serviços e a obras, aplicando-o, assim, a outras situações20. Um exemplo interessante de aplicação do SRP pode aclarar este panorama: a Administração Pública não tem como prever, de antemão, quantos medicamentos de determinada espécie ficará obrigada a fornecer, ou mesmo terá dificuldade de armazenar todo este plantel de fármacos. Com o registro de preços, ela vai adquirindo aos poucos a quantidade de remédios, de acordo com a demanda da população. Em certos meses pode necessitar de uma quantia diversa de outros períodos. O importante é que indique ao mercado uma estimativa de custos, ou seja, quanto pretende gastar em face a determinada quantidade de produtos, a fim de parametrizar a licitação por esta modalidade aqui comentada. Além disso, a Administração Pública utiliza o registro de preços não só para produtos de que necessita periodicamente, mas também para quando está diante de vários entes estatais interessados em contratar o mesmo objeto. Neste caso, o mesmo produto pode ser objeto de contratação por alguns órgãos ou entes públicos, momento em que se racionaliza o procedimento, permitindo, é certo, que se franqueiem estas várias pretensões contratuais em um único certame. Exemplificando: imagine que vários órgãos (que podem ser, inclusive, pertencerem a entes federados diversos) pretendam adquirir determinado mobiliário. 19 Decreto Federal nº 7.581/11, Art. 89: “O SRP/RDC poderá ser adotado nas seguintes hipóteses: I - quando, pelas características do bem ou serviço, houver necessidade de contratações frequentes; II quando for mais conveniente a aquisição de bens com previsão de entregas parceladas ou contratação de serviços remunerados por unidade de medida ou em regime de tarefa; III - quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação de serviços para atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programas de governo; e IV - quando, pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela administração pública.” 20 DIOS; ZYMLER, op. cit., p. 206-207. 184 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 184-200, jan./mar. 2014 Sendo assim, estabelece-se a quantidade que cada um quer contratar e se faz, em conjunto, um único certame pela modalidade de registro de preços. Visualizam-se, aqui, duas vantagens: racionalizam-se recursos, porque se faz um único certame, em vez de vários, bem como se tem a potencialidade de se conseguir preços melhores ao objeto licitado, porque a quantidade a ser adquirida é maior. Então, o objeto do registro de preços não se destina a selecionar um fornecedor para uma contratação específica, como ocorre com os certames comuns (gerais). Ao contrário, visa a dar cabo de escolher a melhor proposta para eventuais contratações sequenciais, escalonadas e não específicas, ou seja, que podem ocorrer repetidas vezes durante o prazo do registro. Em resumo, o registro de preços se presta a firmar os seguintes negócios jurídicos administrativos21: (a) quando o objeto tiver se ser entregue de maneira parcelada; (b) quando a contratação de produtos forem remunerados por unidade ou os serviços forem remunerados por tarefa; (c) quando se tiver a necessidade de contratações frequentes; (d) quando o objeto a ser contratado for de interesse de mais de um órgão ou se prestar a satisfazer um programa de governo; (e) quando não se consegue definir a quantidade a ser adquirida no momento de se perfazer o certame licitatório22; Na hipótese de contratações frequentes, consegue-se perceber um ganho em celeridade no que se refere à economia de procedimentos licitatórios. Por consequência e igualmente, intenta-se evitar que se gastem recursos públicos com a realização do próprio procedimento. Contudo, quando se esta diante de objetos com entrega parcelada 21 Decreto federal nº 7.892/13, art. 3º e Decreto federal nº 7.581/11, art. 89, com redação conferida pelo Decreto federal nº 8.080/13. 22 Nesse último caso, a vantagem da adoção do registro de preços mostra-se muito congruente, porque se evitam desperdícios com a contratação de quantitativos maiores do que o realmente necessário. A Corte de Contas federal declarou que não é incompatível com a lei ou com a Constituição Federal a utilização desse sistema, que o admite, quando, pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela Administração (TCU, Acórdão nº 0492/2012, Pleno, j. 07/03/2012). Juliano Heinen 185 (em etapas), a economia não necessariamente é percebida com mais intensidade, porque, pragmaticamente, o registro de preços não se diferencia da contratação comum, cuja entrega do objeto seria feita desta mesma maneira23. Especificamente quanto àquilo que pode ser adquirido, o SRP de preços, ao menos em termos de RDC, permite que se contrate a “[...] prestação de serviços, inclusive de engenharia, e aquisição de bens, para contratações futuras;” – art. 88, inciso I, do Decreto federal nº 7.581/11. Destaque a ser feito no que se refere aos serviços de engenharia, sendo inseridos como uma possibilidade de aquisição por esta modalidade de certame. Destacamos que a legislação foi alterada para que se permitisse que se fizesse registro de preços para obras de engenharia – parte final do inciso I do art. 88. Ademais, importante mencionar que o sistema em questão, quando normatizado pelas regras do RDC, difere da Lei nº 8.666/93, porque, neste último caso, somente se permitiu o registro de serviços de natureza comum24 . O novo regime de contratações veio a corrigir este equívoco, permitindo, ao nosso ver, a contratação de serviços comuns ou não, porque, justamente, este dado não é relevante à espécie. Uma disposição interessante consta no art. 93, § 2º, do Decreto federal nº 7.581/11, o qual determina que será evitada a adoção da contratação simultânea disciplinada no art. 11, da Lei nº 12.462/11, ou seja, a contratação de mais de uma empresa para a execução do mesmo serviço em uma mesma localidade no âmbito do mesmo órgão ou entidade. Esta providência visa, assim, a assegurar a responsabilidade contratual e o princípio da padronização. No caso de contratação de obras, o Decreto federal 8.080/13 preocupou-se em fornecer requisitos para ofertar a devida segurança jurídica à espécie. Para tanto, inseriu várias condições no parágrafo único no art. 89, do Decreto federal 7.581/11, dizendo que a contratação deste objeto somente pode ser feito por esta modalidade de licitação se: (a) for conveniente para atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programas de governo; ou 23 Tanto que o próprio TCU apontou como sendo inadequado o uso do registro de preços em licitação para objeto de entrega parcelada, porque não se justificava a adoção desta moralidade em relação ao certame comum (TCU, Acórdão nº 3.272/2010, 2ª Câmara). 24 De acordo com o posicionamento do TCU, Acórdão 668/2005, Pleno. 186 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 186-200, jan./mar. 2014 (b) pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela administração pública. Ainda, diz o dispositivo que as licitações deverão ser realizadas pelo “Governo federal” para que se possam contratar obras pelo Sistema de Registro de Preços. Aqui, o legislador não se pautou pela melhor técnica, pois se afastou dos denominativos típicos da ciência do direito administrativo. O correto seria alocar, no local do termo “Governo federal”, a expressão “Administração Pública direta”, “Administração Pública central” etc. Também, exige-se que as obras tenham projeto de referência padronizado, básico ou executivo, sem esquecer as peculiaridades que se encontram nas regiões. Significa dizer que as obras construídas na Amazônia, no Nordeste ou no Sul do País, p. ex., possuem e devem ter características diversas, dado que as condições climáticas, atmosféricas e geológicas reclamam adaptações próprias. Assim, o padrão exigido pelo artigo deve ser regionalizado. Por fim, no caso de se ter a figura “carona”, exige-se que haja compromisso do aderente em suportar as despesas das ações necessárias à adequação do projeto padrão às peculiaridades da execução. 4.2 AtoRes do ReGiMe de PReços Segundo a interpretação autêntica feita pelo art. 2º, do Decreto federal nº 7.982/2013, três personagens podem circundar no limiar do Sistema de Registro de Preços: (a) Órgão Gerenciador: órgão ou entidade da Administração Pública federal responsável pela condução do conjunto de procedimentos para registro de preços e gerenciamento da ata dele decorrente25 – suas competências estão definidas no art. 95, do Decreto federal nº 7.581/11, e no art. 5º, do Decreto federal nº 7.892/13; (b) Órgão participante: órgão ou entidade da administração pública federal que participa dos procedimentos iniciais do Sistema de Registro de Preços e integra a ata respectiva26 – suas 25 Decreto federal 7.581/11, art. 88, inciso III. 26 Decreto federal 7.581/11, art. 88, inciso IV. Juliano Heinen 187 competências estão definidas no art. 96, do Decreto federal nº 7.581/11, e no art. 6º, do Decreto federal nº 7.892/2013. A manifestação do órgão que quer aderir ao registro se dá pelo ato administrativo de Intenção de Registro de Preços; e (c) Órgão aderente (ou denominado de “não participante” pelo Decreto federal nº 7.892/13): órgão ou entidade da administração pública que, não tendo participado dos procedimentos iniciais da licitação, faz adesão à ata de registro de preços, desde que atendidos os requisitos dos atos normativos pertinentes27. 4.3 A NAtURezA JURídicA e os efeitos dA AtA oRiUNdA do sisteMA de ReGistRo de PReços Como “produto”, por assim dizer, do registro de preços, gerase uma ata, que nada mais é do que um documento vinculativo, tanto para a Administração Pública, quanto para os particulares. Mas em que termos? A legislação estipula que o Poder Público deva respeitar a ordem de classificação e os termos estabelecidos no procedimento licitatório. E o fornecedor que tem o preço registrado obriga-se a entregar aquilo que se propôs à Administração Pública, durante o prazo estabelecido que, no máximo, pode ser de doze meses28. Assim, a validade da ata do registro de preços não será superior a doze meses, incluídas eventuais prorrogações, conforme dispõe o inciso III do § 3º do art. 15 da Lei nº 8.666/9329. Importante notar que o Decreto federal nº 7.581/12, que regulamenta o Regime Diferenciado de Contratações, no art. 99, parágrafo único, determina que a ata tenha um prazo de validade mínima de três meses, o que não se percebe nas regras licitatórias gerais. Veja que esta medida é salutar, porque se impede que se implementem certames com validade exígua, prejudicando a competitividade. Como produto do registro de preços, obtém-se um cadastro de potenciais fornecedores, o qual listará, de maneira clara e particular, o objeto a ser contratado, as quantidades que cada fornecedor têm possibilidade 27 Decreto federal 7.581/11, art. 88, inciso V. Conferir: DIOS; ZYMLER, op. cit., p. 214-216. 28 JUSTEN FILHO, Marçal. O sistema de registro de preços destinado ao RDC. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, César A. Guimarães (Org.) O regime diferenciado de contratações públicas (RDC) – Comentários à Lei nº 12.462 e ao Decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 29 Decreto federal nº 7.892/13, art. 12, “caput”. 188 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 188-200, jan./mar. 2014 de entregar quando solicitado, de acordo com o que foi definido no instrumento convocatório, e, por fim, deve a ata deixar especificado o preço de cada objeto. Todas estas informações constarão em um documento importantíssimo: a ata do registro de preços. Em resumo: na ata constará, dentre outros itens, os preços e quantitativos do licitante mais bem classificado durante a etapa competitiva, bem como os preços e quantitativos dos licitantes que tiverem aceito cotar seus bens ou serviços em valor igual ao do licitante mais bem classificado. Então, ao final, esse documento formará uma lista de potenciais fornecedores. Possui como traço marcante a possibilidade de gerar compromisso para futuras contratações, de acordo com as especificações ali mencionadas. Como dito, durante o prazo máximo um ano30, o Poder Público tem a faculdade (facultas agiendi) de solicitar os préstimos dos fornecedores registrados na ordem de classificação31. Após homologada, qualquer outra entidade pública poderá consultá-la e utilizá-la mediante prévia sondagem do órgão gerenciador daquele sistema de registro de preços, desde que devidamente comprovada a vantagem neste sentido (art. 8º, do Decreto federal nº 7.892/2013). Trata-se, aqui, da figura da “adesão” ou também chamada de “carona”, a ser analisada na sequência da exposição32. Para o fim de dar atualizar a ata para com os preços praticados no mercado, a autoridade que gerencia o sistema deverá verificar a compatibilidade do registro para com a realidade33. Constatado que o preço registrado é superior ao valor de mercado, ficarão vedadas novas contratações até a adoção das providências cabíveis, que consistem em34: (a) convocar os fornecedores para negociarem a redução dos preços aos valores praticados pelo mercado; 30 TCU, Acórdão nº 3028/2010, Segunda Câmara, j. 15/06/2010. 31 O conceito da ata do registro de preços pode ser retirado, por meio de interpretação autêntica, do texto do art. 88, inciso II, do Decreto federal nº 7.581/11: “ata de registro de preços – documento vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, em que se registram os preços, fornecedores, órgãos participantes e condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no instrumento convocatório e propostas apresentadas;”. 32 Este tema será mais bem desenvolvido no item “5.7”, que segue. 33 Decreto federal nº 7.581/11, art. 104. 34 Decreto federal nº 7.581/11, art. 105. Juliano Heinen 189 (b) os fornecedores que não aceitarem reduzir seus preços aos valores praticados pelo mercado serão liberados do compromisso assumido, sem aplicação de penalidade; (c) para os fornecedores que aceitarem reduzir seus preços aos valores de mercado, o registro de preços continua hígido, observando-se, para tanto, a classificação original. A ata de registro de preços não se confunde com os contratos administrativos celebrados com base nela. Logo, o próprio prazo do contrato poderá ser superior a doze meses, ou seja, não se baliza por este documento. Em resumo, os prazos de vigência dos contratos regem-se pelos termos do art. 57, da Lei nº 8.666/93, por exemplo35. Aliás, dela podem se gerar vários contratos, que são, como dito, documentos com regime jurídico diverso. É importante notar que o RDC não obriga a Administração Pública a contratar com o fornecedor cadastrado na referida ata, ou seja, não se defere um direito subjetivo ao interessado mais bem classificado no certame de registro de preços em ser acionado a sempre fornecer o produto a que se obrigou. O que a lei defere é um direito subjetivo à preferência na aquisição, o que é bem diverso (art. 32, § 3º, da Lei nº 12.462/11, art. 101, do Decreto federal nº 7.581/11 e art. 16, do Decreto federal nº 7.892/13). Assim, a ata do registro é um documento vinculativo e obrigacional no que se refere à preferência mencionada. Explico. O Poder Publico pode bem resolver realizar uma licitação específica no que se refere aos objetos já selecionados pelo registro de preços, desde que, no caso, assegure ao licitante vencedor deste último certame, direito de preferência no fornecimento (art. 15, § 4º, da Lei nº 8.666/93). Neste caso, o interessado não é obrigado a entregar o produto por condições diversas a que se obrigou. O que se defere ao fornecedor que integre a ata é a preferência de fornecimento, em igualdade de condições. Em outros termos, caso um ente público realize um certame específico e consiga o bem por um preço inferior, mesmo assim deve ser dada preferência para que o interessado que registrou seu preço possa cobrir a oferta, ou seja, deve ser dada premência a ele (art. 7º, do Decreto federal nº 7.892/2013). 35 Decreto federal nº 7.892/2013, art. 12, § 2º. 190 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 190-200, jan./mar. 2014 Por fim, pode-se mencionar que os contratos deverão ser assinados no prazo de validade da ata de registro de preços (art. 12, § 4º, do Decreto federal nº 7.892/13). Sendo assim, não basta que a adjudicação, p. ex., se dê neste interregno. O que precisa ser efetivado é assinatura do negócio jurídico. 4.4 etAPAs do ReGistRo de PReços Operacionalmente, o registro de preços pode ser resumido em três fases distintas: (a) por primeiro, estabelece uma competição entre os interessados a contratarem com o Poder Público. Cada qual oferta seus lances, gerando o registro do licitante vencedor, com seus quantitativos e preços ofertados; (b) em um segundo momento, passa-se a colher o registro dos demais interessados que anuem em praticar os mesmos quantitativos e preços do primeiro colocado, mantendo-se a ordem de classificação obtida na etapa inicial36. Logo, os demais licitantes podem reduzir seus preços para igualá-los ao primeiro colocado. Todavia, as novas ofertas não prejudicarão o resultado do certame em relação ao licitante mais bem classificado; (c) após e por fim, registram-se os preços e os quantitativos daqueles que não praticam os valores do primeiro colocado, na ordem de classificação ordenada pelos lances respectivos. Importante notar que o instrumento convocatório do registro de preços não necessariamente terá de indicar a dotação orçamentária correspondente – como ocorre com o regime geral de licitações e contratos. Ao contrário. A menção a este dado surgirá quando da realização da efetiva contratação, porque, antes – mesmo quando da formação da ata de registro de preços –, o ente estatal não se obriga a adquirir o objeto licitado37. Em resumo, como o registro de preços não cria obrigações imediatas ao Poder Público, o certame pode iniciar independentemente de se ter dotação orçamentária38. 36 Decreto federal nº 7.581/11, art. 97. 37 Decreto federal nº 7.581/11, art. 91. 38 TCU, Acórdão nº 297/2011, Pleno. Juliano Heinen 191 Aliás, a Corte de Contas federal declarou como irrazoável a consecução de registro de preços para posterior contratação dos valores constantes exatamente na ata, ou seja, para celebração de contrato com objeto absolutamente idêntico a este documento que lhe deu origem. Assim, o tribunal entendeu que o referido objeto deveria ter sido contratado por outra modalidade licitatória39. Deve-se destacar que contrato decorrente do Sistema de Registro de Preços não poderá sofrer qualquer acréscimo no seu quantitativo. Logo, não se lhe aplicam as disposições do art. 65, § 1º, da Lei nº 8.666/93, que permitem acréscimos na ordem de vinte e cinco e de cinquenta por cento. Contudo, importante notar que o art. 99, “caput”, do Decreto nº 7.581/11 dispõe que os licitantes ficam obrigados ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços nas condições a que se obrigaram, durante o prazo de validade da ata. Neste ínterim, a Administração Pública poderá realizar quantas aquisições necessite. Aqui um ponto merece destaque: as limitações quantitativas do art. 65, § 1º, da Lei nº 8.666/93, não são aplicadas à espécie. Será o instrumento convocatório que dará os contornos de quanto se pode ou se quer adquirir. Assim, as balizas quantitativas serão dispostas no instrumento convocatório. Além disso, dispõe o art. 32, § 2º, inciso II, da Lei nº 12.462/11, combinado com o art. 90, incisos I e II, do Decreto federal nº 7.581/11, que o registro de preços será efetivado por qualquer dos modos de disputa previstos neste último ato normativo, sejam eles combinados ou não. O julgamento da melhor proposta, ao seu turno, utilizará o critério de menor preço ou de maior desconto. Já o sistema geral de licitações determinava que a seleção seria feita mediante concorrência – art. 15, § 3º, inciso I, da Lei nº 8.666/93. Esta assertiva foi flexibilizada pelo art. 11, da Lei nº 10.520/200240 e recepcionada pelo Decreto federal nº 7.892/13 (art. 7º, “caput”), os quais permitiram a figura do pregão para a viabilização do registro de preços. Esta conjuntura prova, assim, que o RDC foi mais flexível do que a lei geral no que se refere às modalidades licitatórias de seleção do registro. 39 TCU, Acórdão nº 113/2012, Pleno. 40 Lei nº 10.520/2002, art. 11: “As compras e contratações de bens e serviços comuns, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando efetuadas pelo sistema de registro de preços previsto no art. 15 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, poderão adotar a modalidade de pregão, conforme regulamento específico.” 192 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 192-200, jan./mar. 2014 O registro de preços pode ter a participação de mais de um órgão ou ente. Logo, o certame é feito desde já com a presença de mais um interessado em poder contratar a partir da ata de preços a ser constituída. Assim, quando outros órgãos ou entes quiserem participar do procedimento de registro de preços, deverão manifestar sua intenção ao órgão gerenciador, no prazo por ele estipulado (art. 92, § 1º, do Decreto federal nº 7.58/11), bem como concordar com o registro de preços, indicando sua estimativa de demanda e o cronograma de aquisições (§ 2º do art. 92 do mesmo ato normativo infralegal). Esta proposição feita por outro(s) órgão(s) públicos deverá ser considerada no montante a ser licitado, ou seja, na estimativa de demanda do registro – art. 95, § 2º. Um cuidado importante neste aspecto foi tomado pelo Decreto federal nº 7.581/11, no art. 106, parágrafo único, qual seja: “os órgãos ou entidades da administração pública federal não poderão participar ou aderir à ata de registro de preços cujo órgão gerenciador integre a administração pública de Estado, do Distrito Federal ou de Município, ressalvada a faculdade de a APO [Autoridade Pública Olímpica] aderir às atas gerenciadas pelos respectivos consorciados.” Ao reverso, não se vislumbram quaisquer óbices para que as entidades públicas dos demais entes federados participem no registro de preços federal. 4.5 cRitéRios de JUlGAMeNto O Decreto federal nº 7.892-2013, no art. 7º, “caput”, exige utilização do tipo “menor preço” e, excepcionalmente “técnica e preço” (§ 1º), a critério do órgão gerenciador e mediante despacho fundamentado da sua autoridade máxima. Contudo, caso escolhida a modalidade de pregão, sempre deve se adotar o critério “menor preço”. Caso seja adotado o critério de julgamento “técnica e preço”, ressalva-se que deverá ser evitada a contratação, em um mesmo órgão ou entidade, de mais de uma empresa para a execução de um mesmo serviço, em uma mesma localidade. Esta providência é salutar, pois visa a assegurar a responsabilidade contratual e o princípio da padronização (art. 8º, § 2º, do Decreto federal nº 7.892/2013). O instrumento convocatório ainda poderá prever mais um critério de seleção da proposta mais vantajosa, dado que o menor preço poderá ser aferido pela oferta de desconto sobre tabela de preços praticados no mercado, desde que tecnicamente justificado – art. 9º, § 1º, do Decreto federal nº 7.892/2013. Juliano Heinen 193 4.6 dA Revisão e dA RevoGAção (cANcelAMeNto) dos PReços ReGistRAdos Os preços registrados poderão ser revogados (ou ditos “cancelados” pelo Decreto federal nº 7.892/13) ou revistos, quando ocorrerem várias situações. Para uma melhor compreensão das matérias, primeiramente se apresentará um quadro-resumo em que se sistematiza a matéria41: (a) Revisão: (a1) por redução nos preços (cuja previsão não está inserida no decreto que trata do RDC, somente no decreto que disciplina o regime geral do Sistema de Registro de Preços); (a2) por aumento nos preços; (b) Revogação ou cancelamento: (b1) por inadimplência do interessado que teve seu preço registrado, sendo estabelecido, em ambos os decretos, uma lista de casos que tipificam hipóteses que autorizam esta perspectiva; A segunda hipótese de revogação/cancelamento da ata passa por uma divergência entre as duas disciplinas jurídicas: (b2.1) Decreto nº 7.892/13, art. 21: decorrente de caso fortuito ou de força maior, desde que: (b2.1.1) por motivos de interesse público; (b.2.1.2) por pedido do fornecedor. (b2.2) Decreto nº 7.581/11, art. 107, § 1º, incisos I e II: A revogação do registro poderá ocorrer: (b.2.2.1) por iniciativa da administração pública, conforme conveniência e oportunidade; ou 41 Decreto federal nº 7.892/13, arts. 105 e 107, e Decreto federal nº 7.892/13, arts. 17 a 21. 194 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 194-200, jan./mar. 2014 (b.2.2.2) por solicitação do fornecedor, com base em fato superveniente devidamente comprovado que justifique a impossibilidade de cumprimento da proposta. A revisão da tabela de registro de preços poderá ser feita por conta de eventual redução dos preços praticados no mercado ou em decorrência de fato que eleve o custo dos serviços ou bens registrados. Neste caso, o órgão gerenciador deverá negociar junto aos fornecedores as quantidades de redução ou de aumento. Veja que, diante desta conjuntura, a legislação pertinente não definiu os critérios objetivos e em que níveis podem se dar as tratativas, salvo que elas devem observar as disposições contidas na alínea “d” do inciso II do caput do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993. Quando o órgão gerenciador convocar os fornecedores para negociarem a redução dos preços aos valores praticados pelo mercado, estes não estão obrigados a aceitar reduzir seus preços aos valores ali constantes. É uma faculdade conferida a eles. Neste caso, serão liberados do compromisso assumido, sem aplicação de penalidade. Contudo, para aqueles fornecedores que aceitem reduzir seus preços, a ordem de classificação original se mantém42. Diante de um preço de mercado que se torna superior aos preços registrados e o fornecedor não puder cumprir o compromisso, a legislação autoriza o órgão gerenciador a liberar o fornecedor da obrigação assumida. Nesta situação, a comunicação deste fato deve ocorrer antes do pedido de fornecimento, para que o interessado fique isento da aplicação da penalidade, isto se confirmada a veracidade dos motivos e comprovantes apresentados. A partir da, o referido órgão deve convocar os demais fornecedores para assegurar igual oportunidade de negociação. Em qualquer caso, quando restam frustradas as negociações, o órgão gerenciador deverá proceder à revogação da ata de registro de preços, adotando as medidas cabíveis para obtenção da contratação mais vantajosa. 4.7 Adesão A adesão é um instituto muito peculiar e previsto no SRP, sendo apelidado de “carona”. Tem sua definição capitaneada pelo § 1º do art. 42 Decreto federal nº 7.892/13, arts. 105, § 2º. Juliano Heinen 195 32 da Lei nº 12.462/11: “Poderá aderir ao sistema referido no caput deste artigo qualquer órgão ou entidade responsável pela execução das atividades contempladas no art. 1º desta Lei”. Cabe referir, por oportuno, que esta figura jurídica já era prevista no Decreto nº 3.931/01, art. 8º, § 3º, e foi repetido pelo art. 22, do Decreto nº 7.892/13, e justamente muito se questionava a constitucionalidade do primeiro ato normativo, por justamente não possuir lastro na Lei nº 8.666/93. No caso, alegava-se que o decreto havia inovado a ordem jurídica, sendo considerado praeter legem. Este debate perdeu sentido com a alteração da lei geral de licitações, momento em que se fez previsão expressa acerca do SRP. O instituto do “carona” pode ser considerado verdadeiro caso de dispensa de licitação, sendo esta sua natureza jurídica. Cabe referir que ele somente pode derivar de previsão legal expressa, ou seja, reclama reserva de legislação. Sendo assim, por esta ótica, a figura do “carona” seria ilegal e inconstitucional caso fosse somente tutelado por ato normativo infralegal. Além disso, alegava-se que este instituto violava o art. 37, XXI, da CF/88, porque esta regra impunha a todo órgão público o dever de licitar. Contudo, este argumento não nos serve, justamente porque se adere a um procedimento em que se efetivou um certame público. O dever de licitar – que, inclusive, é relativizado em muitos aspectos – foi preservado. Essa discussão foi levada ao TCU, que se manifestou pela legalidade do procedimento43. Em termos singelos, a adesão permite que outro órgão público, que não participou do registro de preços, firme contratos com base em ata constituída por outros organismos estatais. Para tanto, a fim de se evitarem abusos, algumas premissas e condições foram previstas também no Decreto federal nº 7.892/13 – que vale para as licitações gerais do SRP, não para os registros que seguem o RDC, porque, neste último caso, temos a aplicação do Decreto federal nº 7.581/11. (a) A adesão deve contar com a anuência do órgão gerenciador44. Neste caso, segundo o art. 103, do Decreto nº 7.581/11, quando solicitado, o órgão gerenciador indicará os fornecedores que 43 TCU, Acórdão nº 1.487/2007, Pleno. 44 Art. 22, “caput”, segunda parte, e § 1º, do Decreto federal nº 7.892/13. 196 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 196-200, jan./mar. 2014 poderão ser contratados pelos órgãos ou entidades participantes ou aderentes, bem como os respectivos quantitativos e preços, conforme a ordem de classificação. Neste caso, o órgão gerenciador indicará o fornecedor registrado mais bem classificado e os demais licitantes que registraram seus preços em valor igual ao do licitante mais bem classificado; (b) Ainda, para se ter a aderência mencionada, deve-se contar com a anuência também do fornecedor beneficiário da ata de registro de preços (art. 102, § 4º, do Decreto federal nº 7.581/11), desde que não prejudique as obrigações presentes e futuras decorrentes da ata, assumidas com o órgão gerenciador e órgãos participantes (§ 5º do mesmo ato normativo)45; (c) Por fim, a adesão deve se limitar aos quantitativos definidos nos regulamentos próprios46. No art. 22, “caput”, primeira parte, do Decreto federal nº 7.892/13, estipula-se um requisito a mais, não mencionado pelo regulamento federal que trata do RDC: deve ser justificada a vantagem da adesão à ata de registro de preços. Destaca-se que o terceiro requisito (item “c”) refere-se aos limites quantitativos da adesão, ou seja, até quanto o “carona” poderá aderir. Esta previsão veio à tona, porque, outrora, muitos abusos foram cometidos neste sentido, especialmente pelo fato de, em certas oportunidades, inclusive, terem sido superadas as quantidades fixadas pelo órgão gerenciador na ata de registro. Assim, é certo que o limite “c” é o mais polêmico. Para se ter uma ideia, o TCU, ao seu turno, preocupa-se que a figura do “carona” se adapte aos quantitativos contratados, não podendo os entes públicos negociar em níveis superiores à ata homologada. Há muito a Corte de Contas federal determinava que os organismos estatais deveriam gerenciar a ata de forma que a soma dos 45 Art. 22, § 2º, do Decreto federal nº 7.892/13. 46 A Corte de Contas federal estipulou outros requisitos (TCU, Acórdão nº 2.764/2010, Pleno): (a) deve existir plena discriminação do objeto a ser contratado pelo sistema de registro de preços, acompanhado da pertinente justificativa e necessidade da contratação; (b) comprovação da compatibilidade econômica, avaliando a conectividade do valor dos bens, para com os preços de mercado; (c) respeito aos quantitativos discriminados na ata de registro de preços, sendo vedada a contratação em patamares superiores. Juliano Heinen 197 quantitativos contratados em todos os negócios derivados dela não superassem o quantitativo máximo previsto no edital47. Logo, esta decisão do citado tribunal já restringia a figura do aderente. Muito embora, após o julgamento dos embargos de declaração opostos pelo Ministério do Planejamento, o TCU tenha permitido a contratação por adesão sem os limitadores, ou seja, de maneira mais flexível, até o fim de 201248. O RDC preocupou-se com a possibilidade de se perpetrarem abusos a partir da figura da adesão. Dessa forma, no regulamento federal que detalha a Lei nº 12.462/11 previram-se limites específicos a respeito 49. No art. 102, §§ 2º e 3º, foram positivadas as seguintes limitações: (a) Os órgãos aderentes não poderão contratar quantidade superior à soma das estimativas de demanda dos órgãos gerenciador e participantes; (b) A quantidade global de bens ou de serviços que poderão ser contratados pelos órgãos aderentes e gerenciador, somadas, não poderá ser superior: (b1) a cinco vezes a quantidade prevista para cada item e, (b2) no caso de obras, não poderá ser superior a três vezes50. Veja que, no primeiro caso, veda-se que o “carona” estabeleça contratos cujas quantias sejam superiores à soma das estimativas feitas na ata de registro. Ao mesmo tempo, a soma de todas as adesões não poderá ser superior a cinco ou três vezes a quantidade estabelecida como limite máximo a cada item, dependendo do caso. Exemplificando: imagine que quatro órgãos públicos unam-se para, em um procedimento, adquirir, cada um, duzentas e cinquenta 47 TCU, Acórdão nº 1.233/2012, Pleno; TCU, Acórdão nº 2.311, Pleno. 48 TCU, Acórdão nº 2.692/2012, Pleno. 49 Instituído pelo Decreto federal nº 7.581/11. 50 O Decreto federal nº 7.892/11, no art. 22, § 4º, modifica um pouco os quantitativos previstos no regulamento do RDC. Confira: “O instrumento convocatório deverá prever que o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não poderá exceder, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes, independente do número de órgãos não participantes que aderirem.”. 198 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 198-200, jan./mar. 2014 mesas, em um total de mil. Neste caso, um eventual aderente somente poderia tomar por base esta ata de Registro de Preços para adquirir no máximo mil mesas, ou seja, o somatório do quantitativo de todos os licitantes – primeiro limite (letra “a”). Ademais, esta ata somente serve para abarcar a quantidade de “caronas” em até cinco mil cadeiras, ou seja, cinco vezes a soma do quantitativo máximo de cada item, que, no caso, era único (ex. mesas) – segundo limite (letra “b”). Essas balizas são importantes marcos à contenção de eventuais excessos, as quais não foram contempladas no regime geral de licitações disciplinado pela Lei nº 8.666/9351. O § 5º do art. 22 do Decreto federal nº 7.892/13, que disciplina, em âmbito infralegal e em caráter geral, o SRP da União, dispõe ainda outra condição para que se possa aderir a uma ata de registro de preços: o órgão gerenciador somente poderá autorizar a figura do “carona” após a primeira aquisição ou contratação por órgão integrante da ata, exceto quando, justificadamente, não houver previsão no edital para aquisição ou contratação pelo órgão gerenciador. Significa dizer que a adesão fica suspensa até que ocorra a primeira compra pelo órgão gerenciador ou por um participante. Outro dispositivo interessante trazido pelo Decreto federal 7.581/13 determina que, depois da autorização do órgão gerenciador, o órgão não participante deverá efetivar a aquisição ou contratação solicitada em até trinta dias, observado o prazo de vigência da ata (art. 103, § 4º). Logo, fixa-se aqui um prazo máximo para que o aderente ultime os negócios jurídicos para os quais pediu autorização por fim, ficando este ínterim restrito, é claro, ao limite de vigência da ata. Destaca-se que, no regime geral do Registro de Preços, este prazo passa para noventa dias (art. 22, § 6º). Acompanhando o entendimento do TCU52 , o Decreto federal nº 7.892/13 pôs fim a um debate muito corriqueiro na matéria. Diz o art. 22, § 8º que “É vedada aos órgãos e entidades da administração pública federal a adesão a ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade municipal, distrital ou estadual.”. E é compreensível esta medida, porque as compras em nível nacional possuem abrangência que destoa dos aspectos regionais e locais. Veja que, neste caso, a 51 Importante mencionar que a União não deve aderir às atas de registro de preços de órgãos estaduais e municipais, até porque estes conferem ao certame uma publicidade mais restrita (art. 106, Decreto federal nº 7.581/11). 52 TCU, Acórdão nº 3.625/2011, 2ª Câmara. Juliano Heinen 199 União não poderia se valer da ata de registro de um município, que contrata normalmente em menor escala e, neste caso, os preços possivelmente serão mais altos. Contudo, a recíproca é permitida. Veja que o § 9º do art. 22 define que é facultado aos órgãos ou entidades municipais, distritais ou estaduais a aderir à ata de registro de preços da Administração Pública Federal. Em nível de RDC, o Decreto federal nº 7.581/11 acompanhou esta mesma linha de raciocínio (art. 106, “caput” e parágrafo único). No entanto, a parte final do parágrafo faz uma ressalva, é facultada à APO aderir às atas gerenciadas pelos respectivos consorciados, independentemente de advirem de outras unidades da federação. Releva notar que esses atos normativos infralegais ampliaram ou restringiram o âmbito normativo dos dispositivos constantes em legislação de primeiro grau, seja aqueles constantes na lei geral, seja aqueles dispostos no RDC. Sendo assim, em tese, poderia se dizer que os decretos disciplinam matérias de maneira praeter legem, o que bem poderia ser alvo de questionamento. 5 coNclUsão Assim como tantas outras inovações produzidas nos últimos anos em direito administrativo, o Regime Diferenciado de Contratação necessita de um período de maturação. Apesar disso, sem sombra de dúvidas, ganha, hoje, um papel protagonista no cenário nacional. Aquele que seria um regime jurídico de contratações transitório e relegado a desaparecer juntamente com a entrega da última medalha dos Jogos Olímpicos de 2016, cresce e toma espaço nas relações mais triviais das contratações públicas. Porém, não podemos nos enganar ao pensar que ele tenha chegado à fase adulta. Ao contrário, acredita-se que viva a mais pulsante adolescência, repleto de conf litos, dúvidas, acertos e erros, mas completamente vivo e mergulhado nas mais intensas aspirações (e contradições...) que esta fase deste ciclo da existência revela. Para tanto, apresentou-se, neste trabalho, uma análise crítica sobre pontos obnubilados no que se refere aos procedimentos auxiliares da Lei nº 12.462/11, especialmente se comparados ao regime geral da Lei nº 8.666/93. 200 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 200-200, jan./mar. 2014 RefeRÊNciAs DIOS, Laureano; ZYMLER, Benjamin. Regime Diferenciado de Contratação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. GUIMARÃES, Edgar; NIEBUHR Joel de Menezes. Registro de preços – aspectos práticos e jurídicos. Belo Horizonte: Fórum, 2013. HEINEN, Juliano. A contratação integrada no Regime Diferenciado de Contratações - Lei nº 12.462/11. Fórum de Contratação e Gestão Pública. v. 145, Belo Horizonte: Fórum, 2014. ______. Procedimentos auxiliares no Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/13). Interesse Público. v. 80, Belo Horizonte: Fórum, 2013. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários ao RDC: (Lei 12.462/11 e Decreto 7.581/11). São Paulo: Dialética, 2013. ______. O sistema de registro de preços destinado ao RDC. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, César A. Guimarães (Org.) O regime diferenciado de contratações públicas (RDC) – Comentários à Lei nº 12.462 e ao Decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2013. KRAWCZYK, Rodrigo. Contratação pública diferenciada RDC. Entendendo o novo regime - Lei nº 12.462/11. In: Âmbito Jurídico. Disponível em: < http:// www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/%20http:/www.dgmarket. com/AppData/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11678&revista_ caderno=4>. Acesso em: 17 abr. 2014. SCHWIND, Rafael Wallbach. Remuneração Variável e Contratos de Eficiência no Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC). Revista Brasileira de Direito Público. v. 36, Belo Horizonte: Fórum, 2012. os Novos MoviMeNtos sociAis e os diReitos HUMANos: A UtilizAção dA leGAl oPPoRtUNity coMo estRAtéGiA PARA MUdANçAs Político-cUltURAis coNtRAMAJoRitÁRiAs New sociAl MoveMeNts ANd HUMAN RiGHts: tHe leGAl oPPoRtUNity As A stRAteGy foR coUNteRMAJoRitARiAN PoliticAl-cUltURAl cHANGes Luciano Pereira Vieira Advogado da União em exercício da Procuradoria Seccional da União em Campinas/SP1 José Antonio Remedio Promotor de Justiça Aposentado2 SUMÁRIO: Introdução; 1 Novos movimentos sociais e a influência da Political Opportunity na definição das estratégias de mobilização; 2 A judicialização como atuação estratégica dos Movimentos Sociais (Legal Opportunity Structures versus Political Opportunity 1 Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba/SP (UNIMEP). Professor de Curso de Pós-Graduação em Direito. Foi Aluno Especial do Mestrado em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 2 Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Professor de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Promotor de Justiça Aposentado. 202 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 202-224, jan./mar. 2014 Structures); 3 O Poder Judiciário e seu papel nas mudanças político-culturais contramajoritárias como instrumento de proteção dos Direitos Humanos; Conclusão; Referências. RESUMO: O trabalho investiga uma tendência atual de participação, direta ou indireta, dos denominados Novos Movimentos Sociais na implementação dos direitos humanos, através da judicialização de questões político-culturais contramajoritárias, com a assunção do enfrentamento dessas questões pelo Poder Judiciário como poder político. Analisa o perfil dos Novos Movimentos Sociais e os motivos que os estimulam, ainda que momentaneamente, a se afastarem de suas estratégias clássicas de atuação contra-hegemônica (lobby e protesto) e a optarem pela judicialização de seus pleitos, seja pela defesa individual de seus membros, seja pela implementação de políticas públicas. Aponta que a ausência de ambiente político institucional favorável à discussão sobre as necessidades e queixas dos Novos Movimentos Sociais na agenda do Estado, somada às dificuldades de mobilização, são fatores que os conduzem à judicialização. Conclui que a utilização das estruturas de oportunidades legais pelos Novos Movimentos Sociais denota o reconhecimento do Poder Judiciário como espaço institucional formal em que o diálogo democrático com a sociedade civil e com o Estado pode viabilizar não só a alavancagem de seus frames e repertórios, mas também ensejar a formulação e a proteção de direitos que lhes são inerentes, dentre eles a implementação de políticas públicas contramajoritárias. PALAVRAS-CHAVE: Judicialização de Políticas Públicas. Novos Movimentos Sociais. Direitos Humanos. Direitos Fundamentais Coletivos. Oportunidades Legais. Oportunidades Políticas. ABSTRACT: This paper investigates a trend detected in recent times towards the direct or indirect contribution of the so-called New Social Movements to the exercise of human rights by way of the judicialization of countermajoritarian political-cultural issues through the debate of these issues by the Judicial Branch in the role of political power. It examines and delineates the profile of the New Social Movements, allowing to comprehend the motivations that drive them away, although for a moment, from their traditional strategies of counter-hegemonic maneuvers, such as lobbying and protesting, and that make they choose to judicialize their needs, aspirations or demands, either by means of the individual defense of their members or for the adoption of countermajoritarian public policies. KEYWORDS: Judicialization of Public Policies. New Social Movements. Human Rights. Collective Fundamental Rights. Legal Opportunities. Political Opportunities. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 203 iNtRodUção O presente estudo tem por objetivo analisar uma tendência que vem se verificando na atualidade, consistente na participação, direta ou indireta, dos denominados Novos Movimentos Sociais na implementação de direitos humanos, através da judicialização de questões políticoculturais contramajoritárias, individuais e coletivamente consideradas, com a assunção do enfrentamento de tais questões pelo Poder Judiciário, na qualidade de poder político. Partindo desse escopo, buscar-se-á investigar e compreender não só as características individualizadoras dos “Novos Movimentos Sociais”, como também os motivos e as condições estruturais do Estado (political opportunity structures) que acabam compelindo ou estimulandoos, ainda que momentaneamente, a abandonarem ou mitigarem suas estratégias clássicas de atuação contra-hegemônica – como o lobby e o protesto – e a optarem pela judicialização de suas necessidades ou pretensões, inclusive por meio da implementação de políticas públicas, tanto em relação aos indivíduos que os integram, como no tocante ao grupo coletivamente considerado. Quando os movimentos sociais, notadamente os relativos às minorias, não encontram ambiente político institucional favorável à inserção de suas necessidades e queixas na agenda política do Estado e, somando-se a isso, identificam dificuldade de mobilização para sua ação (falta de recursos materiais e humanos, não atração de sua temática pelo interesse coletivo, etc.), mas, por outro lado, verificam espaços institucionais que lhes franqueiam a adoção de ações legais (legal opportunity structures), acabam se valendo da judicialização como meio de alavancar suas ações e pretensões e de compelir o Estado a implementar, pela via judicial, mudanças que, na arena das disputas políticas institucionalizadas, dificilmente seriam acolhidas e implantadas, por serem contramajoritárias. O Poder Judiciário, nessa mudança de atuação estratégica dos Novos Movimentos Sociais, ganha nova roupagem, que não mais se coaduna com a clássica teoria da tripartição de poderes, passando a atuar como instrumento de aplicação das regras contramajoritárias para a preservação do Estado de Direito Democrático, bem como transformando-se em mais um espaço institucional formal do Estado em que o diálogo democrático com a sociedade civil e com os movimentos sociais torna-se viável, assegurando-se, com isso, a amplitude da governabilidade democrática. 204 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 204-224, jan./mar. 2014 Após a explanação das bases teóricas sobre as quais repousam a estrutura do presente estudo, serão elencados alguns casos emblemáticos recentemente enfrentados pela Jurisdição Constitucional brasileira, exercida pelo Supremo Tribunal Federal, nos quais não só foi descortinado um importante cenário de atuação estratégica para os movimentos sociais em situações de escassez ou inexistência de estruturas de oportunidades políticas, como também restou consolidada a franca assunção, pelo Poder Judiciário, de sua função política contramajoritária, quando em jogo a preservação de direitos e garantias de pessoas ou grupos minoritários, direitos e garantias esses carentes de regulamentação normativa favorável e expressa. 1 os Novos MoviMeNtos sociAis e A iNflUÊNciA dA PoliticAl oPPoRtUNity NA defiNição dAs estRAtéGiAs de MobilizAção Ao discorrer sobre as teorias dos movimentos sociais e sua evolução ao longo da História Ocidental, Angela Alonso recorda que a expressão movimentos sociais, na década de 1960, “foi cunhada para designar multidões bradando por mudanças pacíficas”, “desinteressadas do poder do Estado”.3 Essa nova visão lançada sobre a mobilização coletiva, não mais baseada na típica luta entre classes sociais do modelo clássico marxista, em que o emprego da revolução e da violência ganhavam graus distintivos,4 foi paulatinamente adquirindo corpo, alterando o eixo de atenção da figura do Estado para a da sociedade civil. É uma época de ebulição dos movimentos pautada por repertórios culturais e econômicos, de feição nitidamente pós-materialista, “não mais voltadas para as condições de vida, ou para a redistribuição de recursos, mas para a qualidade de vida, e para a afirmação de diversidade de estilos de vivê-la”.5 Nessa transição, as ideias de violência e revolução vão aos poucos cedendo lugar às de persuasão e de ação coletiva, e o elo entre os integrantes do movimento social começa a se corporificar a partir da formação de uma identidade coletiva baseada num interesse comum racionalmente ponderado, seja ele de cunho ético, étnico, de gênero, ambiental ou político. 3 ALONSO, Angela. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço do Debate. São Paulo: Lua Nova, n. 76, 2009. p. 49-86. 4 PICOLOTTO, Everton Lazzaretti. Movimentos Sociais: Abordagens Clássicas e Contemporâneas. Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano I, 2. ed. nov. 2007, p. 156-177. 5 ALONSO, op. cit., p. 51. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 205 O processo de mobilização dos movimentos sociais, em qualquer de suas modalidades, passa a ser fruto de uma escolha estratégica racional. Embora Alberto Melucci identifique até mesmo espaço para sentimentos e emoções na construção da identidade coletiva,6 parece-nos razoável afirmar que as opções e decisões de mobilização são marcadas preponderantemente pela racionalidade, não só quanto às questões estruturais do movimento (recursos humanos, financeiros, etc.), mas sobretudo quanto aos resultados esperados dessa experiência coletiva. Esta também aparenta ser a opinião de McAdam, Tarrow e Tilly, ao rejeitarem que a atividade do movimento social é irracional e ao afirmarem que “tal atividade é uma escolha estratégica entre outras feitas pelos atores quando é a resposta mais apropriada aos seus recursos, oportunidades e restrições”, ou seja, a atividade do movimento social é escolhida como uma alternativa, determinada pela situação, a uma diversidade de outras formas de comportamento, entre as quais ações coletivas não estruturadas, organizações de grupos de interesse e ativismo no interior de partidos políticos e instituições.7 Angela Alonso, por sua vez, esclarece que, sob a ótica da teoria do processo político (TPP), a mobilização dos movimentos sociais “baseia-se num conflito entre partes, uma delas momentaneamente ocupando o Estado, enquanto a outra fala em nome da sociedade”.8 Contudo, essas posições não seriam estanques, mas cambiáveis, razão pela qual a relação do Estado com os movimentos sociais deveria ser vista de modo diverso de como vinha ocorrendo, com novo olhar sobre as fronteiras que separam o Estado da sociedade. Ainda segundo Angela Alonso, a análise deve suplantar as barreiras convencionais que definem Estado e Sociedade como entidades coesas e monolíticas. Nesse contexto, ao invés de definir a equação como Movimentos Sociais versus Estado, “a TPP [Teoria do Processo Político] opõe ‘detentores do poder’ (os membros da polity), que têm controle ou acesso ao governo que rege uma população (incluídos os meios de repressão), e ‘desafiantes’, que visam obter influência sobre o governo e acesso aos recursos controlados pela polity”.9 6 MELUCCI, Alberto. Challenging Codes: Collective Action in the Information Age. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 80-83. 7 MCADAM, Doug; TAROW, Sidney; TILLY, Charles. Para Mapear o Confronto Político. São Paulo: Lua Nova, n. 76, 2009. p. 33. 8 ALONSO, op. cit., p. 56. 9 Ibidem. 206 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 206-224, jan./mar. 2014 Em síntese, os Novos Movimentos Sociais estão agora centrados numa identificação ideológica, e não numa composição homogênea pautada por classes, característica que viabiliza que o recrutamento ocorra nas mais variadas classes sociais.10 A atuação dos Novos Movimentos Sociais, embora tenha o lobby e o protesto como formas tradicionais de atuação, está adstrita, sob nossa ótica, ao Direito e à Lei, não se compadecendo com a violência. Nesse sentido, ao apreciar questão relativa à efetivação da reforma agrária, decidiu o Supremo Tribunal Federal brasileiro que “o respeito à lei e à autoridade da Constituição da República representa condição indispensável e necessária ao exercício da liberdade e à prática responsável da cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da ordem jurídica”, nem mesmo a atuação de movimentos sociais, qualquer que seja o perfil ideológico que ostentem.11 A exata compreensão desses Novos Movimentos Sociais e seus contornos teóricos, na verdade, comportaria uma longa e profunda digressão pelos meandros da Ciência Política, destacadamente sobre as obras e estudos produzidos, entre outros, por John D. McCarthy, Charles Tilly, Sidney Turrow, Doug McAdam, Alain Touraine, Jürgen Habermas, Manuel Castells, Alberto Melucci. Entretanto, não é este o ambiente adequado para essa análise. Aqui, o objetivo é investigar e tentar compreender os motivos e as condições estruturais do Estado que acabam compelindo ou estimulando os Movimentos Sociais, ainda que momentaneamente, a abandonarem ou mitigarem as suas estratégias clássicas de atuação contra-hegemônica (o lobby e o protesto), por uma excepcional escolha: a judicialização de suas necessidades e pretensões, em especial por meio da implementação de políticas públicas. As estratégias de lutas antes focadas nas estruturas de oportunidades políticas (political opportunity structures), como o lobby e o protesto, ganham novas arenas, sobretudo após a década de 1970, muitas delas consubstanciadas em espaços pouco antes explorados pelos movimentos sociais tradicionais. 10 BUECHLER, Steven M. New Social Movement Theories. The Sociological Quarterly, v. 36, n. 3, jun. 1995. p. 453. 11 BRASIL, 2004, p. 07. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 207 É o caso da utilização, como estratégia, das estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures), em especial por meio da judicialização de políticas públicas. Em países como o Brasil, em que há relativa facilidade de acesso às instituições formais do sistema legal do Estado, os movimentos sociais têm a seu dispor a possibilidade de utilizarem a estrutura do Poder Judiciário na intermediação dos conflitos político-culturais, sobretudo por força da carga programática e valorativa da Constituição da República de 1988, ou de apenas provocarem a judicialização por meio do contato institucional permanente com o Ministério Público, a Defensoria Pública ou as Organizações Não Governamentais (ONGs). Assim, diante de algum motivo político ou de ordem material que impeça os movimentos sociais de lograrem êxito em inserir, via lobby ou protesto, as políticas sensíveis às suas causas na agenda do Estado, sempre haverá a possibilidade paralela, direta ou indireta, de judicialização da questão. Prova disso é que muitos movimentos sociais, de modo gradativo, têm se valido desse espaço institucional para manter ativas ou reativar suas bandeiras em ambientes escassos de espaço político de atuação ou quando a pequena representatividade do grupo seja o fator inviabilizador da mobilização, como ocorre em relação às minorias. Esse aproveitamento estratégico da estrutura de oportunidades legais (legal opportunity strcutures), através do litígio judicial, muitas vezes sequer objetiva, em um primeiro momento, a obtenção de decisões judiciais favoráveis às suas queixas. Em alguns casos, até mesmo uma derrota nos tribunais poderá revelar-se útil aos propósitos do movimento social, seja pela publicização de seus frames e repertórios, seja pela inserção da sociedade na discussão política do processo judicial nos momentos que antecedem e sucedem o seu julgamento pela Corte.12 Tal discussão, em muitas hipóteses, pode culminar em decisões judiciais que representem mudanças socioculturais contramajoritárias ou, então, apenas reabrir a agenda política do Estado para o tema debatido perante o Poder Judiciário, algo que seria impensável obter num campo político-institucional desfavorável ao movimento social. 12 ANDERSEN, Ellen Ann. Out of Closets & Into the Courts: Legal Opportunity Structure and Gay Rights Litigation. Michigan: The University of Michigan Press, 2008. p. 216-218. 208 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 208-224, jan./mar. 2014 Essa nova postura vem transformando o Poder Judiciário, especialmente a Jurisdição Constitucional, que não detém competências executivas, em um espaço onde são travadas importantes discussões entre os movimentos sociais e suas forças opositoras, cujos efeitos extrapolam o campo jurídico e materializam o dinâmico embate entre as forças hegemônicas e contra-hegemônicas existentes na sociedade civil e no Estado, as quais, num ambiente democrático, podem periodicamente alternar-se nos polos. Disso igualmente resulta sua importância como instrumento de salvaguarda dessa dinâmica natural do processo político, por permitir “o livre desenvolvimento das forças sociais e políticas”.13 Afinal, consoante ressalta Angela Alonso (pautada em bases teóricas de Tarrow, Tilly e Kriesi), em estruturas de oportunidades políticas favoráveis os “grupos insatisfeitos organizam-se para expressar suas reivindicações na arena pública”.14 Porém, quando em ambiente política e materialmente hostil, meios alternativos de atuação devem ser buscados pelos movimentos sociais, dentre os quais está a judicialização de políticas públicas como ferramenta estratégica viável a esse fim. 2 A JUdiciAlizAção coMo AtUAção estRAtéGicA dos MoviMeNtos sociAis (leGAl oPPoRtUNity stRUctURes veRsUs PoliticAl oPPoRtUNity stRUctURes) McCann destaca que os estudiosos dos movimentos sociais, pelo menos até recentemente, não se mostravam preocupados em compreender o papel da lei, muito menos os juristas se revelavam interessados pelo estudo dos movimentos sociais.15 Tal quadro, todavia, vem se alterando a ponto de muitos estudiosos reconhecerem a ação legal (ou judicialização, como preferimos) como um instrumento para a mudança social, embora os juristas tenham pouco contribuído para a construção de uma teoria sobre a dinâmica do movimento social.16 13 SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 72. 14 ALONSO, op. cit., 2009, p. 55. 15 MCCANN, Michael. Law and Social Movements: Contemporary Perspectives. Annual Review of Law and Social Science, v. 2, 2006. p. 17-38. 16 Ibidem, p. 18. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 209 McCann reconhece que a ação legal fornece aos ativistas do movimento uma fonte de alavancagem institucional e simbólica contra os opositores.17 Daí a importância do estudo também dessa estratégia de luta dos movimentos sociais. Afinal, alguns movimentos sociais passaram a se valer do litígio judicial como meio de criar uma ponto de acesso institucional formal ao Estado, cujo start gera inexoravelmente consequências para ambos os lados, seja para reconhecer ou negar direitos daquele primeiro, seja para constranger ou chancelar atos ou omissões deste último.18 A imprevisibilidade desse acesso institucional formal, por intermédio do Poder Judiciário, passa a servir como meio de pressão para, no mínimo, o estabelecimento de canais de diálogo e divulgação das queixas e reivindicações que constam da agenda do movimento social e que, por ausência de um ambiente político favorável, estão alijadas da agenda estatal. Em suma, o Poder Judiciário, notadamente por meio da Jurisdição Constitucional, passa a também desempenhar um relevante papel político, algo bastante delicado para os movimentos sociais, pois, do mesmo modo que os valores pessoais dos juízes influenciarão ideologicamente o resultado do julgado, o eventual alinhamento da convicção desses julgadores com o movimento provavelmente representará mudanças na opinião pública e na da própria elite política do país.19 Muito interessante é a questão relativa à identificação das condições e do momento em que os movimentos sociais decidem utilizar das estruturas de oportunidades legais, em detrimento das estruturas de oportunidades políticas (protesto e lobby), uma vez que os últimos instrumentos são bastante importantes e marcantes em sua atuação tradicional. Hilson, em estudo publicado no Journal of European Public Policy, esquadrinhou o papel da legal opportunity para os Novos Movimentos Sociais.20 De acordo com Hilson, a estrutura de oportunidades políticas disponível aos movimentos sociais influencia diretamente na opção 17 MCCANN, op. cit., p. 29. 18 Ibidem, p. 29-30. 19 ANDERSEN, op. cit., p. 209. 20 HILSON, Chris. New Social Movements: the Role of Legal Opportunity. Journal of European Public Policy. v. 9, Iss. 2, p. 238-255, abr. 2002. DOI: 10.1080/13501760110120246. Acesso em: 13 jan. 2012. 210 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 210-224, jan./mar. 2014 pelo uso das oportunidades legais (judicialização ou litígio judicial), em detrimento dos modelos estratégicos tradicionais de luta (protesto e o lobby). A falta de oportunidade política (PO) pode “influenciar” a adoção do litígio como uma estratégia, ao invés do lobby, assim como a escolha do protesto como uma estratégia pode ser “influenciada” pela escassez de oportunidades política e legal.21 Entretanto, a escolha da estratégia (lobby, protesto ou litígio judicial), ainda segundo Hilson, não ocorre apenas a partir da análise do quanto é ou não favorável a oportunidade política ou a oportunidade legal, já que outros fatores também a influenciam, como a estrutura do movimento social, a identidade política, seus ideais, valores e recursos disponíveis.22 Além disso, mesmo numa estrutura de oportunidades políticas favoráveis – como o fácil acesso à estrutura institucional formal do Estado por meio de partidos políticos –, é possível que não haja receptividade política às reivindicações do movimento social, por se revelarem contramajoritárias, fato esse que poderá abrir flanco à utilização do protesto ou do litígio, a depender não só das oportunidades legais disponíveis, mas novamente daqueles fatores acima elencados. Em resumo, a opção pelo litígio judicial, como estratégia de atuação dos movimentos sociais, não é uma decisão simples. Ela exige muita maturidade e sagacidade dos atores envolvidos, sobretudo pelos riscos de esvaziamento que uma decisão judicial favorável ou desfavorável poderá engendrar em termos de mobilização futura.23 De qualquer modo, o ponto pacífico a ser afirmado é que os movimentos sociais, cada vez mais, têm reconhecido no Poder Judiciário seu papel de ator político24 na estrutura formal institucional do Estado, e disso têm se aproveitado, embora ainda com certa reticência, para, a partir das decisões judiciais, influenciar a tomada de decisões políticas pelos demais Poderes Legislativo e Executivo, bem como para implementar mudanças culturais na esfera privada da sociedade civil. 21 HILSON, op. cit., p. 239. 22 Ibidem, p. 240-242. 23 ANDERSEN, po. cit., p. 216-218. 24 WILSON, Bruce; CORDERO, Juan Carlos Rodríguez. Legal Opportunity Structures and Social Movements. In: Comparative Political Studies. v. 39, n. 03. abr. 2006, p. 325-351. Disponível em: <http:// cps.sagepub.com>. Acesso em: 02 set. 2009. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 211 O jurista Streck, ao reconhecer a relação existente entre Direito e Política, ressalta a importância da judicialização como forma de compelir o Estado ao cumprimento da Constituição, qualificando essa atuação como uma modalidade de “luta política”. Sendo a Constituição o elo que liga a Política ao Direito, o grau de dirigismo e da força normativa da Constituição “dependerá não somente, mas também, da atuação da sociedade civil, instando as instâncias judiciárias ao cumprimento da Constituição, mediante o uso dos diversos mecanismos institucionais (ações constitucionais, controle difuso e concentrado de constitucionalidade)”, isto também implicando em lutas políticas, bastando para tanto ver “o considerável número de ações constitucionais intentadas por partidos políticos”.25 Como os Novos Movimentos Sociais possuem reivindicações de cunho pós-materialista, voltadas para a mudança cultural da sociedade e não apenas de suas leis – reconhecimento de identidades e estilos de vida, como os movimentos ambientalistas e os direitos dos homossexuais –, Angela Alonso, valendo-se de premissas habermasianas, acentua que eles passam a se caracterizar como “formas de resistência à colonização do mundo da vida, reações à padronização e à racionalização das interações sociais e em favor da manutenção ou expansão de estruturas comunicativas, demandando qualidade de vida, equidade, realização pessoal, participação, direitos humanos”.26 Em síntese, como afirmado anteriormente, as estratégias de lutas, antes focadas nas estruturas de oportunidades políticas (political opportunity structures), ganham, sobretudo após a década de 1970, novos palcos ou arenas, muitos deles consubstanciados em espaços pouco antes explorados pelos movimentos sociais tradicionais, como se verificou com a utilização das estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures) como estratégia de atuação e ação. Tal postura transforma os tribunais, que não detêm competências executivas, em um espaço onde serão travadas importantes discussões entre os movimentos sociais e suas forças políticas opositoras, que extrapolam o campo jurídico e no qual serão buscadas, muitas vezes, a obtenção de decisões que representam mudanças socioculturais contramajoritárias, algo impensável de ser atingido num campo meramente político-institucional desfavorável. 25 STRECK, Lênio Luiz. Teoria da Constituição e Jurisdição Constitucional. Caderno de Direito Constitucional: Módulo V. Porto Alegre: EMAGIS, 2006. p. 40, grifo do autor. 26 ALONSO, op. cit., 2009. p. 62. 212 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 212-224, jan./mar. 2014 Esse quadro passa a exigir dos Novos Movimentos Sociais a atualização das estratégias até então utilizadas para a consecução das mudanças por eles pretendidas, já que o lobby e o protesto, como formas de expressão das estruturas de oportunidades políticas, não são mais as únicas ferramentas viáveis para a busca das mudanças, passando a fazer parte de sua estratégia, também, as estruturas de oportunidade legais. 3 o PodeR JUdiciÁRio e seU PAPel NAs MUdANçAs Político-cUltURAis coNtRAMAJoRitÁRiAs coMo iNstRUMeNto de PRoteção dos diReitos HUMANos A utilização das estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures), principalmente através da judicialização de políticas públicas patrocinadas direta ou indiretamente pelos movimentos sociais, de um lado, politiza a justiça e, de outro lado, judicializa a política. O papel político do Poder Judiciário, especialmente da Jurisdição Constitucional, vem ganhando destaque no cenário do Estado de Direito Democrático, sobretudo quando sua atuação implica diretamente em intervenção na formulação ou implementação de políticas públicas, em especial contramajoritárias. Política pública é programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados (processo eleitoral, de planejamento, de governo, orçamentário, legislativo, administrativo e judicial), “visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”.27 O Supremo Tribunal Federal fixou o entendimento no sentido de que é função institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas públicas quando os órgãos estatais competentes, em razão do descumprimento dos encargos político-jurídicos de sua responsabilidade, vierem a comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais ou coletivos impregnados de estatura constitucional, mesmo que derivados de cláusulas de conteúdo programático.28 27 BUCCI, Maria Paula Dallari. O Conceito de Política Pública em Direito. In.: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 39. 28 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário – AgRgRE n. 367.432PR. Relator: Ministro Eros Grau, Segunda Turma, 20 de abril de 2010. Brasília, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 86, p. 83, 14 maio 2010. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 213 É cada vez mais notório que o Poder Judiciário, portanto, tem crescentemente participado do processo político democrático do país, não apenas no bojo de suas manifestações nos julgamentos das ações e recursos judiciais, mas destacadamente pela emissão de opinião sobre os mais variados temas públicos, mesmo quando ainda não judicializados. Esse papel político tem sido denominado como ativismo judicial que, embora criticado, tem gerado a produção de inúmeras decisões políticas de relevo para o país. Streck reconhece e ressalta a importância e legitimidade da Jurisdição Constitucional na aplicação das regras contramajoritárias para a preservação do Estado de Direito Democrático, destacando a sua proeminência nas atuais relações de poder do Estado, já que não mais limitado à clássica função de checks and balances, mas segundo “uma atuação que leve em conta a perspectiva de que os valores constitucionais têm precedência mesmo contra textos legislativos produzidos por maiorias eventuais”.29 Ainda segundo Streck, “a jurisdição constitucional é igualmente uma invenção destinada a dar eficácia a los frenos anclados en la Constituición”, porquanto “de nada adiantaria a existência de regras contramajoritárias se não houvesse mecanismos para fazer valê-los”.30 E o mais interessante disso tudo é que, ao assumirem esta nova veste, numa transição do Estado Legislativo para o Estado Constitucional de Direito,31 “os tribunais ampliam o leque de atores que podem influenciar a implementação de políticas públicas, mesmo depois de elas serem aprovadas por amplas maiorias legislativas”.32 A abertura política dos Tribunais transforma-os em mais um espaço institucional formal do Estado em que o diálogo democrático com a sociedade civil e com os movimentos sociais torna-se viável, assegurando-se, com isso, a governabilidade democrática. 29 STRECK, op. cit., p. 45. 30 STRECK, op. cit.,p. 43-44. 31 VÁZQUEZ, Rodolfo. Justicia Constitucional y Democracia: la independencia judicial y el argumento contramayoritario. In: CARBONELL, Miguel; JARAMILLO, Leonardo García. El Canon Neoconstitucional. Madrid: Trotta, 2010. p. 381. 32 TAYLOR, Matthew MacLeod. O Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, ano 50, n. 2, 2007. p. 234. 214 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 214-224, jan./mar. 2014 Com essa abertura, o Poder Judiciário, antes instituição eminentemente técnico-jurídica, pluraliza-se política e culturalmente e, por conseguinte, legitima-se para o debate democrático, em especial quando este envolver as difíceis escolhas contramajoritárias. O cientista político Matthew MacLeod Taylor, estudioso do papel do Poder Judiciário na formulação de políticas públicas, destaca em um de seus ensaios que a atuação política dos tribunais não se limita à intervenção judicial de políticas públicas depois de formuladas pelo Executivo ou Legislativo. Em verdade, essa intervenção (“o timing da intervenção”, em suas palavras) pode ocorrer antes mesmo da existência de uma determinada política pública, porquanto “os integrantes do Judiciário brasileiro têm capacidade de influenciar a discussão das políticas públicas antes de elas serem aprovadas, sinalizando suas preferências e as fronteiras que as mudanças provocadas por essas políticas podem atingir”.33 A judicialização de políticas públicas pelos movimentos sociais geralmente ocorre em situações em que são verificadas estruturas de oportunidades legais favoráveis em contraposição às estruturas de oportunidades políticas escassas ou inexistentes. Assim, quando o Poder Judiciário abre-se como espaço público do debate democrático, os movimentos sociais passam a dispor de mais um instrumento de reverberação de seus frames e repertórios, cuja importância ganha realce em momentos de ostracismo de suas queixas e reivindicações na agenda política estatal. Com isso, o acolhimento de seu pleito ou pretensão poderá representar o clímax de sua atuação estratégica, embora a simples abertura de um canal de diálogo direto com a sociedade e com o aparato formal do Estado já terá representado uma importante conquista. Esse fenômeno somente é possível de ser verificado, como já pontuado, numa sociedade pautada por valores democráticos, dentre os quais está a compreensão de que se vive numa sociedade aberta de intérpretes da Constituição e, por isso, não é possível estabelecer, numerus clausus, os legítimos intérpretes da Constituição, havendo necessidade de se admitir, nesse processo, a mais ampla participação social. Afinal, “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos”.34 33 VÁZQUEZ, op. cit., p . 241. 34 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 13. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 215 Nesse contexto, um emblemático exemplo de legítimo exercício da função contramajoritária do Poder Judiciário, asseguradora de direitos e garantias a grupos minoritários frente à injustificada omissão estatal, foi o julgamento conjunto proferido em 5 de maio de 2011 pelo Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte Jurisdicional do Brasil, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 132-RJ e da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI n. 4.277-DF. No caso em tela, estava em julgamento o direito dos casais homossexuais em terem reconhecido o direito à pactuação formal da união estável, tal qual já era assegurado aos casais heterossexuais, mesmo inexistindo norma legal expressa disciplinando referida questão em relação aos casais homossexuais. Note-se que esse direito, bem como outros decorrentes da união civil entre homossexuais, não lograva êxito em regular tramitação legislativa perante o Congresso Nacional brasileiro. Embora existissem inúmeros projetos legislativos voltados para essa temática, a verdade é que eles não encontravam ressonância no campo majoritário da política nacional, notadamente conservadora. Na oportunidade, ficou assentado que o Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de guardião da Constituição por força do art. 102 da Constituição Federal, poderia desempenhar função contramajoritária, “em ordem a dispensar efetiva proteção às minorias contra eventuais excessos (ou omissões) da maioria”, isto porque “ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, à autoridade hierárquico-normativa e aos princípios superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado”.35 O julgado em questão sepultou, em termos jurisdicionais, qualquer interpretação preconceituosa ou discriminatória do disposto no art. 1.723 do Código Civil de 2002, para dele excluir qualquer significado que implicasse em inviabilizar o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, como família, na mesma extensão em que é reconhecida a união estável heteroafetiva. É verdade que já existiam manifestações judiciais de outras instâncias jurisdicionais por todo o Brasil, até mesmo mais antigas, na 35 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI n. 4.277/DF. Relator: Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, Brasília, 05 de maio de 2011, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 198, p. 20-21, 13 out. 2011c. 216 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 216-224, jan./mar. 2014 mesma linha do que restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Entretanto, é inegável a carga simbólica e o peso dessa decisão emanada da mais alta Corte do país em termos culturais e políticos, sem contar o alcance social dos efeitos desse julgado, realçado pela ampla divulgação do referido julgamento pelos meios de comunicação. A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal representou, ainda que implicitamente, uma importante vitória para os movimentos sociais voltados para o reconhecimento dos direitos dos homossexuais, embora não tenham sido eles os autores diretos da referida provocação judicial, inclusive por ausência de legitimidade ativa constitucional para tanto (Lei 9.882, de 3-12-1999, art. 2º, I; CF/88, art. 103), sendo inegável, porém, sua participação e apoio à demanda judicial. O julgado em destaque possui um valor simbólico muito maior do que se pode, a princípio, aferir. Afinal, o Supremo Tribunal Federal, com essa decisão, fortaleceu as estruturas de oportunidades legais disponíveis às minorias e aos grupos vulneráveis, sejam eles corporificados ou não em movimentos sociais, mesmo sem sua provocação direta, porquanto expressamente consignou, com grande vigor, sua função jurídico-política contramajoritária. A partir dessa repercutida auto-compreensão de sua função estatal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, o STF reforçou a necessidade de também reconhecê-la como poder político do Estado, quando esteja em jogo o eventual abuso da maioria ou a injustificada omissão estatal na formulação e implementação de ações ou medidas contramajoritárias. A compreensão do alcance dessa afirmação é deveras necessária, pois dificilmente movimentos sociais que representem minorias ou grupos vulneráveis conseguem introduzir na pauta do Congresso Nacional ou na agenda do Poder Executivo suas mais importantes demandas, justamente pelo seu déficit de representatividade, sobretudo em termos eleitorais. Afinal, uma concepção majoritária de democracia pode ser desvirtuada facilmente para uma ditadura da maioria. Conforme Eduardo Appio, a regra da maioria, nas sociedades pós-modernas, imersas em um universo marcado pela tecnologia da informação ou pela comunicação social, pode facilmente ser convertida em ditadura das maiorias. As minorias, de uma maneira geral, “por ausência de força política suficiente em sua representação no Congresso, seriam reféns permanentes da intolerância das massas”. Numa sociedade em que Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 217 se “aspira o pluralismo como um dos seus principais objetivos históricos, a regra da maioria deve ser revista, o que significa dizer que o Judiciário tem a missão de preservar um espaço intangível da individualidade humana”.36 Relativamente ao direito das minorias, a igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias, ou seja, o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença.37 Não se admite que a maioria, mediante seus representantes eleitos, possa “democraticamente” decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual nutre alguma eventual aversão. Cabe prioritariamente ao Poder Judiciário, e não ao Legislativo, exercer um papel contramajoritário e protetivo a respeito, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre objetivando a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias ou das maiorias. Ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece nessa hipótese, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.38 Conforme expressado em voto pelo Min. Celso de Mello quando do julgamento do AgRgRE 477.554/MG, é assegurado às minorias, em sede jurisdicional, “a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os direitos fundamentais que a todos, sem distinção, são assegurados, pois ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República”.39 Em síntese, “constitui princípio básico de hermenêutica relativo aos direitos fundamentais que, onde a Constituição não limita, não pode a norma infraconstitucional limitar”.40 36 APPIO, Eduardo. Direito das Minorias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 41. 37 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial – REsp n. 1.183.378-RS. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, Brasília, 25 de outubro de 2011. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 980, 1o fev. 2012a. 38 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, op. cit. 39 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário – AgRgRE n. 477.554MG. Relator: Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, Brasília, 16 de agosto de 2011, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 164, p. 55, 25 de ago. 2011a. 40 REMEDIO, José Antonio. Mandado de segurança individual e coletivo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 350. 218 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 218-224, jan./mar. 2014 Por outro lado, também é inegável que decisões judiciais como a proferida pelo Supremo Tribunal Federal acabam por expor as feridas de um grande contraste entre os textos normativos e os valores albergados pela sociedade. E isso é mais um ponto a ser sopesado pelos Novos Movimentos Sociais na utilização das estruturas de oportunidades legais num contexto político desfavorável. Nesses casos, os tribunais acabam, muitas vezes, compelidos à transposição das raias de suas funções típicas – dentre elas, a de expungir do seio social as normas jurídicas ilegais ou inconstitucionais – para adotar uma postura próxima ao do legislador positivo, como que num apelo ao legislador ordinário para que proceda às mudanças necessárias à adequação dos textos legais à realidade social em mutação. O recado, portanto, que emana do julgamento das ADPF n. 132-RJ e ADI n. 4.277-DF, é o de que também é possível, pela atuação dos Novos Movimentos Sociais, o estabelecimento, pela via judicial, sobretudo em sede de controle concentrado de constitucionalidade, de mudanças de valores da sociedade a médio e longo prazos. É preciso destacar, porém, que embora existam no Brasil estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures) relativamente favoráveis aos Novos Movimentos Sociais, especialmente pela possibilidade de contato institucional com diversos órgãos públicos, entre os quais o Ministério Público e a Defensoria Pública, infelizmente seu acesso direto à Corte Suprema (STF), pelos movimentos sociais, não é uma realidade, já que somente um limitado e taxativo rol de legitimados ativos detêm essa possibilidade (Constituição Federal, art. 103). Em suma, o acesso direto à Suprema Corte brasileira, pelos movimentos sociais, para o exercício do controle concentrado de constitucionalidade, não está assegurado por ausência do requisito da legitimidade processual (standard requirement). Por isso, esse acesso dependerá sempre, - ao menos até que sobrevenha alteração via emenda constitucional ampliativa -, das relações institucionais das minorias, dos grupos vulneráveis e dos movimentos sociais, com outras instituições estatais, como o Ministério Público e a Defensoria Pública ou, ainda, das estruturas de oportunidades políticas (political opportunity structures) disponíveis, como o apoio, entre outros, de partidos políticos, confederações sindicais e governadores de Estado, dentre outros. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 219 Embora destituídos de legitimidade ativa para o exercício do controle concentrado de constitucionalidade, é possível, por meio desse contato institucional, que as minorias ou os Novos Movimentos Sociais acabem por conseguir espaço para manifestação perante a Suprema Corte através de outros mecanismos, como a participação em audiências públicas, o ingresso na ação como amicus curiae ou o fornecimento direto de informações relevantes aos julgadores, através de memoriais escritos. Foi o que se constatou, por exemplo, em outros julgamentos proferidos recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, que contaram com a participação de movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs) na condição de debatedores em audiência pública ou, ainda, admitidos como amicus curiae para a realização de sustentação oral perante o Plenário da Corte. Entre tais julgamentos podem ser citados a ADPF n. 54-DF, cujo objeto era a análise da constitucionalidade da interrupção da gravidez de feto anencéfalo como preceitos da dignidade da pessoa humana e dos direitos de saúde, sexuais e reprodutivos das mulheres, e a ADPF n. 186-DF, que versava sobre a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa de reserva de vagas em Universidades Públicas - política de cotas étnico-raciais. Além dessa participação, os movimentos sociais diretamente interessados no julgamento dessas ações permaneceram constantemente no foco da mídia nacional enquanto a apreciação da causa pelo Supremo Tribunal Federal não ocorria. Com isso, independentemente do resultado que se obteria com o julgamento, certo é que a discussão política que interessava aos movimentos sociais sobre os temas contramajoritários que seriam enfrentados pela Suprema Corte já haviam se alastrado por todo o país, pluralizando o debate. Todo esse percurso, todavia, se mal planejado ou mal sucedido, pode se tornar uma via crucis e um retorno às modalidades tradicionais de manifestação dos movimentos sociais típicos. Afinal, se os novos movimentos não tiverem relativo acesso às instâncias formais do Estado por meio do lobby ou do protesto, dificilmente lograrão êxito na assunção de seus pleitos diretamente perante o STF por iniciativa de algum dos legitimados ativos previstos no art. 103 da Constituição Federal de 1988. Por outro lado, como bem apontado por Andersen, o aumento das oportunidades legais não se traduz automaticamente em litígios exitosos, 220 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 220-224, jan./mar. 2014 já que “mudanças na estrutura de oportunidades legais propiciam oportunidades de ação, não a ação propriamente dita”.41 Esse êxito, mesmo diante de precedentes judiciais, vai sempre depender da “habilidade dos atores do movimento social em reconhecer e responder às oportunidades apresentadas”,42 sendo que uma das facetas dessa habilidade é a de saber tirar proveito político desses julgados de modo não a potencializar o número de opositores, mas de neutralizá-los e, dessa forma, incrementar o apoio da sociedade como um todo, inclusive da elite política do país.43 Os motivos dessa ponderação decorrem novamente das observações feitas por Andersen, sobre os efeitos que as decisões judiciais, em caso de vitória ou derrota, podem provocar sobre o movimento social. Ou seja, “as vitórias judiciais podem, às vezes, reverter em perdas políticas, enquanto que derrotas judiciais podem ser usadas para avançar objetivos políticos”.44 É cediço que o sistema legal constrange os atores e eles reagem a isso, seja politicamente, seja pela mudança da própria estrutura de oportunidades legais. Logo, os litígios judiciais promovidos por minorias ou pelos Novos Movimentos Sociais – ou em prol deles – são realmente de consequências imprevisíveis, disso decorrendo a necessidade de a utilização dessa estratégia de atuação ser devidamente sopesada, sob pena de grave risco não só à perpetuação do grupo ou do movimento social como ação coletiva, como também de acabar sendo literalmente atropelado por seus próprios atos impensados. De qualquer modo, essa observação denota como o Poder Judiciário adquiriu importância política na eleição dos rumos dos Novos Movimentos Sociais. Até bem pouco tempo atrás, ele era visto apenas como um órgão conservador e refratário às mudanças contramajoritárias. Atualmente, o Poder Judiciário, embora ainda não tenha se desgarrado totalmente dessa pecha por parte dos movimentos sociais, tem se revelado uma das mais importantes facetas das estruturas de oportunidades legais do Estado, por servir, em muitos casos, como um espaço aberto para o diálogo institucional entre a sociedade civil, os 41 ANDERSEN, op. cit., p. 215. 42 Ibidem. 43 DELLA PORTA, Donatella; DIANI, Mario. Social Movement: an Introduction. 2. ed. Oxford: Blackwell, 2006. p. 137. 44 ANDERSEN, op. cit., p. 217. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 221 movimentos sociais e o Estado, sobretudo em momentos de escassez ou inexistência de estruturas de oportunidades políticas. 4 coNclUsão Os movimentos sociais, tradicionalmente, tem-se utilizado da estratégia da political opportunity structures, como o lobby e o protesto, na busca de realização de suas queixas, necessidades, pretensões ou reivindicações. Os Novos Movimentos Sociais, por sua vez, sem prejuízo da political opportunity structures, tem se valido, cada vez mais, direta ou indiretamente, da estratégia das estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures) na busca de realização de seus pleitos, especialmente mediante a judicialização de suas pretensões. Esse modo de atuação revela-se como uma nova estratégia à disposição dos movimentos sociais, a par dos métodos clássicos de atuação contra-hegemônica, que são o lobby e o protesto, diante de situações momentâneas de escassez ou insuficiência de estruturas de oportunidades políticas (political opportunity structures) para a alavancagem de seus frames e repertórios perante a agenda estatal. A utilização das estruturas de oportunidades legais pelos Novos Movimentos Sociais denota o reconhecimento do Poder Judiciário como poder político, ou seja, um espaço institucional formal em que o diálogo democrático com a sociedade civil e com o Estado ganha corpo e viabilidade, sobretudo em termos de formulação ou implementação de medidas ou ações contramajoritárias. Afinal, é cada vez mais corrente a participação do Poder Judiciário no processo político democrático do país, inclusive quanto a temas de grande relevo nacional ainda não judicializados, o que o transforma num fértil ambiente para a propagação e pluralização do debate político. É notório como determinadas ações judiciais ganham espaço nas mídias de massa, principalmente quando dão entrada perante a Jurisdição Constitucional, potencializando horizontalmente o alcance do referido debate. No Brasil, a relativa facilidade de acesso às estruturas de oportunidades legais acaba por estimular, de modo gradativo, que os Novos Movimentos Sociais passem a se utilizar do Poder Judiciário para a pluralização e intermediação do conflito político-cultural contrahegemônico, mediante a judicialização dos temas que lhe são mais caros e de difícil inserção na agenda política do Estado. Essa judicialização, no 222 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 222-224, jan./mar. 2014 entanto, nem sempre se dá por atuação direta dos movimentos sociais, sendo também possível e viável que ocorra mediante provocação ou interposição de terceiros, entre os quais, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as Organizações Não Governamentais (ONGs) e os Partidos Políticos. Destarte, pode-se afirmar que os recentes julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54-DF, 132-RJ e 186-DF, bem como da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277-DF, que contaram com efetiva participação dos Novos Movimentos Sociais dentro e fora dos processos judiciais, estão a demonstrar, inclusive pelos resultados contramajoritários desses julgados, uma nova faceta dos embates democráticos travados pelas forças hegemônicas e contra-hegemônicas: desta vez, estão pautados por repertórios culturais e econômicos, de feição nitidamente pós-materialista, e o cenário de seu desenvolvimento ganhou nova arena, o Poder Judiciário. RefeRÊNciAs ANDERSEN, Ellen Ann. Out of Closets & Into the Courts: Legal Opportunity Structure and Gay Rights Litigation. Michigan: The University of Michigan Press, 2008. ALONSO, Angela. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço do Debate. São Paulo: Lua Nova, n. 76, 2009. 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Relator: Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, Brasília, 12 de abril de 2012. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 77, p. 44, 16 abr. 2012b. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 223 ______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 186/DF. Relator: Ministro Ricardo Levandowski, Tribunal Pleno, Brasília, 26 de abril de 2012. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 86, p. 19-20, 03 mai. 2012c. ______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 132/RJ, Relator: Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, Brasília, 05 de maio de 2011. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 198, p. 21-22, 13 out. 2011b. ______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI n. 4.277/DF. Relator: Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, Brasília, 05 de maio de 2011, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 198, p. 20-21, 13 out. 2011c. ______. 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A racionalidade argumentativa da jurisdição constitucional justificada pelos diálogos institucionais transnacionais; 3 Conclusão; Referências. 1 2 Gostaria de agradecer às graduandas em Direito do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) Juliana Bastos França David e Mariana Americano do Brasil Granha pelo apoio fundamental ao desenvolvimento e arranjo final deste texto. Doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em International Environmental Law pela United Nations Institute for Training and Research (UNITAR) com extensão em Private International Law pela Hague Academy of International Law (HAIL) e em Inte
A TUTELA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NO BRASIL: UMA REFLEXÃO INICIAL SOBRE UM CASO DE JUDICIALIZAÇÃO1 THE PROTECTION OF CULTURAL IMMOVABLE HERITAGE IN BRAZIL: A INITIAL REFLECTION ABOUT JUDICIAL CASE Monica Teresa Costa Sousa2 Paulo Fernando Soares Pereira3 1 O presente artigo é uma análise inicial de uma pesquisa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Como reflexão inicial, não há pretensão de apresentação de respostas aos problemas discutidos, mas somente refletir a respeito da necessidade de discussão em torno de maior efetividade da política patrimonial, em vez de se trilhar o caminho da judicialização, daí a razão de escolha do imóvel denominado Ferro de Engomar, objeto de uma Ação Civil Pública, como representativo da problemática. 2 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Docente do Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça (PPGDIR/UFMA). Avaliadora do MEC/INEP. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Direito e Desenvolvimento e do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP) “Negro Cosme”. 3 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça (PPGDIR/ UFMA). Procurador Federal com exercício no Estado do Maranhão. Professor Universitário junto ao Departamento de Direito da Faculdade Estácio São Luís. 254 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 254-272, jan./mar. 2014 O patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em certificar a identidade e em afirmar valores, além da celebração de sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica. Nesse aspecto é que a história parece, com tamanha frequência, ‘morta’, no sentido corrente. Mas, ao contrário, o patrimônio é ‘vivo’, graças às profissões de fé e aos usos comemorativos que o acompanham. Dominique Poulot (2009, p. 12). SUMÁRIO: Introdução; 1 Perspectiva social e jurídica de proteção do patrimônio cultural imobiliário; 2 Judicialização, obstáculos processuais e deterioração do patrimônio cultural imobiliário; 3 A uma reflexão inicial sobre um caso de judicialização da tutela patrimonial; 4 Conclusão; Referências. RESUMO: Objetiva-se com o presente trabalho fomentar a discussão em torno da proteção do patrimônio cultural no Brasil. A discussão aborda, dessa forma, as razões sociais e jurídicas de proteção do patrimônio cultural, as dificuldades encontradas para se tutelar tal espécie de interesse difuso, em momento no qual houve uma explosão de direitos, bem como aborda a inexistência de monopólio estatal protetivo e a necessidade de substituição da judicialização por novas formas de soluções de litígios, a exemplo de políticas públicas patrimoniais preventivas. O artigo encerra apresentando uma reflexão inicial a respeito da pouca efetividade das medidas judiciais concedidas contra particulares, para se tutelar o patrimônio histórico imobiliário, tendo como exemplo o imóvel denominado Ferro de Engomar, localizado no Centro Histórico da cidade de São Luís. PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural no Brasil. Judicialização. Inefetividade de medidas judiciais. Políticas públicas e Patrimônio Cultural. ABSTRACT: The aim of the present work is to raise an issue towards protection of cultural heritage in Brazil. The discussion approaches the social and legal reasons for public heritage protection, the difficulties faced on implementing diffuse rights, in a moment when a boom of these rights has come about, by also pointing the inexistence of a state protective monopoly and the need of substitution of judicial control for new ways of solving disputes, such as preventive estate public policies. The article ends showing a initial reflection towards the low effectiveness the difficulties faced by the institutions of Justice Systems, before the Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira 255 low effectiveness of the judicial measures applied against individuals in order to protect real state public heritage, focusing as a case study the building known as “Ferro de Engomar”, located in São Luís town. KEYWORDS: Cultural heritage in Brazil. Judicial control. Low effectiveness of judicial measures. Public policies on cultural heritage. INTRODUÇÃO Almejando a tutela de bens culturais constitucionalmente protegidos, as Instituições dos Sistemas de Justiça buscam, através de mecanismos processuais, soluções capazes de efetivar tal comando, o que nem sempre se mostra suficiente. Dessa constatação surge o objetivo do presente trabalho: discutir as razões da tutela jurídica do patrimônio cultural no Brasil, refletindo, ao final, de forma sucinta, a respeito de um caso de judicialização, no qual se apresenta o exemplo do imóvel denominado Ferro de Engomar, como representativo da problemática. Não é pretensão do trabalho esgotar a discussão em torno de respostas à problemática da falta de efetividade da tutela coletiva patrimonial, apresentando-lhe as suas causas e dando-lhe as respostas. O pressuposto do trabalho parte da premissa segundo a qual a política patrimonial deve ser discutida e efetivada em sua integralidade, sem arremedos, na instância competente, órgãos e entidades responsáveis e sociedade civil, evitandose, de forma desnecessária, a judicialização. Se a política patrimonial não funciona ou não se mostra adequada, de pouco adiantará a judicialização. O avanço teórico almejado pretende, necessariamente, dialogar com diversos marcos, sem se arvorar em perspectiva específica, sendo necessário, inclusive, que se converse com outras ciências, já que se refletirá a respeito da insuficiência das soluções processuais encontradas pelas Instituições do Sistema de Justiça na tentativa de se tutelar o patrimônio cultural imobiliário. A discussão passa, dessa maneira, pela não efetivação ou insuficiência das políticas públicas patrimoniais, que, de maneira similar a outras, acabam desaguando no Judiciário, igualmente incapaz de resolver conflitos que têm raízes, talvez, na insuficiência administrativa e em causas que fogem à previsibilidade das fórmulas jurídicas tradicionais: enquanto as Instituições do Sistema de Justiça se debatem a respeito dos meios processuais mais eficazes de tutela, os autos crescem e o patrimônio imobiliário padece. 256 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 256-272, jan./mar. 2014 Importante registrar que a pretensão da presente reflexão é apenas refletir inicialmente sobre caso no qual o caminho processual não tem se mostrado suficiente, contribuindo-se, assim, para que se busquem novas soluções que devem ser encontradas nas próprias políticas públicas patrimoniais, seja na efetivação das já existentes ou em outras que possam ser instituídas. Por oportuno, registre-se que o trabalho não se preocupará em traçar os rumos da política patrimonial, ou seja, relatar todos os seus problemas e apresentar os respectivos remédios, mas apenas em dizer que a questão deve ser objeto de discussão nas instâncias adequadas e não no Judiciário. Após definido o objeto, lançado o objetivo e problematizada a questão, desenvolveu-se o trabalho a partir de uma perspectiva que confirme a hipótese, iniciando-se com a discussão a respeito da proteção jurídica do patrimônio cultural imobiliário (imóveis tombados, no caso), para, em seguida, trazer a discussão sobre a judicialização dos conflitos patrimoniais e os obstáculos processuais enfrentados, encerrando-se, por fim, com a reflexão inicial em torno do caso Ferro de Engomar, exemplo que bem sintetiza as dificuldades enfrentadas pelas Instituições do Sistema de Justiça na tentativa de efetivação da tutela constitucional do patrimônio cultural. 1 PERSPECTIVA SOCIAL E JURÍDICA DE PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMOBILIÁRIO Patrimônio, etimologicamente, é palavra de origem latina, patrimonium, significando tudo o que pertencia aos pais, pater ou pater familias, pai de família, advindo daí a noção daquilo que remonta aos nossos pais, origens e raízes4, sendo que, na nossa vida cultural, raros são os termos que possuem um poder de evocação tão grande quanto patrimônio, pois ele parece acompanhar a multiplicação dos aniversários e das comemorações, característica de nossa atual modernidade5. Como bem ressalta Dominique Polout6, em verdade: 4 FUNARI, Pedro Paulo Abreu; PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Patrimônio histórico e cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 10-11. 5 POLOUT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do monumento aos valores. São Paulo: Estação Liberdade, 2009, p. 9. 6 POLOUT, op. cit., p. 203. Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira 257 A noção de patrimônio implica um conjunto de posses que devem ser identificadas como transmissíveis; ela mobiliza um grupo humano, uma sociedade, capaz de reconhecê-las como sua propriedade, além de demonstrar sua coerência e organizar sua recepção; ela desenha, finalmente, um conjunto de valores que permitem articular o legado do passado à espera, ou a configuração de um futuro, a fim de promover determinadas mutações e, ao mesmo tempo, de afirmar uma continuidade. Esboçadas progressivamente por dispositivos de enquadramento de artefatos, lugares e práticas, a diversas configurações desdobram-se através das sociabilidades que as cultivam, das afinidades que se estabelecem por seu intermédio, além das emoções e dos saberes que se experimentam nesse contexto. Além disso, a noção de patrimônio remonta à construção dos Estados Nacionais7, iniciando, em especial após a eclosão da Revolução Francesa de 1789 (momento no qual houve a necessidade da invenção de um conjunto de cidadãos que deveriam compartilhar uma mesma língua, cultura, origem e território, utilizando-se, para tanto, de políticas educacionais que fossem capazes de difundir, já nas crianças, a ideia de pertencimento a uma nação8) e atingindo seu ápice entre 1914 a 1945, quando as duas Grandes Guerras Mundiais aviventaram o sentimento de nacionalismo9. Com o término da II Grande Guerra Mundial e como forma de se reconhecer a diversidade humana e ambiental, como valor a ser promovido por todos, e com o objetivo de tutelar os bens de natureza cultural, instituíram-se vários instrumentos jurídicos em nível internacional, as chamadas cartas patrimoniais, destacando-se a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (17 de outubro a 21 de novembro de 1972), da Conferência Geral das Nações Unidas. 7 Para uma análise mais detida sobre a construção do conceito de patrimônio, cf. CHOAY, Francoise. A alegoria do patrimônio. 4. ed. São Paulo: Estação Liberdade – UNESP, 2006. 8 Eric Hobsbawn lembra que “o objetivo e a característica das ‘tradições’, inclusive as inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas, tais como a repetição. O ‘costume’, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme expresso na história”. A invenção das tradições. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 10. 9 FUNARI; PELEGRINI, op. cit., p. 15-21. 258 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 258-272, jan./mar. 2014 Tal Convenção representa importante instrumento de proteção de bens jurídicos que fogem ao aspecto particular, regional ou até mesmo nacional, inserindo-se sua proteção em âmbito internacional. A Convenção traz a definição de patrimônio cultural (art. 1º) e natural (art. 2º), sendo que, neste trabalho, interessa, precipuamente, a definição do primeiro, já que se está a tratar de patrimônio cultural imobiliário (imóveis com valores históricos e arquitetônicos reconhecidos). Para os fins da Convenção, são considerados “patrimônio cultural”: a) os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; b) os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; c) os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza assim como áreas, incluindo os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. Já no Brasil, os antecedentes jurídicos mais significativos10, em nível legislativo, da tutela do patrimônio histórico remontam ao Decreto nº 22.928, de 12 de julho de 1933, que elevou a cidade de Ouro Preto à condição de Monumento Nacional, à Constituição de 1934 e à criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 19 de abril de 1936, ainda em caráter provisório. O Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, vigente até hoje, organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e o definiu, em seu art. 1º, como “o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja proteção seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Além do mais, tais bens só são considerados como parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional após inscritos 10 Sobre o assunto Ana Maria Moreira Marchesan ressalta que houve ações isoladas de conteúdo preservacionista no Brasil Império, a exemplo da Carta, datada em 05 de abril de 1742, de autoria de D. André de Melo e Castro Conde das Galveias, Vice-Rei do Estado do Brasil, ao ter ciência das intenções do então Governador de Pernambuco, Luís Pereira Freire de Andrade, objetivando uma utilização mais racional das fortificações deixadas pelos holandeses naquele Estado. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do Direito Ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 50-54. Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira 259 em um dos quatro Livros do Tombo, consagrando-se, dessa maneira, o instituto do tombamento. Não se pode esquecer que o Decreto-Lei nº 25/1937 tem sobrevivido, curiosamente, às alterações legislativas, não sendo objeto de reforma legislativa, mesmo em um sistema de alta inflação normativa como o brasileiro, o que, talvez, seja justificado pelo desinteresse da história do país ou, por um enfoque mais otimista, por estar se mostrando, aparentemente, eficaz, no plano jurídico, sendo fruto da genialidade cultural do esboço de anteprojeto de lei elaborado por Mário de Andrade, a pedido do então Ministro da Educação, Gustavo Capanema. Todavia, no direito brasileiro, é na Constituição Federal de 1988 que será encontrado o que há de mais substancial em termos de proteção jurídica do patrimônio cultural, em especial nos arts. 215 a 216, inclusive com as modificações instituídas pela Emenda Constitucional de nº 48/2005. A Constituição Federal estabelece que, dentre outras hipóteses, constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória de diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, no que se incluem as edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, bem como os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (art. 216, IV e V). No sentido acima, no plano jurídico, sem muita divergência da noção das demais ciências sociais, patrimônio cultural pode ser definido, então, como o conjunto de bens, práticas sociais, criações, materiais ou imateriais de determinada nação e que, por sua peculiar condição de estabelecer diálogos temporais e espaciais relacionados àquela cultura, servindo de testemunho e de referência às gerações presentes e futuras, constitui valor de pertença pública, merecedora de proteção do direito e fática pelo Estado11. No entanto, para os fins deste trabalho, interessam apenas os bens de natureza material imobiliária, ou seja, imóveis tombados individualmente ou em conjunto. Com as definições em mãos, torna-se possível avançar um pouco além sobre a problemática. 11 MARCHESAN, op. cit., p. 49-51. 260 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 260-272, jan./mar. 2014 2 JUDICIALIZAÇÃO, OBSTÁCULOS PROCESSUAIS E DETERIORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMOBILIÁRIO 2.1 A EXPLOSÃO DE DIREITOS, A JUDICIALIZAÇÃO E O PROTAGONISMO JUDICIAL No Brasil, após a Constituição Federal de 1988, o Judiciário12, de tímido expectador da implantação das políticas públicas, foi instado a se manifestar, no ritmo crescente das novas demandas, sob os mais diversos assuntos, ante a explosão democrática que irradiou a partir desse momento histórico. Passamos a viver, então, em momento de extremo protagonismo social e político do sistema judicial e do primado do direito, como fatores decisivos da vida coletiva democrática, do desenvolvimento de uma política forte e densa de acesso ao direito e à justiça13. No entanto, faz-se a seguinte indagação: estava a função judiciária, de raiz eminentemente conservadora, fruto da cultura bacharelesca14, preparada para atender as novas demandas? Sobre o assunto, Boaventura de Souza Santos (2007) responde que a construção do Estado latino-americano, até final dos anos de 1980, no que se inclui, evidentemente, o Brasil, ocupou-se com o crescimento do executivo e da sua burocracia, procurando subverter o Judiciário em uma parte dos aparatos burocráticos do Estado, um órgão para o poder político controlar, ou seja, com espécie de instituição sem mecanismos para deter a expansão do Estado e seus mecanismos reguladores. Após esse período, de maneira geral, com a derrocada dos regimes autoritários, o sistema judicial adquiriu forte atuação, passando a intervir ativamente nas políticas estatais. Aliás, tal movimento, nos países latino-americanos, assemelha-se ao desenvolvimento da interpretação judicial que ocorreu nos Estados Unidos durante o período compreendido entre 1890 a 1937, fase de intensa participação judicial na vida econômica daquele país15. 12 Uma visão do Judiciário moderno e contemporâneo pode ser encontrada em APOSTOLOVA, Bistra Estefanova. Poder Judiciário: do moderno ao contemporâneo. Porto Alegre: Fabris, 1998. 13 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da Justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2007, p. 16-20. 14 Sobre o bacharelismo e conservadorismo, cf. WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 132-139; cf., também, com uma discussão mais aprofundada, NEDER, Gizlene. Discurso jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Fabris, 1995. 15 A respeito do assunto, o chamado devido processo substantivo e econômico, cf. WOLFE, Chistopher. La transformacion de la interpretacion constitucional. Madrid: Civitas, 1991, p. 201-226. Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira 261 No movimento de protagonismo judicial, ante a pouca eficácia das políticas públicas, o Judiciário brasileiro passou a ser uma alternativa eficaz para a execução dos diversos direitos previstos na Constituição de 1988, em movimento que vai desde a simples concessão de medicamentos ou internação até ao reconhecimento de direitos sequer previstos, expressamente, na mesma16. Esse deslocamento da prática da execução da política pública a cargo do Executivo para o Judiciário, transformando esta última função em verdadeira extensão da primeira, como forma de cumprir a ineficiência executiva, acaba tirando a atenção daquilo que, efetivamente, deveria estar passando por uma análise jurídica aprofundada. Some-se a isso, para se agravar o quadro, que, não raras vezes, o Judiciário desconsidera totalmente as regras do jogo, em situação na qual “basta requerer para se deferir”, concedendo-se direitos, nitidamente não previstos na legislação, em verdadeira desconsideração com a atividade legislativa e executiva, fragilizando-se ainda mais o quadro17. Para dar efetividade a uma avalanche de direitos e manter seu protagonismo, precisava o Judiciário estar preparado, tanto intelectual, quanto estruturalmente, para se manter rápido, eficaz e independente. No entanto nem sempre isso ocorreu, já que não é possível se livrar de um histórico ranço de bacharelismo do dia para a noite. 16 17 SANTOS, op. cit., p. 20. Sobre a temática, Boaventura de Souza Santos comenta que “é verdade que a constitucionalização de um conjunto tão extenso de direitos sem o respaldo de políticas públicas e sociais consolidadas torna difícil sua efetivação, mas não é menos verdade que esse catálogo amplo de direitos abre espaço para uma maior intervenção judicial a partir do controle da constitucionalidade do direito ordinário. Muitas das decisões judiciais protagônicas acabam por consagrar princípios e normas constitucionais para além ou ao contrário do que está estabelecido na lei ordinária. No caso brasileiro, um bom exemplo dessa intervenção judicial está na proteção jurídica alcançada por casais homoafetivos. Neste caso, aplicando o princípio constitucional da igualdade, as decisões judiciais têm atribuído direitos aos companheiros homossexuais a despeito da inexistência de uma lei específica que tutele seus interesses. Por estas razões – diferentes de país para país, mas convergentes no seu sentido geral – temos mesmo vindo a assistir, em alguns países, a um deslocamento da legitimidade do Estado: do poder executivo e do poder legislativo para o poder judiciário. Esta transferência da legitimidade é um processo gradual, nalguns Estados a ocorrer mais rapidamente do que em outros. Esse movimento leva a que se criem expectativas positivas elevadas a respeito do sistema judiciário, esperando-se que resolva os problemas que o sistema político não consegue resolver. Acontece que a criação de expectativas exageradas acerca das possibilidades do judiciário é, ela própria, uma fonte de problemas”. Para uma revolução democrática da Justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2007, p. 21. 262 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 262-272, jan./mar. 2014 Dando-se, não raras vezes, relevância demasiada a demandas que sequer precisariam passar pela análise do Judiciário, as Instituições do Sistema de Justiça brasileiro, como no início do século XX, continuam a agir como se a resolução de conflitos seja monopólio de seu ator principal, o Judiciário, não sendo diferente com as ações que objetivam efetivar o comando constitucional de tutela do patrimônio cultural, principalmente o imobiliário. A efetividade do Judiciário passou, dessa forma, a constituir uma espécie de carma, sujeito a todas as espécies de reformas processuais, incapazes de dar conta das novas demandas. Mauro Cappelletti e Bryant Garth18 trataram a respeito de três ondas como soluções práticas para os problemas de acesso à justiça, interessando, neste trabalho a questão da representação dos interesses difusos, a denominada segunda onda. Sobre esse tema, ensinavam que tanto nos países do sistema Common Law como no Civil Law, as instituições governamentais, em virtude de sua tradição, encontravam dificuldades para proteger tais interesses, já que são inerentemente vinculadas a papéis tradicionais e não estavam sendo capazes de assumir, por inteiro, a defesa dos interesses difusos recentemente surgidos. Na onda de novos direitos, pode-se inserir a necessidade de proteção do patrimônio cultural que, nas sociedades de consumo e de cultura de massa, passa a se constituir um instrumento de desenvolvimento local ou nacional, em função do turismo e de práticas mercantis do saber e do lazer19. 2.2 DA TUTELA DO PATRIMÔNIO CULTURAL COMO RESPONSABILIDADE DE TODOS: AUSÊNCIA DE MONOPÓLIO ESTATAL A tutela dos direitos culturais não deve ser vista como tarefa a cargo apenas do Poder Público. Os bens culturais nascem da ideia de preservação das raízes de determinada sociedade. No entanto, em muitos lugares, cresceu a ideia segundo a qual a tutela dos mesmos deve ser efetivada apenas pelo Estado (União, Estados, Distrito Federal, Municípios e respectivas entidades), como se houvesse uma espécie de monopólio protetivo, sendo que, em São Luís, recorte espacial desta reflexão, nas causas que envolvem o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN se desconhece, até o momento, a 18 Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 2002. 19 POLOUT, op. cit., p. 200. Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira 263 existência ativa de sociedade civil organizada com o objetivo de lutar por tal proteção. Henrique Augusto Mourão20, citando o exemplo do patrimônio cultural arqueológico, lembra que o Estado brasileiro arvorou para si, através do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, uma tutela solitária da defesa dos bens culturais. Efetivamente, há predominância técnica de tal entidade, mas isso se deve muito mais à falta de mobilização da sociedade civil em defesa dos bens culturais do que de um propósito deliberado em se monopolizar a tutela. Pelo que se tem conhecimento, não parece que seja bandeira do IPHAN ou de qualquer órgão ou entidade estatal usurpar a defesa dos bens culturais, dado que os mesmos pertencem a todos e a todos cabe defendê-los. Infelizmente, o espaço vazio tem sido preenchido pelo Estado, gerando uma óbvia incapacidade de atender, eficazmente, aos problemas que surgem, dado a infinidade de demandas sociais a cargo do Poder Público. A tutela do patrimônio cultural, no que se inclui o imobiliário, não pode ser vista, assim, apenas como uma tutela estatal, mas como bem que deve receber proteção de todos, pois uma revolução democrática do direito e da justiça só se faz verdadeiramente caso haja uma revolução democrática mais ampla que inclua a democratização do Estado e da sociedade21. A falta de identificação ou de manifestação ativa da sociedade parece ser um dos grandes problemas para se efetivar o comando constitucional de proteção do patrimônio cultural, pois não bastam manifestações vociferando a proteção dos bens, sendo necessária mobilização cívica, já que a proteção dos bens referenciados se dá em função da singularidade dos mesmos para determinada sociedade. O déficit de participação cidadã, nesse tema, tem impedido que o mesmo seja melhor compreendido e protegido. Não basta contemplar o patrimônio tombado, encher o peito de orgulho e ir embora ou culpar o Poder Público pelas mazelas patrimoniais. Nesse sentido, Mauro Cappelletti e Bryant Garth22, ao tratarem dos problemas especiais dos interesses difusos, já lembravam que: 20 Patrimônio cultural como um bem difuso: o direito ambiental e a defesa dos interesses coletivos por organizações não governamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 11-12. 21 SANTOS, op. cit., p. 16-35. 22 Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 27-29. 264 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 264-272, jan./mar. 2014 Assim, conquanto como regra, a proteção privada de interesses difusos exija ação de grupo, é difícil assegurar que tal ação coordenada tenha lugar, se o próprio governo falha, como no exemplo acima, em sua ação em favor do grupo. Uma posição tradicional e ainda prevalecente em muitos países é a de simplesmente recusar qualquer ação privada e continuar, em vez disso, a confiar na máquina governamental para proteger os interesses públicos e dos grupos. Pesquisa comparativa recente, no entanto, demonstrou o quanto é inadequado confiar apenas no Estado para a proteção dos interesses difusos. É profundamente necessário, mas reconhecidamente difícil, mobilizar energia privada para superar a fraqueza da máquina governamental. [...] É evidentemente uma tarefa difícil transformar esses direitos novos e muito importantes – para todas as sociedades modernas – em vantagens concretas para as pessoas comuns. Supondo que haja vontade políticas de mobilizar os indivíduos para fazer valer seus direitos – ou seja, supondo que esses direitos sejam para valer – coloca-se a questão fundamental de como fazê-lo. No direito brasileiro, porém, há mecanismos administrativos e processuais, os chamados remédios constitucionais, através das Instituições do Sistema de Justiça, que permitem uma maior interferência do cidadão nos assuntos ligados à vida coletiva, no que se inclui, evidentemente, o patrimônio cultural. Nessa perspectiva, portanto, um dos maiores equívocos em relação à proteção do patrimônio cultural é, utilizando-se, equivocadamente, dos conceitos de tombamento, ato estatal, atribuir quase que, exclusivamente, ao Estado a proteção daquele, havendo necessidade de maior envolvimento dos cidadãos nesse tema. 3 UMA REFLEXÃO INICIAL SOBRE UM CASO DE JUDICIALIZAÇÃO DA TUTELA PATRIMONIAL 3.1 O CASO FERRO DE ENGOMAR E AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELAS INSTITUIÇÕES DO SISTEMA DE JUSTIÇA: OS AUTOS QUE CRESCEM E O PATRIMÔNIO QUE PADECE Em um processo acelerado de globalização no qual identidades são devoradas, os Centros Históricos se firmam como referências comuns, a exemplo da língua, da história, do folclore, como espécie de simbolismo que materializa as raízes de um povo, pressupondo, cada vez mais, uma cultura, uma espécie de filosofia de vida, que garante uma identidade e Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira 265 encerra um conjunto de referências reais ou simbólicas que atestam um percurso e legitimam o presente, pelo testemunho perene do passado23. Nessa perspectiva, a questão da efetiva proteção versus degradação dos Centros Históricos não é uma preocupação apenas da cidade de São Luís, mas ? outras cidades que possuem conjuntos arquitetônicos, havendo similitude de preocupações. Em 1997, a UNESCO, reiterando o que o IPHAN já havia feito em 1955, quando tombou o Centro Histórico de São Luís, reconheceu a peculiaridade arquitetônica do conjunto arquitetônico da capital maranhense, concedendo-lhe o título de “Patrimônio Cultural da Humanidade”24. Não se pode desconsiderar, como lembram Mariana Cascais e Maria da Saudade Baltazar25, ao citarem o caso da cidade de Évora, em Portugal, que a titulação “Patrimônio Cultural da Humanidade”, de certa forma, acaba tornando um Centro Histórico vítima da sua preservação: as limitações impostas, embora reforcem a identidade e lhe deem condição especial, são responsáveis, direta e indiretamente, pelo seu esvaziamento, em decorrência do custo elevado para a realização de obras, em função dos atributos arquitetônicos singulares, falta ou demora na realização de obras públicas, má iluminação, falta de acessibilidades, trânsito complicado, dentre outros problemas. Para evitar a contradição descrita acima, a função administrativa de fiscalização se torna imprescindível, pois se trata de um conjunto com milhares de imóveis, cada qual com sua peculiaridade, com uma destinação específica, com múltiplos tipos arquitetônicos, com diversidade de hábitos e pessoas, que os utilizam para trabalhar ou como moradia. À função de fiscalização, deveriam estar aliadas políticas de fomento à preservação, inclusive com educação patrimonial. Não havendo consciência patrimonial entre os proprietários e a população, cria-se um falso dissenso segundo o qual a fiscalização e a manutenção do patrimônio constituem excessiva 23 CASCAIS, Mariana; BALTAZAR, Maria da Saudade. Insegurança nos Centros Históricos: o caso de Évora. In: VALENTE, Manuel Monteiro Guedes (org.). Seminário urbanismo, segurança e lei. Tomo II. Coimbra: Almedina, 2009, p. 71-94. 24 Uma peculiaridade da concessão desse título jurídico é a sujeição a um regime de tombamento diferenciado, no qual o mesmo incide sobre o conjunto arquitetônico da cidade e não apenas sobre os imóveis de forma individualizada. 25 Op. cit., p. 80. 266 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 266-272, jan./mar. 2014 interferência estatal nas propriedades, disseminando-se, equivocadamente, no imaginário das pessoas que a função administrativa é um feroz algoz. Para ajudar a refletir sobre as inquietações acima, traz-se um exemplo no qual as Instituições do Sistema de Justiça maranhense têm enfrentado dificuldades para efetivar o comando constitucional de tutela do patrimônio cultural na cidade de São Luís: é o caso de um imóvel denominado Ferro de Engomar26, hipótese que reflete exemplos recorrentes na Seção Judiciária do Maranhão. Com o desabamento de parte do telhado do imóvel, em 30 de março de 2010, em decorrência de intensas chuvas, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, através da Advocacia-Geral da União – AGU, em 16 de setembro de 2010, após tentativas infrutíferas de resolver a situação no âmbito administrativo, ingressou com uma Ação Civil Pública27 objetivando obrigar os proprietários a recuperarem o imóvel. O pedido de medida liminar, prontamente deferido pela Justiça Federal, em 22 de setembro do mesmo ano, era para se estabilizar o bem tombado, medida até hoje não cumprida, por diversas razões fáticas que fogem ao poder de constrição do Judiciário. Mesmo depois de várias tentativas processuais com o intuito de obrigar os proprietários a recuperarem o imóvel, nenhuma se mostrou eficaz, sendo oportuno registrar que a simples formação da relação processual, com o ato de citação, sequer foi efetivada na totalidade. Além disso, um dos proprietários faleceu e os herdeiros venderam o imóvel por duas vezes. A Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal requereram todas as medidas processuais possíveis para efetivar a tutela constitucional do bem, não se mostrando quaisquer delas com eficácia, mesmo com o pronto atendimento por parte do Judiciário Federal. 26 Localizado na Rua Afonso Pena, Centro, o imóvel é parte integrante do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da cidade de São Luís, tombado pela União através do processo nº 457-T-57, inscrito sob o nº 64, do Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e sob o nº 513 do Livro do Tombo das Belas Artes, de 13 de março de 1974. O imóvel, também, está inscrito na lista de Patrimônio Cultural da Humanidade – UNESCO e do Conjunto Histórico, Arquitetônico e Paisagístico do Centro Urbano de São Luís, tombado pelo Estado do Maranhão, através do Decreto Estadual nº 10.089, de 06 de março de 1986. 27 Processo sob os autos de nº 34684-89.2010.4.01.3700, em trâmite junto à 8ª Vara Federal da Seção Judiciária do Maranhão. Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira 267 Onde estão os equívocos das Instituições do Sistema de Justiça Federal (Advocacia Pública, Ministério Público, Judiciário) na tentativa de tutela do patrimônio cultural? O caso não é isolado, repetindo-se em outras situações envolvendo imóveis tombados em mãos de particulares. Nessas hipóteses, problemas de ordem pessoal (dificuldades em se formar a relação processual ou para se obrigar os proprietários a cumprirem as medidas judiciais deferidas, já que boa parte dos proprietários alega não dispor de recursos para arcar com os custos da recuperação) têm prevalecido sobre a natureza real da obrigação. O caso Ferro de Engomar parece demonstrar, claramente, que o sistema de tutela coletiva patrimonial necessita de maiores reflexões, pois um imóvel tombado, apesar das avançadas técnicas de restauro, não deveria ficar tão vulnerável à complacência de uma medida judicial: o tempo e a inefetividade do processo se mostram como inimigos brutais da tutela patrimonial - enquanto os autos crescem, o patrimônio padece. Mauro Cappelletti e Bryant28 já haviam alertado, inclusive, que um dos problemas, dentre outros, para se efetivar o acesso à justiça está relacionado ao tempo do processo, chamando atenção para a questão da proteção dos interesses difusos, em razão de sua natureza difusa, seja porque ninguém teria direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo seja porque a recompensa para qualquer indivíduo buscar essa correção seria diminuta para induzi-lo a ajuizar uma ação, restando, em último caso, ao Estado, através das Instituições do Sistema de Justiça tradicionais (Advocacia Pública e Ministério Público) a tutela dos mesmos. 4 CONCLUSÕES A tutela jurídica dos imóveis tombados, no Brasil, segue a sistemática das demais ações coletivas, vigendo um modelo misto29 no qual tanto o Ministério Público quanto outros legitimados, inclusive particulares30, podem ingressar em juízo objetivando obrigar que alguém conserve ou restaure um imóvel tombado, sendo a ação civil 28 Op. cit., p. 20 e 26. 29 Sobre o assunto, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de Civil Law e Common Law: uma análise do direito comparado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 35-38. 30 Pense-se na possibilidade de se ajuizar uma ação popular objetivando obrigar o Poder Público a tomar medidas preventivas em relação à conservação de determinado imóvel tombado, já que a Lei nº. 4.717/65, no art. 6º, é expressa em prevê a possibilidade de ajuizamento da mesma em casos de autoridade que “por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo”. Sobre a ação popular, definida 268 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 268-272, jan./mar. 2014 pública o instrumento processual mais utilizado para se proteger tais bens. No entanto, pelo menos na Seção Judiciária do Maranhão, não é comum ver ações que não sejam ajuizadas pelo Ministério Público ou pelo próprio Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN, entidade federal encarregada da defesa do assunto. Pressupondo as obrigações de fazer ou de não fazer uma premissa lógica de possibilidade de cumprimento por parte daquele que estaria obrigado a fazer ou desfazer determinada obrigação, a defesa do patrimônio histórico em juízo deveria considerar uma visão instrumental, dada a natureza singular do bem protegido e, também, a sua perspectiva civil (obrigação de natureza real, propter rem, na qual um bem tombado ou protegido recebe a tutela constitucional em função da singularidade da coisa). De forma contraditória, no entanto, os maiores empecilhos para a defesa da coisa tombada estão em fatores de natureza pessoal, o que leva o Judiciário, às vezes, a decidir de forma a se interessar muito mais por questões de natureza processual do que pela efetiva proteção do bem. Sendo o patrimônio cultural, como interesse difuso, um bem pertencente a todos, seria de se esperar maior envolvimento da sociedade em sua defesa, inclusive em juízo ou fora dele. Contudo, em se tratando de interesses difusos, não basta a mera ampliação do rol de pessoas e conflitos sujeitos ao processo (universalização da jurisdição), sendo indispensável que o sistema esteja preparado para produzir decisões efetivas, capazes de propiciar a tutela mais ampla possível desses direitos31, pois nem sempre o sistema de tutela difusa se mostrará eficaz em se tratando de processo coletivo movido em face de particular, já que o mundo dos fatos é, infinitamente, mais dinâmico do que as formulações legislativas. Com a explosão de direitos e a intensa judicialização, um dos grandes equívocos das Instituições do Sistema de Justiça brasileiras tem sido acreditar que apenas o Judiciário pode ser depositário da resolução de conflitos, menosprezando-se outras formas de composição não tradicionais. Assim, parece que, à semelhança do cidadão, as Instituições do Sistema de Justiça, através de seus atores, ao ajuizarem uma ação objetivando tutelar como exercício direto da democracia e as possibilidades de ajuizamento em casos omissivos, cf. SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 83-85 e 126-127. 31 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira 269 o patrimônio cultural, estão buscando soluções para as quais o Judiciário não possua ou, talvez, seja incapaz de dar respostas eficazes. Evidentemente, indagar-se-ia: em se tratando de uma obrigação de fazer ou não fazer, poderia um terceiro cumprir a obrigação (art. 249 a 251 do Código Civil), sendo esta, inclusive, dever imposto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, através do art. 19 do Decreto-Lei n. 25/1937. Certamente, tal hipótese seria possível. Contudo, será que essa é a diretriz constitucional: a tutela de um bem particular tombado sempre vai recair sobre o Poder Público, em último caso? Em um Centro Histórico abandonado pelos proprietários de forma bastante significativa, a Administração vai arcar com todos os seus custos de manutenção? Certamente, essa não parece ser a diretriz constitucional. O indicativo de solução para o problema, dentre outras alternativas, parece estar em se pensar que a proteção do patrimônio cultural é dever de todos, como uma atitude cívica32, aliada a uma política pública compensatória por parte do Estado, mais ainda em um sítio tombado em seu conjunto, como em São Luís, pois se o Estado se dispôs, juridicamente, a reconhecer determinado bem como relevante para a comunidade, parece que seja adequado que o mesmo seja capaz de implementar e articular políticas públicas capazes de dar efetividade a tal comando. As Instituições do Sistema de Justiça, diante da problemática da inefetividade das medidas judiciais, deveriam reconhecer que as técnicas processuais servem a funções sociais e que o Judiciário, atualmente, não pode ser visto, sempre, como a última forma de composição de conflitos a ser considerada, sendo tarefa básica dos processualistas modernos a exposição de novos mecanismos de processamento de litígios33. E quais seriam os novos mecanismos de soluções de litígios no âmbito patrimonial? O caminho da preservação parece estar em se aliar políticas públicas atentas às peculiaridades do local. Se porventura uma política pública for utilizada como modelo, é preciso estar disposto a recriar e superar o que foi realizado, sendo bastante válida a troca de 32 Para Alicia Esther Ortuño Rodriguez, pode-se afirmar que existe um denominador comum na pauta de comportamentos que caracterizam o civismo, como manter as vias públicas limpas, não fazer ruídos desnecessários, preservar o mobiliário urbano e os elementos do patrimônio cultural, não por em perigo a saúde de outras pessoas, sem embargo de outras condutas que podem ser consideradas cívicas, a depender do limite do exigível e tolerável aos indivíduos em uma determinada localidade, conforme suas particularidades. Civismo y convivencia municipal. Barcelona: Editorial Bayer Hnos, 2010. 33 CAPPELLETTI; GARTH, op. cit., p. 13. 270 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 270-272, jan./mar. 2014 experiências, não sendo possível acreditar em modelos já prontos que se adéquem a qualquer realidade34, hipótese, aliás, inconcebível, pois a noção de patrimônio pressupõe a singularidade do bem tombado. Apesar disso, os proprietários não devem ficar totalmente inertes e sempre a espera recursos públicos. Em um regime democrático que pressuponha que o patrimônio cultural é de todos, não é interessante que apenas o Estado arque com as consequências de sua proteção, isentandose aqueles que utilizam os meandros jurídicos como eximentes de seus deveres de conservar, restaurar ou reformar. Se as instituições são necessárias para estabelecer regulamentos obrigatórios e prover incentivos financeiros, deve-se exigir, por outro lado, um compromisso mais forte com as responsabilidades da cidadania para se otimizar o cuidado com o ambiente cultural, incentivando-se a liberdade de participação cidadã e estimulando-se a capacidade de pensar, valorizar e agir das pessoas, o que “requer conceber os seres humanos como agentes, em vez de meramente recipientes”35 das políticas públicas. Além do mais, todas as políticas públicas dependem de como se comportam os indivíduos e grupos na sociedade, sendo que os comportamentos são influenciados pela compreensão e interpretação das exigências da ética social. Para a elaboração das políticas públicas, portanto, faz-se necessário não apenas avaliar as exigências de justiça e o alcance dos valores ao se escolherem os objetivos e as prioridades da política pública, mas igualmente compreender os valores do público em geral, incluindo o seu senso de justiça36. Nesse contexto, é preciso resgatar e/ou implementar políticas públicas que evitem a judicialização e que resgatem a patrimonialidade da cidade antiga. Faz-se necessário regressar ao Centro Histórico, à semelhança do que tem ocorrido em muitos lugares, no quais, com a morte da utopia modernista e com a fragilidade do movimento pós-modernista, os olhos das pessoas se voltaram para os centros, redescobrindo-se as potencialidades da velha cidade, da vida da rua e da praça, o sentido solidário 34 A cultura e cidade: uma aliança para o desenvolvimento – a experiência da Espanha. In: Políticas culturais para o desenvolvimento: uma base de dados para a cultura. Brasília: UNESCO Brasil, 2003, p. 93-104. 35 SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 66, 69 e 70. Além disso, os mesmos autores dizem que “entre as oportunidades que temos razões para valorizar está a liberdade de participar. Se as deliberações participativas forem prejudicadas ou enfraquecidas, alo de valor estará perdido”. 36 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 311. Monica Teresa Costa Sousa Paulo Fernando Soares Pereira 271 da vizinhança e o espírito gregário do bairro, o conforto da proximidade e as virtudes da multifuncionalidade que a cidade moderna rejeitou37. A potencialidade técnica e social das Instituições do Sistema de Justiça não pode ser substitutiva das políticas públicas patrimoniais. O contributo dessas instituições deve ser direcionado para a criação de novos caminhos, implementação e formulação de políticas patrimoniais, superando-se a tradição bacharelesca de defesa de uma ordem legalista, processualista e dissociada das reais necessidades dos novos direitos, inclusive os direitos culturais, no que se inclui o patrimônio imobiliário. REFERÊNCIAS APOSTOLOVA, Bistra Estefanova. Poder Judiciário: do moderno ao contemporâneo. Porto Alegre: Fabris, 1998. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 2002. CASCAIS, Mariana; BALTAZAR, Maria da Saudade. Insegurança nos Centros Históricos: o caso de Évora. In: VALENTE, Manuel Monteiro Guedes (org.). Seminário urbanismo, segurança e lei. Tomo II. Coimbra: Almedina, 2009. CHOAY, Francoise. A alegoria do patrimônio. 4. ed. São Paulo: Estação Liberdade – UNESP, 2006. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. FERNANDES, Manuel. 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ANÁLISE DAS PESQUISAS DA FGV E UFRGS SOBRE O PANORAMA PROCESSUAL BRASILEIRO E A NECESSÁRIA INTERVENÇÃO DA ADVOCACIA PÚBLICA AN ANALYSIS OF THE RESEARCH AND FGV UFRGS PROCESS OVERVIEW ON BRAZILIAN AND NECESSARY ROLE OF PUBLIC ADVOCACY Fernando Menegueti Chaparro Procurador Federal. Professor Universitário da Unipar – Mestre SUMÁRIO: Introdução; 1 O panorama processual envolvendo o Estado-Administração e o Estado-Juiz: as pesquisas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); 2 O acesso à Justiça como conceito amplo: a concretização extrajudicial de direitos devidos pelo Estado através da Advocacia-Geral da União; 3 Da previsão constitucional da Advocacia-Geral da União; 4 A experiência da AGU: Câmara de Conciliação e Arbitragem; 5 Conclusão; Referências. 134 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 134-172, jan./mar. 2014 RESUMO: A demanda por direitos não foi absorvida pela Administração Pública que, ainda por adotar o modelo positivista do Direito, agravado pela influência da informática, adota um sistema extremamente fechado para a análise de demandas subjetivas, massificando e generalizando situações concretas, gerando uma crise de administração de direitos que converge para uma outra crise estatal, desta vez em relação ao Poder Judiciário, que chega ao ponto de substituir-se na função de administrador para analisar direitos constitucionais dos cidadãos. Esse problema foi enfrentado por duas grandes pesquisas acadêmicas feitas a pedido do CNJ, uma pela FGV e outra pela UFRGS. Essa tensão entre os Poderes Executivo e Judiciário, sua repercussão no processo civil, pode ser dirimida ou relativizada através da Advocacia-Geral da União, órgão jurídico presente no corpo constitucional, que deve ser um intermediário entre cidadão e Judiciário, atuando pré-processualmente como instituição conciliadora ou julgadora, contribuindo, assim, para a redução de demandas judiciais, duração razoável do processo e resgate das funções constitucionais originárias dos citados poderes políticos. PALAVRAS-CHAVE: Processo Civil. Advocacia-Geral da União. Meios alternativos. Conciliação. Pesquisa. ABSTRACT: The demand for rights was not absorbed by the Public Administration, yet to adopt the positivist model of law, exacerbated by the influence of information technology, adopts an extremely closed to the analysis of subjective demands, massifying and generalizing concrete situations, creating a crisis management rights which converges to another state crisis, this time in relation to the judiciary, which goes so far as to replace the administrator role to analyze the constitutional rights of citizens. This problem was faced by two major academic research done at the request of the CNJ, and another one FGV UFRGS. This tension between the executive and judicial branches, its impact on civil procedure, can be resolved or relativized through the Attorney General’s Office, the legal body in this constitutional body, which must be an intermediary between citizens and the judiciary, acting as pre-procedurally institution conciliatory or judgmental, thus contributing to the reduction of litigation, reasonable duration of the process and rescue the constitutional functions of the originating cited political powers. KEYWORDS: Civil Process. Attorney General of the Union Alternative means. Conciliation. Research. Fernando Menegueti Chaparro 135 INTRODUÇÃO As transformações sociais pelas quais o mundo contemporâneo tem passado, principalmente após as duas grandes guerras mundiais, influenciaram todo o perfil da atual sociedade. O modo de vida econômico implementado pela revolução industrial, rompendo com as tradições do feudalismo, fez florescer o capitalismo, que se firmou como modelo insuperável de sistema econômico. Até mesmo as guerras mundiais, que causaram horrores indescritíveis, são fontes históricas para o direito que atualmente vivemos, na medida em que foram a gênese das transformações tecnológicas e as sementes dos direitos humanos tão propalados em sede internacional. A ininterrupta evolução social passou a influenciar novos ramos do Direito, seja na seara cível, com a codificação napoleônica, que se espalhou pelo mundo como modelo perfeito de regras, baseado no positivismo de Hans Kelsen, bem como sobre o processo civil, tradicionalmente aclamado como a principal forma de resolução de conflitos. Esse foi um período em que predominou a filosofia liberal, na qual vale a interpretação extremada da liberdade individual em detrimento, por exemplo, da solidariedade e da coletividade. Os códigos de leis eram o ápice da regulação das condutas sociais, de modo que rigidamente previam os fatos a serem regulados pelo Direito, contendo uma ideia de totalização de regramento infalível. Todavia, com o passar do tempo, verificou-se que a normatização hermeticamente fechada era contraditória em relação aos avanços sociais, na medida em que a massificação e a complexidade das relações não “cabiam” mais nos códigos. Velhos direitos passaram a ser considerados novos direitos, em regra para defesa das minorias (preconceitos em relação à raça, cor, orientação sexual, entre outros) e nichos específicos da sociedade com algum traço de hipossuficiência (crianças, idosos, mulheres, consumidores). Destarte, o modelo tradicional de direito não foi capaz de regular todas estas relações sociais, que implicam necessariamente um tratamento desigual, rompendo com o dogma da igualdade rigidamente formal, que sempre foi injusta e se prestava, anteriormente, à legitimação de abusos econômicos e justificação da exploração do homem pelo homem. 136 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 136-172, jan./mar. 2014 Nesse prisma, o processo civil era voltado para problemas individuais e de cunho eminentemente patrimonialista. É fácil notar essa conotação processual quando o Código de Processo Civil estabelece os procedimentos especiais, notoriamente voltados para proteção da propriedade privada. Entretanto, os direitos coletivos, difusos e sociais necessitavam de um novo instrumental para se fazerem efetivos. Essa necessidade vem sendo suprida aos poucos, com sucessivas reformas nas normas processuais e edições de leis específicas sobre a temática, valendo citar a Lei da Ação Civil Pública e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Os estudiosos do Direito passaram, pois, a procurar razões filosóficas para justificar a alteração do paradigma liberal do Direito. E foi na humanização do Direito que se sustentaram as novas balizas hermenêuticas atuais. Do foco patrimonial para o ser humano, da lei formal para a principiologia constitucional, do sistema fechado de normas para uma linguagem jurídica aberta e flexível, enfim, o Direito passa por uma transformação que merece a devida atenção da doutrina. O presente trabalho procura identificar e correlacionar os fatores socioeconômicos a partir de dois grandes estudos solicitados pelo Conselho Nacional de Justiça, a cargo da Fundação Getúlio Vargas – Direito GV e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Não se pode negar que a segunda metade do século XX e o início do século XXI se tornaram um marco temporal para mudanças paradigmáticas na forma de atuação do jurista, momento propício para romper com tradições seculares e buscar novos rumos e novas técnicas para realização de direitos, notadamente aqueles de cunho essencial devidos pelo Estado. A democratização do acesso à Justiça deve receber interpretação amplíssima, de modo a integrar instituições e poderes com vistas à efetivação, celeridade, qualidade e segurança da prestação desta obrigação estatal. Novos atores devem ser inseridos no espaço público decisório, novos procedimentos podem ser trabalhados para facilitar a prestação jurisdicional, enfim, os novos direitos multifacetários devem receber tratamento especializado, otimizado e seguro. Dessa forma, a atuação do advogado público merece revisão, de modo a interpretar a Constituição Federal a partir de uma visão hermenêutica-concretizadora, possibilitando ao cidadão um acesso à Justiça até então fornecido apenas formalmente junto à administração, contribuindo para o crescimento jurídico do Estado e para solução Fernando Menegueti Chaparro 137 alternativa de conflitos, utilizando-se da técnica mais saudável possível, que é a conciliatória com informação. Propõe-se no presente trabalho a inclusão do órgão constitucional da Advocacia Pública como alternativa decisória ao cidadão, buscando atribuir ao membro da Advocacia Pública a prerrogativa de decidir, com força vinculante, sobre determinadas matérias envolvendo procedimentos administrativos entre órgãos federais e cidadãos, de forma obrigatória e pré-processual, transformando a judicialização do conflito em ultima ratio para o particular. 1 O PANORAMA PROCESSUAL ENVOLVENDO ESTADO-ADMINISTRAÇÃO E O ESTADO-JUIZ: AS PESQUISAS DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (FGV) E DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS) A relação entre administração e jurisdição tem sido cada vez mais objeto de estudos por especialistas não só da área jurídica, como também dos campos econômicos e sociais. A crise pela qual tem passado o Poder Judiciário, alvo de críticas acerbas, tem instigado pesquisadores a desvendar os motivos pelos quais a Justiça é taxada de morosa, dispendiosa e ineficiente. O processo civil como disciplina da ciência do Direito passou a ser questionado em outras dimensões, para além da esfera exclusivamente dogmática, desafiado que está para protagonizar alterações de cunho sociais e econômicas no país. A crescente possibilidade de acesso à Justiça, fruto da democracia iniciada no final da década de 70, consolidada nos anos 80 e estabilizada a partir da Constituição Federal de 1988, causou uma revolução perante o Poder Judiciário. A demanda por direitos caminhou paralelamente com outras iniciativas estatais, como, por exemplo, a criação dos juizados de pequenas causas, posteriormente transformados em juizados especiais, a institucionalização das Defensorias Públicas, a interiorização do Poder Judiciário, bem como pela crescente, embora ainda tímida conscientização dos cidadãos pelos seus direitos, notadamente aqueles de estatura constitucional. Essa fase do sistema judicial ainda focava a necessidade de ampliação do acesso à Justiça pelo cidadão, que vivia à margem do sistema jurídico e era constantemente negligenciado quando violado seus direitos básicos. Embora ainda não estivesse consolidada no início dos anos 2000, a nova roupagem do sistema judicial, mais informal e capilar, passou a 138 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 138-172, jan./mar. 2014 representar outra fonte de problemas de política judiciária, valendo como marcos desta transição a consolidação dos juizados especiais estaduais e a implantação dos juizados especiais federais, estes últimos priorizando a interiorização das varas. As inovações legislativas não foram acompanhadas por medidas estruturais efetivas para dar vazão à nova demanda de serviços judiciários. A ampliação da procura pelo cidadão por resolução de conflitos através do processo civil não encontrou eco na resposta do Judiciário. Varas abarrotadas de processos, sem juízes, sem servidores administrativos, burocráticas, enfim, tudo permanecia da mesma forma que antes. Era o tempo das pilhas de processos judiciais à espera de uma decisão, que não raro demorava anos. A situação do sistema judiciário brasileiro era de certa forma incompatível com as expectativas da sociedade do novo milênio, fundada na velocidade da informação e na instantaneidade dos negócios. Passou-se, pois, a dar cada vez mais valor à celeridade, seja pelo culto às liminares, notadamente com a instituição da antecipação da tutela jurisdicional no processo civil, além da idealização, ainda embrionária, dos processos eletrônicos. A despeito de todas essas ideias inovadoras dos pensadores do processo civil dito moderno, verificou-se, e é de certa forma notório, que o processo judicial ainda não alcançou níveis satisfatórios junto à opinião pública, e a cúpula do Poder Judiciário nacional, bem como setores da sociedade civil, têm procurado estabelecer um debate sobre as consequências da morosidade judicial, além das causas da apontada ineficiência do Estado na prestação desse serviço essencial. Combater os efeitos da crise institucional do Judiciário é importante, porque de forma paliativa garante-se a prestação da jurisdição e certa efetividade das decisões processuais. Todavia, o que se percebe nas últimas décadas é um pensamento voltado apenas para os efeitos e não para as causas do aumento impressionante das demandas judiciais, que nos dias atuais é praticamente invencível pelos magistrados e demais operadores do direito, notadamente aqueles que pertencem a Instituições de Estado (Advocacia Pública, Defensoria Pública, Ministério Público). As demandas coletivas estão sendo objeto de amplos debates para racionalização do processo judicial, através da construção de um Fernando Menegueti Chaparro 139 verdadeiro código de processo coletivo1. No entanto, a aplicabilidade do processo coletivo é restrita à situações envolvendo unidade fática, ou matéria de direito, comum a um grupo de pessoas, porém, não resolve o problema da litigância individual de massa, notadamente envolvendo o setor público, que ainda necessita de um processo individual para resolução da lide. Em recente divulgação na mídia, o Conselho Nacional de Justiça2, fez um diagnóstico sobre a movimentação de processos judiciais e procurou nominar os principais litigantes nacionais. Nesse documento se constatou dois polos de litigância: o primeiro capitaneado pelo setor público e o outro pelo setor bancário. Apenas o setor público federal responde, nacionalmente, por 45,25% das ações em trâmite perante o Poder Judiciário, ocupando as cinco primeiras colocações no ranking da litigância, tendo como primeiro colocado o INSS (22,33%); na segunda colocação a Caixa Econômica Federal (8,5%), seguido pela Fazenda Nacional, com 7,45% e pela União, com 6,97%3. Na sequência desta “lista negra” do Judiciário encontram-se alternadamente instituições bancárias, empresas de telefonia, Estados e grandes municípios. Dessarte, embora tardiamente, verifica-se que os órgãos responsáveis pela política judiciária têm procurado identificar gargalos judiciais e compreender como a sociedade moderna utiliza os serviços processuais e como o Judiciário tem lidado com esta demanda. O processo civil tradicional, embasado na tutela individual e patrimonial que predominava na década de 70, do século passado, cada vez mais se mostra insuficiente para lidar com as novas tutelas requeridas pelo modelo social da atualidade. A massificação contratual, polarizando grandes conglomerados prestadores de serviços (bancos, telefonia), e a intervenção crescente do Estado na implementação e execução de políticas públicas sociais, são dois grandes fatores que corroboram os resultados da pesquisa do Conselho Nacional de Justiça. Observando os dois maiores setores litigantes do país, é possível concluir que há uma semelhança entre ambos: serviços essenciais (e o 1 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. 2. ed. revista e ampliada, São Paulo: SRS, 2008. 2 BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. 100 maiores litigantes em 2011. Disponível em: <www.cnj.jus.br/ images/pesquisas.../pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2013. 3 Idem. 140 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 140-172, jan./mar. 2014 setor bancário tornou-se essencial), intensa demanda pelos serviços, mas baixa qualidade da resposta ao cidadão, seja pela insuficiência de trabalhadores no setor privado, fruto da busca do lucro ilimitado; ou, no setor público, pela pífia situação dos órgãos públicos responsáveis pelo gerenciamento destas demandas (estrutura física inadequada, quantidade e qualidade de servidores, burocracia infralegal, etc). Dois importantes estudos foram solicitados pelo Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2009, um deles intitulado “Diagnóstico sobre as causas de aumento das demandas judiciais cíveis, mapeamento das demandas repetitivas e propositura de soluções pré-processuais, processuais e gerenciais à morosidade da Justiça”, sob a responsabilidade da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo – Direito GV4; e outro denominado “Inter-relações entre o processo administrativo e o judicial (em matéria fiscal) a partir da identificação de contenciosos cuja solução deveria ser tentada previamente na esfera administrativa”, conduzido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Faculdade de Direito5. Em ambas perquirições foram ouvidos diversos atores do cenário jurídico nacional, que direta ou indiretamente contribuem para a construção e também desconstrução da relação tensa entre Administração e Judiciário. Ministros do Executivo, membros do Judiciário, do Ministério Público, da Advocacia Pública, Advogados, agentes de órgãos administrativos e sociedade civil contribuíram com opiniões e respostas às indagações dos pesquisadores. As duas pesquisas se relacionam em vários pontos, a primeira, capitaneada pela Fundação Getúlio Vargas, tem a incumbência de mapear as demandas cíveis que assoberbam o Judiciário e propor soluções préprocessuais para resolução do litígio. Não se perquire se a litigância é privada ou pública, mas sim qual é o motivo pelo qual a Justiça é morosa. No corpo do documento é possível verificar o seu tema central: 4 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Direito GV. Diagnóstico sobre as causas de aumento das demandas judiciais cíveis, mapeamento das demandas repetitivas e propositura de soluções pré-processuais, processuais e gerenciais à morosidade da Justiça. São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-aa-z/formacao-e-capacitacao/cnj-academico/pesquisas-aplicadas-cnj-academico. Acesso em: 02 Ago. 2013. 5 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Direito. Porto Alegre, 2010. Inter-relações entre o processo administrativo e o judicial (em matéria fiscal) a partir da identificação de contenciosos cuja solução deveria ser tentada previamente na esfera administrativa. Disponível em: <http:// www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/formacao-e-capacitacao/cnj-academico/pesquisas-aplicadas-cnjacademico>. Acesso em: 02 Ago. 2013. Fernando Menegueti Chaparro 141 As questões centrais que direcionaram a pesquisa foram: (i) quais são as causas de aumento da litigiosidade nos tribunais brasileiros? (ii) qual é o papel que as demandas repetitivas têm no aumento da litigiosidade? (iii) qual é o perfil destas demandas e as suas causas mais comuns? (iv) como estas demandas são gerenciadas pelo Judiciário e fora dele? (v) quais são as possíveis soluções e filtros (pré-processuais, processuais e gerenciais) para estas demandas?6 Já na introdução da pesquisa foi constatado que o Poder Público é o responsável por grande parte do ambiente de litigiosidade, apontando como grandes causas da crescente litigância como sendo as práticas gerenciais dos órgãos administrativos, as constantes implementações e modificações das políticas públicas, a execução fiscal e, finalmente, a deficiência da regulamentação infralegal das relações entre cidadão e Estado ou mesmo entre partes privadas, quando o Estado atua como órgão regulador7. A pesquisa conduzida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul teve a incumbência de avaliar as condições processuais envolvendo a execução fiscal, que, como já salientado, responde por grande parte das demandas judiciais, além de envolver matéria inerente aos órgãos da administração direta e indireta, no âmbito federal, estadual e municipal. Muito embora tenha havido delimitação do objeto desta última pesquisa, inexoravelmente a questão da relação entre Administração e Judiciário haveria de ser investigada a fundo. Nada mais salutar, porquanto o problema da Justiça está justamente na relação entre controvérsias entre administração e cidadãos, em todos os ramos do direito público. A pesquisa gaúcha esteve sensível a esta conclusão, quando registrou: Ora, à Administração é vedada, como deve ser, declaração de inconstitucionalidade e, máxime, construções constitucionais. Sendo, porém, tais poderes admitidos, em nossa cultura jurídica atual, ao Juiz Ordinário, mesmo em primeiro grau, cria-se, desde logo, um espaço real e efetivo que tende a opor, crescentemente, a instância administrativa à instância judicial. O Administrador obrigatoriamente lança e “jurisdiciona” os tributos sempre a partir da lei e dos atos administrativos inferiores. O Juiz pode e, mesmo, para nossa cultura jurídica, deve decidi-los a partir da Constituição. 6 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 7. 7 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 9 142 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 142-172, jan./mar. 2014 Destarte, a duplicidade de instâncias entre as esferas administrativa e judicial, ocorre, no Brasil, com uma amplitude e uma dramaticidade ímpares no direito comparado. Pode-se mesmo dizer que o próprio direito que as duas esferas aplicam não é exatamente o mesmo.8. Há, pois, um choque hermenêutico, um paradigma decisório distinto que é utilizado pelo Poder Executivo, de um lado, inclinado a decidir através de normas fechadas e positivadas; de outro lado, o Poder Judiciário, que detém o poder de declarar a inconstitucionalidade de normas, bem como aplicar princípios e normas abertas na resolução dos conflitos concretos entre cidadão e administração. A pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, embora originariamente não tenha sido incumbida para avaliar o setor público e o setor privado, optou por agir em dois segmentos: as lides de consumidor e o processo previdenciário: Como visto, o mapeamento das demandas repetitivas fundamentou a escolha do estudo de caso em matéria de direito previdenciário, especificamente voltado para as demandas envolvendo concessão de benefícios previdenciários movidas por pessoas físicas em face do Instituto Nacional da Previdência Social – INSS.9 (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2010, p. 34). Interessa para o presente estudo os números e conclusões envolvendo o setor público em juízo, embora seja relevante a questão das grandes empresas privadas alcançando números impressionantes de litigância. Assim como na pesquisa do sul do Brasil, os paulistas também encontraram razões semelhantes que explicam a litigiosidade, tanto em processos fiscais, como previdenciários, principalmente na origem do conflito judicial: Diversos fatores, de variadas natureza e projeção, podem ser hipoteticamente apontados como causadores de potenciais de conflito em matéria previdenciária, por exemplo: (i) o crescimento demográfico e aumento da expectativa de vida da população; (ii) os ciclos de instabilidade econômica e de conseqüente desemprego; (iii) a regulamentação legislativa, instável e pouco clara, que provocaria conflitos ao invés de preveni-los; (iv) a atuação estatal administrativa, formalista e ineficiente, que conduziria a população a buscar a tutela 8 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, op. cit., p. 21. 9 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 34. Fernando Menegueti Chaparro 143 previdenciária pela via judicial; (v) o sentido conferido às políticas econômicas governamentais, que resultariam em redução da tutela previdenciária, o que geraria reação através da propositura de demandas judiciais; (vi) a própria atuação do Poder Judiciário, lento, instável e pouco uniforme, seria também um convite à litigiosidade; dentre outros.10. Dos possíveis fatores citados acima, os dois primeiros referem-se a situações sociais, não jurídicas. Os demais refletem exatamente a causa principal da litigiosidade estatal, notadamente o item que reporta à atuação estatal formalista e ineficiente. E mais, as demandas previdenciárias têm uma particularidade: algumas são de cunho repetitivo, quando veiculam apenas controvérsia jurídica; ou são classificadas como de massa, pois atingem um número gigantesco de cidadãos. As demandas repetitivas são de resolução mais simplificada, na medida em que uma ação civil pública, uma súmula vinculante ou mesmo uma súmula administrativa da Advocacia-Geral da União põe fim à discussão no âmbito administrativo. A complexidade do problema aumenta significativamente quando a controvérsia envolve uma demanda individual, com pressupostos de fato, como é o caso da maioria dos benefícios previdenciários (aposentadoria, auxílios, pensões, etc.), vez que exigem análise individualizada do problema, com a interpretação do conjunto probatório dos autos. Nessa área, a litigiosidade é em sua maioria individualizada e quantitativamente representativa, pois os pedidos são veiculados através de demandas individuais que repercutem no volume de processos e na morosidade do sistema de justiça brasileiro. Seja no âmbito tributário, objeto de pesquisa da Universidade Federal, ou na seara previdenciária, tema da Fundação Getúlio Vargas, o pano de fundo é a atuação decisória no processo administrativo e o posterior conflito, através de uma decisão do Estado-Juiz substitutiva. Os porquês dessa dupla instância decisória, que atualmente se tornou praticamente obrigatória, são os principais anseios das pesquisas. Um dos entrevistados da pesquisa, Advogado-Geral da União, declarou suas impressões sobre os motivos que levam a Fazenda Pública em juízo: Ao serem interrogados sobre habituais insensibilidades da instância Administrativa a uma aplicação mais justa do Direito, ou até que ponto devam ser consideradas pelo poder judiciário as razões do fisco, 10 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 35. 144 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 144-172, jan./mar. 2014 os respondentes apresentaram argumentos divergentes para compor os seus respectivos pontos de vista. Neste sentido, um ministro apresentou o seguinte importante argumento a ser observado: ‘Esse é um fator importantíssimo e talvez seja o principal motivo pelas elevadas demandas do judiciário. Muito em decorrência de uma insensibilidade da administração. Nós mesmos, até pouco tempo atrás, na União, associado ao déficit orçamentário e do período de inflação, tínhamos como parâmetro recorrer de tudo. Dessa maneira, a AGU tinha como linha o retardamento do reconhecimento da causa, levando a uma discussão muito grande no judiciário. Hoje, a AGU tem parâmetros mais claros, ou seja, do que se tem jurisprudência não se recorre. Como Advogado Geral da União eu tinha essa percepção de que a má atuação do poder público de forma geral era responsável por uma impressão de que o poder público era arbitrário. Frente a isso, acho que isso (insensibilidade) ocorra sim. A combinação de ações entre o grupo judicial e administrativo é fundamental para superar essa percepção. Com o auxílio de peritos e com especialização isso poderia ser solucionado.’ (Entrevistado 1).11. Um procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União, em entrevista contributiva para a pesquisa, discorrendo sobre o excesso de regulamentação normativa no âmbito previdenciário, bem definiu a origem do grande número de ajuizamentos contra o EstadoAdministração, pois “muitas vezes, o funcionário indefere o benefício porque ele tem dúvida se a pessoa teria ou não o direito, tem uma zona cinzenta.”12. Em suma: Essa atuação do INSS, pautada nos princípios da legalidade estrita, visa à higidez e à lisura na concessão do benefício, e é vista por muitos como excessivamente burocrática e rígida, em especial no que se refere à avaliação da prova trazida pelo interessado. Segundo os entrevistados que assim se manifestaram, a conduta do INSS implica o aumento do volume de processos judiciais na medida em que o indivíduo que tem seu pedido negado pode submetê-lo à apreciação do Judiciário, onde em regra há uma maior amplitude da instrução probatória e uma avaliação menos rígida das provas produzidas.13. 11 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, op. cit., p. 48. 12 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p. 63. 13 Ibidem, p. 68. Fernando Menegueti Chaparro 145 A denominada zona cinzenta de regulamentação é um dos grandes fatores que contribuem para a alta litigiosidade do Estado. Mas não é só. É preciso identificar a razão pela qual o Estado regulamenta minudentemente a prestação de seus serviços públicos, através de decretos, instruções normativas, regulamentos, ordens de serviço, etc. Talvez seja até necessária referida densidade normativa, porém, não é aí que reside o problema maior. Este último se encontra na aplicação da norma ao caso concreto, no momento em que o agente público aprecia os fatos e os confronta com as normas abstratas e uniformes. Todavia, como é sabido, os cidadãos não são iguais e não há flexibilidade do servidor administrativa na interpretação da norma, notadamente porque não é dotado de formação jurídica adequada. Analisando a conclusão da pesquisa de campo levada a cabo pela Fundação Getúlio Vargas, observa-se, entre as dez soluções propostas, que várias passam por alguma intervenção da Advocacia Pública na produção da norma administrativa ou na rotina decisória dos órgãos públicos. A primeira solução foi a revisão das normas administrativas previdenciárias, para que “estejam em consonância com a legislação vigente e com a Constituição Federal, com o entendimento do Judiciário e da PFE-INSS”14. Outra importante recomendação foi a adoção de soluções consensuais (conciliação processual e pré-processual), além da dispensa de recorribilidade de alguns temas jurídicos, em todos os casos invocando o envolvimento direto da Advocacia-Geral da União. A conclusão da pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, embora com algumas características próprias, na essência, concluiu que a melhor forma de equacionar e racionalizar a questão da alta litigância em matéria tributária seria atribuir um maior peso do Poder Executivo no momento decisório, afirmando-se, categoricamente, que a atual dupla instância decisória (administrativa e judiciária) não tem razão de ser, pois contribui com a morosidade e descrédito tanto do Poder Judiciário como em relação à Administração Tributária. Nas derradeiras linhas do estudo, registrou que: Enfim, há no País, desarticulação geral entre Judiciário e Administração. Pode-se constatar a falta de diálogo entre esses dois blocos institucionais. De um lado o Judiciário parece não escutar a Administração; e, por via reflexa, a Administração pouco escuta o Judiciário. Essa desarticulação é uma das principais causas da 14 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, op. cit., p.144. 146 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 146-172, jan./mar. 2014 crescente litigiosidade em matéria fiscal. A pesquisa constatou que 79,4% dos entrevistados concordam com a existência dessa desarticulação entre ambas as esferas.15. Destarte, verifica-se que o processo civil passa por graves problemas de efetividade, a ponto da mais alta cúpula do Poder Judiciário abrir diálogo com segmentos acadêmicos a fim de mapear os principais motivos que impedem a fluidez das demandas judiciais. Dois grandes estudos apontaram categoricamente que as causas principais da morosidade e inefetividade da Justiça encontram-se na relação entre Estado-Administração e Estado-Juiz, principalmente no que concerne à interpretação das normas jurídicas efetivadas pelos agentes administrativos. Várias soluções foram propostas, desde à alteração das normas administrativas, tornando-as mais claras, o incentivo à conciliação processual, passando pela criação de Tribunais Fiscais, no âmbito tributário, melhor aparelhamento da Justiça e da Administração, em termos tecnológicos e de pessoal, enfim, tentativas válidas para amenizar ou equacionar o problema da jurisdição. Não obstante, a crise do Estado e do Judiciário em matéria de direito público reflete um comportamento decisório antagônico, de modo que o Poder Judiciário utiliza-se do modelo constitucional, aberto, principiológico, e a Administração confia sua decisão sobre direitos dos cidadãos no sistema fechado e abstrato, inflexível, positivista, acreditando piamente que seus regulamentos contém toda a matéria suscetível de ser tutelada no mundo dos fatos. Eis o ponto que demonstra o desentendimento filosófico entre juiz e administrador, pois enquanto a Jurisdição evoluiu para novos rumos hermenêuticos, considerando a transformação da sociedade multicultural e desigual da modernidade, as normas administrativas ainda mantém o rígido sistema da lógica aristotélica, através de premissas maior e menor, o que se tornou insuficiente nos últimos tempos. Assim, à vista dos estudos acima citados, propõe-se uma incursão na formação dos sistemas decisórios que embasam o modelo administrativo e o modelo judicial, para então propor uma alternativa 15 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, op. cit., p. 192, do segundo volume. Fernando Menegueti Chaparro 147 que, se bem implementada, poderá equacionar grande parte dos problemas identificados na prestação jurisdicional. 2 O ACESSO À JUSTIÇA COMO CONCEITO AMPLO: A CONCRETIZAÇÃO EXTRAJUDICIAL DE DIREITOS DEVIDOS PELO ESTADO ATRAVÉS DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO Muito já se escreveu sobre o tema intitulado acesso à Justiça, assunto que não é monopólio dos doutrinadores processualistas. O termo acesso poderia sugerir o processo judicial que leva à Justiça, na acepção restrita da palavra como expressão do Poder Judiciário. Evidentemente, não é o âmbito de interpretação do tema. O conceito de acesso à Justiça não se relaciona, exclusivamente, com processo civil ou penal. Enfim, não está limitado ao clássico modelo de prestação de jurisdição, que no Brasil ainda é de cunho liberal-individual, caminhando para a coletivização do processo civil. Destarte, necessário se faz investigar quais os meios disponíveis ao cidadão para que ele, como destinatário da norma constitucional, tenha efetivamente garantido direitos constitucionais fundamentais. O meio ou instrumento acima citado é de conceito aberto, na medida em que, tradicionalmente, o processo jurisdicional tem sido o mecanismo utilizado pelos cidadãos para reparar ofensas a direitos devidos pelo Estado. Mas há outros meios de solução? A resposta é positiva. Basta interpretar a Constituição Federal com vistas à realização do Direito. Nota-se que o legislador constitucional garante o direito de petição (art. 5º, XXXIV, ‘a’), endereçado a qualquer dos Poderes Públicos, para a defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abuso de poder. Além disso, reconhece a existência do processo administrativo como forma de atuação dos diversos órgãos públicos. No atual panorama processual “Os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais servem a funções sociais; que as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada...”16. Paralelamente ao direito de se manifestar perante os Poderes Públicos, a Constituição Federal reafirma em relação ao Poder Judiciário o direito de ação, assegurando que nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser afastada do Poder Judiciário. Esse modus de atuação se desenvolve através do processo. Estaria, então, diante do comando 16 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 12. 148 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 148-172, jan./mar. 2014 constitucional, plenamente garantido o acesso à Justiça para o cidadão? A resposta é negativa. A palavra de ordem é a efetividade. O processo civil deve se transformar e adaptar-se às demandas da realidade social. Essa é a tônica que tem prevalecido na doutrina que analisa controvérsias judicializadas, mas que devem ser aproveitadas também no âmbito extrajudicial. Postula-se uma tutela diferenciada no processo, que, no entender de Wambier e Wambier17: Mas a tutela diferenciada, sempre ancorada na conveniência de que haja um processo mais rente à realidade, não abrange só possíveis diferenças no que tange só a aspectos meramente procedimentais. Diz respeito também, em seu sentido mais amplo, à divisão de competência, que implica, por exemplo, a existência de varas de família e de registros públicos. Açambarca os processos coletivos e suas peculiaridades, que, se se apresentam na forma de características procedimentais realmente diferenciadas, a estas não se limitam. Institutos como a legitimidade e a coisa julgada estão adaptadas ao fenômeno coletivo e aqui não se está diante de aspectos puramente procedimentais. Postular perante o Judiciário exige requisitos, entre eles a condição econômica do interessado, diante dos custos processuais e de honorários do advogado. Exige, outrossim, que o Poder Judiciário esteja próximo do cidadão, bem como que proporcione uma resposta efetiva. No ponto, Baptista da Silva18 registra que: Devemos, então, tratar da crise do Direito que, em verdade, é antes de tudo crise do processo, com olhos verdadeiramente críticos e realistas, sem perder de vista, no entanto, a premissa de que os fatores que a provocam e sustentam, encontram-se fora de seu domínio; ou decorrem de um descompasso entre as concepções jurídicas ainda dominantes no mundo moderno, embora concebidas para servir a sociedades menos complexas, e a estrutura, as exigências e as aspirações das novas organizações sociais extremamente complexas da sociedade pós-industrial. No fundo, não seria o direito processual, como técnica de tratamento de conflitos sociais, que estaria submerso 17 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. Tutela diferenciada. Revista de Processo, São Paulo, v. 142, p. 42-54, fev. 2010. p. 42-43. 18 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Democracia moderna e processo civil. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 99-100. Fernando Menegueti Chaparro 149 em crise irremediável, e sim a forma tradicional de processo civil, ainda muito ligada e dependente de conceitos e princípios herdados do Direito Romano. (grifo do autor). A experiência processual na sociedade contemporânea não tem sido das melhores. O processo civil tradicional, baseado em valores individuais e em problemas jurídicos individuais de caráter econômico, não é mais adequado como técnica processual para fins de solucionar os conflitos que a sociedade moderna proporciona. Há muito Dinamarco19 advertira da superficialidade de tratamento com o assunto: Existe um leque mais ou menos aberto de causas dessa lamentada estreiteza. Situam-se no campo econômico (pobreza, alto custo do processo), no psicossocial (desinformação, descrença), e no jurídico (legitimidade ativa individual). Como se vê, o tema do acesso ao processo não equivale, em extensão, à ‘questão social’. Além disso, falar do acesso ao processo não significa somente cuidar da possibilidade de valer-se dele como demandante, mas igualmente da defesa, a qual também sofre limitações de ordem psicossocial e econômica. Nesse contexto, o custo do processo e a miserabilidade das pessoas ocupam, apesar de não preencherem todo o espaço, lugar e muito destaque nas preocupações acerca da universalidade da tutela jurisdicional. (grifo do autor). Especificamente no que se refere à Administração Federal, parece óbvio, porém a questão é pouco explorada na processualística, no sentido de que o processo civil tradicional é falho na realização da Justiça. No trato desta questão, verifica-se que a União e suas autarquias (INSS, INCRA, IBAMA, ANATEL, ANEEL, FUNAI, etc.), além das fundações (universidades federais e institutos federais de ensino, por exemplo), são a todo tempo demandadas por ações individuais, questionando um fato isolado, ou mesmo por milhares de ações individuais, controvertendo sobre determinado fato comum, e, ainda, por demandas coletivas, propostas pelos legitimados legais.20 Além disso, são também demandantes em executivos fiscais e ações diversas, no interesse da sua atuação finalística. 19 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 392-393. 20 NUNES, Dierle José Coelho. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisória. Revista de Processo, São Paulo, v. 199, p. 41-82, set. 2011, p. 43-44. 150 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 150-172, jan./mar. 2014 Esse fenômeno processual é denominado de litigância de interesse público por Nunes: Lutas de movimentos sociais, do movimento negro, de grupos religiosos, ambientais, entre outras minorias, encontram espaço processual para serem exercidos, em face da garantia constitucional processual de acesso à justiça, que viabiliza a busca perante o Poder Judiciário de qualquer pretensão. Ao mesmo tempo, coloca-se em discussão em qual medida esse exercício de questões de variado matiz, perante a Jurisdição, teriam legitimidade em face das incontáveis ressonâncias que podem conduzir. Nesse aspecto, é emblemática a questão da judicialização da saúde no Brasil, na qual, de um lado, temos milhares de cidadãos que precisam de medicamento e tratamento não ofertados por políticas públicas idôneas, e de outro lado, temos decisões que desequilibram o orçamento público de saúde. Seria preciso induzir o cumprimento de um verdadeiro financiamento da saúde para tornar desnecessária a propositura das demandas; mas até lá como resolver tal paradoxo? Em face de toda essa complexidade posta o direito processual deve se descortinar a novos conteúdos e a novos desafios. E no momento em que contamos um projeto de lei para delineamento de um novo Código de Processo Civil (LGL\1973\5) (PL 8.046/2010) precisamos meditar se a lei projetada está embasada em fundamento e compreensão idônea desta litigiosidade, pontuando-se, desde já, que não se pode resolver os problemas de nosso sistema jurídico nos limitando à mera análise legislativa. Portanto, não se pode dizer que somente pelo volume de atuação é possível se utilizar do processo coletivo para resolução de conflitos envolvendo o Estado-Administrador em juízo, posto que há questões individuais e específicas. Watanabe21 abordando a alta litigiosidade estatal, pondera que: 21 WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p.131. Fernando Menegueti Chaparro 151 Exceção feita a algumas demandas coletivas (v.g., as chamadas ‘ações civis públicas’ e ação popular), todas as demais são tratadas como se tivessem configuração interindividual e as técnicas processuais a elas aplicadas são as tradicionais, consistentes em atomização e solução adjudicada de conflitos. Entretanto, não se pode dizer que o Estado é uma pessoa comum, um litigante qualquer, que merece tratamento idêntico àquele que pela primeira vez propõe ou contesta uma ação. É o que Cappelletti e Garth22 registram em seu conhecido estudo: O professor Galanter desenvolveu uma distinção entre o que ele chama de litigantes ‘eventuais’ e ‘habituais’, baseado na freqüência de encontros com o sistema judicial. Ele sugeriu que esta distinção corresponde, em larga escala, à que se verifica entre indivíduos que costumam ter contatos isolados ou pouco freqüentes com o sistema judicial e entidades desenvolvidas, com experiência judicial mais intensa. Baseado nesse fator discriminante é possível concluir que os litigantes habituais podem ser tratados diversamente, principalmente na adoção de novas técnicas de solução de conflitos, na medida em que, pela reiteração da litigiosidade destas pessoas, verifica-se que o processo não cumpre seu escopo fundamental, que é a pacificação social e a segurança jurídica. A conciliação judicial tem sido uma bandeira diversas vezes levantada pelos dirigentes máximos do Poder Judiciário, como meio mais racional de solução de conflitos judicializados. Trata-se de importante iniciativa, porém, não resolve o gravíssimo problema da imensa litigância que envolve órgãos públicos em juízo. Grinover23 obtempera: Assim como a jurisdição não tem apenas o escopo jurídico (o de atuação do direito objetivo), mas também escopos sociais (como a pacificação) e políticos (como a participação), assim também diversos fundamentos podem ser vistos na adoção das vias conciliativas, alternativas ao processo: até porque a conciliação, como vimos, se insere o plano da política judiciária e pode ser enquadrada numa acepção mais ampla de jurisdição, visa numa perspectiva funcional e teleológica. 22 Cappelletti; Garth, op., cit., p. 25. 23 GRINOVER, Ada Pelegrini. A conciliação extrajudicial. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 283. 152 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 152-172, jan./mar. 2014 A conciliação pré-processual e de natureza não jurisdicional deve se inserir no pensamento de todos os atores do Direito, como uma espécie de política judiciária, uma técnica de solução efetiva de conflitos. É inegável que a complexidade das sociedades contemporâneas, com os novos mecanismos de informação e do surgimento de novos direitos, ou releituras de direitos clássicos, como o direito de família e a amplitude deste conceito, enfim, o direito tradicional, segregado em matérias estanques e definidas, foi superado por novas relações sociais, altamente complexas, que exigem do Poder Judiciário um nível de especialização e conhecimento fora da área jurídica que ele não possui. Destarte, não se quer apenas reafirmar a existência dos institutos da conciliação, mediação ou arbitragem. É preciso que se adote a possibilidade de equivalentes jurisdicionais legitimados pela própria Constituição Federal, independentemente de legislação ordinária. Reale24 atribui de forma lapidar o locus da negociação no cenário nacional, afirmando ser um verdadeiro modelo jurídico, ao lado do modelo jurisdicional: No Estado Democrático de Direito, nos moldes da Carta Magna vigente, que consagra, como fundamentos da ordem econômica, os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, mister é atentar para a relevância dos modelos negociais, superando-se a cediça asserção de que eles só existem porque assim o dispõe a lei. Na realidade, eles haurem sua vigência na matriz da Lei Maior, de tal modo que o legislador ordinário não tem poderes para suprimir o mundo dos contratos, mas tão-somente para regulá-los na medida dos imperativos da livre coexistência das múltiplas vontades autônomas concorrentes, tendo como base o bem comum, a começar pelo direito do consumidor, também ele considerado basilar na ordem sócio-econômica. (grifo do autor). É fato que, além dos entraves econômicos para o acesso à Justiça, a realidade brasileira convive com outro fator relevante a ser superado, qual seja a falta de informação dos cidadãos sobre seus próprios direitos. No âmbito das concretizações de direitos fundamentais devidos pelo Estado, a relação jurídica base é desenvolvida entre um agente do Estado, normalmente um servidor de carreira e o cidadão, que, em se tratando de direitos sociais, carrega a hipossuficiência própria da sua condição. 24 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 73. Fernando Menegueti Chaparro 153 Destarte, quando é desenvolvida a pretensão administrativa, colhem-se os dados fáticos preconcebidos nos sistemas de informação do órgão estatal e se produz então a decisão administrativa, fruto do silogismo extraído da programação do sistema adotado naquela hipótese. E aqui, como já dito alhures, começa o problema central da jurisdição em matéria de direitos fundamentais. Se a pretensão do cidadão é acolhida pelo agente público, concretiza-se o direito e o comando constitucional é preservado, ressalvadas, evidentemente, as hipóteses de fraude ou erro administrativo, consideradas como excepcionais. Porém, quando a resposta é negativa, surge para o postulante um conflito de interesses com o Estado. Sua pretensão não se subsumiu ao comando legal ou infralegal determinado pelo órgão público. A cultura nacional tradicional prega que esse cidadão está “amparado” pelo direito, pois deve ingressar com a competente ação judicial. E é exatamente isso que ocorre, porém, em escala de milhões de demandas. Pode-se aduzir que há meios administrativos para corrigir eventual falha na decisão. É verdade, os recursos administrativos são legalmente previstos, todavia, a resposta da instância superior será dada nos mesmos moldes da decisão recorrida. Os advogados de Estado são os membros das instituições previstas como função essencial à Justiça, sendo a Advocacia-Geral da União (AGU) no âmbito federal, e as Procuradorias-Gerais dos Estados, em sede estadual. Em suma, esses órgãos representam judicialmente o Estado – e não o governo – perante juízos e tribunais, além de serem incumbidos da consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo respectivo. A participação proativa da Advocacia Pública no espaço decisório administrativo é um meio de se aprimorar a construção do direito de forma pré-judicial, através de um pronunciamento de maior qualidade jurídica e hermenêutica, promovendo a aproximação da interpretação constitucional hodiernamente aplicada pelo Judiciário com o sistema de contencioso administrativo, ainda refém dos silogismos jurídicos do positivismo. 3 DA PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO A Advocacia Pública é instituição com estatura constitucional (artigo 131 da Constituição Federal de 1988). A Constituição Federal de 1988 consagrou a teoria da separação dos poderes entre executivo, legislativo e judiciário. Além disso, criou as denominadas Funções Essenciais à Justiça, em capítulo próprio, destinado ao Ministério Público, à Advocacia Pública, à Advocacia privada e à Defensoria Pública. 154 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 154-172, jan./mar. 2014 Bem analisada a disposição constitucional, é possível verificar o tamanho da importância atribuída aos atores jurídicos, pois, ao lado dos poderes tradicionais, asseverou como essenciais à justiça a advocacia privada e as demais procuraturas constitucionais: a representação da sociedade, realizada pelo Ministério Público, a representação do Estado, efetivada pelos advogados públicos e a representação dos necessitados, implementada pelas defensorias públicas25. Sendo a atuação dos advogados públicos uma advocacia de Estado, é preciso evidenciar que não se trata de desempenho da denominada advocacia de governo. São situações bem distintas. O advogado do governo, normalmente ocupado pelos cargos comissionados, de nomeação livre do agente eleito, atende exclusivamente aos interesses transitórios e particulares dos governantes da ocasião, enquanto os advogados do Estado, concursados e organizados em carreira, trabalham em prol da concretização do interesse público e sustentação do Estado Democrático de Direito. Em relação à dicotomia Estado e governo, Macedo26 informa: O Estado é dotado de caráter permanente, representando a unidade social; já o governo é temporário, na medida em que exprime a opinião político-partidária dominante num certo período. Em sentido estrito, governo designa o grupo que, num determinado Estado em dado momento, exerce a função executiva do Estado. A Advocacia-Geral da União, não pertence ou se subordina a qualquer poder político, pelo contrário, é representante judicial dos três, e não pode ser aparelhada ou utilizada pelo interesse partidário de plantão. Tratase de órgão alheio, equidistante, de natureza técnica, que empresta seus conhecimentos jurídicos a fim de garantir a legalidade ampla das políticas públicas propostas pelos governantes, eleitos democraticamente pelo povo: À luz do papel de controle de legalidade e de legitimidade desempenhado pela Advocacia-Geral da União, garantidor de um verdadeiro Estado Democrático de Direito (vide tópico 4.2.2.1.1 desta obra), a resposta a estas indagações se mostra clara: trata-se, em ambos os casos, de uma advocacia de Estado, na medida em que se age na defesa de princípios constitucionais que não se alteram pela simples mudança de governo, nem se submetem aos momentâneos interesses partidários. Ademais, caso se empregue o termo ‘governo’ 25 MACEDO, Rommel. Advocacia-Geral da União da Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2008. p. 23-24. 26 Ibidem, p. 129. Fernando Menegueti Chaparro 155 como sinônimo de ‘governante’, mais claro ainda se mostra que a Advocacia-Geral da União não se trata de uma advocacia do Governo, mas sim do Estado, vez que, em regra, representa judicial e extrajudicialmente, bem como empresta consultoria e assessoramento jurídicos à União (enquanto pessoa jurídica de direito público) e não a pessoas físicas. (grifo do autor).27 A concepção de que a Advocacia Pública não se confunde com a advocacia de governo é de suma importância para redefinição do papel que deve desenvolver no Estado Democrático de Direito. O assessoramento jurídico previsto constitucionalmente deve ser compreendido na acepção mais ampla possível do termo, não se limitando a respostas sobre consultas eventualmente realizada pelo Poder Executivo. A atuação passiva deve dar lugar à proatividade, deve ceder diante da efetiva participação da Advocacia Pública no espaço decisório administrativo, de modo que sua inclusão no processo de decisão tenha influência capaz de determinar o julgamento da demanda, proporcionando, em última análise, a adequação da norma administrativa à hermenêutica constitucional, e, por conseguinte, realizando o direito do cidadão. A advocacia, abrangendo todas as suas formas, pública, privada ou dos necessitados, tem o condão de traduzir juridicamente os fatos postos sob conflito ou análise. Onde há duas ou mais pretensões antagônicas, normalmente entre leigos em letras jurídicas, o advogado pode proporcionar o melhor entendimento possível, ainda que a solução não seja integralmente favorável a uma das partes. Esse pressuposto básico da conciliação deve migrar para as demandas públicas, na medida em que há de um lado o órgão público, que não tem formação jurídica e, de outro, o cidadão, que, da mesma forma, não conhece o direito técnico. É importante ressaltar que já existe uma relação de subordinação das decisões jurídicas emanadas da Advocacia-Geral da União e a Administração Pública Federal. Trata-se do cumprimento obrigatório dos pareceres jurídicos firmados pelo Advogado-Geral da União e aprovados pelo Presidente da República, consoante norma cogente da Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União: Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República. 27 MACEDO, op. cit., p. 131. 156 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 156-172, jan./mar. 2014 § 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. § 2º O parecer aprovado, mas não publicado, obriga apenas as repartições interessadas, a partir do momento em que dele tenham ciência. Assim, excepcionalmente, as decisões do órgão de assessoramento jurídico da União são obrigatórias para os demais órgãos administrativos. Esse mecanismo de assessoramento e controle da Administração é importante para consolidar a melhor interpretação de determinada norma jurídica, evitando decisões equivocadas dos órgãos administrativos, servindo também para balizar a atuação jurídica dos membros da Advocacia Pública se existir litígio judicial sobre o tema. Trata-se de uma atuação preventiva e abstrata do órgão jurídico, sem se imiscuir nas questões de fato do procedimento administrativo. Verifica-se, então, que a regulação jurídica por meio de pareceres se aplica tão-somente na matéria de direito, na qual não se discute problemas de fato, de prova. Mas a atuação do órgão jurídico nas questões administrativas não pode ser apenas prévia e abstrata, como em um silogismo. É preciso criar mecanismos para que o administrador esteja amparado juridicamente para proferir a melhor decisão possível em consonância com a Constituição. O processo civil moderno tem sido fértil em apresentar soluções para as questões repetitivas, nas quais se discute uma questão jurídica, sem se perquirir a base fática da pretensão. Milhares de ações podem ser suspensas caso o Supremo Tribunal Federal reconheça a repercussão geral de uma matéria tributária, por exemplo, e, ao final, sua decisão prevalecerá e vinculará todos os julgamentos, racionalizando a prestação jurisdicional. Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça pode solucionar várias ações se submeter determinada interpretação jurídica ao sistema de julgamento repetitivo do recurso especial. As ações coletivas são outro exemplo de maior otimização no que toca às demandas em massa, cabendo, ao final, a resolução do direito e a execução individualizada da pretensão. No projeto de Código de Processo Civil há disposição possibilitando um incidente de resolução de demandas repetitivas, que permitirá ao magistrado identificar uma demanda com potencial multiplicação de processos, e elegê-la como paradigma estadual vinculante, em julgamento proferido pelo tribunal. Todavia, malgrado a fertilidade de Fernando Menegueti Chaparro 157 ideias revolucionárias que atualmente existem em nosso ordenamento jurídico, nenhuma delas enfoca a prevenção de litígios, a oxigenação de ações no Poder Judiciário e a especialidade que envolve a questão da Fazenda Pública em juízo. A importância deste ator processual para a política judiciária já foi demonstrada em números, através de amplos estudos acadêmicos. Assim como houve a abertura do processo civil tradicional para receber novos procedimentos em demandas coletivas, de interesses transindividuais e coletivos, é preciso que o processo civil moderno tenha consciência de que existe uma nova categoria de demandas, que são as individuais de caráter social, que não são coletivas porque não pressupõem base fática idêntica, posto que cada indivíduo tem uma história particular de vida; também não são puramente individuais, já que envolvem o mesmo devedor da prestação, que é o Estado. O problema é que cada uma destas lides compõe um estudo de caso concreto, um fato, e a judicialização destes casos concretos pode se multiplicar em milhões de casos, como ocorre em ações envolvendo a previdência social, a assistência social, habitação, medicamentos, etc. Por estas e outras razões que se deve pensar o processo civil tradicional em conexão com um direito processual público. Esse é o pensamento de Sundfeld28, que por meio de indagações, ensina a relação que existe entre Administração Pública e Judiciário: Inicialmente, as perguntas que devemos propor são as seguintes: Quais as relações existentes entre Judiciário e a Administração Pública? Em que medida eles se relacionam? Qual a profundidade desta relação? Quais os instrumentos para seu estabelecimento? Quais os limites desta relação? Quais os seus problemas? Quais suas características? Há um segundo conjunto de questões que, à primeira vista, confundemse com as anteriores, mas que nos conduzem a um campo mais abrangente de reflexão. Quais são as relações entre Administração Pública e processo? Em que medida a Administração depende do processo? Em que medida o processo condiciona a ação administrativa? Em que medida a ação administrativa depende do processo? Em que medida a ação administrativa pode ser mais extensa ou menos extensa em função do processo? Em que medida a ação administrativa deve ser de 28 SUNDFELD, Carlos Ari. O direito processual e o direito administrativo. In: SUNDFELD, Carlos. Ari; BUENO, Cássio Scarpinella. (Orgs.). Direito processual público: a Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 17. 158 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 158-172, jan./mar. 2014 um modo ou de outro em função do processo ou de processos judiciais? (grifo do autor). É íntima e de longa data a relação entre administrador e juiz. Entre decisão administrativa e decisão judicial. No entanto, a preocupação dos administrativistas, constitucionalistas e processualistas sempre se direcionou para o estudo dos limites de atuação judicial na esfera administrativa, ou seja, pressupondo a existência de um processo judicial instaurado, nunca na prevenção de litígios, tema hoje central para desenvolvimento saudável do Poder Judiciário. Propõe-se, destarte, que a atuação da Advocacia Pública seja amplificada para influenciar a decisão administrativa e até mesmo vinculá-la, nas hipóteses de direitos individuais envolvendo matéria fática, situações estas impossíveis de se tutelar pela via coletiva (ação civil pública, ação coletiva), por envolverem decisão sobre a prova da matéria de fato que enseja a concessão do direito fundamental. O advogado público, utilizando-se de seus conhecimentos jurídicos e pautados na nova hermenêutica constitucional, deve atuar como revisor e julgador das questões administrativas quando houver negação do direito pela administração, seja pela má apreciação das provas, seja pela aplicação mecânica da norma administrativa, que é fria e estanque, muitas vezes em descompasso com a realidade social do caso concreto. Para desenvolvimento desse novo mister processual administrativo, é preciso reconhecer na Advocacia Pública e em seus membros um órgão com independência funcional em relação ao governo, sobretudo para que a decisão jurídica prevaleça independentemente de ingerências administrativas, ficando imune a revisões, evitando, de toda forma, o ajuizamento de uma demanda judicial questionando aquela decisão. Trata-se de uma instância decisória que transita entre a Administração, pois exerce a função de assessoria jurídica, e o Poder Judiciário, posto que a Advocacia Pública possui os mesmos conhecimentos hermenêuticos deste Poder, exercendo apenas função distinta, possibilitando o casamento perfeito entre demanda do cidadão, aplicação do princípio da legalidade, na sua nova roupagem constitucional, e efetivação do direito fundamental previsto constitucionalmente. A atuação dar-seia tanto na orientação para decisão do servidor administrativo no caso concreto, como pela decisão substitutiva da Administração, quando houver negativa do ente público na concessão de um direito, desde que a decisão Fernando Menegueti Chaparro 159 governamental esteja em confronto com a interpretação constitucional – e não meramente normativa – sobre o tema. Não se trata de uma ideia utópica ou inconstitucional, basta existir vontade política e investimentos em estrutura de pessoal. A experiência desta Advocacia Pública constitucional já existe, e pode ser verificada nas câmaras de conciliação prévia da Advocacia-Geral da União. 4 A EXPERIÊNCIA DA AGU: CÂMARA DE CONCILIAÇÃO E ARBITRAGEM A Advocacia Pública ganhou nova roupagem após a Constituição Federal de 1988 (artigos 131 e 132). De mais relevante, cita-se a sua inclusão como uma função essencial à Justiça, de modo que não pode ser mais interpretada como mero representante judicial do governo, mas sim como instrumento de realização do Direito, seja judicial ou administrativamente. Nos termos constitucionais, a Advocacia Pública compõe-se das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal e da Advocacia-Geral da União. Destarte, no âmbito federal, qualquer política pública governamental (transportes, segurança, educação, previdência, saúde, etc.) deve passar pelo crivo da Advocacia-Geral da União. A lei orgânica da Advocacia-Geral da União (BRASIL, 1993) atribuiu ao AdvogadoGeral da União a prerrogativa para efetuar conciliações, acordos ou compromissos nas ações de interesse da União (art. 4º, inciso VI). Além disso, facultou-lhe a competência para prevenir e dirimir controvérsias entre órgãos da Administração Pública federal (inciso XI). A instituição de Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal é expressão do comando legal para conciliar interesses de órgãos federais. Destarte, sempre que houver litígio entre União e suas autarquias e fundações, ou entre estas, é possível a instituição de um procedimento incidental ao processo civil para que a controvérsia seja dirimida interna corporis. Segundo o Ato Regimental nº 5, de 27 de setembro de 2007: Art. 17. Compete à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal - CCAF: I-identificaroslitígiosentreórgãoseentidadesdaAdministraçãoFederal; II - manifestar-se quanto ao cabimento e à possibilidade de conciliação; III - buscar a conciliação entre órgãos e entidades da Administração Federal; e 160 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 160-172, jan./mar. 2014 IV - supervisionar as atividades conciliatórias no âmbito de outros órgãos da Advocacia-Geral da União. A regulamentação do normativo ocorreu na mesma data, através da Portaria nº 1281/2007, valendo citar seus principais comandos: Art. 1º O deslinde, em sede administrativa, de controvérsias de natureza jurídica entre órgãos e entidades da Administração Federal, por meio de conciliação ou arbitramento, no âmbito da AdvocaciaGeral da União, far-se-á nos termos desta Portaria. Art. 2º Estabelecida controvérsia de natureza jurídica entre órgãos e entidades da Administração Federal, poderá ser solicitado seu deslinde por meio de conciliação a ser realizada: I - pela Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal - CCAF; II - pelos Núcleos de Assessoramento Jurídico quando determinado pelo Consultor-Geral da União; III - por outros órgãos da Advocacia-Geral da União quando determinado pelo Advogado-Geral da União. Art. 9º O conciliador e os representantes dos órgãos e entidades em conflito deverão, utilizando-se dos meios legais e observados os princípios da Administração Pública, envidar esforços para que a conciliação se realize. Art. 10. Havendo a conciliação, será lavrado o respectivo termo, que será submetido à homologação do Advogado-Geral da União. Parágrafo Único. O termo de conciliação lavrado pelos órgãos referidos nos incisos II e III do art. 1º e homologado pelo AdvogadoGeral da União será encaminhado à CCAF. Art. 11. A Consultoria-Geral da União, quando cabível, elaborará parecer para dirimir a controvérsia, submetendo-o ao AdvogadoGeral da União nos termos dos arts. 40 e 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Art. 13. Poderão ser designados conciliadores: Fernando Menegueti Chaparro 161 I - os integrantes da Consultoria-Geral da União, por ato do Consultor-Geral da União; II - os integrantes da Advocacia-Geral da União, por ato do Advogado-Geral da União. Inicialmente, o órgão jurídico da União parecia despreocupado com a questão da litigiosidade interna da Administração Pública. Portanto, não causava espanto que duas autarquias federais litigassem no Poder Judiciário sobre determinada pretensão. E se trata de fato relativamente comum. Imagine-se uma controvérsia do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, quando em fiscalização de rotina autua um órgão federal pela transgressão de normas ambientais. Ou, ainda, que a ANS – Agência Nacional de Saúde divirja de uma decisão sobre medicamentos proferida pela ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Enfim, a controvérsia entre os órgãos federais seria decidida pelo Poder Judiciário, não obstante cada ente público possuir seu corpo jurídico qualificado e especializado no assunto finalístico do órgão. A ideia de uma câmara de conciliação e arbitragem surgiu para racionalizar a concretização da justiça entre os litigantes federais, na medida em que se torna absolutamente desnecessária a judicialização do conflito, quando a melhor decisão pode surgir de um corpo jurídico que se compromete com a imparcialidade e a realização dos ditames constitucionais, representado pela Advocacia Pública federal. O advogado público seria o instrumento processual para implementar a conciliação judicial, caso a controvérsia já tivesse ajuizada, ou extrajudicial, como prevenção de litígio. Nesse caso, após a normatização sobre o tema, tornou-se possível a submissão da controvérsia entre órgãos federais à Câmara de Conciliação da Administração Pública Federal. Em suma, não há mais necessidade de judicialização, porque: se há conciliação, o termo é homologado pelo Advogado-Geral da União e se encerra a controvérsia; se não há acordo, a Consultoria-Geral da União emite um parecer e o submete ao Advogado-Geral para despacho do Presidente da República, que o torna vinculante e obrigatório para os órgãos envolvidos, nos termos dos artigos 40 e 41 da Lei Complementar 73/1993. Eis um caso evidente de que o acesso à Justiça se dá independentemente do Judiciário e é exclusivamente realizado de forma extrajudicial, com intervenção de órgãos jurídicos da advocacia, 162 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 162-172, jan./mar. 2014 colaborando com a rápida solução do litígio e a redução da litigância estatal perante o Judiciário. Mais recentemente a Advocacia-Geral da União estendeu a atribuição da Câmara de Conciliação e Arbitragem para resolução de conflitos entre Estados e Distrito Federal (administração direta e indireta) com a União e suas autarquias e fundações, ampliando o rol de situações passíveis de resolução conciliatória envolvendo os órgãos jurídicos dos polos da relação. Trata-se da otimização dos instrumentos processuais existentes, através de uma interpretação constitucional muita mais ampla da função da Advocacia Pública. Se os advogados públicos pertencem a um órgão que é designado como função essencial à Justiça, possuem atribuições legais e constitucionais voltadas ao interesse público, não há porque desperdiçar esse potencial jurídico para resolução de conflitos e submeter a pretensão de órgãos estatais ao julgamento impositivo e substitutivo da jurisdição. O processo civil moderno não prevê soluções como a que se expôs acima, limitando-se a prever, genericamente, a conciliação, inclusive como objeto de busca incessante e a qualquer momento pelo magistrado, mas não há o estancamento de ações judiciais. Ocorre que, a despeito das ideias sugestivas da Câmara de Conciliação da Administração Federal, a repercussão na política processual judiciária é ínfima, pois não existe um grande número de demandas envolvendo órgãos públicos litigando entre si. Como já dito alhures, atualmente, o grande problema do Judiciário e do processo civil é equacionar a altíssima litigância entre o indivíduo e o Estado. São milhões de ações individuais que abarrotam os foros judiciais e envolvem decisão administrativa indeferitória de alguma pretensão realizada perante o Poder Público. A cada negativa da administração a um pedido individual surge o direito ao ajuizamento de uma ação judicial questionando o ato. Imaginese o potencial multiplicador de demandas que envolve essa relação Administração-Judiciário. Como exemplo, pode-se citar um benefício previdenciário ou assistencial, ambos geridos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (que foi objeto da pesquisa efetuada pela Fundação Getúlio Vargas). Não se trata, pois, de matéria de direito, na medida em que estas prestações estatais dependem de uma avaliação do substrato fático da pretensão, que é necessariamente individualizada (incapacidade, trabalho rural, Fernando Menegueti Chaparro 163 miserabilidade, número de contribuições, tempo de serviço, etc.). Ou, ainda no âmbito público, demandas sobre obrigação de entregar medicamentos, que dependem da avaliação médica do interessado. Essas demandas individuais de conteúdo específico não têm tratamento diferenciado no processo civil tradicional ou mesmo nas novas reformas processuais realizadas nos últimos anos. O julgamento tradicional destas questões – uma a uma – contribuiu para a inefetividade da Justiça. Isso porque, pelo número de ações, a tendência é a extrema demora da resolução do conflito, que envolve, na maioria dos casos, produção de prova pericial ou testemunhal. Segundo, porque a repetição dos casos tende a banalizar o julgamento, criando um sistema de precedentes em relação à matéria de fato, o que é contraditório, vez que cada caso concreto deve ser analisado individualmente. O desenvolvimento de um sistema pré-processual de julgamento destas questões é urgente e contribuirá para a racionalização da prestação jurisdicional e da concretização de direitos perante a Administração Pública. Discorrendo especificamente sobre a Advocacia Pública federal, Bernardo29 explica que: Certamente, um número razoável de litígios poderia ser solucionado sem que fosse movimentada a já abarrotada e dispendiosa máquina do judiciário. De outro lado, a AGU atuaria diretamente como verdadeira promotora na agilização da garantia das políticas públicas previstas no ordenamento em favor da população. A proposta, logicamente, não intenciona a substituição da jurisdição pelo julgamento administrativo, concretizado pela Advocacia Pública. Absolutamente, trata-se apenas de um espaço decisório qualificado, integrador e independente das amarras que a administração impõe através de normativos cada vez mais minuciosos, fechados, sem qualquer margem de flexibilização do agente público. Somente são contemplados pelas prestações sociais aqueles que formalmente se inserirem nos moldes jurídicos dos sistemas de informática do órgão. Não é difícil imaginar a vasta gama de cidadãos que sofrem abusos em seus direitos em decorrência desse positivismo exacerbado praticado pelas decisões administrativas. 29 BERNARDO, Leandro Ferreira. A câmara de conciliação e o novo papel da Advocacia-Geral da União. Revista da AGU – Advocacia-Geral da União. Brasília, n. 25, p. 163-184, jul./set. 2010. p. 181. 164 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 164-172, jan./mar. 2014 Destarte, nas hipóteses de indeferimento de pretensões envolvendo órgãos estatais, deve-se possibilitar a intervenção do órgão jurídico para solução da controvérsia, antes que o interessado proponha a demanda judicial. Nestas hipóteses, proporcionando a participação efetiva do cidadão no contraditório, com direito a voz e produção de provas, ainda que “vedadas administrativamente”, em confronto com o representante do órgão administrativo, produzir-se-ia nova decisão, intermediada pelo advogado público, que, revestido de amplas garantias e prerrogativas, poderá atribuir o direito ao cidadão, contrariamente à decisão governamental, desde que fundamente e justifique, através de elementos probatórios específicos, a rejeição da norma geral no caso concreto. Em texto jus-filosófico, Baptista da Silva30, conclui: Seria realmente quimérico que os juristas pretendessem conquistar novos espaços de participação democrática, limitando-se a pedir aos políticos que lhes desses novos Códigos, ou que se editassem mais leis, particularmente de processo civil, sem que eles próprios estivessem preparados para o desempenho de suas funções de coparticipantes na produção do direito, autenticamente democrático, na medida em que puder ser produzido por quem os aplica e consome. A coparticipação para produção do direito pode ser alcançada quando o cidadão é aproximado do Estado através de um órgão facilitador, independente. O Poder Judiciário, a rigor, tem a função de julgar e adjudicar o direito a quem tem razão, segundo a decisão judicial, em função substitutiva da vontade da parte. A Advocacia Pública, em interpretação constitucional integradora, não é apenas um órgão para responder e propor ações na Justiça, mas sim para viabilizar políticas públicas e assessorar adequadamente a administração, em todos os atos. A aproximação entre advocacia e administração da Justiça, tanto no controle como na colaboração, também é defendida na Argentina, consoante explica Berizonce31: Contralor a cargo de los Colegios profesionales Desde otro vértice parécenos que los Colegios de abogados deben asumir más plenamente la tarea de colaboración con la Administración de Justicia, que constituye uno de los principales 30 BAPTISTA DA SILVA, op. cit., p. 110-111. 31 BERIZONCE, Roberto Omar. Contralor de La labor jurisdicional y estado de derecho. In: GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R.; WATANABE, K. (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 145. Fernando Menegueti Chaparro 165 fundamentos de su reconocimiento legal. Esta legitimación básica que en todas las legislaciones que consagran la colegiación, les autoriza para llevar acusación ante los jurados de enjuiciamiento de Magistrados, implica obviamente el ejercicio del controlador del la actuación de los mismos. Labor transcendente que, en nuestro sistema, las Comisiones internas de Administracion de Justicia no cumplen sino de una manera parcial y discontinua. Nessa ordem de ideias, seria interessante que fossem criadas células de julgamento em casos de indeferimento da pretensão do cidadão. Não se desconhece a pouca estrutura proporcionada pelo EstadoAdministração para o desenvolvimento dos serviços administrativos, e a proposta deste trabalho vai em posição oposta ao pensamento dominante da administração. Todavia, não se trata de inflar a Administração com mais cargos obsoletos e burocráticos, mas somente estruturar um órgão de estatura constitucional para otimizar o mister que lhe atribuiu a Assembleia Constituinte de 1988. Destarte, a questão sobre disponibilidade orçamentária para desenvolvimento das câmaras de julgamento é secundária, que se for devidamente avaliada traz economicidade para o erário, na medida em que bem utilizada evita pagamento de juros moratórios, custas e honorários advocatícios, além de aliviar a estrutura do Poder Judiciário e dos próprios órgãos administrativos envolvidos. Paulatinamente, assuntos como saúde, previdência social e execução fiscal poderiam se inserir no projeto piloto de intervenção da Advocacia Pública na solução de conflitos entre administração e cidadão. Questões como a entrega de medicamentos, aposentadorias, benefícios, execuções fiscais, além de outras correlatas seriam objeto de análise jurídica específica nos casos de dúvida do servidor administrativo ou de indeferimentos, possibilitando ao cidadão uma nova análise, agora através de membros de um órgão jurídico constitucional. A inserção deste mecanismo julgador contribui para a melhoria da prestação dos serviços administrativos do Estado, pois cria uma “jurisprudência de valores” no âmbito interno, além de proporcionar ao advogado público um aprofundado conhecimento da rotina decisória da administração, abrindo clareiras para uma eficiente orientação jurídica prospectiva. Em relação ao processo civil, cumprem-se os novos valores fundados na efetividade, bem como na pedagogia dos direitos para o cidadão, que, participando pessoalmente do contraditório administrativo, busca e 166 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 166-172, jan./mar. 2014 obtém a prestação na sua forma primária, isto é, sem a interposição de outro Poder, que coercitivamente impõe o cumprimento do direito. Trata-se de fazer valer o escopo político do processo, conforme visão de Dinamarco32: Assim é que, situando-se na perspectiva política, o processualista moderno vê a estabilidade do poder, o culto à liberdade e a institucionalização da participação democrática como objetivos que legitimam nessa ótica a própria existência do sistema processual e o exercício continuado da jurisdição. Quando se diz, portanto, que o processo é um instrumento, é preciso lembrar que ele constitui meio para a realização de todos os fins da ordem processual, inclusive destes que se situam na ordem política. É mais uma faceta do princípio da colaboração ou cooperação no processo civil, que, muito embora seja direcionado para o magistrado, pode ser aplicado ao advogado público, por exercerem funções constitucionais semelhantes, no que toca ao funcionamento da Justiça. É o que pensa Didier Jr.: “o princípio da cooperação gera os seguintes deveres para o magistrado (seus três aspectos) a) dever de esclarecimento; b) dever de consultar; c) dever de prevenir”.33 Oliveira34, relacionando a cooperação processual com a atual complexidade da sociedade moderna, expõe: Semelhante cooperação, além disso, mais ainda se justifica pela complexidade da vida atual, mormente porque a interpretação regula iuris, no mundo moderno, só pode nascer de uma compreensão integrada entre o sujeito e a norma, geralmente não unívoca, com forte carga de subjetividade. Entendimento contrário padeceria de vício dogmático e positivista. Exatamente em face desta realidade, cada vez mais presente na rica e conturbada sociedade de nossos tempos, em permanente mudança, ostenta-se inadequada a investigação solitária do órgão judicial. Ainda mais que o monólogo apouca necessariamente a perspectiva do observador e em contrapartida, o diálogo, recomendado pelo método dialético, amplia o quadro 32 DINAMARCO, Cândido Rangel. Escopos políticos do processo. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 124. 33 DIDIER JÚNIOR. Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 51. 34 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Garantia do contraditório. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério (Org.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 139. Fernando Menegueti Chaparro 167 de análise, constrange à comparação, atenua o perigo de opiniões preconcebidas e favorece a formação de um juízo mais aberto e ponderado. (grifo do autor). O processo civil e suas instituições, entre elas a Advocacia Pública e a conciliação podem constituir alternativa segura e eficiente para o aperfeiçoamento da jurisdição e da efetivação dos direitos fundamentais, contribuindo para o desenvolvimento social do país e fluidez da administração do ordenamento jurídico nacional. Juridicamente, não há empecilho para a instituição de uma Câmara de Conciliação e Julgamento no âmbito da Advocacia-Geral da União. É preciso apenas aprimorar a legislação já existente. De antemão, afasta-se qualquer pecha de inconstitucionalidade, pois o princípio da inafastabilidade da jurisdição permanece hígido, vez que sempre estará aberta a via judicial em caso de indeferimento da pretensão. O cidadão, destarte, em caso de negatória da Administração, poderia trilhar por três caminhos: (i) recurso administrativo; (ii) provocação de decisão da Advocacia Pública; (iii) ação judicial. Culturalmente, o cidadão não confia nas decisões administrativas recursais, conforme demonstra a ampla pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: A pesquisa aponta que 68,6% (Tabela 32, p. 81 do v. 1) dos entrevistados desconfiam da imparcialidade/isenção da administração pública no julgamento dos recursos administrativos. Tal desconfiança aumenta, consideravelmente, a demanda pelo Poder Judiciário.35 Entretanto, não seria factível sujeitar obrigatoriamente o cidadão a uma decisão da Advocacia Pública em todas as hipóteses de indeferimento. Os órgãos jurídicos da União, por exemplo, também não possuem estrutura física e de pessoal para tanto. É preciso pensar para o futuro, estruturando órgãos e aprimorando as hipóteses de intervenção do órgão jurídico. De início, poder-se-ia pensar em alguns temas recorrentes como obrigatórios para uma solução pré-processual, a critério dos administradores. Paulatinamente, com a estruturação administrativa e verificação das vantagens do novo sistema pela população, outras matérias 35 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, op., cit., p. 190. 168 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 168-172, jan./mar. 2014 poderiam ser abrangidas. A regulamentação englobaria alteração na Lei Complementar nº 73/1993, pois esta somente prevê a vinculação dos órgãos federais aos pareceres da Advocacia-Geral da União aprovados pelo Presidente da República. Destarte, não se tratando de parecer, mas de decisão administrativa em sede pré-processual, este último caso deve estar previsto no rol de atos vinculantes. No mais, superado este óbice, a regulamentação fica ao inteiro talante do Advogado-Geral, que, por meio de Portaria, poderia identificar as matérias sujeitas à decisão do advogado público e o procedimento para tanto. Paulatinamente, temas relevo político e judicial poderiam ser incluídos, mas já se trata de um avanço em relação ao processo tradicional, superdependente do Poder Judiciário. Trata-se de um sistema que necessariamente dependerá de prévia e forte estruturação administrativa e apoio da sociedade civil para obter sucesso. É preciso, pois, eliminar a cultura do ajuizamento, fortalecendo o papel dos advogados na sociedade contemporânea, através da solução pré-processual de litígios. A Advocacia Pública, regida que é pelos princípios constitucionais da Administração Pública e pelos ditames éticos do Estatuto do Advogado, pode desempenhar papel fundamental na resolução dos conflitos sociais envolvendo o Poder Público, contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento saudável do Poder Judiciário. 5 CONCLUSÃO A Revolução Francesa, pregando a liberdade, igualdade e fraternidade, estabeleceu um novo modelo de vida social, preconizado pelo repúdio ao sistema absolutista e marcado pela ideia da vontade geral do povo. O iluminismo influenciou praticamente todos os ramos da ciência, porém, no direito, foi determinante. A busca incessante pela igualdade e liberdade causou um desequilíbrio social insustentável, pois o poderio econômico daqueles que influenciaram a revolução era inigualável ao cidadão comum. A adoção de normas gerais e abstratas, fruto do positivismo e da lógica jurídica, deu azo à produção do Direito através da codificação. A regulação da sociedade através dos códigos e da lei produziu uma gama de desamparados, em meio à sociedade que só voltava os olhos para o Direito Privado (pacta sunt servanda), sem se Fernando Menegueti Chaparro 169 perquirir da condição socioeconômica do cidadão, numa espécie de patrimonialização do Direito. Este denominado Estado Liberal de Direito deu entrada ao Estado Social, caracterizado por uma maior intervenção estatal com vistas a suprir a hipossuficiência da população. A superdependência imposta pelo Estado aos seus cidadãos, através de prestações sociais, é politicamente perigosa, porque pode se converter em autoritarismo e ditadura, com a alienação da massa eleitora em decorrência da sua própria condição de miserável. Por outras palavras, o Estado apenas substituiu o poderio econômico pela sua supremacia política, a fim de explorar ideologicamente o povo. Essa é a razão pela qual se afirma hoje o Estado Democrático de Direito, que se distingue pela produção democrática do Direito, pela participação política e pela intervenção plural de instituições constitucionais e sociais. Não se concebe mais o Estado meramente prestador de benefícios sociais, exige-se que o cidadão tenha oportunidade de por si só alcançar a cidadania pelo conhecimento, pelo trabalho e pela participação política. Nessa esteira, diversos institutos jurídicos foram repensados e constitucionalizados, o que significa dizer que o império da lei foi substituído pelo predomínio da Constituição. Especificamente em relação ao processo civil, defende-se primeiramente uma atuação mais ativa do juiz, de modo que não seja um mero autômato no cumprimento das normas processuais, além disso, a instrumentalidade do processo deve prevalecer, de modo que não seja um fim em si mesmo, mas sim uma das técnicas de solução de conflitos. Nessa ordem de ideias, verificou-se que o Poder Judiciário, responsável pela resolução dos conflitos sociais, não tem acompanhado a evolução plural da sociedade e de seus problemas multiculturais, cuja complexidade não é absorvida pelo modelo tradicional de processo civil, de cunho individual-liberal. Desta forma, ao lado do Judiciário, outros atores jurídicos devem fazer frente para a resolução de conflitos. O incentivo diuturno à conciliação, a lei de arbitragem, aos juizados especiais, enfim, toda uma gama de alternativas foi proposta para equacionar de forma paliativa a crise do Estado, que também é a crise do Direito e do processo. No entanto, embora louváveis todas as iniciativas, não se viu uma frente que mirasse especificamente a litigância estatal, que consome 170 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 170-172, jan./mar. 2014 mais de 70% dos serviços judiciários. Não se buscou tratar a causa da superlativa presença do Estado em juízo, enfocando as origens jusfilosóficas que justificam o número anormal de demandas envolvendo órgãos públicos. No presente trabalho, abordou-se excelentes estudos capitaneados pela FGV e UFRGS, que procuraram as origens da crise do Judiciário, da insuficiência do modelo administrativo decisório e sua relação direta com a judicialização das relações entre indivíduo e administração, apontando pela necessária inserção de um novo conceito resolução de conflitos. Nesse ponto, defende-se uma função nova a ser desincumbida pelo advogado público, que deixa de ser um mero protocolador de petições para se introduzir no âmago da decisão administrativa e adequá-la à nova hermenêutica constitucional, eminentemente principiológica. A conexão entre função essencial à Justiça, na pessoa do advogado público; e processo civil, através da transação/conciliação, e acesso à Justiça como conceito amplo, possibilita concluir que não existe monopólio da prestação da Justiça, sendo legítimo atribuir a outros órgãos constitucionalmente estabelecidos a função de decidir sobre a concretização de direitos fundamentais, sem desprezar, contudo, o acesso ao processo judicial. REFERÊNCIAS BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Democracia moderna e processo civil. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. BERIZONCE, Roberto Omar. Contralor de La labor jurisdicional y estado de derecho. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. BERNARDO, Leandro Ferreira. A câmara de conciliação e o novo papel da Advocacia-Geral da União. 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Diagnóstico sobre as causas de aumento das demandas judiciais cíveis, mapeamento das demandas repetitivas e propositura de soluções pré-processuais, processuais e gerenciais à morosidade da Justiça. São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/formacao-ecapacitacao/cnj-academico/pesquisas-aplicadas-cnj-academico>. Acesso em: 02 ago. 2013. GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: SRS, 2008. GRINOVER, Ada Pelegrini. A conciliação extrajudicial. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. MACEDO, Rommel. Advocacia-Geral da União da Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2008. NUNES, Dierle José Coelho. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisória. Revista de Processo, São Paulo, v. 199, set. 2011. OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Garantia do contraditório. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério (Org.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994. 172 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 172-172, jan./mar. 2014 SUNDFELD, Carlos Ari. O direito processual e o direito administrativo. In: SUNDFELD, Carlos Ari; BUENO, Cassio Scarpinella (Orgs.). Direito processual público: a Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Malheiros, 2003. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Direito. Porto Alegre, 2010. Inter-relações entre o processo administrativo e o judicial (em matéria fiscal) a partir da identificação de contenciosos cuja solução deveria ser tentada previamente na esfera administrativa. Disponível em: <http:// www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/formacao-e-capacitacao/cnj-academico/ pesquisas-aplicadas-cnj-academico>. Acesso em: 02 ago. 2013. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. Tutela diferenciada. Revista de Processo, São Paulo, v. 180, fev. 2010. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Orgs.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.
CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA NON-COMPETITION CLAUSE IN EMPLOYMENT CONTRACTS Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves Procurador Federal; pós-graduado em Direito do Trabalho SUMÁRIO: introdução; 1. Da não-concorrência; 1.1. Conceito; 1.2. Legislação brasileira; 2. Da cláusula de não-concorrência no contrato individual de trabalho; 2.1. Alguns deveres do empregado; 2.2. Da justa causa prevista no art. 482, alínea “c” da CLT; 3. Da cláusula de não- concorrência após a extinção do contrato de trabalho; 3.1. Da validade da cláusula de nãoconcorrência; 3.2. Pressupostos de validade da cláusula de não-concorrência; 3.2.1. Do interesse do empregador; 3.2.2. Limite material; 3.2.3. Limitação espacial; 3.2.4. Da limitação temporal;3. Compensação pela cláusula de não concorrência; 4. Conclusão; Referências. 334 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 334-360, jan./mar. 2014 RESUMO: O presente trabalho aborda, de forma simples e objetiva, toda a sistemática envolvendo a cláusula de não-concorrência, tanto na vigência do contrato de trabalho quanto após a extinção do contrato de trabalho, que é a forma mais polêmica para aceitação da sua validade. Aborda-se de forma sintética aspectos da livre concorrência para justificar a legalidade da cláusula de não- concorrência nos contratos de trabalho, desde que obedecidos certos requisitos limitadores. O tema aqui tratado tem grande relevância diante da ausência de legislação específica no Brasil, principalmente no que toca a possibilidade da cláusula ter vigência após a extinção do contrato de trabalho. Inúmeras dúvidas práticas tem surgido quando alguns estudiosos chegam a suscitar a ocorrência de ofensa a princípios constitucionais de grande relevância, como a liberdade de trabalho e da livre iniciativa. No entanto, o que ocorre é uma colisão dos princípios da liberdade de trabalho e a necessidade de proteção dos segredos da empresa bem como dos deveres de lealdade e boa-fé que devem existir entre os contratantes. Portanto, procura-se a sistematização do tema, baseada em considerações acerca dos diversos posicionamentos defendidos pelos doutrinadores, além de aspectos legais e jurisprudenciais. PALAVRAS-CHAVE: cláusula de não-concorrência; liberdade contratual; liberdade de trabalho; livre concorrência; livre iniciativa. ABSTRACT: This paper discusses a simple and objective way, all the systematic involving non-competition clause, both in term of the contract of employment or after the termination of the employment contract, which is the most controversial form for acceptance of their validity. Addresses of aspects synthetic form of free competition to justify the legality of noncompete clause in employment contracts, provided that obeyed certain limiting requirements. The topic discussed here is highly relevant in the absence of specific legislation in Brazil, especially in terms of the possibility to have validity clause after the termination of the employment contract. Numerous practical questions have arisen when some scholars even raise the occurrence of offending constitutional principles of great importance, such as freedom of work and free enterprise. However, what happens is a collision of the principles of freedom of labor and the need to protect company secrets and the duties of loyalty and good faith that must exist between contractors. Therefore seeks to systematize the subject, based on considerations of the different positions espoused by scholars, as well as legal and jurisprudential aspects. KEYWORDS: non-compete clause; contractual freedom; freedom to work; free competition; free enterprise. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 335 INTRODUÇÃO Com a globalização, o surgimento de novas tecnologias tornouse imprescindível para o desenvolvimento econômico. Assim, como forma de garantir a competitividade entre as empresas, torna-se imprescindível a conjugação do conhecimento ao capital e à força de trabalho. Nesse diapasão, diversas alternativas são buscadas pelas empresas como forma de garantir a própria sobrevivência, na tentativa de aperfeiçoar o processo de produção e a geração de riqueza. Um exemplo é a utilização da cláusula de não concorrência nos contratos de trabalho, artifício cuja legalidade é muito discutida. O problema a ser investigado pela presente pesquisa consiste em saber se no exercício da liberdade contratual das partes no direito do trabalho, mesmo diante das regras de ordem pública de observância obrigatória, é legítima a colocação de cláusula de não concorrência no contrato de trabalho. O direito do trabalho é uma disciplina jurídica de cunho social, tendo surgido principalmente para proteger os trabalhadores, buscando uma igualdade material entre as partes do contrato de trabalho, já que o empregador detém uma superioridade econômica. Vale colacionar as palavras de Amauri Mascaro Nascimento1, em sua obra iniciação ao direito do trabalho, quando diz que: O direito do trabalho consolidou-se como uma necessidade dos ordenamentos jurídicos em função das suas finalidades sociais, que o caracterizam como regulamentação jurídica das relações de trabalho que se desenvolvem nos meios econômicos de produção de bens e prestação de serviço, de certo modo impulsionado pela força dos fatos. Deve-se ter em mente que o ordenamento jurídico pátrio possui diversos dispositivos que oferecem proteção ao trabalhador, entretanto, também existem dispositivos que protegem o empregador, constituindo-se num emaranhado legal em que se busca a proteção do trabalho, garantindo-se os direitos recíprocos entre o trabalhador e o empregador. 1 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 32. ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 26. 336 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 336-360, jan./mar. 2014 A relevância da pesquisa em tela situa-se em demonstrar que não há óbice para a inserção da cláusula de não concorrência no contrato de trabalho, pois decorre da autonomia privada, não constituindo em prejuízo para o trabalhador, visto que se compatibiliza com os princípios protetivos do trabalhador e mesmo do empregador. Ademais, não existem regras claras e específicas acerca da possibilidade de cláusula de não concorrência para viger depois da extinção do contrato de trabalho. Diante da omissão legislativa, o presente estudo busca analisar sobre diversos aspectos a legitimidade de tal cláusula, visto que não ofende princípios constitucionais fundamentais do trabalhador, como liberdade de trabalho, ofício ou profissão, preconizado no art. 5º, XIII da Constituição Federal. Vale ressaltar que, diante do fenômeno da globalização, em que se busca cada vez maior o aperfeiçoamento do processo de produção, para que as empresas possam ter competitividade, garantindo a própria sobrevivência, torna-se útil e importante a utilização de mecanismos que possam assegurar essa competitividade. Nesse contexto, os contratos de trabalho sofrem influência direta, visto que a força de trabalho é um componente essencial para a produção. Assim, a cláusula de não concorrência inserida nos pactos laborais tornase uma importante ferramenta na garantia de direitos recíprocos dos trabalhadores e empregadores, além de constituir-se num meio hábil de evitar conflitos concernentes as novas formas de produção, gestão e de práticas de concorrência empresarial. Cumpre ainda afirmar que a cláusula de não concorrência trata-se de uma importante ferramenta a ser utilizada nos contratos de trabalho diante das circunstâncias atuais, como a globalização e a própria crise global que afeta os mercados, no entanto, é um mecanismo a ser utilizado com ponderação, dentro de preceitos razoáveis e proporcionais, sob pena de ofensa a dispositivos constitucionais e legais. 1 DA NÃO-CONCORRÊNCIA A estipulação contratual da impossibilidade de o empregado realizar concorrência ao empregador tem sua validade discutida na doutrina, constituindo- se num conflito de princípios tutelados tanto pelo direito constitucional quanto pelo direito do trabalho. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 337 Por um lado, os que defendem a impossibilidade alegam ofensa à proteção ao livre exercício de profissão (art. 5º, inciso IX e XIII da CF) e à livre iniciativa, ao passo que os defensores da sua validade recorrem aos deveres de lealdade, de sigilo, de boa-fé que devem estar presentes na relação contratual existente entre o empregado e o empregador, bem como apontam uma interpretação onde não se constata ofensa aos princípios citados. Com o fenômeno da globalização da economia, torna-se imprescindível o conhecimento de novas tecnologias para viabilizar a concorrência da empresa em âmbito mundial. Assim, além do capital e do trabalho, o conhecimento passou a ser essencial para o processo de produção e geração de riquezas, havendo reflexos no contrato de trabalho, visto que empregados especializados situados em áreas estratégicas da empresa detém informações privilegiadas, sendo necessário novas regulamentações na relação de trabalho. Nesse contexto, surge a cláusula de não- concorrência. A doutrina aponta que a cláusula de não-concorrência teve sua origem no direito norte americano, depois tendo se expandido pelo mundo. Adriana Carrera Calvo , em artigo publicado na internet aponta alguns casos emblemáticos de existência da cláusula de não-concorrência: 2 William Redmond Jr., Diretor Geral das Operações Californianas da Pepsi, aceitou, em 1994, o cargo de Diretor Executivo Operacional da divisão mundial Gatorade da Quaker Oats. Logo após o seu desligamento, a Pepsi Co. ajuizou um processo contra o exempregado, alegando que ele assinara contrato de confidencialidade e não-concorrência. Redmond era co-responsável pelo plano de marketing de refrigerantes da empresa. A sentença judicial não só obrigou Redmond a não trabalhar para referia empresa durante 6 (seis) meses, como também o proibiu de revelar o plano da PepsiCo. aos seus novos patrões. [...] Em muitos casos americanos, os tribunais se colocam a favor dos empregadores: “estão dispostos a colocar o trabalhador de lado durante determinado período de tempo, até que a informação que ele possui envelheça”, afirma Theodore Rogers Jr., sócio de uma grande firma de advogados nos EUA. 2 CALVO, Adriana Carrera. Os aspectos legais e a validade da cláusula de não-concorrência no Brasil . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 616, 16 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=6450>. Acesso em: 05 abr. 2009 338 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 338-360, jan./mar. 2014 Portanto, pode-se constatar pelo exemplo citado que os Tribunais norte americanos tem se posicionado favoráveis a estipulação da cláusula de não- concorrência nos contratos de trabalho, desde que obedecidos alguns pressupostos, como a limitação temporal, já que proibiu o executivo de trabalhar por 6 meses, além de não poder revelar ao novo empregador os planos estratégicos da empresa em que prestara serviços. 1.1 CONCEITO O termo concorrência significa, segundo o minidicionário da Melhoramentos, “ato ou efeito de concorrer” (MELHORAMENTOS, p. 120). Por sua vez, concorrer pode significar “ter a mesma pretensão de outrem; competir”. Em artigo publicado na Revista Ltr, Ari Possidonio Beltran conceitua concorrência como sendo: 3 disputa entre aqueles que exercem a mesma atividade. Como conseqüência, busca-se a proteção de dados comerciais, técnicos, ‘know-how’, até a preservação de empregados com elevada formação técnica, por vezes com bolsas de estudos no exterior financiadas pela própria empresa, bem como a relação de clientes, ou ainda, almeja-se, em certas condições, evitar a própria concorrência direta, ainda que por disposição limitada no tempo. A concorrência constitui-se num tema complexo, que extrapola os limites do direito do trabalho, despertando a preocupação de outros ramos do direito, como do direito civil, comercial, penal entre outros. O presente artigo preocupa-se com a concorrência no âmbito laboral, mais precisamente com abusos cometidos no exercício do direito de concorrer pelos empregados, visto que, por uma série de fatores, encontram-se impossibilitados de realizar concorrência ao respectivo empregador. No campo do Direito do Trabalho Sérgio Pinto Martins diz que “a cláusula de não-concorrência envolve a obrigação pela qual o empregado se compromete a não praticar pessoalmente ou por meio de terceiro ato de concorrência para o empregador” (MARTINS, 2008, p. 121). 3 BELTRAN, Ari Possidonio. Dever de fidelidade, dever de não-concorrência e cláusula de nãoconcorrência. Revista LTR, legislação do trabalho. São Paulo: LTR, 04/2002. p. 419 a 424. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 339 4 O renomado doutrinador Sérgio Pinto Martins ainda nos fornece os diversos sinônimos encontrados para a cláusula de não-concorrência na doutrina brasileira: São encontradas as denominações cláusula de não- restabelecimento, cláusula de não-concorrência em contrato social, cláusula de nãoconcorrência em contrato de trabalho, cláusula de não-concorrência, proibição de concorrência, pacto de não- restabelecimento, proibição negocial de concorrência, cláusula de interdição da concorrência, pacto de não-concorrência, pacto de abstenção de concorrência, pacto de exclusão de concorrência etc. Muitas dessas denominações dizem respeito ao Direito Comercial e não propriamente ao Direito do Trabalho. 5 Cibele Andrade Pessoa de Freitas , em artigo publicado na Revista de Direito do Trabalho 2008 – RDT 132, faz uma rápida abordagem da concorrência em outros ramos do direito: Outras manifestações estão presentes na esfera cível, a exemplo do art. 1.147 do CC/2002, previsão que obsta o alienante de fazer concorrência ao adquirente do estabelecimento nos cinco anos subsequentes a transferência. Ainda na área comercial, há possibilidade de se estabelecer no contrato social vedação dirigida ao sócio retirante no sentido de obstar sua atuação em empresa concorrente e/ou em determinado espaço territorial. Portanto, constata-se a importância da regulamentação da concorrência pelo direito, visto que se torna importante para a manutenção dos mercados, sendo necessário o Estado coibir práticas que afetem a normalidade da concorrência. Complementando, pode-se afirmar que a cláusula de nãoconcorrência constitui-se numa obrigação negativa do empregado, que não poderá realizar atos que possam constituir concorrência ou que de algum modo afete a atividade da empresa do seu empregador. No que toca a impossibilidade de concorrência durante o contrato de trabalho, a CLT fez previsão expressa em seu art. 482, alínea “c”, 4 MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 11. 5 FREITAS, Cibele Andrade Pessoa de. Cláusula de não-concorrência no contrato individual de trabalho brasileiro. Revista de direito do trabalho, São Paulo: Revista dos Tribunais, 10/2008 A 12/2008. p. 11 340 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 340-360, jan./mar. 2014 determinando como ensejador do rompimento do pacto por justa causa a prática de atos de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado. No entanto, deve-se considerar que, mesmo após a extinção do contrato de trabalho, alguns efeitos devem continuar vigendo por um certo período, em especial o dever de fidelidade, probidade e boa-fé, constituindo-se a cláusula de não-concorrência um desses efeitos a serem observados mesmo após a extinção do contrato de trabalho. 1.2 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA No que toca a legislação brasileira, como já foi dito em outras passagens do presente trabalho, a Consolidação das Leis Trabalhistas do Brasil dispõe em seu art. 482, alínea “c” que constitui justa causa para o rompimento do pacto laboral a “negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço”. Com relação ao pacto de não-concorrência para viger após a extinção do contrato de trabalho, a legislação brasileira é omissa, não havendo uma disciplina específica acerca da matéria. Portanto, considera-se dois momentos distintos para se avaliar o pacto de não-concorrência. Durante a vigência do contrato a CLT veda expressamente, constituindo uma justa causa para a rescisão contratual, como decorrência do dever de lealdade, de fidelidade e da boa-fé que deve nortear os contratantes. Já com relação a não-concorrência considerada após a extinção do contrato, o ordenamento jurídico pátrio não dispões de normas específicas, deixando a cargo da doutrina e da jurisprudência a disciplina acerca da matéria. 2 DA CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA NO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO Predomina na doutrina o entendimento de que a natureza da relação de emprego é contratual, sendo o elemento volitivo essencial para a formação da relação empregatícia, demonstrando a existência de um contrato, que reflete a liberdade de constituir obrigações mútuas entre as partes. Dado a natureza contratual, empregado e empregador estipulam livremente as condições para a realização do pacto laboral, desde Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 341 que obedecidos certos parâmetros previstos por normas de ordem pública, já que o direito do trabalho é marcadamente social, com várias normas dispositivas de observância obrigatória por todos, dado o caráter intervencionista do Estado no âmbito laboral, para coibir abusos que já foram cometidos no passado. É perfeitamente aplicável ao pacto laboral o disposto no art. 122 do Código Civil: Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes. Assim, obedecendo-se os direitos consagrados pelas normas trabalhistas como essenciais para a validade do pacto laboral, é lícito às partes estabelecerem condições para a realização do trabalho, tanto para vigerem durante o vínculo como para terem eficácia após a sua extinção, como a cláusula de não-concorrência após o fim da relação empregatícia. Nesse sentido, Amauri Mascaro Nascimento6: Com as restrições à autonomia da vontade no direito do trabalho, são essas negociações de âmbito reduzido, mas existem, quer na oportunidade da formação do vínculo de emprego, quer durante o seu desenvolvimento, quer, ainda, em sua extinção. Portanto, dado a liberdade contratual que rege as relações trabalhistas, ainda levando-se em conta ainda a existência de normas de ordem pública que devem ser obrigatoriamente observadas, verificamos a validade da cláusula de não- concorrência nos contratos individuais de trabalho, por razões que serão melhor expendidas posteriormente. 2.1 ALGUNS DEVERES DO EMPREGADO Emerge do próprio contrato de trabalho alguns deveres que devem ser obedecidos pelas partes, como a boa-fé dos contratantes, o dever de lealdade, de fidelidade e mesmo o dever de não-concorrência. 6 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho, relações individuais e coletivas do trabalho. 17. ed. rev. e atual. São Paulo, Saraiva, 2001, p. 206. 342 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 342-360, jan./mar. 2014 O dever de boa-fé decorre da necessidade de os contratantes agirem com lealdade, com correção, de acordo com os usos, costumes e sem desobedecer às normas em vigor. O art. 422 do Código Civil dispões que “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”, sendo um exemplo de positivação da boa-fé que deve nortear as partes de um contrato. Considera-se que a boa-fé deve estar presente nos contratos de trabalho, desde as negociações pré-contratuais, já que antes mesmo da conclusão do contrato as partes já devem agir com o ânimo de não violar interesses alheios. Durante a execução do contrato também é imprescindível a boa-fé entre as partes. Ainda após a extinção do pacto laboral é necessária a observância da boa-fé, na medida em que existem segredos das partes contratantes que devem ser preservados, além de outros valores éticos e morais. Assim, a boa-fé contratual deverá subsistir após o término dos contratos. É o que ocorre, por exemplo, com a inserção da cláusula de nãoconcorrência em que, mesmo após a extinção do contrato, o empregado deve agir de boa-fé não prejudicando o empreendimento do seu antigo empregador por atos concorrenciais por algum tempo. Como conseqüência do dever de boa-fé no relacionamento entre as partes, o empregado deve executar o trabalho com seriedade e consciência, empreendendo diligências no sentido de melhor desempenhar a sua função no emprego. Daí decorre o dever de fidelidade. Na concepção de Orlando Gomes e Élson Gottschalk7: O dever de fidelidade na prestação de trabalho é o aspecto particular que assume o princípio de boa-fé inerente à execução de todo contrato. Nos contratos a trato sucessivo, especialmente no de trabalho, este dever assume relevância especial, que em certos ordenamentos jurídicos, como aconteceu na legislação do III Reich, foi elevado à máxima exaltação com a instituição de um Tribunal de Honra Social, com o objetivo assinalado de disciplinar o Treupflicht, que era a pedra de toque da organização social de empresa nazista. 7 GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 212. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 343 Dessa forma, decorre do dever de fidelidade a obrigação de o empregado abster-se na sua atividade dentro e fora da empresa de praticar atos prejudiciais a mesma. Ari Possidonio Beltran8 seguindo os ensinamentos de Krotoschin nos fornece a seguinte lição: Krotoschin discorrendo sobre o dever de fidelidade diz que, contrariamente ao que foi sustentado no passado, não se trata de um mero dever acessório, mas essencial para a configuração do contrato de trabalho que é alicerçado na confiança recíproca e no ânimo de colaboração. [...] Afirma ainda, que o dever de fidelidade materializa-se, sobretudo, em três aspectos da relação de trabalho: proibição de fazer concorrência ao patrão, dever de guardar sigilo sobre certos segredos da empresa e proibição de receber vantagens pecuniárias de terceiros. Portanto, decorre também do dever de fidelidade a impossibilidade de o empregado realizar concorrência ao empregador. 2.2 DA JUSTA CAUSA PREVISTA NO ART. 482, ALÍNEA “C” DA CLT Trataremos agora da rescisão contratual em decorrência de ato faltoso praticado pelo empregado, mais precisamente da hipótese da alínea “c” do art. 482 da CLT, que dispõe: Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: [...] c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço; Um dos requisitos para que se configure a rescisão por justa causa é a taxatividade da conduta, ou seja, somente ocorre nos casos expressamente previstos em lei. A hipótese em apreço trata-se de um caso de resolução contratual, visto que o rompimento do pactuado se dá pelo cometimento de ato faltoso do empregado. 8 BELTRAN, Ari Possidonio. Dever de fidelidade, dever de não-concorrência e cláusula de nãoconcorrência. Revista LTR: legislação do trabalho. São Paulo: LTR, 04/2002. p. 419. 344 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 344-360, jan./mar. 2014 Pela análise do dispositivo citado, percebe-se que a realização de concorrência pelo empregado é motivo ensejador do rompimento do liame empregatício, por constituir uma falta grave do empregado. Maurício Godinho Delgado 9 esclarece que: Para que seja desleal a concorrência, é necessário que ela afronte expressamente o contrato, ou agrida o pacto inequivocamente implícito entre as partes, ou, por fim, derive, naturalmente, da dinâmica própria do empreendimento do trabalho. Assim, a falta somente se caracterizará quando a atividade desempenhada caracterizar concorrência desleal ao empregador ou for prejudicial ao serviço e que se desenvolva de forma habitual, sem a concordância do patrão. Vale ressaltar ainda que não necessariamente a concorrência aqui estudada será considerada crime. Nesse sentido, vale transcrever os ensinamentos de Délio Maranhão10: A concorrência ao empregador, que se traduz pela negociação habitual do empregado, por conta própria ou alheia, sem o consentimento daquele, não se confunde, necessariamente, com o crime de concorrência desleal, de que trata o art. 195 da Lei 9.279/96, embora, algumas vezes, o ilícito trabalhista possa configurar tal crime, como quando o empregado “recebe dinheiro ou outra utilidade, ou aceita promessa de paga ou recompensa, para, faltando ao seu dever, proporcionar vantagem a concorrente do empregador” (art. 195, X, do Citado Código). Mais adiante, socorrendo-se dos ensinamentos de Evaristo de Moraes Filho, Délio Maranhão conclui que ”a negociação que se proíbe é restrita ao gênero de atividade do empregado” (MARANHÃO, 2005, p. 581). Também nesse sentido são os ensinamentos de Francisco Ferreira Jorge e Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante , buscando apoio na doutrina de Plá Rodriguez: 11 9 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 1193. 10 SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio. Instituições de Direito do Trabalho, v. 1. 22. ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 581. 11 JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do Trabalho, Tomo I. 3. ed. Rio de Janeiro; Lúmen Júris, 2005, p. 429. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 345 A concorrência desleal apresenta-se quando o empregado exerce atividades que impliquem em prejuízos ao empregador, pela evidente colisão de interesses contrários. Acentua Plá Rodriguez: “Note-se que a proibição não atinge qualquer outra atividade, mas somente o desempenho da mesma atividade por conta própria ou de outra pessoa que não seja o empregador. Não se proíbe a pluralidade de ocupações, mas a concorrência desleal. A proibição somente abrange toda espécie de atividade quando no contrato for estipulada à exclusividade ou dedicação total...” Portanto, a realização de concorrência pelo empregado na vigência do contrato de trabalho constitui uma hipótese ensejadora da resolução contratual, por justa causa, por constituir uma falta grave prevista pela CLT em seu art. 482, alínea “c”, tendo o ordenamento jurídico pátrio disciplinado expressamente tal situação. 3 DA CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA APÓS A EXTINÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO Como já ficou assente anteriormente, a hipótese de se pactuar no contrato de trabalho a hipótese de não-concorrência para viger após a extinção do pacto laboral não é expressamente prevista na legislação brasileira. Por isso, não existe unanimidade tanto na doutrina quanto na jurisprudência acerca da sua validade. Para os que advogam a tese da impossibilidade de sua utilização, alegam, em síntese, ofensa aos princípios constitucionais da livre iniciativa e da liberdade de trabalho. Os que a defendem não vislumbram ofensa aos princípios citados, justificando-se a sua utilização na liberdade de contratar além de imporem alguns requisitos para que se utilize a razoabilidade na utilização da cláusula de não- concorrência para viger após a extinção do contrato de trabalho. 3.1 DA VALIDADE DA CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA Atualmente a globalização facilitou sobremaneira as transações comerciais, inclusive internacionais, tornando as empresas cada vez mais vulneráveis. Isso se dá porque com o avanço tecnológico, a competitividade do mercado se torna cada vez mais acirrada. 346 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 346-360, jan./mar. 2014 Nesse contexto, torna-se de grande importância a valorização dos empregados, principalmente daqueles que ocupam posições estratégicas na empresa, já que possuem o conhecimento das técnicas e métodos de produção imprescindíveis para o bom posicionamento da empresa no mercado, ou seja, possuem acesso às informações confidenciais e aos segredos da empresa. Diante dessa situação, surge o legítimo interesse das empresas em estipularem a cláusula de não-concorrência para produzirem efeitos após extinto o contrato de trabalho, a fim de impedir que o empregado pratique atos abusivos, em virtude da posição e conhecimento obtidos na empresa, causando-lhe prejuízo. Como decorrência dos deveres de lealdade e fidelidade inerentes ao contrato de trabalho, deve o empregado conservar os segredos da empresa, mesmo que lhe custe uma limitação à liberdade de trabalho após a extinção do contrato de trabalho. Tais prerrogativas decorrem da boa-fé que deve nortear o espírito dos contratantes, que devem manter a lealdade mesmo após a extinção do pacto, ou seja, são alguns efeitos do contrato que devem ser observados mesmo depois de rescindido o pacto laboral. Assim, há de um lado o direito do empregador de proteger os segredos da empresa, de outro o direito do empregado de liberdade de trabalho. Como dito em outras passagens, há uma verdadeira colisão de princípios, sendo necessário uma cuidadosa atividade interpretativa, em que se busque os critérios de interpretação das normas diante de cada caso concreto. Vale ressaltar que, de acordo com os métodos hermenêuticos, a solução terá que levar em consideração a importância de cada princípio em colisão, objetivando uma solução ponderada que considere os interesses em conf lito e não se fundamente na completa prevalência de um princípio em detrimento do outro. Sabe-se que nenhum princípio é absoluto, e sim relativo. Por isso, a liberdade de trabalho deve ser relativizada já que se coloca diante de outros princípios igualmente tutelados pelo corpo constitucional. Dessa forma, só haveria ofensa ao princípio da liberdade de trabalho se fosse estipulada a proibição de qualquer atividade, em qualquer lugar e para sempre, o que não ocorre na cláusula de não- concorrência. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 347 Alice Monteiro de Barros1212 defende a validade da cláusula de não- concorrência: Não cremo, tampouco, possa a referida cláusula, nessas condições, cercear a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, na forma do art. 5º, XIII, da Constituição de 1988, pois a inserção da cláusula deverá permitir ao empregado a possibilidade de exercer a atividade que lhe é própria, considerando sua experiência e formação, desde que junto a estabelecimentos empresariais insuscetíveis de ocasionar concorrência danosa ao exempregador. Ademais, deve-se levar em conta os artigos 8º e 444 da CLT, aliados ao art. 122 do Código Civil, que dispõem: Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. Art. 444 - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes. Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes. Assim, permite o texto consolidado em seu art. 8º a possibilidade de utilização do direito comparado além de outros princípios, preservando-se ao interesse público, além de os arts. 444 da CLT 122 da CC disporem acerca da liberdade que é dado aos contratantes 12 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2009, p. 259. 348 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 348-360, jan./mar. 2014 em pactuarem cláusulas que não sejam ofensivas ao interesse público nem as disposições protetivas do trabalho. Não se considera que a cláusula de não-concorrência seja ofensiva a qualquer dos princípios e normas protetivas previstas no ordenamento jurídico pátrio, por isso, pode ser utilizada, desde que usada com razoabilidade e obedecendo a certos requisitos. Nos Tribunais ainda verificamos poucas decisões tratando da cláusula de não- concorrência. É possível encontrar algumas decisões no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região , não havendo um consenso entre as Turmas do Tribunal. Em acórdão proferido pela 8ª Turma do Tribunal citado, os magistrados posicionaram-se contrários a cláusula de não-concorrência, senão vejamos: 13 Cláusula de não concorrência. Cumprimento após a rescisão contratual. Ilegalidade. A ordem econômica é fundada, também, na valorização do trabalho, tendo por fim assegurar a todos existência digna, observando dentre outros princípios a busca do pleno emprego. Pelo menos, assim está escrito no art. 170, inciso VIII, da Constituição. O art. 69 do diploma deu ao trabalho grandeza fundamental. A força de trabalho é o bem retribuído com o salário e assim meio indispensável ao sustento próprio e familiar, tanto que a ordem social tem nele o primado para alcançar o bem-estar e a justiça sociais. Finalmente, o contrato de trabalho contempla direitos e obrigações que se encerram com sua extinção. Por tudo, cláusula de não concorrência que se projeta para após a rescisão contratual é nula de pleno direito, a teor do que estabelece o art. 9º da Consolidação das Leis do Trabalho. (TRT 2 Região, 8ª Turma, Relator José Carlos da Silva Arouca. Ac. 20020U79847) DOESP 5.3.02. Com o devido respeito, concluímos que o posicionamento citado não é o mais adequado, uma vez que coloca o princípio do pleno emprego como absoluto, excluindo os demais princípios conflitantes. No entanto, no mesmo ano de 2002, a 5ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região proferiu acórdão admitindo a cláusula de não concorrência: 14 13 ‘TRT 2 Região, 8ª Turma, Relator José Carlos da Silva Arouca. Ac. 20020U79847 DOESP 5.3.02 14 TRT 21 Região, 5S Turma, Relatora Rita Maria Silvestre — Ac. 2002053 4536 — DOESP 30.8.02 Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 349 Não afronta o art. 5º, inciso XIII, da Constituição Federal de 1988, cláusula contratual firmada por empregado, após ruptura do contraio de trabalho, comprometendo-se a não prestar serviços à empresa concorrente, quer como empregado, quer como autônomo. Inexistência de erro ou doação a anular o pactuado. Não há Ilegalidade a macular o pactuado e nem danos materiais decorrentes da limitação expressamente aceita. Impenda aqui, invocar-se também o princípio da boa-fé, presente em todos os atos da vida civil e pressuposto deles, mormente quando em ajuste, estão pessoas capazes, de mediano conhecimento jurídico e alto nível profissional, como é o caso das partes envolvidas no Termo de Confidencialidade e Compromissos Recíprocos.” (TRT 21 Região, 5S Turma, Relatora Rita Maria Silvestre — Ac. 2002053 4536) — DOESP 30.8.02 15 Sérgio Pinto Martins faz alusão ao entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria: O STF já teve oportunidade de julgar questão semelhante na vigência do § 23, do art. 153 da Constituição de 1967, que tinha a seguinte redação: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”. O acórdão não conheceu do recurso extraordinário, tendo a seguinte ementa: “Liberdade de trabalho. Cláusula pela qual o empregado, que fez cursos técnicos às expensas do empregador, obrigou-se a não servir a qualquer empresa concorrente nos 5 anos seguintes, ao fim do contrato. Não viola o art. 153, § 23 da Constituição o acórdão que declarou inválida tal avença” (STF, RE 67.653, Rel. Min Aliomar Baleeiro, DJ 3-11-70, p. 5.294, RTJ 55, 1971, p. 42) Portanto, importantes doutrinadores nacionais admitem a cláusula de não- concorrência nos contratos de trabalho para terem vigência após a extinção do pacto laboral, sendo um tema ainda pouco abordado nos Tribunais pátrios, já havendo decisões no sentido de admiti-la. Deve-se considerar que não há qualquer ilegalidade na utilização da cláusula, desde que obedecidos certos requisitos, que serão abordados a seguir. 15 MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 122. 350 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 350-360, jan./mar. 2014 3.2 PRESSUPOSTOS DE VALIDADE DA CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA Para que seja possível a utilização da cláusula de nãoconcorrência no contrato de trabalho, deve-se levar em consideração a necessidade da presença de alguns pressupostos de validade, dentre os quais, o que garanta a possibilidade de o trabalhador desenvolver outra atividade, um limite espacial e temporal, além de uma recompensa indenizatória ao empregado a ser paga pelo empregador, como forma de garantir a sua sobrevivência pelo tempo em que esteja obrigado a não praticar a concorrência ao seu ex-patrão, garantindo assim o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 3.2.1 DO INTERESSE DO EMPREGADOR O interesse na contratação da cláusula de não-concorrência deve ser claro entre as partes, como conseqüência de uma necessidade do empregador. Estevão Mallet diz que “a restrição a liberdade de trabalho tem que satisfazer legítimo interesse do empregador e não se apresentar de forma desarrazoada” (MALLET, 2005, p. 1161), concluindo mais adiante que “a interferência na liberdade de trabalho do empregador somente é válida quando destinada a satisfazer relevante e legítimo interesse do empregador”. Por constituir a limitação à uma liberdade, tem-se que a utilização da cláusula de não-concorrência deve ser fundamentada. Nesse sentido, Estevão Mallet cita legislações estrangeiras: 16 No direito português, por exemplo, a cláusula de não-concorrência somente pode ser estabelecida em relação a “actividade cujo exercício possa efectivamente causar prejuízo ao empregador”. De modo bastante semelhante, o Estatuto de los Trabajadores espanhol condiciona a validade do pacto de no competência a que “el empresário tenga um efectivo interes industrial o comercial en ello”. Portanto, para que se possa defender pela validade da cláusula de não- concorrência, inicialmente é imprescindível que exista interesse do empregador, que consiste na análise da atividade 16 MALLET, Estêvão. Cláusula de não-concorrência em contrato individual de trabalho. Revista LTR: legislação do trabalho. São Paulo: LTR, 10/2005. p. 1162. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 351 exercida pelo empregado, nos conhecimentos adquiridos bem como na potencialidade de prejuízo que possa o empregado causar ao empregador realizando concorrência. Realizando-se essa análise, pode-se justificar a limitação ao direito à liberdade de trabalho fundamentalmente legitimada pelo relevante interesse do empregador ocasionado pelo real potencial de risco. Assim, não se deve utilizar a cláusula de não-concorrência indistintamente, abrangendo qualquer trabalhador da empresa, visto que tem que haver essa potencialidade de risco, que se pode ser aferida por ocupantes de cargos que sejam efetivamente capazes de prejudicar os legítimos interesses do empregador. 3.2.2 LIMITE MATERIAL O limite material diz respeito às atividades específicas que terão o seu exercício vedado. Tal requisito é de suma importância, pois não se pode vedar o exercício de qualquer atividade, sob pena de estar sendo violado o princípio da liberdade de trabalho. Discorrendo sobre o assunto, Estevão Mallet diz que “trata-se de requisito substancial de validade do ajuste, cuja falta torna-o nulo, até porque não se admite restrição genérica, indeterminada, abrangendo todo e qualquer trabalho” (MALLET, 2005, p. 1162). 17 Cibele Andrade Pessoa de Freitas nos traz o seguinte exemplo real de nulidade da cláusula de não-concorrência pela vastidão do seu objeto: Com base nessa restrição – material – foi considerada nula a cláusula estabelecida entre a Aurus Ltda e Mário Sérgio Uehara, nos autos do processo 025070.2003.045.02.00-5, que tramitou na 45ª Vara de São Paulo (TRT – 2ª Reg). O acórdão respectivo (RO 20070117254, 5ª T., j. 27.02.2007) entendeu que a restrição imposta não podia prosperar, uma vez que abrangia extensa lista de atividades. Importante destacar que, quanto mais restrita a limitação imposta, menor deverá ser a indenização paga e menor será o risco de discussão acerca da validade da cláusula, visto que será bem menor a restrição ao trabalho. 17 FREITAS, Cibele Andrade Pessoa de. Cláusula de não-concorrência no contrato individual de trabalho brasileiro. Revista de direito do trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 10/2008 A 12/2008. p. 16. 352 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 352-360, jan./mar. 2014 3.2.3 LIMITAÇÃO ESPACIAL Ao se estabelecer uma cláusula de não-concorrência, é imprescindível a disposição acerca do território em que a mesma terá validade. A limitação territorial deve levar em conta o mercado que se pretende proteger, limitando-se, assim, a abrangência do pacto ao território que o empregador exerça sua atividade comercial. Sérgio Pinto Martins diz que “não terá valor a cláusula em locais que a empresa não venha a competir com outras no mesmo mercado. Assim, ela deve ser estabelecida para certa área geográfica” (MARTINS, 2008, p. 124). No que pese as opiniões favoráveis à limitação espacial, considera-se que hoje, diante do mundo globalizado, onde os negócios se realizam em locais diversos dos da sede da empresa, é prescindível a estipulação de limitação espacial para a validade da cláusula de nãoconcorrência. Assim, pode ser que uma empresa situada em qualquer lugar do planeta faça concorrência a uma empresa brasileira. Nesse sentido são os ensinamentos de Estevão Mallet18: Restringir, em tal contexto, a eficácia de cláusula de nãoconcorrência ao âmbito do território nacional não se justifica, e faria com que se tornasse muito fácil burlar a limitação, comprometendo a legítima tutela da informação, o que não se admite. Deve-se, pois, aceitar, ao menos em tese, restrição territorialmente mais ampla, caso, diante das circunstâncias, seja ela realmente necessária. Portanto, consideramos não ser imprescindível a limitação territorial da cláusula de não-concorrência pelos motivos expostos, no entanto, uma vez prevista, há que ser observada pelos contratantes. 3.2.4 DA LIMITAÇÃO TEMPORAL Um dos principais requisitos a serem observados diz respeito a limitação temporal da vigência da cláusula de não-concorrência. Não se pode achar que teria eficácia infinita, sob pena de acabar retirando à liberdade de trabalho do empregado. 18 MALLET, Estêvão. Cláusula de não-concorrência em contrato individual de trabalho. Revista LTR: legislação do trabalho. São Paulo: LTR, 10/2005. p. 1163. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 353 Sérgio Pinto Martins19 nos ensina que: A cláusula de não-concorrência deverá ser estipulada por tempo determinado e para certo local. Não pode ser, portanto, perpétua, pois impediria o empregado de trabalhar na atividade. Deve a limitação estar balizada dentro do princípio da razoabilidade, de acordo com o que for pactuado entre as partes. Importantes também são as palavras de Estevão Mallet20 acerca da matéria: Restrição permanente ou mesmo indefinida afigura-se, seja qual for a atividade considerada ou o empregado envolvido, ilícita, conclusão a que se chega sem nenhuma dificuldade. Cerceia, de modo desmedido, a liberdade de trabalho do empregado. Ademais, restrição temporalmente ilimitada compromete o próprio desenvolvimento econômico e “o livre progresso”, o que não se concebe. Alguns doutrinadores chegam a defender a aplicação, por analogia, do prazo máximo dos contratos por prazo determinado, que é de 2 anos. Outros buscam no art. 1.147 do Código Civil o prazo de 5 anos, que é o utilizado pelo direito empresarial, que proíbe o alienante do estabelecimento de fazer concorrência ao adquirente nos 5 anos subseqüentes. No entanto, entendemos que não se justifica a fixação de prazo genérica, sendo mais sensato a verificação do caso concreto para que, por critérios razoáveis, se chegue a uma conclusão acerca de um prazo ideal. Insta destacar ainda que, em decorrência dos deveres de fidelidade e lealdade, bem como da boa-fé que deve nortear os contratantes, mesmo após a expiração da cláusula de não-concorrência, não se afigura uma postura ética a revelação de segredos ou informações sigilosas que obteve no seu antigo emprego. Portanto, a determinação do período deve levar em conta o tempo razoável para anular ou minimizar o potencial risco de dano em razão das informações que o empregado possui, tal como o tempo necessário para que o ex-patrão possa se fixar no mercado, para que aquele segredo de 19 MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 123. 20 MALLET, Estêvão. Cláusula de não-concorrência em contrato individual de trabalho. Revista LTR: legislação do trabalho. São Paulo: LTR, 10/2005. p. 1163. 354 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 354-360, jan./mar. 2014 empresa se torne obsoleto em face das inovações tecnológicas ou para que determinada informação se torne de domínio público. 3.3 COMPENSAÇÃO PELA CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA No direito comparado a regra é a necessidade de uma contraprestação pela cláusula de não-concorrência, que deve ser proporcional à limitação imposta. Mallet diz que a obrigatoriedade de compensação constitui “requisito de validade da cláusula de não-concorrência, no Código de Trabalho de Portugal, na legislação belga, no Estatuto de los Trabajadores da Espanha e no Codice Civile italiano” (MALLET, 2005, p, 1164). No Brasil, mesmo diante da omissão legislativa, considera-se como imprescindível a estipulação de uma contraprestação pelo empregador, observando-se um mínimo de equilíbrio entre a obrigação imposta ao empregado e a contrapartida que cabe ao empregador. No entanto, não basta o mero pagamento. Deve haver um equilíbrio entre as prestações dos contratantes, devendo a retribuição ser proporcional à restrição imposta. Nesse sentido são os ensinamentos de Sérgio Pinto Martins21: Para a validade da cláusula, o empregado deve receber compensação financeira, que lhe permita fazer face a seus compromissos, como se estivesse trabalhando, visando a que o trabalhador não enfrente dificuldades financeiras para manter seu mesmo nível de vida, pois o pagamento terá natureza alimentar. No que se refere ao valor da compensação, existem diversos posicionamentos a esse respeito. Sérgio Pinto Martins diz que “a solução é o pagamento da compensação financeira no valor da última remuneração do empregado, multiplicado pelo número de meses em que deixará de exercer outra atividade” (MARTINS, 2008, p. 124). Por outro lado, Estevão Mallet 22 não fixa parâmetros relacionados à remuneração do empregado, devendo-se avaliar caso a caso, senão vejamos: 21 MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 124. 22 MALLET, Estêvão. Cláusula de não-concorrência em contrato individual de trabalho. Revista LTR: legislação do trabalho. São Paulo: LTR, 10/2005. p. 1164. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 355 Quanto mais ampla a limitação – quer do ponto de vista do objeto, quer do ponto de vista temporal, quer, ainda, do ponto de vista espacial – maior deve ser a compensação e vice-versa. O valor da compensação não está vinculado, portanto, ao montante da remuneração recebida pelo empregado durante a vigência do contrato, ao contrário do que já se pretendeu. [...] O importante é que não exista desequilíbrio entre as obrigações das partes. Portanto, não há que se fixar valores pela compensação nem forma padrão de pagamento. Quer seja mensal ou de forma única, o pagamento deve corresponder a uma compensação à limitação imposta, observando-se a proporcionalidade entre eles. Considera-se apenas que, dado a hiposuficiência do empregado, não seria justo a estipulação de que o pagamento se daria apenas no final do período da não- concorrência, sendo por isso, vedado tal estipulação. Quanto a natureza da indenização, a doutrina não é pacífica, existindo basicamente duas correntes, uma defendendo a sua natureza salarial ao passo que a outra diz ter o caráter indenizatório. Parece prevalecer o entendimento na doutrina que se trata de caráter indenizatório, como se observa das palavras de Estevão Mallet : 23 Reveste-se o crédito conferido ao empregado, outrossim, de natureza indenizatória, como explicitado em alguns sistemas jurídicos. [...] Indeniza-se, isso sim, a limitação à liberdade de trabalho. [...] não constitui, em conseqüência, base de incidência de contribuições previdenciárias ou imposto de renda, à semelhança dos valores conferidos em programas de incentivo à rescisão de contrato de trabalho. Assim, por caracterizar o ressarcimento a uma lesão causada no patrimônio do empregado, tem-se que a compensação financeira, advinda da cláusula de não-concorrência, possui natureza indenizatória, sendo imprescindível a sua estipulação para que a cláusula tenha validade. 23 MALLET, Estêvão. Cláusula de não-concorrência em contrato individual de trabalho. Revista LTR: legislação do trabalho. São Paulo: LTR, 10/2005. p. 1165. 356 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 356-360, jan./mar. 2014 4 CONCLUSÃO Como visto anteriormente, o direito do trabalho é muito dinâmico e marcadamente social, sendo que, a noção de trabalho remonta a própria história do homem. A Revolução Industrial é apontada como a causa econômica do surgimento do Direito do Trabalho, visto que da relação entre o trabalho e a indústria surge o salário, bem como as explorações aos trabalhadores, que eram submetidos a péssimas condições de trabalho. Nesse contexto, o Direito do Trabalho surge como forma de intervenção estatal para conferir proteção aos trabalhadores, na tentativa de dar uma superioridade jurídica ao empregado para compensar a sua inferioridade econômica. A Constituição Federal de 1988 garante princípios fundamentais como o da dignidade da pessoa humana e da livre iniciativa e concorrência, assegurando a todos a prática livre de qualquer atividade econômica, vedando aquelas que busquem o domínio do mercado. Apesar dos dispositivos protetivos, se verifica na prática a ocorrência de alguns abusos, quando, por exemplo, algumas empresas se valem da má-fé de alguns ex-empregados de empresas concorrentes para terem acesso a segredos de produção e de mercado do concorrente. Uma forma de se evitar esses abusos é com a utilização da cláusula de não- concorrência nos contratos de trabalho, impedindo que os ex-empregados passem um período de tempo sem trabalhar em empresas concorrentes, em funções que possam de alguma forma revelar informações relevantes que tinha conhecimento no antigo emprego, e que possam de alguma forma afetar a concorrência leal entre as empresas. A CLT dispõe acerca da impossibilidade de o empregado efetuar concorrência durante a vigência do contrato de trabalho, constituindo justa causa para o rompimento do liame empregatício. No entanto, para a possibilidade de cláusula de não-concorrência para viger após a extinção do contrato de trabalho não existe no ordenamento jurídico pátrio nenhuma disposição acerca da matéria. Diante da omissão legislativa, buscamos fundamentos na doutrina e na jurisprudência para justificar a legalidade da cláusula de nãoconcorrência para valer também após a extinção do pacto laboral. Rodrigo Allan Coutinho Gonçalves 357 Ao contrário do que alguns defendem, não existe violação dos princípios constitucionais da liberdade de trabalho e da livre iniciativa. Na verdade, o que há é uma colisão de princípios constitucionais, visto que a atividade empresarial, a liberdade contratual e a livre concorrência também devem ser protegidos. Temos que mesmo os princípios constitucionais pode ser relativizados, na tentativa de se buscar uma maior efetividade no meio social. Assim, a cláusula de não-concorrência pode e deve ser fundamentada no princípio da livre iniciativa, pois, na medida em que a livre iniciativa garante a liberdade no exercício de qualquer atividade econômica, valorizando o trabalho, o pacto de não-concorrência se presta a efetivá-la, mesmo que represente limitação a ela, pois consubstancia uma forma de evitar o cometimento de abusos e conseqüente violação a direito alheio. Por outro lado, por tratar-se de uma colisão de princípios, temse que a cláusula de não-concorrência não deve ser utilizada de modo irrestrito. Deve serutilizada de modo razoável, obedecendo a certos requisitos e sofrer limitações de ordem temporal, material e espacial. Pode-se afirmar que a cláusula de não-concorrência, de um lado, garante a livre iniciativa e a livre concorrência da empresa, na medida que impede a revelação de seus segredos por empregados e ex-empregados, e, por outro lado, restringe a livre iniciativa do empregado, que tem por um certo período e sob certas condições, limitado o seu exercício de emprego. Essa limitação imposta pela cláusula aqui estudada concretiza a valorização do trabalho humano, na medida em que garante a existência de um mercado de trabalho competitivo e viável, fazendo valer a função social da empresa no mercado de trabalho, albergando aquelas pessoas que querem exercer o ofício de forma honesta e de boa-fé. Portanto, conclui-se que a cláusula de não-concorrência, apesar das discussões doutrinárias acerca de sua validade, apesar de apresentar certa restrição a liberdade de trabalho, não é inconstitucional, uma vez que esta liberdade pode até ser relativizada, em função de um fim nobre, como a própria subsistência do trabalho. Ademais, para a validade da cláusula de não-concorrência, como dito, deve-se obedecer alguns requisitos e limitações. Faz-se necessário a limitação específica das atividades a serem limitadas 358 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 358-360, jan./mar. 2014 ao ex-empregado, o espaço territorial em que haverá a restrição, o lapso temporal em que deverá viger tal cláusula bem como a previsão de uma contraprestação devida ao ex-empregado como compensatória da limitação imposta. REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito do trabalho. 9. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. BELTRAN, Ari Possidonio. 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PRINCÍPIOS DA ARBITRAGEM PRINCIPLES OF ARBITRATION Arthur Rabay 1 Advogado em São Paulo-SP SUMÁRIO: Introdução; 1 Noções gerais e conceito de arbitragem; 2 A atual crise do Poder Judiciário e os meios alternativos de solução de controvérsias; 3 Princípios – conceituação; 4 Funções dos princípios; 5 Princípios da arbitragem; 5.1 Princípio da autonomia privada; 5.2 Princípio da boa-fé; 5.3 Princípio da autonomia da cláusula da convenção de arbitragem 1 Mestrando em Direito Civil pela PUC-SP, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP, especialista em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduado lato sensu em Obrigações e Contratos, com capacidade docente, pela ESA-OAB-SP, pós-graduado lato sensu em Direito Empresarial, com capacidade docente, pela EPM, pós-graduado lato sensu em Direito Civil, com capacidade docente, pela UNISUL, especialista em Direito Imobiliário, pelo SECOVI-SP 90 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 90-108, jan./mar. 2014 em relação ao contrato; 5.4 Princípio da competênciacompetência; 5.5 Princípio da força vinculante e obrigatoriedade da cláusula arbitral; 5.6 Princípio da temporariedade; 5.7 Princípio das garantias processuais; 6 Conclusão; Referências. RESUMO: O presente trabalho aborda a arbitragem, como meio alternativo de solução de controvérsias, em especial os princípios que a regem. Inicia abordando os aspectos históricos, as noções gerais e o conceito, acerca da arbitragem, perpassa pela análise crítica da crise do Poder Judiciário na atualidade, ensejadora de lentidão no término dos processos judiciais, e termina por vislumbrar a arbitragem como modalidade eficaz de composição de litígios. Ao depois, discorre acerca das funções atinentes aos princípios, no campo jurídico. Aborda, finalmente, um a um, princípios regentes de tal instituto jurídico, que propiciam a melhor compreensão do seu sentido e do seu alcance, bem como sua melhor interpretação e aplicação. PALAVRAS-CHAVE: Arbitragem. Meio Alternativo de Solução de Controvérsias. Princípios. ABSTRACT: This paper deals with arbitration as an alternative means of dispute resolution, in particular the principles which govern it. Start addressing the historical aspects, the general concepts and concept about arbitration, embraced by the critical analysis of the crisis of the judiciary today, occasioning the slowness at the end of court proceedings, and ends with a glimpse of arbitration as a means of effective dispute settlement . By then, talks about the functions pertaining to the principles in the legal field. Discusses finally one by one governing principles such legal institution, which provide a better understanding of its meaning and scope, as well as its best interpretation and application. KEYWORDS: Arbitration. Medium Alternative Dispute Resolution. Principles. Arthur Rabay 91 INTRODUÇÃO De fato, conhecer o passado auxilia o exegeta a bem interpretar o instituto jurídico em análise no presente. Conforme ensinança de Carlos Maximinano: O Direito não se inventa; é um produto lento da evolução, adaptada ao meio; com acompanhar o desenvolvimento desta, descobrir a origem e as transformações históricas de um instituto, obtém-se alguma luz para o compreender bem. Só as pessoas estranhas à ciência jurídica acreditam na possibilidade de se fazerem leis inteiramente novas2. Eis, pois, motivo relevante para justificar esta introdução, que abarca um breve histórico acerca da arbitragem como meio alternativo de solução de conflitos de interesses. A doutrina estudiosa do assunto3 destaca que a arbitragem é um instituto jurídico vetusto, dos mais antigos que se tem notícia na história do Direito, já datando desde a época da jurisdição ou justiça privada, na Babilônia, 3000 anos a.C., na Grécia antiga e em Roma. Inicialmente, utilizava-se a justiça de mão própria ou autotutela, devido à ausência de mecanismos próprios e organizados de solução de conflitos de interesses particulares ofertados pelas civilizações primitivas mais rudimentares, como forma de satisfação do sentimento de justiça. Posteriormente, com o desenvolvimento social e político das civilizações, adotou-se a justiça pública ou estatal para dirimir as respectivas controvérsias. Assim, em linhas gerais, a evolução histórica da solução de controvérsias, no campo do Direito, pode ser dividida em duas fases bem distintas: a justiça privada e a justiça pública. Na atualidade, entretanto, a distribuição da justiça encontra-se desumanizada com a lentidão e a massificação dos processos, e notase que as partes litigantes, diante da estatização da justiça efetivamente “perderam” a capacidade de diálogo e de autocomposição, sujeitando-se 2 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Forense, 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,1990. p. 137. 3 CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. São Paulo: RT, 2011. p. 26-29. 92 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 92-108, jan./mar. 2014 a posição mais angustiante do que cômoda, de aguardar pelo julgamento da causa. Efetivamente, as Faculdades de Direito ensinam aos alunos que no caso de conflito de interesses, resultante de pretensão resistida, conhecida como “lide”, em que duas ou mais partes litigam em torno de um objeto ou de uma relação jurídica, não havendo acordo / transação entre as mesmas, incumbe ao Poder Judiciário, por força de preceito constitucional, consistente no princípio da inafastabilidade da jurisdição estatal, derivado da própria Constituição Federal, apreciar e julgar as lides forenses, via de regra, mediante heterocomposição, isto é, o magistrado de primeira instância “decide” a causa, e os tribunais reapreciam tal decisão judicial, em caso de recursos, salvo os casos de conciliação no curso do processo. Nota-se, assim, um total “esquecimento”, ou quando não, ao menos “desprezo” de ensinar e de despertar nos cidadãos a capacidade inata, latente e dormente de autocomposição, o que configura ao mesmo tempo lastimável erro e verdadeira heresia, pois a Justiça é um sentimento e um valor que transcende a jurisdição estatal e a justiça privada, podendo ser realizada tanto por aquela, quanto por esta, indistintamente, eis que é ubíqua, atemporal e inerente ao coração e à razão de cada ser humano. Neste contexto social, em boa hora foi promulgada a Lei de Arbitragem (Lei n.º 9.307 de 23/09/1996), disciplinando a arbitragem no Brasil, a qual de maneira esparsa, fracionária e esporádica, encontrava previsão legal, tais como em leis domésticas de 1831 e 1837, que impunham a solução arbitral às questões relativas aos seguros e locação de serviços, na Constituição Imperial de 1824 (art. 160), nas Ordenações do Reino, no Código Comercial de 1850, na Constituição de 1988 (art. 114, §§ 1º e 2º), nas Leis dos Juizados Especiais – Lei n.º 7.244/84 e Lei n.º 9.099/95 (arts. 24/26), no Código Civil de 1916 (arts. 1.037 a 1.048) e no Código de Processo Civil de 1939 (arts. 1.031 a 1.036)4. A supracitada Lei de Arbitragem (Lei n.º 9.307 de 23/09/1996), cumpre destacar, foi originada da Lei Modelo UNCITRAL, aprovada pela Assembléia das Nações Unidas através da Resolução 40/72, de 11/12/1985, tendo sido esta oriunda de comissão formada nas Nações Unidas em 1966, com sede em Viena, através de comitê constituído à época por representantes de 58 países, inclusive o Brasil, e 18 organizações 4 CRETELLA NETO, José. Comentários à lei de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense. 2007. p. 11. Arthur Rabay 93 internacionais, o qual durante três anos discutiu os termos de uma leimodelo sobre arbitragem, visando harmonizar as diversas leis internas de diversos países. 1 NOÇÕES GERAIS E CONCEITO DE ARBITRAGEM A arbitragem, como meio alternativo de solução de controvérsias, distinto da jurisdição estatal, apresenta traços bastante marcantes e extremamente característicos5, a saber: 1) meio alternativo de solução de controvérsias, distinto da jurisdição estatal; 2) tendo como objeto direito patrimonial disponível (art. 1º, LArb); 3) instituída através da autonomia privada (vontade / consenso) das partes envolvidas para tanto (sejam pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou público, nacional ou internacional), que podem elegê-la e adotá-la em detrimento da jurisdição estatal (arts. 1º e 2º, LArb), mediante convenção arbitral de regime jurídico contratual (cláusula compromissória ou compromisso arbitral art. 3º, LArb); 4) com livre escolha do(s) árbitro(s) que decidirá(ão) a controvérsia, sempre em número ímpar (art. 13, § 1º, LArb), e com delimitação da questão / do objeto a ser apreciada(o) (art. 10º, inciso III, LArb); e 5) pela qual as partes envolvidas submetem-se a aceitar e a cumprir a decisão arbitral a ser proferida, vale dizer, decisão arbitral com força vinculante e obrigatória entre as partes envolvidas (art. 31, LArb), a qual terá a mesma eficácia de decisão judicial (art. 31, LArb), sem direito a recurso (art. 18, LArb). Segundo leciona Francisco José Cahali: a arbitragem, ao lado da jurisdição estatal, representa uma forma heterocompositiva de solução de conflitos. As partes capazes, de comum acordo, diante de um litígio, ou por meio de uma cláusula 5 Lei n.º 9.307/96 - Art. 1º - As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. 94 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 94-108, jan./mar. 2014 contratual, estabelecem que um terceiro, ou colegiado, terá poderes para solucionar a controvérsia, sem a intervenção estatal, sendo que a decisão terá a mesma eficácia que uma sentença judicial6. Já de acordo com José Cretella Júnior: A arbitragem pode ser entendida como “sistema especial de julgamento, com procedimento, técnica e princípios informativos próprios e com força executória reconhecida pelo direito comum, mas a este subtraído, mediante o qual duas ou mais pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou de direito público, em conflito de interesses, escolhem de comum acordo, contratualmente, uma terceira pessoa, o árbitro, a quem confiam o papel de resolver-lhes a pendência, anuindo os litigantes em aceitar a decisão proferida7. Bem de se ver que a arbitragem, e o respectivo processo arbitral, quando instituídos para dirimir controvérsias, deverão sempre respeitar determinados princípios, dentro os quais, determinadas garantias processuais (art. 21, § 2º, LArb), vale dizer, contraditório, igualdade das partes, imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento, e ainda outros próprios, informadores de tal instituto jurídico, os quais serão abordados adiante, os quais assegurarão higidez e plena validade à arbitragem. Dentre outras vantagens e atributos positivos da arbitragem, tais como celeridade, previsão de estimativa de custos e de despesas, e possibilidade de as partes litigantes estabelecerem sigilo a respeito da arbitragem e do seu respectivo procedimento em face de terceiros, urge também destacar que por tratar-se de iniciativa e de eleição das próprias partes litigantes, de maneira livre e espontânea, de submeterem o litígio ao julgamento perante árbitro ou câmara arbitral, as mesmas apresentam predisposição a cumprir a decisão arbitral, observando-se como ensinava Platão (De Legibus, Libros 6 e 12) – “o mais sagrado dos tribunais é aquele que as partes mesmas hajam constituído e escolhido de comum entendimento”8 . 6 CAHALI, op. cit., p. 75. 7 CRETELLA JÚNIOR, José. Da Arbitragem e seu Conceito Categorial. Revista de Informação Legislativa, n.º 98, Brasília, abr./jun. 1998. p. 128. 8 ALVIM, José Eduardo Carreira. apud Tratado Geral da Arbitragem - Interno, Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 78, nota 100. Arthur Rabay 95 2 A ATUAL CRISE DO PODER JUDICIÁRIO E OS MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS É apropriado e correto auto-intitular unicamente o Poder Judiciário de JUSTIÇA? Apenas e tão somente o Poder Judiciário é a única via exclusiva de acesso à JUSTIÇA? Diante da morosidade da máquina judiciária, mesmo diante de vedação expressa a respeito inserida na Constituição Federal9, da produtividade ruim quanto à prolação de decisões judiciais, da enormidade do número de leis, e da atual insegurança e incerteza, não raras vezes, de interpretação das mesmas pela magistratura, bem como da dissonância de determinadas decisões judiciais frente a valores sociais universalmente almejados pela sociedade, fundir os conceitos de Poder Judiciário e Justiça, olvidando-se de outros modos de solução de conflitos, não se revela apropriado, nem tampouco correto. Apesar de o Poder Judiciário cumprir relevante função essencial, e distribuir a Justiça em muitas causas (apesar de deixar a desejar em muitas outras), não pairam dúvidas que carece de aprimoramentos que ensejem credibilidade, respeito, celeridade e efetividade à jurisdição estatal, como bem demonstram a atual reforma do Código de Processo Civil, a constante atuação das Corregedorias Gerais de Justiça dos tribunais estaduais, e a consolidação do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, enquanto órgão de controle externo que tem por missão contribuir para que a prestação da jurisdicional estatal seja realizada com moralidade, eficiência e efetividade em benefício da sociedade10. Dados obtidos no CNJ – Conselho Nacional de Justiça, evidenciam que há insuficiência de magistrados e de servidores e deficiência de aparelhamento e estrutura do Poder Judiciário. 9 Art. 5º, inciso LXXVIII – “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. 10 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um órgão voltado à reformulação de quadros e meios no Judiciário, sobretudo no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual. O CNJ foi instituído em obediência ao determinado na Constituição Federal, nos termos do art. 103-B. Criado em 31 de dezembro de 2004 e instalado em 14 de junho de 2005, o CNJ é um órgão do Poder Judiciário com sede em Brasília/DF e atuação em todo o território nacional, que visa, mediante ações de planejamento, à coordenação, ao controle administrativo e ao aperfeiçoamento do serviço público na prestação da Justiça. 96 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 96-108, jan./mar. 2014 No Brasil, a média é de 1 (um) magistrado para cada 16.000 (dezesseis mil) habitantes, enquanto em outros países têm-se 1 (um) juiz para no máximo 3.000 (três mil) jurisdicionados11. No Estado de São Paulo, temos aproximadamente 2.508 magistrados, 61.499 servidores, e uma população de cerca de 41.737.337 de habitantes12. Tendo em vista que o Poder Judiciário mostra-se não raras vezes incapaz de compor lides de maneira efetiva e célere, evidencia-se que a “cultura da sentença” (solução de conflitos via decisão judicial única e exclusivamente por intermédio do Poder Judiciário – heterocomposição), de há muito pregada nas academias de Direito, merece reflexão, para ceder espaço à “cultura da pacificação” (solução de conflitos de maneira negociada, participativa e amigável entre as próprias partes litigantes autocomposição)13. Logo, a distribuição e o acesso à ordem jurídica justa, de forma efetiva, eficaz, tempestiva e adequada, em cumprimento e aplicação do Princípio do Acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV, Constituição Federal), pode e deve ser assegurado não somente através da justiça estatal, como também através de meios alternativos de solução de controvérsias, tais como, arbitragem, mediação, conciliação, transação, dentre outros. Neste sentido, de acordo com as lições de José Eduardo Carreira Alvim Até então a jurisdição tem sido prestada, preferencialmente, pelo Estado, no suposto de que este, com a força de sua autoridade, fosse o único em condições de fazer justiça, em tempo e hora; a realidade, no entanto, mostrou não ser essa suposição de todo exata. Em quase todos os países do mundo, o Estado tem-se mostrado impotente diante de embates... para os quais vem-se buscando novas soluções, ao largo do processo judicial. É nesse contexto que entra em cena a jurisdição do consenso que caracteriza a arbitragem14. 11 ALVIM, op. cit., p. 77. nota 99. 12 Fonte: “Justiça em Números - 2010” – CNJ – Conselho Nacional de Justiça - www.cnj.jus.br 13 WATANABE, Kazuo. Cultura da Sentença e Cultura da Pacificação, in: Estudos em Homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover (org. Flávio Luiz Yarchell e Maurício Zanoide de Moraes), São Paulo: DPJ, 2005. p. 684-690. 14 ALVIM, op. cit., p. 83. Arthur Rabay 97 3 PRINCÍPIOS JURÍDICOS – CONCEITUAÇÃO Longe da pretensão de conceituar princípio, há que se destacar, entretanto, de início, que o sentido e o alcance das expressões do Direito, sempre que possível e/ou sempre que necessário for, merecem ser interpretadas e efetivadas através da efetiva aplicação do princípio jurídico, o qual, enquanto viga mestra de sustentação de todo o seu arcabouço, lhe enseja harmonia, coesão e coerência. Para Genaro Carrio: Principio de derecho, es el pensamiento directivo que domina y sirve de base a la formación de las singulares disposiciones de Derecho de uma institución jurídica, de um Código o de todo um Derecho positivo. El principio encarna el más alto sentido de una ley o institución de Derecho, el motivo dominante, la razón informadora del Derecho [ratio juris], aquella idea cardinal bajo la que se cobijan y por la que se explican los preceptos particulares, a tal punto, que éstos se hallan com aquélla em la propia relación lógica que la consecuencia al principio de donde se derivan15 16. Para De Plácido e Silva: Princípios, no plural, significam as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa [...] traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica [...] mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em perfeitos axiomas [...] significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito17. Para Miguel Reale princípios são: 15 CARRIÓ, Genaro. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1970. p. 33. 16 “Princípio de direito é o pensamento diretivo que domina e serve de base à formação das singulares disposições de Direito de uma instituição jurídica, de um Código ou de todo o Direito positivo. O princípio representa o mais alto sentido de uma lei ou instituição de Direito, o motivo determinante, a razão informadora do Direito [ratio juris], aquela idéia cardeal abaixo da qual abrigam e pela qual se explicam os preceitos particulares, a tal ponto, que estes relacionam-se com aquela na própria relação lógica que a conseqüência ao princípio de onde derivam-se” (tradução nossa). 17 SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 639. 98 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 98-108, jan./mar. 2014 verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis18. A norma jurídica (seja infra-constitucional, seja constitucional) pode ser o meio de positivação do princípio jurídico, podendo com este confundirse ou não. Caso positivado através da norma jurídica, o princípio jurídico pode estar explícita ou implicitamente contido na mesma. Outrossim, observa-se que o princípio jurídico pode também dimanar ainda de outras fontes do direito, que não somente a lei, tal como a doutrina, a jurisprudência, ou até mesmo o direito natural, conforme o caso. 4 FUNÇÕES DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS Dentre as inúmeras funções dos princípios jurídicos, e em caráter meramente exemplificativo (“numerus apertus”), pode-se destacar as seguintes: • FUNÇÃO ESTRUTURAL – Os princípios jurídicos tem função estrutural, eis que mantém coerência e harmonia e propiciam coesão ao sistema jurídico. Neste sentido, são os ensinamentos de Celso Antonio Bandeira de Melo: e “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda estrutura neles esforçada”19. • FUNÇÃO INTERPRETATIVA – Além disso, os princípios jurídicos revelam-se nortes hermenêuticos seguros, que auxiliam e contribuem tanto para interpretação das 18 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 299. 19 MELO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. p. 230. Arthur Rabay 99 normas jurídicas em geral, como também nos casos de lacunas em que a lei seja omissa, indicando o direito a ser aplicado ao caso concreto, e inclusive prestam-se a dissipar dúvidas e/ou obscuridades no ordenamento jurídico. A respeito, têm-se as palavras de Celso Antonio Bandeira de Melo: “Princípio - já averbamos alhures - é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo”20. • FUNÇÃO AXIOLÓGICA – Quando houverem conflitos principiológicos na aplicação ao caso concreto, cada qual ostentando valores diversos, pode-se, dentre outras alternativas, submeter os princípios em colisão à ponderação e fim de resolver a questão, através do princípio da proporcionalidade21. • FUNÇÃO SOCIAL – A própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, também estabelece a função social dos princípios, ao prescrever que a aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum22. Bem de se ver, assim, que as funções dos princípios jurídicos revelam-se extremamente relevantes no campo jurídico. 5 PRINCÍPIOS DA ARBITRAGEM Em apertada síntese, pode-se arrolar, dentre outros, os seguintes princípios da arbitragem: autonomia da vontade e limites (arts. 1º e 39, I e II, LArb); boa-fé (art. 20, LArb); autonomia da cláusula da convenção 20 MELO, op. cit., p. 230. 21 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estúdios políticos y constitucionales, 2002. p. 147. 22 Art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. 100 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 100-108, jan./mar. 2014 de arbitragem em relação ao contrato (art. 8ª, LArb); competênciacompetência (art. 8º, p.ú., LArb); temporariedade (arts. 12, III, 11, III e 23, LArb); garantias processuais (devido processo legal / ampla defesa / contraditório / igualdade das partes / imparcialidade do árbitro / competência do árbitro / livre convencimento - arts. 13, § 6º, 21, § 2º, 38, IIILArb); homologação única de sentença arbitral estrangeira (art. 35, LArb); e do ônus da prova em desfavor do réu (homologação de sentença arbitral proferida no exterior - art. 38, LArb). Estes e outros são abordados a seguir. 5.1 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA O princípio da autonomia privada, confere aos particulares a autoregulamentação e a auto-determinação de seus interesses, desde que não sejam contrários à ordem pública, aos bons costumes e às normas cogentes / imperativas (art. 5º, inciso II, CF; art. 17, p.ú., LICC; arts. 1º, 2º, §§ 1º e 2º, e 39, I e II, LArb; e art. 51, VII, CDC). Na arbitragem, a lei de regência da matéria, qual seja, Lei n.º 9.307/96 – Lei de Arbitragem (LArb) autoriza expressamente que os particulares valham-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis23, podendo-se valer tanto de regras de direito material , quanto de regras de direito instrumental. Com efeito, tal liberdade conferida aos particulares de há muito já consistia o norte e a regra em matéria de Direito Privado, consubstanciado no antigo brocardo jurídico PERMITTITUR QUOD NON PROHIBETUR: “Tudo o que não é proibido, presume-se permitido“, que garante ao particular que ele pode fazer tudo que não for proibido por lei, diferentemente do Direito Público, que é regido pelo princípio da legalidade, só se podendo fazer o que a lei permitir expressamente. Dentro de tal liberdade, há que se destacar, encontra-se tanto a liberdade de contratar (liberdade para contratar ou não, e escolher com quem fazê-lo), como também a liberdade contratual (liberdade para estabelecer livremente o conteúdo do contrato24. 23 Art. 1º - As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. 24 AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Verbete liberdade contratual. Enciclopédia Saraiva do Direito 49/370-371, São Paulo: Saraiva, 1977. Arthur Rabay 101 5.2 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ Na esteira da consagração pelo Código Civil vigente do princípio da eticidade, segundo o qual devem os contratantes observar nas fases pré-negocial, de execução do contrato e pós-contratual os ditames da probidade e boa-fé25 26 27, também na arbitragem prevalece o princípio da boa-fé, que veda o abuso de direito, o comportamento contraditório, o ato emulativo e/ou eivado de má-fé, bem como a alegação em juízo a própria torpeza, por parte de quaisquer dos litigantes que voluntariamente elegeram a arbitragem como meio alternativo de solução do litígio a que se encontram submetidos. Efetivamente, como ensina Selma Maria Ferreira Lemes: Não pode uma parte, após ter eleito espontaneamente a instância arbitral, deixar de honrar o compromisso assumido. É tendo também como substrato o princípio da boa-fé que o legislador outorgou caráter obrigatório e efeito vinculante à convenção de arbitragem28 . Neste mesmo diapasão, a jurisprudência confirma a plena validade do juízo arbitral instituído pelas partes que o elegeram livre e voluntariamente, eis que “... se nulo fosse este juízo arbitral a parte que a ele acorreu, que com ele concordou, que dele participou, não pode, depois de vencida, invocar sua nulidade” (STJ - Resp 616-RJ – 890009853-5 – j. 24/04/1990). Bem assim, a fim de se evitar “surpresa”, diante de comportamento abusivo e/ou eivado de má-fé, é que o legislador determina que “a parte que pretender argüir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem” (artigo 20, LArb). 25 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 26 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 27 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 28 FERREIRA LEMES, Selma Maria. Princípios e Origens da Lei de Arbitragem. Revista do Advogado n.º 51, Edição AASP – Associação dos Advogados de São Paulo, out. 1997. p. 32/35. 102 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 102-108, jan./mar. 2014 Outrossim, com a mesma intenção, a Lei de Arbitragem estabelece prazo de 90 (noventa) dias para propositura da demanda de decretação de nulidade da sentença arbitral, após o recebimento da notificação da mesma ou de seu aditamento (artigo 33, LArb). 5.3 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA CLÁUSULA DA CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM EM RELAÇÃO AO CONTRATO Como todos bem sabem, em matéria de Direito Contratual prevalece o Princípio da Conservação dos Contratos, o qual pode ser subdividido em (i) preservação (art. 184, do Código Civil); (ii) conversão (art. 170, do Código Civil); e (iii) aproveitamento (“na cláusula suscetível de dois significados, interpretar-se-á em atenção ao que pode ser exeqüível – princípio do aproveitamento”29). As nulidades, por seu turno, podem ser de duas ordens: nulidade absoluta e nulidade relativa (artigos 166 e 171, do Código Civil). No âmbito da arbitragem, por sua vez, prevalece o princípio da autonomia da cláusula da convenção de arbitragem em relação ao contrato, ou seja, mesmo diante da nulidade deste, aquela permanece hígida e válida, não havendo que se falar em relação principal / acessório. A respeito, a lei é clara e peremptória: “Art. 8º A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória” (LArb). De acordo com os esclarecimentos de Luiz Antonio Scavone Junior: A cláusula arbitral ou compromissória não é acessória do contrato. Portanto, como é autônoma, a nulidade do contrato não implica em nulidade da cláusula arbitral. O significado do dispositivo, portanto, indica que qualquer alegação de nulidade do contrato ou da cláusula arbitral... deve ser dirimida pela arbitragem e não pelo Poder Judiciário30. 29 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – v. I – Parte Geral, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 302. 30 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Manual de Arbitragem. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 87. Arthur Rabay 103 5.4 PRINCÍPIO DA COMPETÊNCIA-COMPETÊNCIA De origem alemã, tal princípio da competência-competência (Kompetenz-Kompetenz), quer significar que cabe ao(s) próprio(s) árbitro(s) a decisão acerca de eventual invalidade da cláusula arbitral e/ ou do respectivo contrato (art. 8º, p.ú., LArb)31. Ou nas palavras de Francisco José Cahali, “... atribui-se ao árbitro a capacidade para analisar sua própria competência, ou seja, apreciar, por primeiro, a viabilidade de ser por ele julgado o conflito, pela inexistência de vício na convenção ou no contrato”32. Efetivamente, diante de corolário lógico irrefutável, não há como se admitir a eleição da via arbitral, e ao mesmo tempo permitir-se ao Poder Judiciário que trate de sua validade, conforme de há muito já ensinavam os antigos romanos, no adágio electa una via non datur regressus ad alterum (eleita uma via não se pode substituí-la por outra – tradução livre). E isto porque, se coubesse primeiramente ao Poder Judiciário a competência para conhecer e julgar a validade / invalidade da convenção de arbitragem e/ou do contrato, haveria postergação por longo período acerca da efetiva solução da controvérsia, favorecendo inclusive intuito meramente procrastinatório de quaisquer das partes envolvidas, e configuraria verdadeira aniquilação do instituto da arbitragem e afastamento da via arbitral. 5.5 PRINCÍPIO DA FORÇA VINCULANTE E OBRIGATORIEDADE DA CLÁUSULA ARBITRAL Como cediço, de há muito prevalece o princípio da força obrigatória das convenções (pacta sunt servanda), segundo o qual as partes devem cumprir com as estipulações ajustadas entre si. Com relação à cláusula de convenção arbitral (cláusula compromissória ou compromisso arbitral), o caráter vinculante de tal ajuste, uma vez livre e espontaneamente estabelecido entre as partes, obriga-as a submeterem-se à arbitragem para solução de lides entre as mesmas, com exclusão da Jurisdição Estatal. 31 Art. 8º [...] - Parágrafo único - Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória – LArb. 32 CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. São Paulo: RT, 2011. p. 75. 104 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 104-108, jan./mar. 2014 Acerca do tema, J.E. Carreira Alvim leciona que: A arbitragem traduz o modo de resolução de conflitos que se contrapõe a jurisdição estatal; o juízo arbitral é o órgão encarregado da resolução do litígio, substituindo o juízo judicial; a convenção da arbitragem nada mais é do que o acordo das partes de submeter o litígio à decisão dos árbitros33. De fato, a Lei de Arbitragem reconhece tal caráter vinculante e força obrigatória à cláusula de convenção de arbitragem: Art. 7º - Existindo cláusula compromissória e havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, poderá a parte interessada requerer a citação da outra parte para comparecer em juízo a fim de lavrar-se o compromisso, designando o juiz audiência especial para tal fim. Assim, em havendo resistência e/ou recalcitrância por parte daquele que firmou cláusula de convenção de arbitragem, a parte interessada e prejudicada pelo descumprimento poderá força-lo a submeter-se à arbitragem para solução de controvérsia. 5.6 PRINCÍPIO DA TEMPORARIEDADE A relação obrigacional, a fim de não se configurar sujeição eterna, ostenta caráter transitório, como regra geral. Se assim não o fosse, a obrigação poderia transformar-se em verdadeira “escravidão”, não mais admitida no mundo civilizado. A respeito do tema, ensina Álvaro Villaça de Azevedo que a obrigação ostenta caráter transitório, eis que, “se fosse perpétua, importaria servidão humana, escravidão, o que não mais se admite nos regimes civilizados”34. Neste contexto, a sujeição ao juízo arbitral, não pode e não deve prolongar-se indefinidamente no tempo, sem que haja prolação de sentença arbitral, ressaltando-se não ter sido esta a intenção do legislador ao promulgar a Lei de Arbitragem. 33 ALVIM, J.E. Carreira. Comentários à Lei de Arbitragem. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. 34 AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Curso de Direito Civil – teoria geral das obrigações. 5. ed. São Paulo: RT. 1994. p. 31. Arthur Rabay 105 Com efeito, se é vedado o non liquet (não julgamento), bem como o retardamento indefinido no julgamento da causa, conforme previsto no art. 126, do Código de Processo Civil35, aplicável à jurisdição estatal, do mesmo modo não há como se permitir a ausência de julgamento arbitral, aplicandose o seguinte argumento: pior do que decidir errado, é não decidir. Ademais, com o descumprimento do prazo para prolação de sentença arbitral, indefinidamente, sem sanção, restaria malferido o princípio constitucional de acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV, Constituição Federal). Assim, resta consagrado o princípio da temporariedade, segundo qual, decorrido o lapso temporal previsto na cláusula de convenção de arbitragem para prolação da sentença arbitral, ou nada tendo sido convencionado, decorrido o prazo de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro, e desde que a parte interessada tenha notificado o árbitro, ou o presidente do tribunal arbitral, concedendo-lhe o prazo de dez dias para a prolação e apresentação da sentença arbitral, restará extinta tal cláusula contratual, e aberta a possibilidade de ajuizamento de ação perante o Poder Judiciário para solução da controvérsia (arts. 12, III, 11, III e 23, LArb)36. 5.7 PRINCÍPIO DAS GARANTIAS PROCESSUAIS Para que a arbitragem seja considerada válida, deve-se assegurar à mesma que se façam presentes no curso do procedimento arbitral garantias processuais mínimas, através das quais as partes litigantes possam exercer suas prerrogativas processuais (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, igualdade das partes, imparcialidade e livre 35 Art. 126 - O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. 36 Art. 11. Poderá, ainda, o compromisso arbitral conter [...] III - o prazo para apresentação da sentença arbitral; [...] Art. 12. Extingue-se o compromisso arbitral: [...] III - tendo expirado o prazo a que se refere o art. 11, inciso III [...] Art. 23. A sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada tendo sido convencionado, o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro, desde que a parte interessada tenha notificado o árbitro, ou o presidente do tribunal arbitral, concedendo-lhe o prazo de dez dias para a prolação e apresentação da sentença arbitral. 106 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 106-108, jan./mar. 2014 convencimento do árbitro, decisão fundamentada, etc.)37, e sem as quais a sentença arbitral sequer pode gozar de credibilidade e confiança, quer das partes litigantes, quer da sociedade. Trata-se, à toda evidência, da Teoria Garantista – Espanha, de lavra do Prof. Antonio M. Lorca Navarrete, segundo a qual: Não pairam dúvidas que os Princípios Informadores do Processo Judicial encontram guarida no procedimento arbitral, ou seja, os Princípios da Tutela Jurisdicional e do Devido Processo Legal... a existência da arbitragem implica o desenvolvimento de um sistema de garantias processuais que possuem projeção constitucional. Constituem as garantias do cidadão, espelhadas nos princípios de direito constitucional processual (art. 5º, incisos XXXV, LIV e LV)38. Ou como ensina José Eduardo Carreira Alvim: A arbitragem, ex vi legis, é informada por alguns princípios (art. 21, § 2º, Larb), aos quais, em razão da função que cumprem, denomino de princípios ‘diretores’ do processo arbitral. São eles os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e do seu livre convencimento. Aliás, a grande diferença entre o processo arbitral e o judicial não está na natureza jurídica de ambos – que é precisamente a mesma - , mas em permitir a arbitragem que as partes escolham árbitros e as regras do procedimento arbitral, o que não se admite no processo judicial39 40 . 37 arts. 13, § 6º, 21, § 2º, 32, inciso VIII, 38, III, LArb. 38 FERREIRA LEMES, op. cit., p. 33 39 ALVIM, op. cit., p. 169. 40 REFERÊNCIAS LEGISLATIVAS: - Art. 5º, inciso LV, CF – “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” - Art. 93, inciso IX, CF – “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” - Larb - Art. 26. São requisitos obrigatórios da sentença arbitral: [...] II - os fundamentos da decisão, onde serão analisadas as questões de fato e de direito, mencionando-se, expressamente, se os árbitros julgaram por eqüidade; - LArb - Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. [...] § 6º No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência [...] Arthur Rabay 107 6 CONCLUSÃO Conclui-se que a arbitragem é meio alternativo de solução de controvérsias, e enquanto instituto jurídico sujeita-se a diversos princípios que lhe asseguram higidez, validade, coerência, estrutura e harmonia sistêmicas. Também em caso de interpretações múltiplas o operador do direito deve socorrer-se e buscar solução nos princípios da arbitragem, afastando dúvidas, lacunas e/ou obscuridades, bem como situações e/ou ocorrências absurdas e desequilibradas. A tão almejada confiança e credibilidade da arbitragem perante a sociedade, decerto que trespassa pela consolidação de principiologia própria e dela carece. A função social dos princípios da arbitragem transcendem os interesses meramente privados e particulares, e a reposiciona e a consolida como ferramenta célere e eficaz de interesse e relevância social para acesso à Justiça. Em suma, a principiologia da arbitragem confere maioridade e o consolida enquanto instituto jurídico. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estúdios políticos y constitucionales, 2002. ALVIM, José Eduardo Carreira. Comentários à Lei de Arbitragem. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. ______. Tratado Geral da Arbitragem - Interno. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Curso de Direito Civil – teoria geral das obrigações. 5. ed. São Paulo: RT, 1994. ______. Verbete liberdade contratual. Enciclopédia Saraiva do Direito 49/370371. 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O VETO PRESIDENCIAL NO DIREITO CONSTITUCIONAL NORTE-AMERICANO THE PRESIDENTIAL VETO IN THE AMERICAN CONSTITUTIONAL LAW Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy Procurador da Fazenda Nacional, Consultor-Geral da União1 Doutor e Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP. Pós-doutor em Direito Comparado (Universidade de Boston) e em Teoria Literária (Universidade de Brasília-UnB). 1 Livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP. Professor visitante na Faculdade de Direito da Universidade da California-Berkeley. 68 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 68-88, jan./mar. 2014 A atuação legislativa do presidente norte-americano se dá também mediante o exercício do direito do veto2. Nesse caso, tem-se atuação presidencial aparentemente negativa no processo legislativo norte-americano. Há expressa previsão constitucional para esse poder3. A assertiva, de algum modo, também se projeta no direito constitucional brasileiro; argumento que o poder de veto é menos simbolico do que efetivamente prospectivo. O veto promove, de fato, ativismo presidencial. Há equívoco em quem sustente que o poder legislativo presidencial se realiza, tão somente, na utilização de medidas provisórias e decretos. Não há, no entanto, ao que consta, estudo sistemático sobre o veto no direito brasileiro. No presente artigo trato do tema do veto presidencial, no modelo norte-americano. Franklyn Delano Roosevelt foi o presidente norte-americano que vetou o maior número de projetos de lei; foram 635 negativas de promulgação de leis que o Congresso havia encaminhado4. Grover Cleveland segue na lista, com um total de 584 vetos. Grover Cleveland foi o único presidente norte-americano a exercer por duas vezes a chefia do Executivo federal nos Estados Unidos, descontinuadamente. Vetava intensamente, firme na convicção de que a Presidência tinha como missão restringir os excessos do Congresso5. Harry Truman, que viveu delicadíssimo momento histórico marcado pela guerra fria, valeu-se do veto por 250 vezes. Dwight David Eisenhower, que também chefiou o Executivo norte-americano no contexto da guerra fria6 lançou 181 vetos a lei encaminhadas para sua apreciação. Inclusive, tratou por intermédio de veto matérias de importância menor, pela relevância e pelo alcance. Ilustrando a assertiva o registro de que Eisenhower vetou projeto de lei que dispunha sobre melhoramentos de postos de gasolina no Distrito de Columbia, invocando que a medida contrariava os planos de ocupação da capital 2 O presente artigo é excerto de pesquisa realizada na Faculdade de Direito da Universidade da CaliforniaBerkeley ao longo de estudos realizados em janeiro e fevereiro de 2014. Agradecimentos a Kate Jastram, professora de Direito Internacional na referida faculdade. 3 Constituição dos Estados Unidos, art. I, sec 7, parágrafos 2 e 3. 4 Cf. JIMSEY, George Mc. The Presidency of Franklyn Delano Roosevelt. Lawrence: University Press of Kansas, 2000. 5 Cf. GERHARDT, Michael. The Forgotten Presidents: Their Untold Constitutional Legacy, Oxford: Oxford University Press, 2013. p 127. 6 Cf. PACH JR., Chester J.; RICHARDSON, Elmo. The Presidency of Dwight D. Eisenhower. Lawrence: University Press of Kansas, 1991. p. 75 e ss. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 69 norte-americana7. Nesse caso, matéria urbanística, predominante local, fora objeto de veto presidencial. Ulisses S. Grant, herói da guerra civil norte-americana, vetou 93 projetos de leis. Theodore Roosevelt, na década de 1910, utilizou o instituto do veto 82 vezes8. Na opinião de estudioso do presidencialismo norte-americano, “o veto era apenas uma arma de autodefesa para o presidente; era o que propiciava ao presidente meios para manter seu juramento, no sentido de que se comprometia a preservar, proteger e defender a Constituição; não se prestando para nenhum outro propósito”9. Ao longo da história norteamericana o veto se transformou em importantíssimo mecanismo de enfrentamento do Congresso e de implemento de políticas publicas forjadas na agenda presidencial. O instituto do veto reflete paradoxo, na compreensão de professor norte-americano, em livro clássico, de 1890. Porquanto presentemente o veto pareça tão somente o poder de se barrar a passagem de proposta em lei, fora concebido inicialmente como prerrogativa para a construção (positiva) de lei. Isto é, o veto é, na essência, importante instrumento de legislação positiva, de criação de norma e não, necessariamente, poder de obstrução ou de resistência ao processo legislativo. Esse paradoxo seria explicado pelo fato de que o processo legislativo permite que se exerça o direito de se aceitar ou de se rejeitar uma determinada proposição legislativa que se esteja discutindo. O veto, assim, exprime funções positivas e negativas; e sua função mais recente consiste no poder de se obstruir ou negar10. É o que se constata na experiência norte-americana, a exemplo do que ocorre na experiência constitucional brasileira. 7 EISENHOWER, Dwight D. Public Papers of the Presidents of the Unites States (1953). Washington: Office of the Federal Register, 1953. p. 525. 8 Cf. BURSCH, Noel T., T.R. The Story of Theodore Roosevelt and his influence on our times. New York: Reynal and Company, 1963. 9 CORWIN, Edward S. The President- Office and Powers- 1787-1984. New York and London: New York University Press, 1984, p. 319. No original: “The veto was solely a self-defensive weapon of the President; it was means furnished him for carrying out his oath, to preserve, protect and defend the Constitution and was not validly usable for any other purpose”. 10 Cf. MASON, Edward Campbell. The Veto Power- its Origin, Development and Function in the Government of the United States (1789-1889). Boston: Ginn and Company, 1890. p. 11. No original: “The veto power which today seems purely a power to prevent the passage of proposed laws, originated as a part of the power to make them. This paradox is explained by the fact that legislation includes the right of the legislating body either to accept or to to reject the propositions which it discusses. It has a positive and a negative function, and this latter function is in its nature a power to veto or deny”. 70 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 70-88, jan./mar. 2014 Em linhas gerais, o veto presidencial precede e controla a promulgação de uma lei11; confere ao presidente boa margem de controle do processo legislativo12; é arma poderosa na ação negativa de presidentes e de governadores13. Trata-se de arranjo institucional contra-fático em um direito prioritariamente parlamentar14. Conforme afirmou um autor cuja primeira edição de seu livro é de 1917, o veto qualifica-se por manifestar um poder efetivamente rescisório15. Originalmente, ao que parece, o uso do veto por parte dos presidentes norte-americanos era muito raro. Quando o faziam, registravam objeções às leis encaminhadas, exercendo de algum modo um controle prévio de constitucionalidade16. Andrew Jackson notabilizou-se por ter usado o veto por sete vezes, sendo que o Congresso não conseguiu derrubar nenhum dos vetos então lançados17. Em 10 de julho de 1832 Andrew Jackson vetou um projeto que pretendia garantir a criação de um segundo banco nacional norte-americano. Foi Andrew Jackson que fez do veto uma arma muito poderosa, especialmente quando da referida discussão em torno da certificação de um segundo banco nacional18. O banco funcionava desde o tempo de James Madison, seguia o modelo de Alexander Hamilton (criador do primeiro banco nacional norte-americano). A negativa de Jackson conduziu a privatização desse banco, em 1836. Considera-se esse veto de Andrew Jackson como o mais celebrado de todos os vetos da história constitucional norte-americana. Deu-se em um clímax nas relações entre o executivo e o legislativo, continuando disputa que se ampliava desde 1830. Verifica-se a coragem de Andrew 11 JORDAN, E. Theory of Legislation- An Essay on the Dinamics of Public Mind. Chicago: The University of Chicago Press, 1952. p. 366 e ss. 12 Cf. DAVIES, Jack. Legislative Law and Process in a nutshell. St. Paul: West Publishing, 1986. p. 82. 13 Cf. JEWELL, Malcolm; PATTERSON, Samuel C. The Legislative Process in the United States. New York: Random House, 1973. Conferir também PLACE, Lucille. Parlamentary Procedure Simplified: A Complete Guide to Rules of Order, New York: Frederick Fell, 1976. 14 Cf. KARCHER, Joseph T. Handbook on Parliamentary Law. Charlotesville: The Michie Company Law Publishers, 1959. 15 Cf. FREUND, Ernst. Standards of American Legislation. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1965. 16 Cf. CORWIN, Edward S.; KOENIG, Louis W. The Presidency Today. New York: New York University Press, 1956, p. 87. No original: “Early presidents used the veto rarely, mainly to register objections on constitutional grounds […]”. 17 Cf. KOENIG, Louis W. The Chief Executive. New York: Harcourt, Brace and World Inc., 1964. p. 18. 18 Cf. CORWIN, Edward S.; Koenig, Louis W. cit., loc. cit. No original: “ […] but Andrew Jackson made it [the veto] a major weapon in his wars on the Bank of the United States”. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 71 Jackson em enfrentar uma rejeição pelo Congresso, enfrentando-a como uma consequência imprevisível. Andrew Jackson interpretou audaciosamente a Constituição norte-americana, com conclusões perigosas que poderiam conduzir a consequências desastrosas. Esse é o raciocínio de um estudioso do presidencialismo norte-americano, observando que o mencionado veto teria garantido a reeleição de Andrew Jackson em 1832, ainda que seus seguidores não pudessem prever que seria esse o resultado do embate com o Congresso19. George Washington, por exemplo, vetou apenas dois projetos a ele encaminhados. Em 5 de abril de 1792 lancou objeções a um projeto que definia o número de representantes na Câmara dos Deputados com base no censo de 1790. Trata-se do primeiro veto que se tem notícia na história constitucional norte-americana. Washington invocou inconstitucionalidade na pretensão do Congresso. Ainda que os congressistas tentassem derrubar o veto de Washington, não obtiveram o quorum necessário. Comprovou-se a dificuldade que há na movimentação e na articulação do legislativo com vistas a derrubada de veto presidencial. A par de enfrentamento político, o veto também suscita discussão em torno de importantíssimas questões de fundo constitucional. James Madison (que vetou 7 projetos de lei) insurgiu-se contra projeto do Congresso que pretendia incorporar a Igreja Episcopal de Alexandria (no estado da Virginia) ao Distrito de Columbia. Em 21 de fevereiro de 1811 vetou a iniciativa, com base em emenda constitucional que previa a liberdade religiosa. Foi essa a mesma justificativa utilizada por James Madison para vetar, uma semana depois (em 28 de fevereiro de 1811), um projeto do Congresso que pretendia distribuir terras públicas no Estado do Mississipi em favor da Igreja Batista. Transita-se no complexo tema das relações entre Estado e Igreja; vige nos Estados Unidos a 19 Cf. Jackson, Carlton, Presidential Vetoes- 1792-1945, Athens: University of Georgia Press, 1967, p. 29. No original: “Executive disapproval of the Bank Rechartering Bill of 1832 remains the most celebrated veto in American history. It marked the climax of the presidential – legislative dispute which had been steadly developing since 1830. It showed the courage of Jackson in handing out a rejection whose consequences could not be foreseen. It also appeared to introduce a startling interpretation of the Constitution which could have momentous consequences if carried to its ultimate conclusions. Finally, it assured Jackson of reelection in 1832, althought the Jacksonians could not be certain that this would result”. 72 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 72-88, jan./mar. 2014 denominada Establishment Clause Standard, que impõe que o governo não pode manifestar preferência por nenhuma religião20. Andrew Johnson, em 27 de marco de 1866, vetou o Civil Rights Act, documento que garantia aos afrodescendentes o gozo de direitos civis. Vivia-se momento histórico de muita dificuldade, a Guerra Civil se encerrara no ano anterior. O Congresso derrubou o veto de Andrew Johnson. A Nação sentia-se ultrajada depois do assassinato de Lincoln, a quem se reportava a lei que Andrew Johnson quis vetar21. Até o momento da redação do presente trabalho (fevereiro de 2014) são contabilizados 2564 vetos presidenciais nos Estados Unidos. Desse total, 1497 foram vetos regulares, enquanto que se registra também 1067 vetos de bolso, modalidade que será explicada mais adiante. Comprovando-se a força do instrumento, observa-se que apenas 110 vetos foram derrubados. Isto é, apenas 4% dos vetos lançados pelo presidentes norte-americanos foram enfrentados e derrubados pelo Congresso. Entende-se que o moderno veto presidencial possua uma qualidade dupla. Trata-se também de um poder substantivo, e efetivamente potente. Porém, pode ser politicamente perigoso para o presidente que o usa intensamente. O veto, nessa concepção, detém também qualidade simbólica que, ainda que de forma etérea, possa ser altamente útil para os presidentes22. No modelo norte-americano, além do veto presidencial há também os vetos dos governadores estaduais, com exceção do Estado da Carolina do Norte, no qual tal arranjo constitucional não é utilizado23. É compreensão comum que o veto do modelo constitucional norteamericano não seja absoluto; trata-se, no entanto, de um veto qualificado, no sentido de que o chefe do Executivo deve informar ao Legislativo suas razões, que podem ser derrubadas pelo Congresso24. 20 Cf. BERG, Thomas C. The State and Religion in a nutshell. St. Paul: West Group, 1998. p. 25 e ss. 21 Cf. HARRIS, William C. Lincoln’s Last Months. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2004. p. 225. 22 SPITZER, Robert J. The Presidential Veto- Touchstone of the American Presidency. Albany: State University of New York Press, 1988. p. 145. No original: “The modern veto power possesses a dual quality. As a substantive power, it is potent, but politically dangerous for presidents who use it too much. The veto also has a symbolic quality that, though, ethereal, can be highly unseful for presidents”. 23 Cf. ANTIEAU, Chester James. The Executive Veto. London: Oceana Publications, 1988. 24 Cf. ANTIEAU, op. cit., p. 4. No original: “ The American veto is not an absolute veto, but only a qualified one, in the sense that the executive must provide the legislative with his objection and that it can be overriden by the legislature”. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 73 Franklyn Delano Roosevelt foi o presidente norte-americano que mais leis vetou25; Truman26, Eisenhower27 e Ronald Reagan28 impuseram vetos a massiva legislação em matéria economica, a eles submetida por Congressos abertamente hostis ao Executivo29. São presidentes de personalidade forte e combativa, que enfrentaram Congressos igualmente ativos e ativistas. Ronald Reagan, contraditoriamente, por exemplo, vetou projeto de lei que daria direito ao acesso ao Parque Nacional de Buffalo a proprietário rural cuja área era adjacente ao referido parque. Reagan argumentou que os parques deveriam servir a todos, sem discriminação, a par do que, acrescentou, os parques deveriam ser preservados30. Gerald Ford vetou um projeto que tratava de subsídios ao leite; argumentou que iria onerar os contribuintes31. Nesse último caso trata-se de veto corajoso, na medida em que desagradou setor produtivo, não conseguindo também cortejar ao consumidor, porque os preços não cairiam; mostra-se, no entanto, visão realista, dado que a conta seria paga pelos cofres públicos, que são alimentados por recursos extraídos dos contribuintes, por meio de tributos ou de políticas inflacionárias. Compreende-se também que o uso recorrente do mecanismo do veto seja arranjo institucional de grande importância política, porquanto mantém o Congresso permanentemente avisado de que deva compor com o Presidente32. Vários presidentes norte-americanos não vetaram leis 25 Cf. KOENIG, op. cit., loc. cit. 26 Harry Truman apresentou 250 vetos. Desse total, 180 foram vetos regulares e 70 foram vetos de bolso. 27 Dwight David Eisenhower apresentou 181 vetos. Desse total, 73 foram vetos regulares e 108 foram vetos de bolso. 28 Ronald Reagan apresentou 78 vetos. Desse total, 39 foram vetos regulares e tambem 39 foram os vetos de bolso. 29 Cf. KOENIG, op. cit., p. 18-19. 30 REAGAN, Ronald. The Puplic Papers of the Presidents of the United States (1988-1989). Washington: United States Government Printing Office, 1991. p. 1316. 31 FORD, Gerald R. The Public Papers of the Presidentes ot the United States (1976-1977). Washington: United States Government Printing Office, 1979. p. 115. 32 Cf. CORWIN; KOENIG, op. cit., p. 88. No original: “[…] used frequently, the veto keeps the legislators aware that they must reckon with the President”. 74 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 74-88, jan./mar. 2014 encaminhadas para promulgação33. Há também registros de presidentes que apresentaram número pouco significativo de vetos34. Na medida em que avaliamos mandatos mais recentes, o número de vetos aumenta, o que reflete conflitos do Executivo com o Congresso, circunstância potencializada pela complexidade das matérias submetidas ao presidente. Nessa lista pode-se incluir Benjamin Harrison35, William Mc Kinley36, Theodor Roosevelt37, Woodrow Wilson38, Calvin Coolidge39, Herbert Hoover40, John Kennedy41, Lyndon Johnson42, Richard Nixon43, Gerald Ford44, Jimmy Carter45, Ronald Reagan46, George H. W. Bush47 e Bill Clinton48. George W. Bush lançou poucos vetos, o que naturalmente reflete o controle do partido republicano nas agendas do Senado e do Congresso49. Embora, bem entendido, na campanha presidencial de 2000, Bush mostrou-se preocupado com a diminuição da autoridade presidencial, o que explicava do ponto de vista moral: pregou que restauraria a moral na Casa Branca. Essa suposta insuficiência moral que Bush combatia teria fortalecido o Congresso em relação ao Executivo. Por isso, comprometeu33 São eles: John Adams, Thomas Jefferson, John Quincy Adams, William Henry Harrison, Zachary Taylor, Millard Filmore e James Garfield. 34 São eles: James Monroe (1 veto), Martin Van Buren (1 veto), John Tyler (10 vetos), James Polk (3 vetos), Franklin Pierce (9 vetos), James Buchanan (7 vetos), Abraham Lincoln (7 vetos), Rutherford Hayes (13 vetos), Chester Artur (12 vetos), Warren Harding (6 vetos). 35 19 vetos regulares e 25 vetos de bolso, com um total de 44 vetos. 36 6 vetos regulares e 36 vetos de bolso, com um total de 42 vetos. 37 42 vetos regulares e 40 vetos de bolso, com um total de 82 vetos. 38 33 vetos regulares e 11 vetos de bolso, com um total de 44 vetos. 39 20 vetos regulares e 30 vetos de bolso, com um total de 50 vetos. 40 21 vetos regulares e 16 vetos de bolso, com um total de 37 vetos. 41 12 vetos regulares e 9 vetos de bolso, com um total de 21 vetos. 42 16 vetos regulares e 14 vetos de bolso, com um total de 30 vetos. 43 26 vetos regulares e 17 vetos de bolso, com um total de 43 vetos. Entre os vetos regulares, em 17 de outubro de 1972 Richard Nixon vetou o Clean Water Act, substancialmente em matéria ambiental. Esse veto foi derrubado pelo Senado norte-americano. 44 48 vetos regulares e 18 vetos de bolso, com um total de 66 vetos. 45 13 vetos regulares e 18 vetos de bolso, com um total de 31 vetos. 46 39 vetos regulares e 39 vetos de bolso, com um total de 78 vetos. 47 29 vetos regulares e 15 vetos de bolso, com um total de 44 vetos. 48 36 vetos regulares e 1 veto de bolso, com um total de 37 vetos. 49 11 vetos regulares e 1 veto de bolso, com um total de 12 vetos. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 75 se a proteger o Executivo contra o Congresso, negando-se a se portar como um refém do Poder Legislativo50. O veto é componente de técnica política que se realiza no tempo e que radica no tema clássico da separação dos poderes. Verifica-se em livro de meados do seculo XX informação que nos dá conta de que os autores da Constituição norte-americana levavam muito a sério as palavras e ensinamentos de William Blackstone e de Montesquieu. Ambos enfatizavam a importância da separação entre funções legislativas, executivas e judiciais no governo. Esse modelo de separação fora observado pelos autores da Constituição dos Estados Unidos, sem que se registrase formalmente no texto constitucional uma declaração de adesão a essa concepção51. Na opinião de outro estudioso norte-americano o veto seria, na essência, um instrumento defensivo para o chefe do Poder Executivo. E também deve ser visto como uma das armas mais poderosas que presidentes e governadores contam na tentativa de influenciarem o comportamento do Poder Legislativo52. O crescimento das expectativas públicas e das demandas para a ação governamental fomentam conflitos entre o Congresso e o Executivo, realçando a importância da prerrogativa do uso do veto, por parte do Presidente da República53. O veto também é, na essência, uma ultima ratio para uma tentativa de se garantir uma agenda política; o veto de Bush (pai) em matéria de leis de cotas é dessa assertiva um exemplo importante54. 50 Cf. RUDALEVIGE, Andrew. The New Imperial Presidency- Renewing Presidential Power After Watergate. Ann Harbor: The University of Michigan Press, 2008. p. 211. 51 Cf. CLARK, Georg L. Summary of American Law. Rochester: The Lawyers Cooperative Publishing Company, 1949. p. 462. No original: “ The framers of the United States Constitution had before them the words of Blackstone and Montesquieu each of whom had emphasized the importance of a general separation of the legislative, executive and judicial departments of Government and his separation was observed by them in framing the United States Constitution without including therein any formal statement of the theory”. 52 Cf. KEEFE, William J.; OGUL, Morris S. THE AMERICAN LEGISLATIVE PROCESSCONGRESS AND THE STATES. New Jersey: Prentice Hall, 1999. p. 356. No original: “Essentially, the veto is a defensive weapon for the chief executive. Yet it also should be seen as one of the most powerful weapons in the arsenal of presidents and govenors as they attempt to influence legislative behaviour”. 53 Cf. KEEFE; OGUL, op. cit., p. 356. 54 Cf. EASTLAND, Terry. Energy in the Executive- The Case for the Strong Presidency. New York: The Free Press, 1992. p. 108. 76 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 76-88, jan./mar. 2014 Em livro que data originariamente de 1872, concebido como uma introdução ao direito norte-americano, e republicado cem anos depois, fez-se uma exposição do direito presidencial ao veto com fundamento na experiência constitucional inglesa. Segundo o autor, os atos do Congresso dependem de um escrutínio antes de se consumarem como lei. Trata-se de um julgamento que é de competência do Presidente da República. Na Inglaterra, prossegue o autor, o rei tinha um poder negativo absoluto em relação aos atos do Parlamento. Porém, a negativa do presidente, comparada com a negativa do rei, revelava-se como uma negativa qualificada. A lei é remetida para o presidente com expectativa de aprovação. Aprovando, ele a assina. Caso contrário, o presidente reenvia o texto para a Casa legislativa originária, instruindo o retorno com suas objeções55. A natureza conceitual do veto, na história mais recente, é indubitavelmente inglesa. Informa um autor norte-americano que, quando o presidente recusa honrar um projeto de lei vindo do Congresso, vetando-o, e invocando inconstitucionalidade, exerce poder que não se distingue do poder real de suspender e desconsiderar outros poderes, duas das prerrogativas mais excepcionais que no passado eram do detentor da Coroa Britânica. Prossegue esse autor, observando que da Idade Media até o fim do século XVII, reis e rainhas da Inglaterra rotineiramente suspendiam e desconsideravam leis, sempre invocando que eram inconstitucionais, ainda que os ingleses não contassem com um texto constitucional assim considerado em sentido estrito. Depois de séculos de luta entre a Coroa e o Parlamento, a Declaração de Direitos de 1689 aboliu definitivamente essa prerrogativa da Coroa. Nos Estados Unidos, no fim do século XX, os presidentes argumentavam que tinham o mesmo poder para ignorar leis que reputassem inconstitucionais56. Patina-se na história do direito inglês, espaço no qual, por muito tempo, era o rei quem fazia a lei57. 55 Cf. WALKER, Timothy. Introduction to American Law. New York: Da Capo Press, 1972. p. 89. No original: “ But the acts of Congress must pass another ordeal before their consummation; and that is the scrutinity of the President. In England the King has an absolute negative upon the acts of Parliament; but the negative of the President is qualified. The bill is send to him for approval. If he approves it, he signs it. If not, he sends it back to the house where it originated, with his objections”. 56 Cf. MAY, Cristopher M. Presidential Defiance of Unconstitutional Laws. Westport: Greenwood Press, 1998. 57 Cf. STIMSON, Frederic Jesup. Popular Law-Making- A Study of the Origin, History, and Present Tendencies of Law-Making by Statute. New York: Charles Scribner’s and Sons, 1912. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 77 E em texto de 1868, republicado em 1998, também a propósito de uma introdução ao direito norte-americano, observou-se que ao Presidente dos Estados e aos governadores estaduais não apenas se exigia que tomassem cuidado para que as leis fossem fielmente executadas. O poder de veto os habilitava para controlar o Poder Legislativo, a menos que esse derrubassem os vetos com dois terços de seus votos58. A constituição norte-americana é muito clara quanto ao procedimento do veto presidencial. Dispôs-se que toda proposta de lei aprovada pela Câmara ou pelo Senado deve ser apresentada ao Presidente para promulgação. Com a aquiescência do chefe do Executivo a lei é aprovada, o que se confirma com a assinatura presidencial lançada junto à minuta que lhe foi pelo Congresso encaminhada. Na hipótese do Presidente não concordar com o texto que lhe foi encaminhado, poderá devolver o projeto à Casa legislativa originária, juntanto as razões de suas objeções. Essa negativa consiste no veto presidencial. A Casa legislativa que encaminhou o projeto de lei vetado pelo presidente irá apreciar e discutir o conteúdo das objeções. O veto presidencial poderá ser derrubado por intermédio de dois terços dos votos colhidos na Câmara ou no Senado, dependendo de onde o projeto de lei fora originalmente aprovado. Com a coleta de dois terços dos votos o texto segue para a outra Casa legislativa, para confirmação da derrubada do veto, o que demanda também mais dois terços dos votos dos parlamentares. Estatisticamente, revela-se que pequeno percentual de vetos são derrubados. Como já indicado, 2.564 vetos apresentados por presidentes norte-americanos, o Congresso derrubou apenas 110 deles, isto é, algo em torno de 4%. Os presidentes que tiveram o maior número de vetos derrubados foram Andrew Johnson59, Gerald Ford60 e Richard Nixon61. Pode-se acompanhar reflexão de professor norte-americano, admitindo-se que o modelo norte-americano de separação de poderes é raramente um espaço de guerra por ele mesmo. Porém, a Constituição 58 Cf. WEDGWOOD, William. The Government and Laws of United States. Littleton: Rothman, 1998. p. 86. No original: “The President of the Nation and the governors of the States are not only required ‘to take care that the laws are faithfully executed, but by their veto they can control the legislature, unless two thirds in Congress and in most of the State legislatures can be obtained in opposition to such veto”. 59 15 vetos derrubados de um total de 29 vetos apresentados. Isto é, em torno de 52%. 60 12 vetos derrubados de um total de 66 vetos apresentados. Isto é, em torno de 18%. 61 7 vetos derrubados de um total de 43 vetos apresentados. Isto é, em torno de 33%. 78 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 78-88, jan./mar. 2014 norte-americana parece fazer um perene convite para a luta entre os três poderes. O modelo de freios e contrapeso concebido para enfrentar a tirania também outorga a cada um dos poderes ferramentas para que possam barganhar em torno de políticas. Na arena legislativa, prossegue, o veto é o instrumento primário que o presidente detém. Pergunta, em seguida, se o presidente não seria sistematicamente incentivado a usar o mecanismo do veto, com o objetivo de perseguir seus objetivos políticos62. Há outro procedimento também, por intermédio do qual se processa uma aprovação tácita, pelo presidente, do projeto de lei que lhe foi encaminhado por uma das duas Casas do Congresso. É que, não devolvendo a lei em dez dias (não contados os domingos), tem-se então que a lei foi efetivamente aprovada, ainda que de modo tácito. Uma questão interessante, ainda que substancialmente acadêmica, foi levantada por outro autor norte-americano aqui estudado. Pode-se supor que o presidente venha a falecer dentro do período de dez dias que lhe é reservado para apreciar uma lei que lhe foi encaminhada. Indagou-se se o vice-presidente poderia suprir a ausência do presidente, por esse relevante motivo justificado, aprovando efetivamente a lei encaminhada à chefia do Executivo. Entendeu-se que essa situação não seria justificativa de paralização do processo legislativo. O vice-presidente não teria a seu favor a interrupção do prazo, de modo que ainda disporia de mais dez dias para lançar seu aprovo ou, no limite, vetar a proposição que lhe foi encaminhada. O curioso é que a solução dada ao caso se fez com base nas práticas constitucionais inglesas, quando, até 1867, quando se produziu lei nesse sentido, a morte do monarca tinha como efeito a dissolução do Parlamento63. 62 Cf. CAMERON, Charles M. Veto Bargaining- Presidents and the Politics of Negative Power. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. No original: “ The American separation of powers system is rarely at war itself. Nonetheless, the Constitutuion is an invitation to struggle […] The checks and balances intended to stop the slide into tyranny also provide each organ with tools for bargaining over policy. In the legislative arena, the veto is the president’s primary tool. The question is, does the president have a systematic incentive to use the veto to pursue his policy goals?”. 63 Na construção da solução para esse problema abstrato o curioso estáa na metodologia, centrada na referência ao direito inglês. CORWIN, op. cit., p. 321. No original: “[…] suppose that a President died while still considering a bill: could the suceeding Vice-President sign effectively? I see no reasons why the legislative process should be stalled in any of these situations. Formely, it is true, the death of the British Monarch involved the dissolution of Parliament, since Parliament meets on his personal summons; but this usage, which was abolished by statute in 1867, obviously furnishes the guidance by practice under the Constitutuion”. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 79 O exercício do poder do veto presidencial se insere na questão do acompanhamento da continuidade do processo legislativo, por parte do presidente. A produção normativa é intermitente. Segundo autor norte-americano, uma boa parte da legislação dá início a programas governamentais efetivamente tangíveis, outorga benefícios, regula, organiza, procedimentaliza. Leis autorizam o gasto de dinheiro público. Propiciam que se apropriem de fundos. Instruem agentes públicos a cobrarem tributos. Leis são comportamentais, organizacionais, deixando resíduos estruturais uma vez de que aprovadas64. Já se registrou que se o presidente faz algo que a maioria do Congresso desaprove, pode este último alterar as leis e previnir o presidente que não deve repetir a ação ou omissão. Porém, registra-se também, essa possibilidadeé mais uma concepção teórica do que um fato da vida real. O presidente detem o poder de vetar leis; isto é, se pretende continuar do modo como censurado pelo Congresso, uma minoria de um terço mais um voto em cada Casa legislativa é suficiente para sustentar o veto65. O conflito entre o Presidente e o Congresso pode revelar o nacionalismo e o particularimo daquele e o universalismo desse último; a percepção presidencial é substancialmente focada em discurso nacionalista66. De qualquer modo, há bases constitucionais que fomentam a rivalidade entre Executivo e Congresso67, especialmente porque, em princípio, há problemas em se falar de delegação de poderes legislativos, no regime de separação de poderes68. 64 Cf. JONES, Charles O. The Presidency in a Separated System. Washington: The Brookings Institution, 1994. p. 183. No original: “Lawmaking is continuous. Most laws create tangible programs, benefits, regulations, organizations, or processes. They authorize the spending of money, then apropriate the funds. They instrued agents how to collect taxes. They are behavioural, organizational, and structural residues once laws are passed”. 65 Cf. SUNDQUIST, James L. in: Nikolaieff, George A. (ed.), The President and the Constitution. New York: The H. W. Wilson Company, 1974, p. 77. No original: “ If the President does something the majority in Congress disapproves, it can ammend the law to prevent the President from doing it again. But this possibility is more theory than fact. The President retains the power of veto, and if he wants to go on doing what the congressional majority objects to, a minority of one third plus one of either house is sufficient to sustain his veto”. 66 Cf. HEINEMAN JR., Ben; HESSLER, Curtis A. Memorandum for the President- A Strategic Approach to Domestic Affairs in the 1980’s. New York: Random House, 1980. p. 91. 67 HARRIS, Joseph P. Congressional Control of Administration. Washington: The Brookings Institution, 1964. 68 LEVY, Richard E. The Power to Legislate- A Reference Guide to the United States Constitution. Westport: Praeger, 2006. p. 123. 80 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 80-88, jan./mar. 2014 O desejo do presidente no sentido de efetivamente comandar o governo decorre de disputa permanente com o Congresso; presidente que comanda é justamente aquele que vence de um modo tão forte que, na opinião de estudioso aqui citado, não se pode negar ao presidente legitimidade para propor ou desistir de uma agenda política69. Houve também varias tentativas de presidentes norte-americanos vetarem apenas excertos e fragmentos de textos legais encaminhados para promulgação. Esse tipo de veto, parcial, fragmentário, é denominado pela doutrina norte-americana de line-item veto. Essa fórmula foi considerada inconstitucional pela Suprema Corte norte-americana, no celebre caso Clinton v. City of New York70. Ao que consta, membros do partido republicano argumentaram, ao longos das décadas de 1980 e de 1990, que o poder do veto parcial (line-item veto) permitiria que o presidente deixasse a seu arbítrio o nível de aplicação parcial da norma questionada71. Nessa mesma época, os republicanos lançaram e divulgaram conjunto de propostas, que denominaram de “contrato com a América”, e que dependia da manutenção do mecanismo do veto parcial72. Porém, ironicamente, mais tarde, os republicanos repudiaram Bill Clinton, quando este presidente utilizou o veto parcial para invalidar propostas normativas aprovadas por maiorias republicanas. No caso Clinton v. City of New York o que se discutia, no limite, era constitucionalidade de uma ordem presidencial, ainda que fosse materializada por veto, de natureza parcial. O Congresso havia aprovado uma lei, em 1966, na qual se permitiu que o Presidente vetasse parcialmente textos normativos a ele encaminhados; trata-se do Line Item Veto Act. Com base nessa disposição legal, o Presidente Clinton vetou algumas partes de uma lei orçamentária de 1997. A municipalidade de Nova Iorque, sentindo-se prejudicada pelo veto parcial, judicializou a questão, a luz de fortíssimo impacto constitucional. 69 Cf. JONES, op. cit., p. 3. No original: “Surely if any president is to command the government, it will be one who wins so overwhelmingly that no one in Washington can deny his legitimacy for setting and cleaning the agenda”. 70 Cf. CRENSON, Matthew; GINSBERG, Benjamin. Presidential Power: Unchecked and Unbalanced. New York and London: W.W. Norton and Company, 2007. p. 348. 71 Cf. CRENSON; GINSBERG, op. cit. 72 Cf. CRENSON; GINSBERG, op. cit. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 81 O veto que Clinton havia parcialmente lançado na lei orçamentária que então se discutia teve como consequência o fato de que a municipalidade de Nova Iorque deveria pagar ao governo federal valores devidos ao programa federal de saúde (Medicaid), fazendo-o por intermédio da suspensão de alguns créditos fiscais que foram garantidos a cooperativas de produtores de alimentos. Junto à municipalidade de Nova Iorque, algumas empresas que foram diretamente prejudicadas pelo veto presidencial, provocaram o judiciário. A questão chegou à Suprema Corte norte-americana, em julgamento marcado por muita expectativa. Na Suprema Corte, o relator, Juiz Stevens, opinou que as disposições da lei discutida eram inconstitucionais. A referida lei autorizava que o presidente dos Estados Unidos poderia vetar integralmente três modalidades de disposições contidas em um projeto de lei. O presidente poderia vetar a alocação de valores que poderiam ser utilizados discricionariamente, nos termos da lei orcamentária. Poderia vetar qualquer rubrica de novos gastos. Poderia também vetar beneficios fiscais contidos em leis orçamentárias. Nos termos da lei questionada, para que o presidente exercesse o direito de veto parcial, nas situações acima descritas, deveria comprovar que a medida diminuiria o deficit orçamentário federal norte-americano, que não paralisaria nenhuma das funções essenciais do governo e que não resultaria em ameaça ao interesse público. O Congresso poderia derrubar esses vetos por maioria, não se necessitando do quorum exigido para a derrubada do veto convencional. O Juiz Kennedy votou com o relator, porém por outros motivos. Justificou sua decisão com a doutrina da separação dos poderes, que fora concebida para proteger a liberdade, na medida em que a concentração de poderes em só orgão governamental seria ameaça absoluta à liberdade. O Juiz Scalia percebeu a questão sob uma outra ótica. Entendeu que a lei autoriza ao Presidente a não gastar valores previstos na lei orcamentária, o que seria distinto do que simplesmente cancelar a alocação de dinheiro público. O Juiz Breyer também discordou do relator, argumentando que o veto parcial, em questõe orcamentárias, permitiria que o governo representativo funcionasse mais apropriadamente. Ainda antes da Suprema Corte decidir pela inconstitucionalidade do veto parcial, o Congresso tomou importante medida para proteger o conjunto da legislação que encaminhava para sanção presidencial. O 82 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 82-88, jan./mar. 2014 Congresso adotou a tese de que deveria preparar textos legislativos longos, que tratassem de varios assuntos (tese da omnibus bill). De acordo com estudioso norte-americano, o Congresso procurou agrupar em uma mesma lei o maior número possivel de temas, apresentados em bloco normativo único. O presidente hesitaria em vetar a lei toda, previdente com o veto parcial, justamente porque poderia estar deixando de aprovar medidas legislativas que fossem importantes e necesárias. No dizer do constitucionalista aqui estudado, o presidente “ jogaria o bebê para fora da banheira, com o propósito de se livrar da água”. Há notícias de peças legislativas que contavam centenas de páginas. De tal modo, ao vetar um determinado parágrafo, o presidente corria o risco de deixar de lado matéria legislativa substancialmente importante73. Por outro lado, prossegue esse autor, os presidentes têm defendido a possibilidade do uso do veto parcial como uma medida para enfrentamento da tese do omnibus bill adotada pelo Congresso norte-americano. Em várias unidades federadas norte-americanas se permite e utiliza o instituto do veto parcial. O objetivo é garantir que os governadores possam selecionar parcelas de legislação que realmente queiram aprovar. Assim, poderiam deixar de aprovar o que não interessa, e mesmo assim, garantir o andamento de legislação que se apresente como socialmente benéfica74. Em 1996 o Congresso surpreendemente aprovou uma lei que permitia que o presidente opusesse vetos parciais aos textos legais encaminhados a Casa Branca para promulgação. A Suprema Corte, no entanto, não considerou a medida constitucional, argumentando que o veto parcial permite que o presidente reescreva as leis que lhe são submetidas para apreciação75. 73 Cf. KOENIG, op. cit., p. 19. No original: “Principally, it [the Congress] can group so many itens together in one package, called an ominibus bill, that the president may hesitate to veto the bill for fear of throwing the baby out with the bathwater. Much legislation currently runs hundreds of pages, so the risk – of vetoing the offending paragraphs is that hundreds of pages of beneficial legislation may never be enacted”. 74 Cf. KOENIG, op. cit., No original: “Presidents have long advocated a line item veto to counteract the power of omnibus bills, as exists in many states. In that way, presidents can pick and choose which congressional provisions to aprove. They can disaprove of so-termed pork and yet retain socially beneficial legislation”. 75 Cf. KOENIG, op. cit. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 83 Entendem os constitucionalistas norte-americanos que o veto é instrumento absolutamente poderoso, em favor do presidente, dado que o Congresso precisa de dois terços dos votos para derrubá-lo. Porém, o veto, porque não pode ser parcial, substancializa um grave defeito; isto é, o presidente deve aceitar uma lei integralmente ou rejeitá-la também integralmente: não pode vetar fragmentos ou passagens da lei que lhe foi submetida para aprovação, pura e simplesmente76. O veto é fonte permanente de problemas para o Congresso norteamericano, dado que realça o poder presidencial de um modo espantoso. A necessidade dos dois terços dos votos, acima mencionada, torno a derrubada do veto uma proeza politicamente memorável77. Há ainda outra variável do veto, denominada de veto de bolso (pocket veto), e que também já foi muito utilizada na história política dos Estados Unidos. Ocorre esse veto quando, no curso ordinário dos fatos, o presidente ainda esta apreciando a lei que lhe foi enviada e então, por força do calendário do Legislativo, os congressistas entram em recesso ou saem de férias. Isto é, se o projeto se encontra nas mãos do presidente no momento em que o Congresso suspende as atividades, tem-se como resultado a absoluta invalidade da proposta. Assim, recebendo o projeto de lei em momento que antece ao recesso legislativo pode o presidente se recusar a devolver o texto (desde que no período de dez dias contados do recebimento), fulminando definitivamente a lei que dependia de apreciação presidencial78. Esses vetos de bolso possuem características interessantes. Mais uma vez de acordo com outro professor norte-americano, os vetos de bolso são absolutos, isto é, uma vez ocorrida a preclusão no tempo não há como o Congresso derrubá-los. E ainda, devido a tendência do Congresso norte-americano em completar boa parte do trabalho devido 76 Cf. KOENIG, cit., p. 139. No original: “The Constitution endows the President with the veto, a most powerful weapon in the game of open politics. The veto’s grave defect is that it is total and not partial. The President must accept ou reject a bill as a whole; he cannot veto particular itens and aprove the rest”. 77 Cf. SHANE; BRUFF, op. cit. p. 102. 78 Cf. CORWIN; KOENIG, op. cit., p. 171. No original: “In the ordinary course of events, if the president does not sign or veto a bill within ten weekdays after receiving it, it becomes law without the chief executive signature. But if Congress adjourns within the ten days, the president, by taking no action, can kill the bill”. 84 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 84-88, jan./mar. 2014 ao fim das sessões legislativas, o veto de bolso acaba se transformando em instrumento absolutamente importante. Contando-se de George Washington a Ronald Reagan os presidentes lancaram 2.453 vetos; desse número, 1.040 vetos decorreram da não devolucao do texto ao longo de recesso legislativo79. Avançando-se ate Barack Obama esses números aumentaram, como acima demonstrado. Quanto as chamados vetos de bolso tem-se que Franklyn Delano Roosevelt foi o presidente que mais o utilizou: foram 263 projetos de lei vetados por intermédio dessa fórmula. Grover Cleveland lancou 238 vetos de bolso. Dwight Eisenhower também utilizou frequentemente a fórmula: Ike usou do veto de bolso por 108 vezes. O veto de bolso é arranjo institucional que parece indicar um poder absoluto do presidente em relação ao Congresso, cumpridas as condições que a Constituicao norte-americana exige. De fato, o presidente não devolve para o Legislativo um texto legal que não aprovou, com a indicação precisa de suas objeções. O Congresso entrou em recesso. A lei não pode ser aprovada. E poderá ser novamente proposta e discutida apenas na sessão legislativa superveniente80. O veto é importante instrumento a favor do presidente norteameriacano, também na medida em que permite ao chefe do Executivo daquele país obstaculizar legislação que vá de encontro a agenda política que desenvolva, e da qual depende. O presidente, assim, por intermédio do direito de veto pode influenciar, se não mesmo controlar, a pauta do Poder Legislativo. A própria ameaca do uso do veto já indica ao Congresso que há necessidade de revisão ou abandono de legislação em discussão81. Os núcleos conceituais do veto também foram estudados sistemática e profundamente em monografia de William Howard Taft, refletindo a 79 Cf. MC DONALD, Forrest. The American Presidency- an Intelectual History. Lawrence: University Press of Kansas, 1994. p. 349. No original: “Pocket vetoes have some quirky characteristics. They are absolute, not subject to override, and because of a tendency of Congress to complete much of its work a the end of sessions, the instrument become a potent one: 1,040 of the 2,453 bills killed by the presidents from George Washington through Ronald Reagan were pocket vetoes”. 80 Cf. SHANE; BRUFF, op. cit. p. 106. 81 Cf. KRENT, Harold J. Presidential Powers. New York and London: New York University Press, 2005. p. 17. No original: “The power to block legislation also permits presidents to shape, if not control, the legislative agenda. The threatened use of a veto itself can cause Congress to revise or abandon planned legislation”. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy 85 experiência de quem ocupou a presidência norte-americana82 e, anos depois, a presidência da Suprema Corte dos Estados Unidos83. Para Taft (e o livro e de 1916) a natureza do veto é puramente legislativa. É disposição constitucional que determina que, passado projeto de lei pelas duas Casas do Congresso, deve este ser encaminhado para o presidente. Aprovando, deve o presidente assinar o texto. Porém, desaprovando, deve reenviá-lo ao Congresso, com suas razões anotadas, para a casa que originariamente enviou o projeto. Esta deverá reconsiderá-lo, e por dois terços de seus membros poderá derrubar o veto. O projeto originariamente vetado torna-se lei84. Observou também Taft que já se sugeriu que o veto teria uma natureza executiva. Dessa premissa Taft discordava. De fato, o presidente não teria poder para introduzir um projeto de lei junto ao Congresso. Ele tem somente o poder de recomendar medidas que julgue necessárias e expedientes, e que as submete à consideração do Congresso85. O presidente, continua Taft, não participa das discusssões no Congresso. O presidente não tem poder para vetar partes do texto discutido, de modo a permitir que apenas uma parte dele seja promulgada como lei. Ao presidente cumpre aceitar ou rejeitar a lei, integralmente. A rejeição, registra Taft, não é final e definitiva, a menos que mais um terço de uma das Casas sustente o veto lançado. Porém, conclui Taft, ainda que com essas características, é o presidente uma figura participante no processo legislativo norte-americano86. Em seu mandato, Taft apresentou 39 vetos. Desse total, 30 foram vetos regulares, e nove foram vetos de bolso. 82 Há especulações no sentido de que William Howard Taft teria se sentido humilhado quando não se reelegeu em 1912, o que o manteve obstinado com uma cadeira na Suprema Corte. Cf. MASON, Alpheus Thomas. William Howard Taft: Chief Justice. New York: Simon and Schuster, 1965. p. 66. 83 TAFT, William Howard. Our Chief Magistrate and his Power. Durham: Carolina Academic Press, 2002. 84 Cf. TAFT, op. cit., p. 14. No original: “The character of the veto power is purely legislative. The Constitution provides that after both Houses shall have passed a bill, it shall be presented to the President; that if he approve it, he shall sign it, but, if not, that House he shall return it, with his objection, to the House in which it originated, which shall proceed to reconsider it and that if two-thirds of he House where it shall be reconsidered, and if approved by two-thirds of that House, it shall become law”. 85 Cf. TAFT, op. cit. No original: “It has been suggested by some that the veto power is executive. I do not see quite how. Of course the President has no power to introduce a bill into either House. He has the power of recommending expedient to the consideration of Congress”. 86 Cf. TAFT, op. cit. No original: “But he [the President] takes no part in the the running discussion of the bill after it is introduced or in its ammendments. He has no power to veto parts of the bill and allow the rest to become a law. He must accept it or reject it, and his rejection of it is nor final unless he can find one more than one-third of the one of the Houses to sustain him in his veto. But even with these qualifications, he is still participant in the legislation”. 86 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 86-88, jan./mar. 2014 BIBLIOGRAFIA ANTIEAU, Chester James. The Executive Veto. London: Oceana Publications, 1988. BERG, Thomas C. The State and Religion in a nutshell. St. Paul: West Group, 1998. BURSCH, Noel T. T.R.- The Story of Theodore Roosevelt and his influence on our times. New York: Reynal and Company, 1963. CAMERON, Charles M. Veto Bargaining- Presidents and the Politics of Negative Power. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. CLARK, Georg L. 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O DIÁLOGO INSTITUCIONAL ENTRE CORTES CONSTITUCIONAIS: UMA NOVA RACIONALIDADE ARGUMENTATIVA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL JUSTIFICADA PELOS DIÁLOGOS INSTITUCIONAIS TRANSNACIONAIS1 THE INSTITUTIONAL DIALOGUE AMONG CONSTITUTIONAL COURTS: A NEW ARGUMENTATIVE RATIONALITY OF THE JUDICIAL REVIEW, BASED ON THE TRANSNATIONAL INSTITUTIONAL DIALOGUE Luis Cláudio Martins de Araújo 2 Advogado da União SUMÁRIO: Introdução: 1. A Jurisdição Transnacional; 2. A eficácia das decisões transnacionais nas ordens jurídicas domésticas; 3. A racionalidade argumentativa da jurisdição constitucional justificada pelos diálogos institucionais transnacionais; 3 Conclusão; Referências. 1 2 Gostaria de agradecer às graduandas em Direito do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) Juliana Bastos França David e Mariana Americano do Brasil Granha pelo apoio fundamental ao desenvolvimento e arranjo final deste texto. Doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em International Environmental Law pela United Nations Institute for Training and Research (UNITAR) com extensão em Private International Law pela Hague Academy of International Law (HAIL) e em International Law pela Organization of American States/ Inter-American Juridical Committee (OAS/IAJC). Visiting Researcher pela Fordham University School of Law (VRSP). Pós-graduado em Processo Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC). 226 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 226-252, jan./mar. 2014 RESUMO: Na construção de uma decisão judicial no seio da atual sociedade transnacional, se mostra perceptível que cada vez mais se constrói a racionalidade argumentativa da jurisdição constitucional pelos diálogos institucionais transnacionais entre cortes constitucionais. Desta forma, neste diálogo constante, não há como se negar a influência que tais cortes promovem como referencial teórico fundamental nos diferentes níveis de entendimento judicial local, em uma saudável fertilização cruzada de ideias e abordagens, em uma construção que, ao termo, ajuda a Corte Constitucional doméstica a analisar a questão sob uma perspectiva diferente, em um interação que, em contrapartida, aumenta o reconhecimento das decisões tomadas pelas cortes dos sistemas jurídicos doméstico e transnacional. PALAVRAS-CHAVE: Cortes Constitucionais. Jurisdição Constitucional. Diálogo Institucional. ABSTRACT: In the structure of a judicial decision within the current transnational society, it is clear the institutional dialogue among constitutional courts, supports a new argumentative rationality of the judicial review. Thus, in this dialogue, it is undeniable the influence of this courts as an important theoretical reference in the different levels of local judicial understanding, in a cross-fertilization process of ideas and approaches, that helps domestic Constitutional Courts to examine issues from a different perspective, in an interaction that increases the recognition of decisions taken by local and transnational courts. KEYWORDS: Constitutional Courts. Judicial Review. Institutional Dialogue. INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo discutir a eficácia das decisões transnacionais nas ordens jurídicas domésticas, a partir da perspectiva dos diálogos institucionais e da justificação da racionalidade argumentativa das cortes constitucionais locais3 pelo paradigma decisional transnacionais4. A ideia central, é que com a intensificação do intercambio múltiplo entre cortes na jurisdição mundial, cada vez mais as decisões transnacionais são trazidas à tona na tomada de decisões jurisdicionais locais, com a incorporação de novos e distintos argumentos ao debate judicial em questões convergentes, validada pela previsibilidade e respeito 3 4 Para os fins deste artigo, entendemos por “cortes locais” ou “cortes domésticas” aquelas cortes com jurisdição interna. Para os fins deste artigo, o paradigma decisional transnacionais compreende decisões proferidas por cortes, permanentes ou temporárias, com jurisdição alienígena à jurisdição local. Luis Cláudio Martins de Araújo 227 aos precedentes transnacionais5,6. Esta mudança conceitual, naturalmente, incorpora o reposicionamento da jurisdição — como manifestação do Princípio da Soberania do Estado e que estende seus efeitos dentro das fronteiras estatais — a partir da ideia de que a racionalidade argumentativa e a legitimidade decisória das cortes constitucionais, está arquitetada no diálogo construído com as cortes transnacionais7,8. Do mesmo modo, nesta dinâmica, ancorada no conceito de mundo desterritorializado e globalmente ordenado, a jurisdição doméstica, acaba por trabalhar reconceptualizada e relegitimada, a partir de mudanças no paradigma dos diálogos transnacionais, e, da mesma forma, neste constante intercâmbio com os demais sistemas jurídicos, em uma rede jurisdicional interdependente e interpenetrante, que se desenvolve em um espaço não hierárquico e policêntrico, as decisões transnacionais desempenham um claro ponto de apoio para a racionalidade da decisão jurisdicional local9. 1 A JURISDIÇÃO TRANSNACIONAL Dentro das transformações do estado contemporâneo, com as mudanças na arquitetura global e a intensificação da interação econômica, social e cultural, cada vez mais a jurisdição enfrenta a exigência do intercâmbio com as demais ordens jurídicas do sistema internacional. Ou seja, desde a ascensão dos Estados soberanos no século XVII, decorrente do Tratado de Westphália, a jurisdição tem sido associada aos sistemas jurídicos locais, como um elemento de reconhecimento nacional, contudo, com a globalização e a produção judicial decorrente do paradigma transnacional, a jurisdição vem sendo desnacionalizada, sendo criada e difundida globalmente, em diferentes domínios jurídicos, o que acaba por afetar também o papel dos tribunais no âmbito dos sistemas nacionais. Neste sentido, não há dúvida de que, na atual sociedade cosmopolita e globalizada, a jurisdição tornou-se um bem intercambiável, transpondo fronteiras como se fosse um produto de exportação, que passa de uma esfera nacional para outra e recursivamente volta para a esfera 5 6 7 8 9 CARPENTIER, Elise. La utilización de la jurisprudencia constitucional extranjera por el consejo constitucional francés . In: Memoria del X congreso iberoamericano de Derecho Constitucional. 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Portanto, o Estado que possui a autoridade formal, exerce a jurisdição obrigatória e monopoliza o uso legítimo da força dentro de um território, continua a ser central como unidade política, contudo, os processos transnacionais acabam por afetar, em diferentes dimensões, os contextos institucionais e políticos domésticos. Esta observação é especialmente é importante tendo em vista que, no trato das relações internacionais entre Estados Soberanos, as práticas internacionais reiteradas ao longo dos séculos, criaram a noção hoje amplamente aceita pelas nações civilizadas, de que o exercício do poder jurisdicional tem a produção de seus efeitos limitadamente no âmbito espacial em que o Estado pode fazer cumprir soberanamente as suas determinações, a demonstrar que a jurisdição e as decisões judiciais se manifestam dentro das fronteiras estatais, como uma exteriorização do princípio da soberania do Estado. Neste sentido, apesar de cada Estado, no exercício de sua soberania, traçar os limites de seu poder jurisdicional, estipulando a sua competência internacional13 ,14 , exige-se, a priori, que 10 DELMAS-MARTY, Mireille. Le relatif et universel. Paris: Seuil, 2004. 11 SLAUGHTER, Anne-Marie. A new world order. Princeton University Press, 2004. 12 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3-46, 2007. 13 A competência é o conjunto de atribuições jurisdicionais de cada órgão ou grupo de órgãos, estabelecidas pelas Constituições e pelas leis. Competência também pode ser vista como o conjunto de limites, dentro dos quais, cada órgão do Judiciário pode exercer legitimamente a função jurisdicional. Por todos DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 2000. v. II. 14 O Código de Processo Civil, fixa a competência internacional brasileira nos artigos 88 e 89. O primeiro regula os casos em que a competência internacional do Brasil é concorrente, em virtude de ser possível o ajuizamento da ação no Brasil ou perante autoridade judiciária de outro país, uma vez que o ajuizamento de ação perante tribunal estrangeiro, não induz litispendência (artigo 90). O artigo 89, por sua vez, regula os Luis Cláudio Martins de Araújo 229 algumas medidas de ordem procedimental sejam tomadas no Estado estrangeiro, para que uma decisão produzida por uma corte doméstica possa ser reconhecida e gerar efeitos fora de sua jurisdição15 ,16 ,17. casos de competência internacional exclusiva, quando a ação somente pode ser ajuizada perante autoridade brasileira, que tem competência com exclusão de qualquer outra. 15 No caso brasileiro, para que as decisões judiciais alienígenas produzam efeitos no solo pátrio, a homologação de sentença estrangeira, é exatamente a forma de dar força executiva internamente à uma decisão prolatada por juiz estrangeiro. A homologação de sentença estrangeira, é processo de jurisdição contenciosa e ação originária do STJ, em que se busca obter uma sentença constitutiva. Seus requisitos estão, fundamentalmente, nos artigos 15 e 17 LICC; artigo 483 do Código de Processo Civil e Resolução 09/2005 do STJ. A homologação de sentença estrangeira, historicamente, sempre foi competência do STF, contudo, após a EC 45/2004, passou a ser competência do STJ (artigo 105, I, “i” da CF/88), criando um sistema híbrido no Brasil quanto à cooperação jurídica internacional, visto que a homologação de sentença estrangeira e o exequatur às cartas rogatórias são de competência do STJ, e, a extradição de competência do STF. 16 Questão diversa é a internalização das sentenças proferidas pelas cortes internacionais e supranacionais. Neste caso, a priori, não seria necessário a homologação de sentença estrangeira, sob pena de igualizar as decisões tomadas pelos tribunais internacionais e supranacionais, com as decisões tomadas pelos tribunais estrangeiros. Todavia, lembra-se que o hoje arquivado Projeto de Lei nº 3.214/2000, exigia a homologação das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo Supremo Tribunal Federal. Atualmente, tramita o Projeto de Lei nº 4.667/2004, dispondo que as decisões dos Organismos Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos, cuja competência for reconhecida pelo Brasil, produziriam efeitos jurídicos imediatos no âmbito do ordenamento interno brasileiro, e, quando as decisões fossem de caráter indenizatório, constituiriam títulos executivos judiciais e estariam sujeitas à execução direta contra a Estado. Lembra-se ainda, que o art. 68, 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, dispõe que a parte da sentença que determinar indenização compensatória, poderá ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado. De toda sorte, no Brasil, hoje, as decisões de cortes internacionais e supranacionais são internalizadas por meio de decreto presidencial, sem qualquer necessidade de homologação. Como exemplo desta decisão de cumprimento, temos o Decreto nº 7.307, de 22 de setembro de 2010, que veio a autorizar a União a promover as gestões necessárias ao cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos referente ao caso Sétimo Garibaldi. No caso Ximenes Lopes, da mesma forma, a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi internalizada pelo Decreto nº 6.185 de 13 de agosto de 2007, que autorizou a União a promover as gestões necessárias ao cumprimento da sentença da Corte. Na verdade, esta discussão sobre a necessidade de internalização das sentenças de cortes internacionais e supranacionais nas ordens domésticas, remete ao antigo debate Kelsen/Tripel acerca das relações entre o direito internacional e o direito interno, como nos mostra Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo na sua obra “Monismo e dualismo além dos tratados: a internalização das resoluções do Conselho de Segurança. In: VII Congresso Brasileiro de Direito Internacional, 2009, São Paulo. Estudos de Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2009. v. XVII. p. 400-410”. O autor nos lembra que o debate Kelsen/Tripel desviou-se dos seus propósitos iniciais, visto que, mais do que a questão da hierarquia, a controvérsia se cinge à incorporação automática (ou não) das normas de direito internacional. Logo, a questão da absorção pelas ordens internas das sentenças internacionais e supranacionais também estaria aqui abarcada. Segundo Paulo Emílio: “As conclusões dos dois juristas aplicam-se a todas as fontes formais do direito internacional: tratados, costumes, princípios, etc. Mas o problema da incorporação de outros atos internacionais que não são tratados ainda não foi devidamente posto. (...) A questão que se coloca é a de se sentenças de cortes internacionais, não apenas as da CIDH, devem ou não ser homologadas, a exemplo do que ocorre com as sentenças de cortes estrangeiras. Em verdade, sentenças estrangeiras precisam de homologação porque pertencem a outro ordenamento nacional; consistem em normas produzidas por outro sistema jurídico e, portanto, devem ser recepcionadas por meio de um processo formal. O raciocínio dualista aplica-se no caso das sentenças estrangeiras, sem qualquer sombra de dúvida. Mas a situação das sentenças internacionais apresenta-se um tanto obscura. Valério Mazzuoli dá uma resposta tipicamente monista para o problema: ‘O Supremo Tribunal Federal [agora Superior Tribunal de Justiça] não tem competência constitucional, e tampouco legal, para homologar sentenças proferidas por tribunais internacionais, que decidem acima do pretenso poder soberano estatal, e têm jurisdição sobre o próprio Estado.’” 17 É bem verdade que, muitas vezes, se mostra muito mais célere e simples, eleger o foro em que se irá litigar, o que afasta a necessidade de aguardar a decisão tomada pelo juízo competente, conforme as regras de determinado Estado, para só então passar pelo procedimento de reconhecimento de decisão estrangeira. A cláusula de eleição do foro foi admitida, por exemplo, pelo STF no Recurso Extraordinário n° 30636 e pelo 230 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 230-252, jan./mar. 2014 Ademais, da mesma forma, na sociedade internacional, esta relação entre Estados soberanos no que toca ao exercício do poder jurisdicional18, se efetiva por meio do princípio de direito internacional par in parem non habet iudicium19,20,21, regra costumeira internacional22 por força da qual um Estado não tem como julgar outro Estado igualmente soberano sem o consentimento deste. 18 19 20 21 22 STJ no Recurso Especial n° 242383. É aceita, da mesma forma, nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Itália. O Protocolo de Buenos Aires de 1994 também a admite. A Jurisdição é o poder, função e atividade de aplicar o direito a um fato concreto, pelos órgãos públicos destinados a tal, obtendo-se a justa composição da lide. Por todos GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2011. Ademais, a Jurisdição no Estado Constitucional, se vincula à ideia dos Direitos Fundamentais e ao Princípio da Justiça. Logo, a jurisdição existe para zelar pelos direitos constitucionalmente previstos. Há também a necessidade de encontrar a técnica processual adequada à proteção do direito material, diante do aparecimento de normas processuais abertas e com conteúdo jurídico indeterminado. Assim, há a construção da norma no caso concreto (sentença), a partir da interpretação da constituição e dos direitos fundamentais, abandonando o caráter meramente subsuntivo de aplicação da lei. Por todos MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. Com a evolução das relações internacionais e passando os Estados a ocupar com mais frequência a posição de parte nas atividades comerciais, impôs-se o abrandamento do princípio par in parem non habet iudicium. Surgiu assim a teoria da imunidade relativa, distinguindo os atos de gestão (ius gestionis), em função da sua natureza ou da sua finalidade, dos atos de império (ius imperii). Assim, apenas aos atos de império se garantiria a imunidade de jurisdição, pois praticados pelo Estado enquanto titular do poder soberano. Desta forma, a imunidade de jurisdição poderia ser, em tese, afastada em lides civil, comercial, e trabalhista. Todavia, a imunidade de execução permanece absoluta. Os precedentes históricos desta abordagem restritiva da imunidade estatal são: a Convenção de Bruxelas de 1926; a Convenção da Basileia de 1972; e a Foreign Sovereign Immunities Act (FSIA) de 1976. No Brasil, o precedente foi a Apelação Cível n° 9696, julgada em 1977 pelo Ministro Rezek do Supremo Tribunal Federal. Hoje, a Convenção sobre Imunidade de Jurisdicional e seus Bens da ONU de 2004, que ainda não está em vigor, afasta a imunidade de jurisdição em hipóteses de atos ilícitos. A jurisprudência vem excepcionando o princípio par in parem non habet iudicium em algumas situações, com destaque para o caso Ferrini de 2004, em que a Corte di Cassazione italiana declarou ter jurisdição para julgar o Estado alemão, e o condenou por violações aos Direitos Humanos ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, aplicando em seguida medidas restritivas à propriedade alemã localizada em território italiano. O Tribunal de Cassação italiano deliberou que, países que são acusados de desrespeitarem os Direitos Humanos, não têm direito à imunidade jurisdicional. Esta interpretação foi reforçada pela jurisprudência grega, no caso Prefecture of Voiotia and others v. Federal Republic of Germany de 1995 (caso Distomo), em que a Suprema Corte Helênica confirmou o julgamento realizado contra a Alemanha pelo Tribunal de Primeira Instância de Leivadia, condenando o Estado alemão à indenização por massacre ocorrido em território grego durante a Segunda Guerra Mundial. A corte grega, neste caso, entendeu que a violação de direitos relacionados com direitos fundamentais humanos, acarreta a renúncia de todos os benefícios e privilégios estatais, de acordo com o Direito Internacional. Por sua vez, a Alemanha, que já havia reconhecido o seu débito com as vítimas da Segunda Guerra Mundial, e fez com a Itália o Acordo de 1961, comprometendo-se a fazer reparações aos cidadãos que foram prejudicados (consideradas insuficientes pela Itália), resolveu seguir a Convenção Europeia para a Solução Pacífica de Controvérsias de 1957, que dispõe que em tais casos a questão pode ser submetida à Corte Internacional de Justiça. Assim, em 2008 a Alemanha submeteu a questão à CIJ, e, o caso foi aceito para julgamento, com base no artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. A maioria da corte entendeu que não haveria fatos que comprovassem que as medidas alemãs de reparação tenham dado lugar às renúncias a sua imunidade, interpretadas pela maioria dos juízes como sendo absoluta. Os casos Princz v. Federal Republic of Germany de 1995 julgado pela United States District Court for the District of Columbia, e, Dralle v. Republic of Czechoslovakia de 1950 julgado pela Suprema Corte da Áustria, também revelam uma abordagem restritiva à imunidade estatal. Lembra-se, ainda, que em decisões recentes, o STJ entendeu que é possível a citação do estado estrangeiro para que este, querendo, oponha resistência à submissão à autoridade judiciária brasileira, classificando os atos em de império ou de gestão, pois tal medida não encontraria óbice no princípio da imunidade de jurisdição (RO 41-RJ; RO 64-SP; RO 57-RJ e RO 70-RS). O Costume Internacional, é considerado Fonte do Direito Internacional pelo artigo 38,3 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Luis Cláudio Martins de Araújo 231 Contudo, com a globalização e o crescimento da sociedade internacional interdependente, que interage cada dia de forma mais profunda, esta concepção acaba tomando outros formatos na rede jurisdicional transnacional. Assim, o exercício do poder jurisdicional entre sistemas jurídicos autônomos, se torna cada vez mais interpenetrante, e, cada vez mais, as decisões judiciais locais se apoiam nos argumentos de decisões transnacionais, ao discutir as diferentes soluções possíveis para determinado caso concreto. Da mesma forma, o surgimento de cortes internacionais23 e supranacionais24, e, a preocupação com a proteção dos direitos humanos em nível global25, expande o espaço jurisdicional tradicional e seu âmbito de eficácia26, e, em um movimento paradoxalmente oposto, instrumento 23 É o caso do Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelo Estatuto de Roma de 1998, que possui jurisdição adicional e complementar às jurisdições penais nacionais, com competência para julgar indivíduos responsáveis pelos crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão (no que toca ao crime de agressão, por força da exigência do artigo 5 º, 2 do Estatuto de Roma, a Conferência de Kampala de 2010, veio a definir o delito e as condições para o exercício da competência do TPI quanto ao crime), ficando, pois, condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. Assim, o Estado tem o dever de exercer sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes internacionais, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária. No Brasil, o artigo 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), já dispunha que o Brasil propugnaria pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos. Posteriormente, com a aprovação do Decreto Legislativo nº 112/2002 e do Decreto nº 4.388/2002, e, com a introdução, pela EC nº 45/2004, do § 4º ao artigo 5º da Constituição Federal, o Brasil vem a se submeter à jurisdição de Tribunal Penal Internacional. O mesmo fenômeno se deu na maioria dos países europeus, tais como, Alemanha, Portugal, Luxemburgo, França e Bélgica. Na Alemanha, Portugal e Luxemburgo, se optou pela reforma constitucional para admitir a jurisdição do TPI. Na França o Conseil Constitutionnel e na Bélgica o Conseil d‘Etat, declararam a inconstitucionalidade parcial do Estatuto de Roma, dentre outros motivos, pela violação às normas constitucionais relativas à imunidade do Presidente da República e do Rei. Assim, na França foi acrescentado dispositivo ao texto constitucional, e, na Bélgica houve a ratificação do Estatuto de Roma sem reforma constitucional, o que viabilizou o reconhecimento da jurisdição do TPI. 24 É o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição é reconhecida pelo Brasil por força dos Decreto-Legislativo nº 89/98 e Decreto nº 4.463/2002. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, possui competências contenciosa e consultiva. A corte tem competência contenciosa para conhecer de casos relativos à interpretação e aplicação das disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos, e, competência consultiva acerca da interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos ou de outros tratados concernentes à proteção dos Direitos Humanos no âmbito dos Estados americanos. 25 A expansão global, e, os fenômenos da proteção e positivação internacional dos direitos humanos, se inicia, principalmente, no pós-Segunda Guerra, a partir da ideia de que os direitos referentes à pessoa humana possuiriam validade universal, e, de que os conceitos de soberania nacional e não-intervenção deveriam ser reinterpretados à luz do princípio da prevalência dos direitos humanos, convertendo-se os direitos humanos em exigência constante e indeclinável da comunidade internacional. A Carta das Nações Unidas de 1945 consolida este movimento, passando a reger a relação entre o Estado e seus nacionais como uma problemática internacional. Em sequência, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, vem a estabelecer a matriz do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, com o abandono da visão dos direitos humanos como preocupação apenas das jurisdições domésticas. Este processo, da mesma forma, desdobrou-se nos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos. O sistema interamericano de proteção de direitos humanos, por exemplo, nasceu com a adoção da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, em Bogotá, Colômbia, em abril de 1948 e foi o primeiro instrumento internacional de direitos humanos de caráter geral. Em 1969, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos foi adotada, e, em 1978, a Convenção entrou em vigor. 26 A discussão sobre a expansão do espaço jurisdicional tradicional e seu âmbito de eficácia pelo surgimento de cortes internacionais e supranacionais, é tratada por Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo na sua obra “Observância de Tratados: art. 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) In: SALIBA, Aziz (org.). Direito dos Tratados: comentários à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) ed. Belo Horizonte: Arraes, 2011, p. 181-197”, ao dispor que “O direito internacional nunca 232 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 232-252, jan./mar. 2014 jurídicos locais acabam por ampliar o âmbito de atuação jurisdicional doméstica, como se observa, exemplificativamente, na versão original da lei de competência universal belga de 199327, no antigo artigo 23.4 da Ley Orgánica del Poder Judicial espanhola28 e no Alien Tort Statute nos Estados Unidos29. Logo, hodiernamente, os sistemas jurídicos entram em uma situação de avaliação recíproca permanente, em um espaço não hierárquico e policêntrico, em que o fluxo transnacional cria uma relação na qual cada tribunal define a relação com os demais tribunais, em um espaço cada vez mais sensível a outras influências extraterritoriais. Ou seja, a partir deste movimento transfronteiriço, as decisões transnacionais agem de forma persuasiva e como um ponto de apoio para a racionalidade da decisão jurisdicional, atribuindo um fundamento mais possibilitou um Estado de descumprir seus deveres pactuados. As cortes internacionais sempre fizeram as obrigações internacionais prevalecer em detrimento do direito interno desde o Caso Alabama de 1876 entre Estados Unidos e Reino Unido. Já no seu primeiro acórdão, em 1923, a Corte Permanente Internacional de Justiça recusou admitir a validade de um ato interno (sobre neutralidade) da Alemanha para escusar o inadimplemento das obrigações do Tratado de Versalhes. Numa passagem bastante célebre, esta mesma corte reafirma esta regra de modo bastante contundente: ‘do ponto de vista do direito internacional e desta corte, que é o seu órgão, as leis nacionais são simples fatos, que expressam a vontade e constituem o comportamento dos Estados, do mesmo modo que as decisões judiciais e os atos administrativos’. A CPIJ nunca atenuou esse entendimento; ao contrário, ela o ampliou até para disposições constitucionais: ‘um Estado não pode invocar, face a outro Estado, a sua própria constituição para se subtrair às obrigações que lhe são impostas pelo direito internacional ou pelos tratados em vigor’. A Corte Internacional de Justiça perseverou nesta jurisprudência. A CIJ, ainda, qualificou a prevalência do direito internacional sobre o direito interno como um ‘princípio fundamental do direito internacional’”. Segundo ainda Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo na sua obra “Monismo e dualismo além dos tratados: a internalização das resoluções do Conselho de Segurança. In: VII Congresso Brasileiro de Direito Internacional, 2009, São Paulo. Estudos de Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2009. v. XVII. p. 400-410”: “O Caso Avena na Corte Internacional de Justiça foi paradigmático para despertar a atenção do mundo sobre o tema da execução de sentenças de cortes internacionais. A CIJ determinou a revisão judicial de quarenta e nove processos, nos quais os EUA haviam desrespeitado a proteção consular do artigo 36.1 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, que ainda não tinham recebido sentença terminativa. O Presidente George W. Bush, em Memorando ao Advogado Geral, determinou que as cortes nacionais, ‘por uma questão de cortesia’, deveriam cumprir com as obrigações internacionais dos Estados Unidos determinadas pela Corte Internacional de Justiça. Entretanto, oito juízes da Corte de Apelação do Texas afirmaram que o memorando não seria obrigatório porque, caso fosse, o presidente estaria excedendo a sua autoridade e se intrometendo no Poder Judiciário, o que fere o princípio basilar da tripartição dos poderes. Ademais, um memorando não possui o mesmo valor de uma lei e, portanto, não obrigaria o Texas.” 27 A lei belga em sua versão inicial previa a possibilidade de a justiça do país, em nome dessa competência universal, instaurar um processo judicial por crimes contra a humanidade, mesmo que nem o autor, nem a vítima, fossem de nacionalidade belga, e, que os fatos em causa tivessem ocorrido fora do território belga. Em 2003 esta lei foi modificada, para que a jurisdição belga fosse exercida apenas quando o assunto em causa tenha alguma ligação com a Bélgica ou que fosse baseada em uma norma internacional. 28 A Espanha da mesma forma, com base no artigo 23.4 da Ley Orgánica del Poder Judicial, trabalhava a questão da Jurisdição Universal, ao permitir aos tribunais abrir processos judiciais por crimes contra a humanidade, sem influência do local onde estes foram cometidos e da nacionalidade dos seus autores e vítimas. Após protestos, em 2009, a legislação foi alterada para vedar as práticas de jurisdição universal na Espanha. 29 O Alien Tort Statute, também chamado de Alien Tort Claims Act, permite aos tribunais norte-americanos julgarem casos relacionados aos direitos humanos, apresentados por cidadãos estrangeiros, por condutas praticadas fora dos Estados Unidos, ao dispor: “The district courts shall have original jurisdiction of any civil action by an alien for a tort only, committed in violation of the law of nations or a treaty of the United States.” Luis Cláudio Martins de Araújo 233 geral e de caráter mais universalizável, que permite conferir à decisão doméstica um grau mais elevado de generalidade, na busca de um novo espaço público judicial. Portanto, atualmente, com a complexa sociedade contemporânea, o entendimento da jurisdição deve ser trabalhado em um diálogo aprofundado e estruturado a partir da projeção das cortes transnacionais, onde a compreensão clássica do papel da jurisdição é reconceptualizado, a partir de mudanças no paradigma dos fenômenos locais, e, em que a ideia de que a jurisdição interna passa a ser legitimamente exercida tendo em conta a visão de uma justiça transnacional, arquitetada em uma cadeia de reconhecimento universal. 2 A EFICÁCIA DAS DECISÕES TRANSNACIONAIS NAS ORDENS JURÍDICAS DOMÉSTICAS Com a globalização e o crescimento da sociedade internacional interdependente e interpenetrante, que interage cada dia de forma mais profunda, o exercício do poder jurisdicional entre sistemas jurídicos autônomos, independentes e oriundos de Estados soberanos, se desenvolve, cada vez mais, com base na inter-relação entre ordens jurisdicionais distintas30, sob os parâmetros e diretrizes de uma agenda cooperativa, em que as decisões das cortes locais devam atentar às decisões das cortes transnacionais e os efeitos desta construção judicial, buscando alcançar uma solução que atenda aos interesses e valores da comunidade internacional31,32 . 30 Na verdade, pode-se afirmar que a questão do diálogo entre ordens jurisdicionais distintas remonta à antiguidade. A eventual necessidade de julgar os estrangeiros levou à criação de tribunais excepcionais, como o do Pretor Peregrino em Roma e o do Polemarca em Atenas. Por outro lado, o Pentateuco hebreu continha normas sobre o tratamento equânime do estrangeiro entre o povo judeu. As cidades gregas também possuíam regramentos que determinavam quais juízes seriam competentes para litígios que viessem a ocorrer entre pessoas das diferentes cidades, assinalando o direito que seria aplicável. Já em Roma, foi criado o jus gentium, destinado a disciplinar as relações jurídicas entre os cidadãos romanos (jus civile) e os estrangeiros (jus peregrinum), que encerrava uma solução para o conflito entre regimes jurídicos diversos. Hoje, o DIPri é uma exceção ao atributo da territorialidade do direito. Os sistemas jurídicos vigoram em uma determinada base territorial, correspondente à soberania estatal. No DIPri, o juiz aplica norma de sistema jurídico estrangeiro, ou seja, há a possibilidade do direito estrangeiro entrar nas nossas fronteiras. Assim, pode-se dizer que o DIPri é uma forma excepcional de aplicação do direito que consagra a extraterritorialidade. 31 PEREIRA, João Eduardo Alves. Geopolítica e direito internacional no Século XXI. In: DIREITO, Carlos Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antônio Celso Alves (Coord.). Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Celso D.de Albuquerque Mello. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 32 Já no século XVIII Savigny sustentava a criação de uma “comunidade de direito entre os diferentes povos”. Savigny reconhece que há exceções ao princípio da comunidade de direito entre os povos, por força de determinadas leis que existem em cada nação e que têm natureza rigorosamente obrigatória, havendo, por outro lado, instituições de certos países que não são reconhecidas em outros países. 234 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 234-252, jan./mar. 2014 Neste sentido, esse intercâmbio assente na persuasão, na argumentação e na interpretação, em um espírito positivo relativamente aos outros sistemas de justiça, deve revestir a forma de uma efetiva interação jurisdicional, a partir da multiplicação de fontes de onde se retiram os argumentos da decisão e com o reconhecimento da influência da jurisprudência transnacional, o que altera a forma da interpretação judicial local, mas também reforça a sua racionalidade e legitimidade. Rosalind Dixon também segue o mesmo ponto de vista, explicitando que as dinâmicas transnacionais devem desempenhar um papel importante na atuação judicial interna em uma postura lógica de não divergência, dispondo que para as práticas globais, as fontes transnacionais podem ajudar os tribunais a se engajarem em um processo abrangente de deliberação fundamentada e justificada33. Vicki C. Jackson também expressa esta opinião, ao afirmar que as comparações entre sistemas jurídicos são inevitáveis, e, assim, seria quase impossível ser um “well-informed judge or lawyer”, sem ter conhecimento das normas e das políticas de outros países. Ademais, segundo Jackson, “these impressions, which may influence views of U.S. constitutionalism, could be incorrect or subject to interpretive challenge. Overt references to what judges believe about other countries will often provide helpful transparency”34. Assim, em uma sociedade internacional pluralista, marcada por uma multiplicidade de concepções de vida, a exigência de que as decisões judiciais sejam desenvolvidas de forma coerente com outras decisões judiciais tomadas no passado, inclusive dos precedentes transnacionais, deve partir de uma visão de previsibilidade e equidade35, em que não haja inconsistência ou dissonância interpretativa em escala mundial. Sob esse prisma, Jeremy Waldron destaca a possibilidade de uma rede de reciprocidade em uma comunidade global36, arquitetada a partir de um consenso internacional por meio de um procedimento democrático de decisão coletiva compatível com as diferentes concepções de justiça de uma sociedade pluralista37. 33 DIXON, Rosalind, Transnational Constitutionalism and Unconstitutional Constitutional Amendments, Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper Series, n. 349, 2011. 34 JACKSON, Vicki C. Constitutional comparisons: convergence, resistance, engagement. Harvard Law Review, v. 119, p. 109- 114, 2005. 35 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 36 WALDRON, Jeremy. Teaching cosmopolitan right. In: MCDONOUGH, Kevin; FEINBERG, Walter. (Eds.) Education and citizenship in liberal-democratic societies: cosmopolitan values and cultural identities. Oxford University Press, 2003. p. 25-35. 37 Idem. Law and disagreement. Oxford University Press, 1999. p. 111. Luis Cláudio Martins de Araújo 235 Ou como Sunstein e Posner colocaram: The question whether one state should consult the law of other states is large and interesting-much larger and more interesting than the question whether the U.S. Supreme Court, … should construe the U.S. Constitution with reference to the constitutional rulings of other high courts 38,39. Anne-Marie Slaughter40 vai além nesta percepção, tratando de uma “comunidade global de cortes”, em que a identidade institucional dos tribunais locais é forjada pelas suas funções comuns de resolução de litígios “under rules of law”, não apenas como parte de um sistema jurídico global, mas como uma comunidade global de cortes. Assim, as decisões das cortes transnacionais devem ser levadas em consideração pelos tribunais no contexto de práticas institucionais locais, ampliando a legitimação das decisões domésticas, na projeção conceitual de um sistema internacional cosmopolita, em que a construção das decisões judiciais domésticas, deva operar a partir de um processo deliberativo41 com as decisões transnacionais. Ademais, esta concepção se vê refletida em decisões tomadas por diversas cortes ao redor do globo, reproduzindo uma perspectiva de justificação da racionalidade argumentativa das cortes locais pelo paradigma decisional das cortes transnacionais, e, espelhando a eficácia das decisões transnacionais42 nas ordens jurídicas domésticas. No caso sul-americano, observa-se que, em mais de uma oportunidade, cortes locais atuaram em claro diálogo com cortes transnacionais. No Brasil, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal em 2009, na questão da exigência do diploma de curso superior para o exercício da profissão de jornalista (Recurso 38 39 40 41 42 POSNER, Eric A.; SUNSTEIN, Cass R. The law of other states. Stanford Law Review, v. 59, p. 131, 2006. Idem. Response-On Learning from Others. Stanford Law Review, v. 59, p. 1309, 2007. SLAUGHTER, Anne-Marie. A global community of courts. Harvard International Law Journal, v. 44, p. 191, 2003. RAWLS, John. The law of peoples. Cambridge: Harvard University Press, 1999. Como explicitado na primeira nota de rodapé deste Projeto, o grau de eficácia das decisões transnacionais nas ordens jurídicas domésticas segue alguns modelos que podem ser agrupados de diversas maneiras. Para os fins deste Projeto, iremos trabalhar o modelo de interlocução (em que há abertura para a compreensão, discussão, reflexão e aproveitamento das decisões transnacionais) ou de eficácia média (em que haveria o diálogo das cortes locais com as cortes transnacionais como uma autoridade persuasiva, mas considerando a perspectiva, particularidades e razões de decidir do caso), que nos parece permitir uma abordagem mais ampla do tema, sem se deixar, naturalmente, de tratar pontualmente dos demais modelos. 236 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 236-252, jan./mar. 2014 Extraordinário n° 511961)43,44, na mesma linha do entendimento exposto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na Opinião Consultiva n° 5, decidiu que tal obrigação consubstanciaria restrição injustificada à liberdade de imprensa. Da mesma forma, no julgamento do HC-87585 em 200845, o Supremo Tribunal Federal entendeu pelo status supralegal do Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção Americana de Direitos Humanos, em território nacional, a demonstrar a deferência pelo diálogo interamericano. Ademais, no HC-82424 de 200346, houve farta referência à jurisprudência estrangeira e internacional, o que se mostrou determinante para o entendimento final do Supremo Tribunal Federal ao considerar como crime de racismo a publicação de obra de conteúdo antissemita. Na Argentina, no caso Simón de 200547, em que a Suprema Corte de Justiça determinou que a Ley de Punto Final e 43 A Corte Interamericana de Direitos Humanos na Opinião Consultiva n° 5, esclareceu que a garantia à liberdade de pensamento e de expressão, não é apenas um direito individual de cada um de expressar-se, mas também incluí o direito da coletividade de receber informações. Assim, a lei da Costa Rica que exigia a afiliação obrigatória de jornalistas ao Conselho Profissional de Jornalistas, seria incompatível com os artigos 13 e 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que tratam da liberdade de expressão. Aqui, o Supremo Tribunal Federal em claro diálogo institucional transnacional com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, entendeu que a Constituição Federal de 1988 não recepcionou o artigo 4º, V, do Decretolei 972/69, que exigia o diploma de curso superior de jornalismo, registrado pelo Ministério da Educação, para o exercício da profissão de jornalista. Apontou-se que o jornalismo seria uma profissão diferenciada, por sua vinculação ao pleno exercício das liberdades de expressão e informação. Disso se concluiu que a exigência de curso superior para a prática do jornalismo não estaria autorizada pela ordem constitucional, por consubstanciar uma restrição ao pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística. 44 Já o caso da Lei da Anistia (ADPF n° 153), pode-se apontar como um claro exemplo de ausência de diálogo transnacional. Isto porque, no caso Julia Gomes Lund et al. e outros v. Brasil (Guerrilha do Araguaia), a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que se eliminassem todos os obstáculos jurídicos e políticos, para que o Brasil investigasse e julgasse criminalmente os responsáveis pela perpetração do crime de desaparecimento forçado e de outros crimes contra a humanidade ocorridos durante o regime militar. Todavia, o Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF n° 153, entendeu que a Lei n° 6.683/79 (Lei da Anistia) é compatível com a Constituição Federal de 1988, e que a anistia foi ampla, geral e irrestrita, alcançando os crimes de qualquer natureza praticados pelos agentes da repressão no período da ditadura, o que, por conseguinte, impossibilitaria a investigação e julgamento criminal dos responsáveis pelos crimes contra a humanidade ocorridos durante o regime militar no Brasil. 45 No HC-87585, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (artigo 7º, 7 da CADH), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do previsto no artigo 5º, LXVII da CF (“não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção. Hoje, inclusive, a Súmula Vinculante nº 25 dispõe que “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.” 46 No HC-82424 se discutia o alcance da expressão “racismo”, contida no artigo 5º, inciso XLII da CF e no artigo 20 da Lei 7.716/89, por ter escritor e sócio de editora, publicado, distribuído e vendido obras de conteúdo antissemita. O Supremo Tribunal Federal entendeu que o racismo é antes de tudo uma realidade social e política, sem nenhuma referência à raça enquanto caracterização física ou biológica, refletindo, na verdade, reprovável comportamento que decorre da convicção de que há hierarquia entre os grupos humanos, suficiente para justificar atos de segregação, inferiorização e até de eliminação de pessoas. 47 Julio Héctor Simón era membro da Polícia Federal argentina, e, atuou como repressor e torturador durante a ditadura argentina. Em 2006, ele foi condenado pela justiça argentina a 25 anos de prisão, por crimes contra a humanidade. O processo foi iniciado por uma queixa da Associação de Avós da Plaza de Mayo, sob o argumento de que as forças de repressão, sequestraram Hlaczik e Claudia Poblete (o chamado caso Poblete). No caso, a Suprema Corte de Justiça argentina entendeu que a Ley de Punto Final e a Ley de Obediencia Debida seriam inconstitucionais, o que permitiu a abertura de processo penal contra Julio Simón e sua posterior condenação. Luis Cláudio Martins de Araújo 237 a Ley de Obediencia Debida seriam inconstitucionais, também se travou um claro intercâmbio transnacional com as cortes sul-americanas, em especial com a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Barrios Altos, e, com as normas internacionais de direitos humanos, em especial a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU. Em outros países do novo mundo também observamos alguns exemplos da eficácia das decisões transnacionais nas ordens jurídicas domésticas, como em Hopkinson v. Police de 200448, julgado pela Corte de Apelação da Nova Zelândia, em que o Justice France se valeu dos argumentos usados pelos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos da América em Texas v. Johnson de 1989 e em U.S v. Eichman de 199049. No Canadá, também notamos tal fenômeno, como se percebe em Health Services & Support Facilities Subsector Bargaining Assn v. British Columbia de 200750 e em United Food and Commercial Workers, Local 1518 v. KMart Canada Ltd. de 199951 — em que a Suprema Corte canadense se baseou na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana para garantir, no caso em análise, o direito de greve a trabalhadores. Da mesma forma, em President of the Republic v. Hugo de 199752 e em State v. Makwanyane de 48 Em 2003 Paul Hopkinson ateou fogo a uma bandeira da Nova Zelândia e foi preso, acusado e condenado por ofensa à Flags, Emblems, and Names Protection Act de 1981, que pune a destruição da bandeira da Nova Zelândia, com a intenção de desonrá-la. Hopkinson apelou, alegando que a queima de uma bandeira em sinal de protesto não seria uma maneira de desonrar a bandeira, além de estar amparado pela seção 14 do Bill of Rights da Nova Zelândia, que trata da liberdade de expressão. A corte entendeu que “desonra” para os fins do Flags, Emblems, and Names Protection Act deve ser lida como “difamar”, o que não ocorrera no caso. 49 Em Texas v. Johnson de 1989, a Suprema Corte dos Estados Unidos invalidou proibições existentes em diversos estados americanos de profanar a bandeira americana. Após Texas v. Johnson e em resposta à decisão da Suprema Corte, foi editada a Flag Protection Act, que impõe sanções penais contra quem conscientemente mutila, desfigura, desfia, queima, pisa ou atropela uma bandeira dos Estados Unidos. Em U.S v. Eichman de 1990, a Suprema Corte declarou o Flag Protection Act inconstitucional. 50 Em Health Services & Support Facilities Subsector Bargaining Assn v. British Columbia de 2007, a Suprema Corte canadense trabalhou em claro intercâmbio transnacional para garantir o direito à negociação coletiva. Aqui, a Suprema Corte canadense ao analisar a Health and Social Services Delivery Improvement Act, entendeu que o direito de negociação coletiva seria um direito fundamental garantido pela liberdade de associação, se valendo como um dos seus pilares de sustentação, o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e as Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a liberdade sindical e a proteção do direito de sindicalização. 51 Em United Food and Commercial Workers, Local 1518 v. KMart Canada Ltd. de 1999, a Suprema Corte canadense se valeu da jurisprudência da Suprema Corte norte-americana quanto ao direito de greve. No caso, o Tribunal tinha diante de si uma disputa trabalhista em que o ponto de discórdia era se a definição do Canadian Labour Relations Code de piquetes — que incluiu o ato de panfletagem — era uma violação do direito de liberdade de expressão, garantido pela Canadian Charter of Rights and Freedoms. A Suprema Corte do Canadá, adotou a posição da Suprema Corte norte-americana de que os piquetes convencionais podem e devem ser diferenciados de panfletagem. 52 Quando Nelson Mandela se tornou presidente da África do Sul em 1994, um de seus primeiros atos foi emitir uma espécie de perdão ou anistia, liberando todas as mães com filhos menores de 12 anos da prisão. Hugo, que estava cumprindo uma sentença e que tinha um filho de 11 anos de idade, cuja mãe morreu, alegou que a ação do presidente violou a Constituição da África do Sul, por discriminação em função de sexo ou gênero. O assunto chegou à Corte Constitucional sul-africana, e o tribunal não declarou o ato do Presidente da República inconstitucional, pelo fato de que os homens não teriam sofrido, pelo ato presidencial, a perda de qualquer direito ou vantagem legal a que teriam direito. Ou seja, o ato presidencial pode ter negado aos homens uma oportunidade que proporcionou as mulheres, mas não se pode dizer que prejudicou direitos fundamentais. 238 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 238-252, jan./mar. 2014 199553, julgados pela Corte Constitucional sul-africana, há ampla referência à jurisprudência americana, alemã, irlandesa e da Commonwealth, o que na verdade decorre fundamentalmente do permissivo constitucional previsto no artigo 39 da Carta sul-africana, que dispõe que na interpretação da Declaração de Direitos, o tribunal deverá, se for o caso, ter em conta o direito internacional público e a jurisprudência estrangeira54. Até mesmo nos países em que a jurisprudência historicamente nega a influência das fontes jurídicas externas nas decisões das cortes locais55, já se admitiu em algumas situações o uso do direito transnacional56. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte, por exemplo, em Roper v. Simmons de 200557, decidiu que um Estado não pode executar um homem por um crime cometido quando ele era criança, com base na visão internacional sobre a pena de morte juvenil58. Da mesma forma, em decisão similar, a Suprema Corte Americana em Atkins v. Virgínia de 200259, negou a aplicação de pena 53 State v. Makwanyane de 1995, foi um landmark judgement que estabeleceu que a pena de morte era incompatível com o compromisso da Constituição Provisória sul-africana com os direitos humanos. A decisão da Corte Constitucional sul-africana invalidou a seção 277 (1) (a) do Criminal Procedure Act 51 de 1977, que previa a pena de morte. 54 A seção 35 da Constituição Provisória sul-africana, estabelecia que na interpretação das disposições da declaração de direitos, o tribunal deverá, se for o caso, ter em conta o direito internacional público e a jurisprudência estrangeira. Tal dispositivo foi repetido na atual Constituição no artigo 39. 55 Inclusive o Constitution Restoration Act, s. 201 dispõe que: “In interpreting and applying the Constitution of the United States, a court of the United States may not rely upon any constitution, law, administrative rule, Executive order, directive, policy, judicial decision, or any other action of any foreign state or international organization or agency, other than English constitutional and common law up to the time of the adoption of the Constitution of the United States.” 56 Até mesmo o antigo Chief Justice William Rehnquist e o Justice Antonin Scalia, os quais, de maneira vigorosa, rechaçam a influência do direito transnacional, em algumas oportunidades reconheceram a utilidade e a importância da referência ao Direito estrangeiro. O Chief Justice Rehnquist, inclusive, asseverou que: “Por mais de um século e meio, o judiciário norte-americano, em sua tarefa de exercer o controle de constitucionalidade, não tinha à disposição quaisquer precedentes que pudessem auxiliá-lo em suas atividades, afinal, apenas as nossas cortes exerciam este tipo de autoridade. Quando diversas novas Cortes Constitucionais foram criadas, após a Segunda Grande Guerra, estas cortes, naturalmente, dirigiram sua atenção para as decisões da Suprema Corte dos EUA, dentre outras fontes, quando do desenvolvimento de seus próprios direitos. Mas, agora que o direito constitucional está profundamente enraizado em diversos países, é tempo de o judiciário estadunidense começar a levar em consideração as decisões proferidas por outras cortes constitucionais, auxiliando-nos em nosso próprio processo decisório”. Para tanto vide: REHNQUIST, William H. Constitutional courts: comparative remarks (1989). Reprinted in: KIRCHHOF, Paul; KOMMERS, Donald P. (Eds.). Germany and its best law: past, present, and future A German-American Symposium. Baden-Baden: Nomos, 1993. P. 411-412. Rehnquist também mencionou, em Washington v. Glucksberg de 1997, a experiência holandesa que rejeitara a existência do direito ao suicídio assistido. O próprio Justice Scalia, apesar de seus protestos vigorosos em seus votos vencidos, invocou o direito da Austrália, Canadá e Inglaterra, em Mclntyre v. Ohio Elections Commission de 1995. 57 No caso Roper v. Simmons, Christopher Simmons tinha 17 anos em 1993, quando ele e um grupo de amigos assassinaram uma mulher em Missouri. Simmons foi preso e confessou à polícia. Poucos meses depois, uma vez que ele tinha 18 anos, foi julgado como um adulto, condenado e sentenciado à morte. A Suprema Corte norte-americana entendeu, com base na Oitava Emenda, que a punição era cruel e incomum. O Juiz Kennedy, no caso Roper v Simmons reconheceu que os tribunais norte-americanos devem tomar em conta a opinião internacional contra a pena de morte juvenil. 58 WALDRON, Jeremy. Foreign law and the modern ius gentium. Harvard Law Review, v. 129, p. 129, 2005. 59 Em Atkins v. Virgínia, questionava-se a aplicação da oitava emenda e a respectiva proibição de “penas cruéis e atípicas” a um condenado portador de deficiência mental. A corte, por um placar de seis votos a três, decidiu que essas sanções eram proibidas pela Constituição e rejeitadas pela comunidade global. Luis Cláudio Martins de Araújo 239 de morte a um condenado portador de deficiência mental, destacando que dentro da comunidade global, rejeita-se claramente a imposição da pena de morte em tais situações. Já em Lawrence v. Texas de 200360, a Suprema Corte se referiu à jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, em especial em Dudgeon v. the United Kingdom de 198161, para rejeitar a criminalização de atividade sexual praticada, consentidamente, entre dois adultos do mesmo sexo. A Suprema Corte ainda em Trop v. Dulles de 195862 e o Tribunal de Apelação de Nova York em Riggs v. Palmer de 188963, citaram como base em suas decisões as leis universais das nações civilizadas. Ademais, recentemente, em Hamdan v. Rumsfeld de 2006, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a Detainee Treatment Act de 2005, que tratava das comissões militares da Baía de Guantánamo e seus detentos, violava as Convenções de Genebra de 1949. Em verdade, como afirma Vicki Jackson64, apesar da postura supostamente refratária, os Estados Unidos possuem uma longa trajetória de usar precedentes e leis estrangeiras65 para justificativa de 60 Em Lawrence v. Texas, a polícia prendeu Lawrence e outro adulto, pela prática de sexo consensual, na privacidade do lar, em violação às leis do Texas. Os réus questionaram a constitucionalidade da lei. A Suprema Corte entendeu que a Lei contra a sodomia do Estado de Texas, violava o Direito à liberdade e à privacidade das partes, protegidos pela cláusula do devido processo legal, constante da décima quarta emenda, revendo a posição tomada anteriormente em Bowers v. Hardwick de 1986. A corte, da mesma forma, se valeu da jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos. 61 Em Dudgeon v. the United Kingdom, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou que a legislação da Grã Bretanha do século XIX, que criminalizava atos homossexuais masculinos, ainda em vigor na Irlanda do Norte, violava a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Dudgeon Jeff era um ativista dos direitos dos homossexuais em Belfast, Irlanda do Norte, quando foi interrogado pela Royal Ulster Constabulary sobre suas atividades sexuais. Dudgeon entrou com uma queixa junto da Comissão Europeia dos Direitos Humanos em 1975, que declarou a sua queixa admissível para o Corte Europeia de Direitos Humanos. O tribunal entendeu que a criminalização da Irlanda do Norte de atos homossexuais consentidas entre adultos, era uma violação do artigo 8 º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Como consequência do julgamento, a relação sexual entre homens foi descriminalizada na Irlanda do Norte em outubro de 1982. 62 Em Trop v. Dulles, a Suprema Corte decidiu que privar um indivíduo de sua cidadania por força de uma condenação criminal, seria um castigo inadmissível e que “[t]he civilized nations of the world are in virtual unanimity that statelessness is not to be imposed as punishment for crime.” 63 No caso de Riggs v. Palmer, um jovem envenenou seu avô e foi enviado para a prisão. Contudo, sob os termos do testamento do avô, o assassino herdaria uma grande propriedade e a legislação civil de regência não trazia qualquer tipo de consequência jurídica pelo fato. Ainda assim, a New York Court of Appeal decidiu que“[A]ll laws, as well as all contracts, may be controlled in their operation and effect by general, fundamental maxims of the common law. No one shall be permitted to profit by his own fraud, or to take advantage of his own wrong, or to found any claim upon his own iniquity, or to acquire property by his own crime. These maxims are dictated by public policy, have their foundation in universal law administered in all civilized countries, and have nowhere been superseded by statutes”. 64 JACKSON, Vicki C. Progressive Constitutionalism and Transnational Legal Discourse. In: BALKIN, Jack M.; SIEGEL, Reva B. (Eds). The Constitution in 2020. Oxford University Press, 2009. 65 “From the founding case on judicial review, the Court has drawn comparisons between our constitution and the approaches of foreign governments. In Marbury v. Madison, the Court emphasized the distinction between governments of limited and of unlimited powers, implicitly distinguishing our Constitution from Britain’s tradition of parliamentary sovereignty. The Court also referred to British tradition as a positive example in defining the ‘essence of civil liberty’, nothing that, in England, the ‘king himself’ could be sued. In several other early cases, justices referred to the ‘law of nations’ – analogous to what might today be called customary international law – in deciding constitutional issues. Perhaps the most infamous U.S. constitutional case. Dred Scott v. Sandford, involved extensive discussions of foreign law. While Chief Justice Roger Taney referred to foreign views at the time of the framing and deplored any effort to look to contemporary foreign law, the two dissenters – John McLean and Benjamin Curtis – discussed contemporary foreign law in arguing against the Taney Court’s racist and disastrous conclusions. 240 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 240-252, jan./mar. 2014 suas decisões judiciais, que remonta à citação da tradição britânica em Marbury v. Madison em 180366, passa por Cummings v. Missouri em 186767 In the wake of the Civil War, the Court had to decide the constitutionality of efforts to penalize those who had participated in the rebellion. In Cummings v. Missouri, the Court analyzed British law and contemporary French law to conclude that barring someone from serving as a minister if he failed to take an oath of nonparticipation was a ‘punishment’ and that the state law in question violated the Constitution’s ban on bills of attainder and ex post facto laws. Twelve years later, the firs Eighth Amendment case to address on the merits a challenge to a death penalty relied on foreign law, noting that the challenged punishment (death by shooting) was one that ‘prevail[s] in other countries. References to foreign practices continued in the later nineteenth century. In Fong Yue Ting v. United States, the majority invoked the practices of other nations to argue that national sovereignty permitted racist immigration laws, while the dissenters argued that the United States ‘takes nothing’ from the practice of foreign despots. Justice John Harlan, in his lone dissent in Plessy v. Ferguson, appealed to the world beyond the United States at two junctures in this justly praised dissent. First, he said, the Civil War amendments were ‘notable additions to the fundamental law…[,] welcomed by the friends of liberty throughout the world,’ placing the U.S. Constitution in a more global context. Second, Harlan invoked U.S. exceptionalism to chastise the legal racism of the majority’s decision upholding racial segregation in public transport: ‘We boast of the freedom enjoyed by our people above all other peoples. But it is difficult to reconcile that boast with a state of the law which, practically, puts the brand of servitude and degradation upon a large class of our fellow-citizens.’ Throughout the twentieth century, opinions in constitutional cases referred to foreign or international law in resolving interpretative questions. In 1995, the Court referred extensively to foreign law in upholding mandatory vaccinations; and the famous ‘Brandeis Brief’ presented information about foreign laws to which the Court referred in 1998 in upholding a state Law limiting working hours for women. In Lochner v. New York, Justice Oliver Wendell Holmes’ dissent referred to foreign experience and concern over working hours of bakers should have been upheld. Holmes invoked Australian law in his dissent from de Court’s invalidation of a federal minimum wage law for women in 1923. And Justice Felix Frankfurter in the 1930s and 1940s referred to foreign federalisms in cases involving constitutional tax immunities. In both the Vinson and Warren courts, a concern to distinguish the United States from European totalitarianisms was visibly reflected in constitutional decisions – on criminal procedure, equal protection, and race – and has been well documented by scholars. These concerns also were invoked by Justice Robert Jackson’s famous concurrence in the Youngstown Steel decision, one of the most important cases dealing with constitutional limitations on presidential power. The United Nations Charter or the U.N. General Assembly’s Universal Declaration of Human Rights made their way into Supreme Court justices’ opinions on at least a half between 1949 and 1970. And in Miranda v. Arizona, the Courts analyzed the laws of four other Englishspeaking countries dealing with the interrogation of suspects, concluding that their experience suggested that law enforcement would not suffer from providing more protections and that, given our Constitution, we should offer “at least” much protection against abusive interrogations as they did. In more recent decades, international and foreign law has been referred to in deciding the constitutionality of the death penalty as a punishment for particular defendants or particular crimes, and foreign practices have been noted – by majorities and dissenters – in a significant number of cases in other areas, including abortion, assisted suicide, and gay rights.” 66 O caso envolvendo Marbury v. Madison se inicia com a vitória de Thomas Jefferson e a derrota do candidato do então presidente John Adams, Aaron Burr, na disputa pela presidência da República. Adams, ciente da derrota, e, de forma a se resguardar, tratou de aparelhar politicamente o Poder Judiciário. Assim, inicialmente, aprovou o Judiciary act em janeiro de 1801, criando dezoito cargos judiciais, com a suposta pretensão de consolidar o Poder Judiciário no país e desvincular os juízes da Suprema Corte da atuação simultânea como circuit justices. Em fevereiro do mesmo ano, e a menos de 15 dias do término de seu mandato, Adams aprovou o The organic act of District of Columbia, uma lei de organização por meio da qual foram criados quarenta e dois cargos de juiz de paz, que foram preenchidos por meio de um procedimento relâmpago. Por fim, Adams nomeou seu então Secretário de Estado, John Marshall, à presidência da Suprema Corte norte-americana. A estes futuros agentes públicos, os apositores de Adams denominaram midnight judges, associando a nomeação dos mesmos aos momentos finais do governo de Adams. De toda sorte, com a nova composição do Congresso, de maioria oposicionista a Adams, o Judiciary act foi revogado pelo Repeal Act de 1802, levando à extinção dos cargos de circuit judge e à retirada dos respectivos juízes de seus postos. Não tardou para que os conflitos de interesses se judicializassem. Assim, William Marbury impetrou writ of madamus, requendo que lhe fosse dado a posse no cargo de juiz de paz, visto que, apesar de já nomeado com base no The organic act of District of Columbia, o Secretário de Estado do presidente Jefferson, John Marshall, não deu a Marbury a investidura no cargo. O caso de William Marbury foi relatado pelo Presidente da Suprema Corte, o Chief Justice John Marshall, nomeado pelo antigo Presidente Adams. Marshall entendeu que os juízes possuíam direito à investidura, e a propositura da ação para obrigar o Estado a cumprir seu dever era o procedimento correto, mas, por outro lado, reconheceu a inconstitucionalidade do dispositivo legal que atribuía competência à Suprema Corte para julgar a matéria, pois, no entendimento de Marshall, as competências originárias da Suprema Corte estariam submetidas à reserva de Constituição. Assim, Marshall inaugura o judicial review moderno, que corresponde à viabilidade do Poder Judiciário, à luz de parâmetros constitucionais, revisar ou até mesmo anular atos emanados dos outros Poderes. 67 Cummings v. Missouri envolvia a obrigatoriedade de que religiosos e algumas outras profissões, fizessem juramento de que não tinham cometido determinados crimes para que pudessem exercer a sua profissão. Na verdade, havia Luis Cláudio Martins de Araújo 241 e Wilkerson v. Utah em 187968, prossegue na alusão à lei australiana em Lochner v. Nova York em 190569, e, dentre outros inúmeros casos, atinge seu highpoint, segundo Austen L. Parrissh70, ao debater temas extremamente controvertidos, como a pena de morte e os direitos dos homossexuais, nos já citados Atkins v. Virginia de 2002, Lawrence v. Texas de 2003 e Roper v. Simmons de 2005, e, da mesma forma, ao tratar a ideia subjacente de punição dos ex-confederados, com a criação de leis com punição ex post facto, ou seja, de atos que não eram puníveis no momento em que foram cometidos. A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que o juramento era inconstitucional, porque violara as proibições constitucionais contra o bills of attainder (ato que declarar uma pessoa culpada de algum crime sem o privilégio de um processo judicial) e leis ex post facto. Para fundamentar sua decisão, a Suprema Corte se valeu de diversos casos similares ocorridos na Inglaterra e França. 68 Em Wilkerson v. Utah, a Suprema Corte confirmou a decisão tomada pela Suprema Corte de Utah, afirmando que a execução por um pelotão de fuzilamento, como prescrito pelo estatuto de Utah, não era uma punição cruel e incomum. Para tanto, também se valeu de casos similares ocorridos na Inglaterra. 69 No caso, o Estado de New York editou em 1895 o Bakeshop act, lei que regulava as condições sanitárias e de trabalho em padarias e que possuía, dentre seus dispositivos, uma limitação à carga horária dos padeiros em dez horas diárias ou sessenta horas semanais. O desrespeito à mencionada regra, acarretava a pena de multa ao responsável pelo estabelecimento. Joseph Lochner era dono de uma padaria situada em território dentro da jurisdição de New York. Indignado com o recebimento da segunda multa em virtude do desrespeito à restrição legal do período de trabalho de seus funcionários, ele levou a controvérsia até os tribunais. Em seu ponto de vista, a lei do Estado de New York violava a liberdade de contratar, direito constitucionalmente albergado sob a cláusula do devido processo legal em seu aspecto substancial. Em 1905, a Suprema Corte, então, decidiu, diante de apertada votação (cinco votos a quatro), declarar a inconstitucionalidade da referida legislação, alegando ser desarrazoada, desnecessária e arbitrária a limitação que a mesma impunha à liberdade de contratar. A era Lochner, período definido por decisões judiciais de invalidação de leis que buscavam reformas sociais e econômicas, foi superado apenas pelo julgamento de West Coast Hotel Co. v. Parrish em 1937. 70 Segundo Austen L. Parrissh em “Storm in a teacup: the U.S. Supreme Court’s use of foreign law. University of Illinois Law Review, 2007”: “The debate reached a highpoint after the U.S. Supreme Court cited to foreign law in four well-publicized, controversial decisions in ‘hotly contested areas of constitutional law’ involving capital punishment, gay rights, and affirmative action. First, in Atkins v. Virginia, the Court held that executing mentally disabled persons violates the Eighth Amendment’s prohibition against cruel and unusual punishment. In so doing, Justice Stevens, writing for the Court, referred to the ‘world community’ and its “overwhelming[]’ disapproval of imposing the death penalty on mentally disabled offenders. Second, on the heels of Atkins, came Grutter v. Bollinger. In Grutter, the Court found foreign law relevant when it upheld the use of affirmative action in university admissions. During the oral argument for Gratz v. Bollinger, decided the same day as Grutter, Justice Ginsburg asked the solicitor general: We’re part of a world, and this problem is a global problem. Other countries operating under the same equality norm have confronted it. Our neighbor to the north, Canada, has; the European Union, South Africa, and they have all approved this kind of, they call it positive discrimination . . . . [T]hey have rejected what you recited as the ills that follow from this. Should we shut that from our view at all or should we consider what judges in other places have said on this subject? In her concurrence in the Grutter case, Justice Ginsburg—joined by Justice Breyer—explained that ‘[t]he Court’s observation that race-conscious programs ‘must have a logical end point,’ accords with the international understanding of the office of affirmative action,’ and cited to the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination. Third was Lawrence v. Texas. In June 2003, the Court struck down Texas legislation that criminalized sodomy, reversing its decision in Bowers v. Hardwick. In reaching this result, Justice Kennedy relied not only on a 1957 British Report, but also decisions by the European Court of Human Rights. As Justice Kennedy noted: ‘[A]lmost five years before Bowers was decided, the European Court of Human Rights considered a case with parallels to Bowers and to today’s case . . . . The [European] court held that the laws prescribing conduct were invalid under the European Convention on Human Rights.’ Lastly, and most recently, came Roper v. Simmons. In Roper, Justice Kennedy, again writing for the Court, struck down state laws that permitted the execution of juvenile offenders. In so holding, the Court acknowledged that other countries and international conventions have banned the execution of juvenile murderers. Justice Kennedy cited to the United Nations Convention on the Rights of the Child and the International Convention on Civil and Political Rights. In her dissent, Justice O’Connor similarly acknowledged that foreign sources of law were relevant to the issues before the Court. Commentators concluded that Roper’s reliance on foreign sources ‘portend[ed] a sea change in the Court’s doctrine.’” 242 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 242-252, jan./mar. 2014 das políticas de ações afirmativas, em Grutter v. Bollinger e Gratz v. Bollinger de 200371. De toda sorte, esta posição também pode ser observada em alguns países europeus, como se percebe no caso Pretty v. United Kingdom de 200272, em que a Lords of Appeal in Ordinary britânica, antes do envio da questão à Corte Europeia de Direitos Humanos73, se valeu de acórdão do Supremo Tribunal do Canadá para vedar a possibilidade do auxílio ao suicídio. O Conseil Constitutionnel francês, da mesma forma, se baseou na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, o Bundesverfassungsgericht, ao analisar a loi relative à la rétention de sûreté et à la déclaration d’irresponsabilité pénal pour cause de trouble mental na Decisão n° 2008-562 DC de 21 de fevereiro de 200874, prática iniciada na Decisão n° 74-54 DC de 15 de janeiro de 197575, quando o Conselho Constitucional pela primeira vez se valeu da jurisprudência de outros 71 Em Grutter v. Bollinger e em Gratz v. Bollinger de 2003, discutia-se a política de ações afirmativas da Universidade de Michigan. Em Grutter v. Bollinger, a Suprema Corte norte-americana entendeu inconstitucional o critério de ‘pontos fixos’ utilizado para minorias sub-representadas, visto que não permitiria que os candidatos fossem individualmente avaliados. Já em Gratz v. Bollinger, a Suprema Corte confirmou a política de ação afirmativa de admissões da Universidade de Michigan, visto o interesse na promoção da diversidade, para atingir um corpo discente diversificado. Em ambos os casos, a Suprema Corte fez ampla referência à experiência da África do Sul, Canadá e União Europeia. 72 Diane Pretty estava sofrendo de doença degenerativa, e, ficou paralisada do pescoço para baixo. Como estava impedida por sua doença de se suicidar sem auxílio, Pretty queria que seu marido fornecesse a assistência ao suicídio. Contudo, apesar do Suicide Act inglês de 1961 não considerar crime cometer suicídio, o auxílio ao suicídio seria criminalizado. Pretty se dirigiu inicialmente ao Director of Public Prosecutions, solicitando que o seu marido não fosse processado, caso viesse a auxiliá-la no suicídio. Este pedido foi recusado e Pretty recorreu para o Lords of Appeal in Ordinary, que se valeu de acórdão do Supremo Tribunal do Canadá, proferido no âmbito de um processo semelhante, para negar o pedido. A questão foi levada à Corte Europeia de Direitos Humanos, que concluiu que neste caso particular, não havia sido violada qualquer disposição da Convenção Europeia. 73 Na Grã-Bretanha, visando à incorporação das disposições presentes na Convenção Europeia de Direitos do Homem de 1950, o Human Rights Act foi editado pelo Parlamento inglês em 1998. O texto legal prevê que o Poder Judiciário inglês deve interpretar as leis, editadas anterior ou posteriormente à edição do Human Rights Act, em conformidade com as suas normas, entretanto, não pode o juiz inglês declarar a revogação de uma norma por entender que há desconformidade com o Human Rights Act. Assim, ao analisar um caso, o juiz pode apenas declarar que a norma do common law não está em conformidade com o previsto no Human Rights Act, ou seja, com o determinado pela Convenção Europeia de Direitos do Homem, devendo, entretanto, ao aplicar a lei inglesa, comunicar ao Ministro competente a respeito da incompatibilidade existente. Ademais, o Human Rights Act prevê, diante do conflito de normas do common law e o texto da Convenção Europeia de Direitos do Homem, a possibilidade da declaração de compatibilidade junto ao Parlamento, que deve ser utilizado durante o processo legislativo, ficando o parlamentar, responsável por realizar uma declaração de compatibilidade, assegurando que o regramento apresentado está em conformidade com as previsões do Human Rights Act. Assim, a atuação do Parlamento inglês após o Human Rights Act, vem sendo constantemente analisada, a partir da possibilidade de seus atos estarem ou não sendo praticados em conformidade com a Convenção Europeia de Direitos do Homem. 74 Na Decisão n° 2008-562 DC de 21 de fevereiro de 2008, o Conselho Constitucional francês entendeu pela validade da loi relative à la rétention de sûreté et à la déclaration d’irresponsabilité pénal pour cause de trouble mental, que, dentre outros dispositivos, vedava a liberdade condicional à pessoas com risco significativo de reincidência, tomando como base precedentes semelhantes do Bundesverfassungsgericht. 75 Na Decisão n° 74-54 DC de 15 de janeiro de 1975, o Conselho Constitucional, pela primeira vez, teve em conta a jurisprudência de outros tribunais estrangeiros para entender que o aborto, nos termos da Loi relative á l’interruption volontaire de grossesse, seria válido. Luis Cláudio Martins de Araújo 243 tribunais estrangeiros ao examinar a loi relative á l’interruption volontaire de grossesse. Na União Europeia76, da mesma forma, o quadro não se apresenta de forma muito diversa, especialmente diante do desenvolvimento do conceito de direito comunitário e da soberania compartilhada77, construído principalmente durante a segunda quadra do Século XX78, em que os Estados continuam a ser nações soberanas e independentes, mas há o compartilhamento de suas soberanias, o que faz com que a União Europeia desempenhe um papel distinto79, especialmente diante da sua estrutura quase-federal80,81,82. De toda sorte, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH)83, aplicando a Convenção Europeia dos Direitos Humanos84, por exemplo, em Al-Adsani v. United Kingdom de 200185, entendeu que a proibição de tortura consiste em ius cogens, ou seja, norma imperativa de Direito Internacional. Já em Soering v. United Kingdom de 198986 ,87, a corte também afirmou o caráter de ius cogens da proibição da pena de morte, que consiste em norma imperativa do 76 Ao longo dos séculos, o Direito Internacional Público (DIP) foi implementado não só por Estados soberanos, mas também por organizações mundiais ou regionais, como a União Europeia, e, desde 1949, essas organizações internacionais tiveram seu estatuto jurídico reconhecido como organizações intergovernamentais, pela opinião consultiva da Corte Internacional de Justiça sobre a questão da Reparação dos Danos Sofridos em Serviço das Nações Unidas (Vide: Reparation for injuries suffered in the service of the United Nations. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/4/1837.pdf>). 77 A soberania compartilhada na União Europeia, significa que os Estados Membros delegam parcela de seu poder soberano para instituições criadas pelos próprios Estados. 78 RAMÍREZ-ESCUDERO, Daniel Sarmiento. Responsabilidad de los Tribunales Nacionales y Derecho Comunitario. La responsabilidad de los Estados miembros por infracción del Derecho comunitario en vía judicial, a partir de la sentencia Köbler (C-224/01) del Tribunal de Justicia. Revista del Poder Judicial, núm. 70, 2004. 79 RAMÍREZ-ESCUDERO, op. cit., 2004. 80 EUROPA - The EU at a glance - The History of the European Union. Disponível em: < http://europa.eu/abc/ history/index_en.htm>. Acesso em: 30 Jul. 2012. 81 Idem. Un paso más en la constitucionalización del tercer pilar, Cuadernos de Derecho Local, n. 3, 2003. 82 Idem. O sistema normativo da União Europeia e sua incorporação às ordens jurídicas dos estados-membros. In: AMBOS, Kai; PEREIRA, Ana Cristina Paulo (Orgs.). Mercosul e União Europeia: perspectivas da integração regional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 53-90. 83 A Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) foi criada em 1959, e, é o órgão com competência para o julgamento dos casos que envolvem violação à Convenção Europeia de Direitos Humanos (ComEDH). 84 A Convenção Europeia de Direitos Humanos foi criada em 1950, através do Tratado de Roma. 85 UNHCR | Refworld | Al-Adsani v. The United Kingdom. <http://www.unhcr.org/refworld/country,,ECHR ,,KWT,4562d8cf2,3fe6c7b54,0.html>. Acesso em: 30 Jul. 2012. 86 Soering havia cometido um homicídio nos Estados Unidos e havia fugido para a Inglaterra. Os Estados Unidos, assim, requereram a extradição de Soering. A CEDH foi acionada por Soering, que argumentou em seu pedido, para negação da extradição, a violação do artigo 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que impede a extradição de pessoa que no país destinatário venha sofrer (ou haja grande risco de sofrer) tortura ou pena ou tratamento cruel e degradante. A CEDH entendeu que a forma de execução da pena de morte pode vir a constituir uma pena cruel, levando em consideração as circunstâncias pessoais do condenado. No caso, a corte ressaltou a idade (Soering tinha apenas 18 anos quando cometeu o crime) e seu estado mental e, por este motivo, por unanimidade, entendeu que a extradição de Soering violaria o artigo 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Soering só foi extraditado mais tarde, quando os Estados Unidos aceitaram em assegurar uma série de direitos a Soering, para que este, em seu Estado, não fosse condenado à pena de morte. 87 UNHCR | Refworld | Soering v. The United Kingdom. <http://www.unhcr.org/cgi-bin/texis/vtx/refworld/ rwmain?docid=3ae6b6fec>. Acesso em: 30 Jul. 2012. 244 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 244-252, jan./mar. 2014 Direito Internacional moderno e norma superior aos ordenamentos jurídicos internos e do direito consuetudinário geral. Portanto, pode-se entender que, na complexa sociedade internacional cosmopolita, os meios juridicamente legítimos de coadjuvação entre cortes locais, estrangeiras, supranacionais e internacionais, devem ser orientados a partir da perspectiva da eficácia das decisões transnacionais, promovendo a compreensão, discussão, reflexão e aproveitamento de novos e distintos argumentos ao debate judicial local. 3 A RACIONALIDADE ARGUMENTATIVA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL JUSTIFICADA PELOS DIÁLOGOS INSTITUCIONAIS TRANSNACIONAIS Existe uma tendência crescente de invocação do direito transnacional na tomada de decisões jurisdicionais locais, em uma positiva troca de experiências, conceitos e teorias entre cortes constitucionais, com a possibilidade de aprendizado recíproco entre as instâncias envolvidas nesse diálogo88. Neste fenômeno global, novos argumentos e pontos de vista são incorporados ao debate e adquire-se uma perspectiva mais ampla89, em que a consulta a julgamentos transnacionais tornase inevitável90, e, questões convergentes podem ser analisadas pelos intérpretes jurisdicionais em uma análise não vinculativa91. Neste sentido, quando a jurisprudência local se abre para influências transnacionais, a ideia de racionalidade e de legitimidade dentro dos processos locais ganha força, justificada pela necessidade de previsibilidade e respeito pelas expectativas estabelecidas em precedentes transnacionais semelhantes92. 88 WALDRON, Jeremy. Foreign law and the modern ius gentium. Harvard Law Review, v. 129, p. 129, 2005. 89 DIXON, Rosalind. Transnational constitutionalism and unconstitutional constitutional amendments. Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper Series, n. 349, May 2011. 90 JACKSON, Vicki C. Progressive Constitutionalism and Transnational Legal Discourse. In: BALKIN, Jack M.; SIEGEL, Reva B. (Eds). The Constitution in 2020. Oxford University Press, 2009. 91 A ideia de vinculação aos precedentes transnacionais, ainda é um tema bastante caro para a jurisdição doméstica. Todavia, sem sombra de dúvida, não há como se negar o devido peso argumentativo ao direito transnacional na interpretação jurisdicional local. Tal ponto foi debatido no caso Gorgülü de 2004, julgado pelo Bundesverfassungsgericht alemão. No caso, se discutiu se as decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos vinculariam ou não aos juízes alemães, tendo se entendido que, embora as decisões da CEDH não sejam vinculantes para os tribunais alemães, estes têm a obrigação de levar em consideração os seus argumentos. 92 Esta concepção pode ser entendida, em nível doméstico, na exposição de Robert Alexy, quando afirma que ao tomar uma decisão, o intérprete terá que escolher uma alternativa que entenda como melhor, com base em parâmetros argumentativos e em uma valoração que se ajuste: aos valores da coletividade; ao sistema de valorações do ordenamento jurídico; ou a uma ordem objetiva de valores ou enunciados de direito natural. Logo, as propostas apresentadas para objetivação da questão desta valoração, pode se agrupar em consensos fáticos; valorações extraídas do material jurídico existente; princípios suprapositivos; ou Luis Cláudio Martins de Araújo 245 Ou seja, quando uma decisão doméstica se inclina no sentido de seguir uma decisão transnacional em caso similar, a ideia de equidade e a exigência de que as práticas judiciais devam ser desenvolvidas de uma forma coerente se mostram preenchidas, em um processo em desenvolvimento, em que as decisões judiciais levam em consideração as decisões anteriores tomadas em casos similares, como parte de uma longa história que deve ser reinterpretada e continuada93. É exatamente neste sentido, que se pode afirmar que subjacente a esta ideia, se encontra a procura do respeito recíproco na comunidade internacional, na medida em que a jurisdição transnacional exerce mecanismos de reciprocidade, persuasão e aculturação, em que os Estados se adaptam ao direito transnacional, em função do seu autointeresse no ganho de racionalidade, legitimidade e unidade. Ou seja, neste sentido, nos países em que as ordens jurídicas transnacionais são percebidas como legítimas, há maior facilidade para o diálogo, o que leva à persuasão, bem como à trocas recíprocas e de aculturação, com implicações para a compreensão da racionalidade argumentativa doméstica. conhecimentos empíricos. De toda sorte, Alexy critica todos esses critérios de objetivação das valorações por serem insuficientes. Assim, a argumentação jurídica é uma atividade linguística de correção dos enunciados normativos, e, esta pretensão de correção de enunciados normativos por meio do discurso jurídico encontra condições limitadoras, em especial a sujeição à lei, ao precedente, à dogmática e às leis processuais. Assim, o que Alexy pretende por meio de sua construção teórica, são estudos analíticos sobre a estrutura argumentativa das decisões, das regras e das formas de argumentos, usada em decisões sucessivas e nos processos jurídicos. Para tanto vide: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio A. da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. 93 A ideia se assemelha à concepção de Dworkin do direito como integridade. Assim, as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas, que combinam elementos que se voltam tanto ao passado, quanto ao futuro. A prática contemporânea, é um processo em desenvolvimento, o que rejeita a dicotomia entre passado e futuro, considerando inútil a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito. O princípio da integridade, assim, instruirá os juízes a identificar os direitos e deveres legais até onde for possível, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade. Portanto, as proposições jurídicas devem derivar dos princípios de justiça, equidade e devido processo, e, para Dworkin, esses princípios norteiam as proposições jurídicas, oferecendo a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade. O juiz deve sempre buscar uma coerência narrativa, que melhor se adapte ao estado passado e presente do direito, e que estabeleça a melhor visão dos princípios da moral política compartilhados pela comunidade em cada momento da história. A preocupação de Dworkin, está em construir uma teoria do direito que procure princípios e determinações de objetivos válidos, que sirvam para justificar uma ordem jurídica concreta em seus elementos essenciais, dando coerência a todas as decisões tomadas em casos singulares. Aqui se enquadra o “romance em cadeia” (chain novel) de Dworkin, em que as decisões judiciais devem levar em consideração as decisões anteriores tomadas em casos similares, como parte de uma longa história que deve ser reinterpretada e continuada, de acordo com o que possivelmente será o melhor andamento da história. Por isso, quando o juiz Hércules é chamado à tarefa de construir uma ordem coerente de princípios (nas três áreas de deliberação judicial: casos de common law, de legislação e de dimensão constitucional), as exigências da equidade o levam a analisar a história institucional de determinado sistema de direitos. Assim, um sistema justo é possível, quando resultado de um processo continuado de aprendizagem, devendo os juízes tomar decisões que reflitam a moral amplamente difundida na comunidade. Logo, há uma reconciliação entre passado e presente, entre história e justiça, pois há uma reconstrução racional da história institucional, com vistas à aceitabilidade racional no presente. Assim, a integridade vê a interpretação da lei a partir da história em movimento, porque a interpretação da lei muda a medida que a história se transforma. Para tanto vide: DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 246 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 246-252, jan./mar. 2014 Desde modo, o que se está a afirmar, é que referência à cortes transnacionais providenciam uma ferramenta adicional e potencialmente útil, à medida que o judiciário tenha que lidar com questões complexas, proporcionando uma outra fonte de opiniões que poderá auxiliar os juízes, quando forem confrontados com assuntos semelhantes. Em síntese, o uso de decisões transnacionais, permite que haja uma saudável fertilização cruzada de ideias, em que a análise das abordagens externas a temas semelhantes, enriquece a compreensão da corte acerca da questão. É o que Sanford Levinson defende, ao dispor que é uma prática simplesmente prudente, reconhecer experiências estrangeiras e aplicar as lições encontradas a dilemas semelhantes nos Estados Unidos94. Vicki Jackson também segue a mesma linha argumentativa, ao sustentar que o emprego de decisões estrangeiras pode contribuir para uma melhor compreensão acerca das idiossincrasias locais, e incentiva a melhor compreensão das consequências possíveis nas diferentes escolhas interpretativa95. Logo, a disposição da corte em empregar as práticas transnacionais, acaba por ser reflexo da inserção do país em uma comunidade mais ampla e que, ao menos presumivelmente, compartilha de seus valores essenciais. Portanto, a ascensão de abordagens comuns dos juízes nacionais para questões transnacionais, incorpora às práticas jurídicas locais tendências centrais da comunidade internacional, apoiada em diretrizes da comunidade global, em um espírito de interconexão com instâncias judiciais estrangeiras. A mudança conceptual subjacente desta formato, é a de incorporação de ideias transnacionais, forjada a partir de decisões tomadas por tribunais estrangeiros, em um diálogo ativo e contínuo com a jurisdição nacional. O resultado é que as cortes devem, em questões que transcendem as fronteiras nacionais, ao enfrentarem problemas comuns, reconhecer os demais participantes deste empreendimento judicial global, envolvendo o empréstimo e recepção de decisões transnacionais. Ao explorar esse fenômeno, fica evidente que na comunidade internacional, a citação a uma decisão estrangeira abre uma leque de opções à corte e convida a uma mudança de consciência da jurisdição 94 LEVINSON, Sanford. Looking broad when interpreting the U.S. Constitution: some reflections. Texas International Law Journal, v. 39, p. 353-366, 2004. 95 JACKSON, Vicki C. Constitutional comparisons: convergence, resistance, engagement. Harvard Law Review, v. 119, p. 109-114, 2005. Luis Cláudio Martins de Araújo 247 local, como o reconhecimento das relações no sistema transnacional. É exatamente o que o antigo Chief Justice Carsten Smith da Suprema Corte da Noruega, afirmou ao dispor que o Supremo Tribunal tem a obrigação natural de tomar parte no debate transnacional e introduzir novas ideias legais na comunidade internacional a partir de decisões judiciais nacionais96. Ou mesmo o que a antiga Justice Claire L’Heureux-Dubé da Suprema Corte canadense, percebeu quando expôs que os tribunais de todo o mundo estão olhando para os juízos de outras jurisdições97. Esta diálogo, conduzido mediante citação mútuas, bem como através de interações cada vez mais diretas, contribue para uma jurisprudência global e para a qualidade das decisões nacionais, em um processo que aumenta a racionalidade e a legitimidade das decisões domésticas pelos empréstimos transnacionais98, bem como a construção de autoconsciência de uma comunidade global judicial, engajada em um diálogo cosmopolita que promove o respeito mútuo e o fluxo argumentativo entre cortes. Assim, este intercâmbio transnacional, cria um incentivo ao diálogo em vez de monólogo, em que os tribunais deliberadamente procuram estabelecer o seu lugar em uma comunidade global judicial, e, em que a experiência de outros tribunais podem “lançar luz” sobre as consequências de diferentes soluções para um problema jurídico comum, em um debate transjudicial, como exposto pelo Justice Breyer da Suprema Corte norte-americana em Thompson v. Oklahoma de 198899. Portanto, observar os problemas das demais sociedades, ajuda a corte a ver um problema em uma perspectiva diferente, fornecendo uma ampla gama de ideias e experiências, que conduz a opiniões mais reflexivas, aumentando a racionalidade e a legitimidade de uma 96 SMITH, Carsten. The Supreme Court in present-day society. In: TSCHUDI-MADSEN, Stephan (Ed.). The Supreme Court of Norway. Oslo: Aschenhoug and Co., 1998. p. 134-135. 97 L’HEUREUX-DUBÉ, Claire. The Importance of dialogue: globalization and the international impact of the rehnquist court. Tulsa Law Journal, v. 34, p. 15-16, 1998. 98 Como expõe Anne-Marie Slaughter em “A global community of courts. Harvard International Law Journal, v. 44, p. 191, 2003”, a ideia de fertilização cruzada não é necessariamente nova: “Is such cross-fertilization really new? It is a well recognized phenomenon among imperial powers and their colonies. It is well established in the Commonwealth. As lawyers will remember from their first-year courses, plenty of evidence of borrowing from English law can be also found in nineteenth-century U.S. and federal reports. In this century, the traffic has largely flowed in the other direction; since 1945 recent constitutional courts around the world, frequently established either by the United States or on the model of the U.S. Supreme Court, have borrowed heavily from U.S. Supreme Court jurisprudence. Thus, it is difficult to demonstrate from existing data that the use of comparative materials in constitutional adjudication has in fact increased.” 99 William Wayne Thompson, de 15 anos de idade na época do crime, foi julgado como um adulto por assassinato, considerado culpado e sentenciado à morte pela Oklahoma Sentencing Court, tendo posteriormente a Court of Criminal Appeals of Oklahoma confirmado a decisão. A Suprema Corte norte-americana, pela primeira vez, entendeu que a sentença de morte de um menor seria “uma punição cruel e incomum” e violaria a Oitava Emenda da Constituição dos Estados Unidos. O caso foi posteriormente ampliado em Roper v. Simmons de 2005. 248 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 248-252, jan./mar. 2014 opinião judicial, e, portanto, neste sentido, a prática de citar decisões estrangeiras reflete um espírito de deliberação transjudicial dentro de uma comunidade transnacional autoconsciente. Ademais, aumentar a fluxo de ideias e precedentes entre os juízes de todo o mundo acaba por gerar, ao termo, certo consenso internacional sobre determinadas questões100 e a existência de um conjunto comum de precedentes transnacionalmente legitimados, a partir do diálogo permanente entre os órgãos judiciais da comunidade mundial. Esta visão significa que o reconhecimento devido às decisões de outras nações, em virtude de pertencerem a um sistema internacional comum, justifica a obrigação das cortes para com uma comunidade de litigantes que se situa também para além das fronteiras da jurisdição de origem. Ou seja, com vistas a responder à mobilidade moderna e às necessidades de um mundo globalizado, deve-se assegurar uma ponte entre os tribunais, em que as questões são enfrentadas como situações globais, porém refletem relações processuais locais. Isto sem dúvida, exige do intérprete judicial a visão de adaptabilidade aos problemas atuais101, visto que o volume de disputas que envolvem referenciais transnacionais, gerados por um mundo globalizado, em que as cortes passam a se entender como participantes do mesmo sistema mundial de resolução de conflitos, aumenta o sentido de pertencimento a um sistema muito mais amplo, em que a deferência a tribunais alienígenas se mostra como uma questão de respeito às demais cortes do sistema transnacional. Ou seja, tendo em vista que que os tribunais de diferentes países estão envolvidos na mesma tarefa de julgar e resolver questões que atravessam fronteiras, a interação regular entre cortes aumenta a possibilidade do surgimento de um sistema judicial transnacional, impulsionado pelo fato de que o reconhecimento das decisões tomadas pelas cortes do sistema jurídico transnacional, agrega racionalidade, legitimidade e unidade às decisões domésticas, a partir do diálogo para resolução de conflitos comuns. 100 Como é o caso da pena de morte aos portadores de deficiência mental, exposto pela Suprema Corte norteamericana em Atkins v. Virgínia. 101 Aqui, há uma defesa similar à ideia de living constitution, ou, como sustentado pelo founding father Thomas Jefferson, “as leis e as instituições devem caminhar de mãos dadas com o progresso da mente humana. À medida que esta evolui, à medida que novas descobertas são realizadas, novas verdades descobertas e as maneiras e as opiniões mudem, com a mudança das circunstâncias, as instituições deverão, igualmente, avançar para acompanhar os novos tempos”. Luis Cláudio Martins de Araújo 249 Desta forma, as cortes de todo o mundo devem estar ativamente envolvidas neste processo de interação autoconsciente com os seus homólogos transnacionais, compartilhando questões comuns no intercâmbio jurídico e criando redes globais de fertilização cruzada, em que tribunais nacionais permanecem conscientes de sua independência, no entanto, reconhecem a necessidade de cooperação e validade de abordagens diferentes para o mesmo problema jurídico, aprendendo e se legitimando a partir de experiências transnacionais. É, portanto, a visão de um sistema jurídico transnacional, estabelecido em conjunto em todo o mundo, na busca de uma melhor solução para problemas comuns102, mas que, fundamentalmente, nesta inserção, constroem uma melhor racionalidade argumentativa aos seus precedentes locais, justificado pelo paradigma decisional transfronteiriço. 4 CONCLUSÃO Atualmente, com a dinâmica sociedade contemporânea, o conceito de jurisdição deve ser trabalhado em um diálogo aprofundado, estruturado a partir da projeção nas cortes constitucionais, como resultado, do pluralismo e do consensualismo, arquitetados a partir de uma cadeia de reconhecimento cosmopolita. Neste sentido, neste diálogo global, o uso de decisões transnacionais na tomada de decisões locais, permite a incorporação de novos pontos de vista aos intérpretes jurisdicionais, a partir de mecanismos de reciprocidade, persuasão e aculturação, em que a referência à cortes transnacionais providenciam uma ferramenta adicional e potencialmente útil à medida que o judiciário tenha que lidar com questões complexas semelhantes, em uma saudável fertilização cruzada de ideias e abordagens, em que, ao termo, esta concepção ajude a corte constitucional doméstica a analisar a questão sob uma perspectiva diferente, em um interação que, em contrapartida, aumenta o reconhecimento das decisões tomadas pelas cortes do sistema jurídico transnacional. Por conseguinte, este diálogo transnacional entre cortes constitucionais, contribui para uma justiça em escala global e para o respeito recíproco na comunidade internacional, na medida em que os empréstimos transnacionais e a construção de uma autoconsciência 102 SLAUGHTER, Anne-Marie. A global community of courts. Harvard International Law Journal, v. 44, 2003. p. 191. 250 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 250-252, jan./mar. 2014 global judicial, acaba por gerar certo consenso internacional sobre determinadas questões na jurisdição constitucional. Portanto, esta troca profícua entre cortes constitucionais, permite a oxigenação de ideias e paradigmas, ampliando o leque de referenciais e fundamentos utilizados pela jurisprudência local, o que, ao cabo, exerce um papel nodal na unidade, legitimidade e racionalidade das decisões domésticas, por meio deste diálogo transnacional. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Nádia de. A influência das opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. In: DIREITO, Carlos Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antonio Celso Alves (Coord). Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Celso D. de Albuquerque Mello. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. CARPENTIER, Elise. La utilización de la jurisprudencia constitucional extranjera por el consejo constitucional francés . In: Memoria del X congreso iberoamericano de Derecho Constitucional. Lima, 16-19 de Septiembre 2009. JACKSON, Vicki C. Constitutional comparisons: convergence, resistance, engagement. Harvard Law Review, v. 119, 2005. JACKSON, Vicki C. Constitutional law and transnational comparisons: the Youngstown decision and American exceptionalism. Harvard Journal of Law and Public Policy, v. 30, n. 1, September 2006. ______. Progressive constitutionalism and transnational Legal Discourse. 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PARECER Nº 02/2014/ CÂMARAPERMANENTECONVÊNIOS/ DEPCONSU/PGF/AGU Humberto Fernandes de Moura Procurador Federal 362 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 362-378, jan./mar. 2014 PROCESSO Nº 00407.001637/2014-54 INTERESSADO: PROCURADORIA-GERAL FEDERAL ASSUNTO: Temas relacionados a convênios e demais ajustes congêneres tratados no âmbito da Câmara Permanente de Convênios designada por meio da Portaria/PGF n.º 98, de 26 de fevereiro de 2013. UNIDADE EXECUTORA. ATUAÇÃO E DEMAIS CARACTERÍSTICAS. APLICAÇÃO DA PORTARIA MPOG/CGU/MF N.º 507/2011. I-A unidade executora deverá apresentar ao Convenente a prestação de contas em relação à parte que lhe foi atribuída no plano de trabalho. Tal prestação de contas, contudo, não se confunde com a prestação de contas do convênio que deverá ser apresentada ao Concedente, pois esta, por opção da Portaria, caberá exclusivamente ao Convenente, muito embora este último possa contar com o auxílio da unidade executora no preenchimento do SICONV. II- Atividades como fiscalização, coordenação e planejamento dos objetos não podem ser atribuídos a unidade executora. Para outras atividades que não a execução do objeto, a Portaria já estabeleceu a figura do Interveniente. III-É possível a participação de unidade executora em contratos de repasse, consórcios públicos, termos de cooperação e termos de parceria, desde que, no caso concreto, a compatibilidade entre tais institutos fique demonstrada. IV-A unidade executora deverá atender a todos os dispositivos da Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU 507/2011 que sejam aplicáveis ao convenente. Assim, deve ser providenciado o cadastramento, credenciamento e documentação comprobatória da habilitação tanto para o Convenente quanto para sua unidade executora, Humberto Fernandes de Moura 363 sendo que tais obrigações são as mesmas para o caso de inclusão de unidades executoras em convênios formalizados a partir de 30 de maio de 2008. V- Não há empecilho ao compartilhamento de atribuições entre a unidade executora e a Convenente. VI- A responsabilidade foi assim distribuída pela Portaria: (a)No caso de execução do convênio, a responsabilidade solidária foi estabelecida expressamente e sem delimitações. (b) na hipótese de desvio, malversação ou irregularidade na execução do contrato ou gestão financeira do convênio, como se trata de ato ilícito, a responsabilidade pela indenização do dano causado ao erário é realmente solidária e nasce da previsão do § 2º do art. 43 A da PIM 507, de 2011 c/c o artigo 942 do Código Civil, e não da cláusula obrigatória constante do instrumento. (c) a regra de responsabilidade administrativa funcional é pessoal. Daí, a limitação da responsabilidade pelos atos, competências e atribuições que deverá ser aferida, respeitando-se o devido processo legal. VII- O empenho e a abertura de conta corrente serão realizados exclusivamente em nome do Convenente, bem como caberá a ele os atos de acompanhamento e fiscalização e a prestação de contas do convênio. Pelo que consta da portaria, a regra é que a contratação seja feita pelo próprio Convenente, dado que o empenho e a conta bancária somente podem ser realizados em seu nome. Todavia, há também uma outra alternativa qual seja, a licitação e o contrato podem ser celebrados em parceria pelo Convenente e a unidade executora. Sr. Diretor do Departamento de Consultoria, 1. A manifestação em exame decorre de projeto institucionalizado no âmbito da Procuradoria-Geral Federal que, por intermédio da Portaria/PGF nº 98, de 26 de fevereiro de 2013, criou Câmaras Permanentes que, no âmbito de seu núcleo temático, têm por objetivo: 364 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 364-378, jan./mar. 2014 I -identificar questões jurídicas relevantes que são comuns aos Órgãos de Execução da Procuradoria-Geral Federal, nas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos às autarquias e fundações públicas federais; II -promover a discussão das questões jurídicas identificadas, buscando solucioná-las e uniformizar o entendimento a ser seguido pelos Órgãos de Execução da Procuradoria-Geral Federal; e III -submeter à consideração do Diretor do Departamento de Consultoria a conclusão dos trabalhos, para posterior aprovação pelo ProcuradorGeral Federal. 2. Após identificados os temas controversos e relevantes, foram realizados estudos e debates em reuniões mensais. Passou-se, então, à etapa de elaboração de Pareceres, cujo objetivo é o aclaramento das controvérsias identificadas, de forma a orientar a atuação de Procuradores Federais por todo o país, reduzindo a insegurança jurídica. 3. A presente Parecer abordará especificamente a alteração implementada na Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU n.º 507, de 2011, que inclui o inciso XXVII ao §2º do artigo 1º, conceituando unidade executora para fins daquele ato normativo. Avaliar o impacto de tal inclusão é o objetivo do presente Parecer. 4. É o breve relatório. I – FUNDAMENTAÇÃO 5. Em 06 de dezembro de 2013, foi editada a Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU n.º 495, que trouxe uma série de alterações, devendose destacar todo o novo arcabouço normativo estabelecido para a unidade executora, conceito que não existia na redação original da norma. Por uma questão de organização, optou-se por separar as alterações por tópicos e comentá-las em seguida. 1.1 CONCEITO Art. 1º [....] Humberto Fernandes de Moura 365 §2º. [....] XXVII - unidade executora: órgão ou entidade da administração pública, das esferas estadual, distrital ou municipal, sobre o qual pode recair a responsabilidade pela execução dos objetos definidos nos instrumentos de que trata esta Portaria, a critério do convenente, desde que aprovado previamente pelo concedente, devendo ser considerado como partícipe no instrumento. 5.1.1. Nota-se pela redação do inciso que a unidade executora é necessariamente o órgão ou entidade da administração pública, das esferas estadual, Distrital ou municipal1. Assim, a unidade executora pode ser determinada Secretaria Estadual, Distrital ou Municipal ou outro órgão que compõe a Administração, excluídas as entidades privadas com fins lucrativas não integrantes da Administração Pública. 5.1.2. Outra peculiaridade diz respeito às obrigações que poderão recair na unidade executora. Pela redação do inciso, sua atribuição limita-se [...] a responsabilidade pela execução dos objetos definidos nos instrumentos de que trata esta Portaria [...]. E como que a unidade executora poderá executar o objeto? 5.1.3. Sabe-se que os objetos dos convênios podem ser os mais variados possíveis e uma das justificativas para a utilização da unidade executora pode ser justamente a sua eficiência na execução de seus objetivos ou nas contratações que realiza. Dessa forma, pode-se concluir que a unidade executora poderá executar o objeto diretamente, caso tenha estrutura e expertise para tanto (o que exigirá a demonstração da capacidade técnica específica) ou por meio de licitação ou mesmo contratação temporária a depender do objeto a ser executado. 5.1.4. A unidade executora, contudo, deverá apresentar ao Convenente a prestação de contas em relação à parte que lhe foi atribuída no plano de trabalho. Tal prestação de contas, contudo, não se confunde com a prestação de contas do convênio que deverá ser apresentada ao Concedente pois esta, por opção da Portaria, caberá exclusivamente ao Convenente, muito embora este último possa contar com o auxílio da unidade executora no preenchimento do SICONV. 1 Será objeto de parecer específico desta Câmara o alcance da participação de empresas estatais como convenentes ou unidades executoras. 366 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 366-378, jan./mar. 2014 5.1.5. Por outro lado, outras atividades como fiscalização, coordenação e planejamento dos objetos, bem como outras atividades constantes do plano de trabalho não podem ser atribuídos a unidade executora. 5.1.6. Ademais, para outras atividades que não a execução do objeto, a atribuição deve ser conferida ao Convenente ou mesmo ao Interveniente, entendido este como órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta de qualquer esfera de governo, ou entidade privada que participa do convênio para manifestar consentimento ou assumir obrigações em nome próprio. 5.1.7. Com isso, as figuras do interveniente e da unidade executora não devem ser confundidas, ou seja, dentro das obrigações que podem ser assumidas pelo Interveniente não poderá constar a execução do objeto, que será atribuição ou do Convenente ou da unidade executora. 5.1.8. A propósito, nota-se pela redação do inciso que a participação da unidade executora não está restrita aos convênios. A redação do inciso autoriza que seja atribuída a unidade executora a execução dos objetos definidos nos instrumentos de que trata a Portaria, muito embora em momento seguinte restrinja a sua participação a discricionariedade do convenente. Para compatibilizar esse conf lito aparente, acredita-se que a unidade executora seja prioritariamente utilizada em sede de convênios, todavia, não há como negar no atual estágio que ela venha a participar de contratos de repasse, consórcios públicos, termos de cooperação e termos de parceria, desde que, no caso concreto, a compatibilidade entre tais institutos fique demonstrada. 5.1.9. Por outro lado, a participação da unidade executora está dentro da esfera de discricionariedade do “Convenente”2 , ou seja, não cabe ao “Concedente” exigir a sua participação como critério para a formalização do ajuste. Cabe ao “Concedente”, todavia, aprovar a participação da unidade executora previamente a formalização do ajuste para que esta venha a participar efetivamente do instrumento. 2 Utiliza-se as aspas para que fique claro que a unidade executora pode eventualmente participar de outro ajuste desde que no caso concreto esta seja compatível com o ajuste a ser entabulado. Humberto Fernandes de Moura 367 1.2. APLICAÇÃO DOS MESMOS REQUISITOS DE CREDENCIAMENTO, CADASTRAMENTO E CONDIÇÕES DE CELEBRAÇÃO DOS AJUSTES PREVISTOS NA PORTARIA 507. Art. 38. [...] § 2º A demonstração do cumprimento das exigências, por parte dos Estados, Distrito Federal e Municípios, respectivas Administrações Indiretas e entidades privadas sem fins lucrativos, deverá ser feita por meio de apresentação pelo proponente, ao concedente, de documentação comprobatória de sua regularidade e da unidade executora, quando houver. § 12 Aplicam-se à unidade executora as exigências contidas neste artigo, relativas ao proponente, quando este for órgão ou entidade da administração pública. Art. 43. [...] § 4º A unidade executora deverá atender a todos os dispositivos desta Portaria que sejam aplicáveis ao convenente, inclusive os requisitos de credenciamento, cadastramento e condições de celebração. 1.2.1. Como não está dentre os objetivos do presente Parecer avaliar as exigências de credenciamento, cadastramento e condições de celebração, nota-se que não foi objetivo da Portaria reduzir o número de exigências para a unidade executora. Pelo contrário, o texto normativo é expresso ao mencionar que A unidade executora deverá atender a todos os dispositivos desta Portaria que sejam aplicáveis ao convenente. Assim, deve-se providenciar o cadastramento, credenciamento e documentação comprobatória da habilitação tanto para o Convenente quanto para sua unidade executora, no que couber. A propósito, deve-se recordar de conclusão já exarada no âmbito desta Câmara Permanente de Convênios aprovada pelo Procurador Geral Federal, no bojo do Parecer n.º 10/2012/ GT467/DEPCONSU/PGF/AGU: II - Para fins de cumprimento das condições de habilitação, deverão ser consultados os CNPJ’s do ente federativo que figura como parte no convênio e do órgão que, eventualmente, o assina por delegação de competência. Aplica-se tal entendimento quando o convênio é assinado apenas pelo chefe do 368 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 368-378, jan./mar. 2014 Poder Executivo, ocasião em que será consultado, igualmente, o CNPJ da secretaria beneficiária dos recursos financeiros. No caso de convênio celebrado por entidade da Administração Indireta, somente o CNPJ desta será verificado. 1.2.2. A exigência, dessa forma, vem pacificar certa discussão existente a respeito da documentação a ser exigida quando o Convenente é o Município, com a interveniência da Secretaria Municipal. Como definido pela Portaria, ambos terão que comprovar as condições para a celebração do ajuste, devendo o convenente providenciar a regularização formal da unidade executora proposta para levar adiante o ajuste. 1.2.3. Deve-se registrar também que, diante da limitação de objeto a ser atribuído à unidade executora, eventuais problemas formais (condições de celebração, por exemplo) do Município ou Estado não autorizarão a celebração do ajuste exclusivamente com a unidade executora. Por outro lado, se o problema relativo à habilitação atingir exclusivamente a unidade executora, o instrumento poderá ser celebrado com o Convenente, desde que adequado o plano de trabalho e atendidas as demais condições para a celebração. 1.2.4. Por fim, em caso de não aplicação de determinadas exigências da Portaria ao Município (por exemplo, caso o objeto diga respeito a ações sociais ou em faixa de fronteira3), o mesmo permissivo se aplicará a unidade executora, pois tais permissivos dizem respeito ao objeto do convênio e não propriamente ao responsável por sua execução. 1.3. PREVISÃO DAS OBRIGAÇÕES EM CLÁUSULA NECESSÁRIA QUANDO HOUVER UNIDADE EXECUTORA Art. 43. [...] XXVIII - as obrigações da unidade executora, quando houver. 1.3.1. A única observação a ser feita diz respeito aos limites obrigacionais da unidade executora, pois, somente pode ser atribuída a unidade executora a responsabilidade pela execução dos objetos definidos nos instrumentos firmados. Assim, as obrigações a ela impostas devem 3 Art. 26. Fica suspensa a restrição para transferência de recursos federais a Estados, Distrito Federal e Municípios destinados à execução de ações sociais ou ações em faixa de fronteira, em decorrência de inadimplementos objetos de registro no Cadin e no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal – SIAFI. Humberto Fernandes de Moura 369 ter relação intrínseca com a execução do objeto, por exemplo, a prestação de contas a respeito do objeto executado. 1.3.2. Afinal, a unidade executora é a entidade que deterá as melhores condições para prestação de contas, além do que, pode-se inferir que a responsabilidade pela realização do objeto implica a obrigação de prestar contas da sua realização, sob pena de considerar a unidade executora um ente juridicamente irresponsável pela má-execução do objeto. 1.3.3. De toda forma, ela não pode ter obrigações relacionas a fiscalização, planejamento ou acompanhamento de objeto. 1.4. REGRAS FORMAIS PARA PARTICIPAÇÃO DA UNIDADE EXECUTORA 1.4.1. REQUISITOS PARA ADMISSÃO DA UNIDADE EXECUTORA Art. 43-A. A execução dos objetos definidos nos instrumentos de que trata esta Portaria, no caso de o convenente ser ente público, poderá recair sobre unidade executora específica, desde que: I - haja previsão no Plano de Trabalho aprovado; II - exista cláusula nesse sentido no instrumento celebrado; e III - a unidade executora pertença ou esteja vinculada à estrutura organizacional do convenente. 1.4.1.1. O artigo 43-A busca descrever de maneira mais pormenorizada as obrigações a cargo da unidade executora. Assim, fica claro que não deve haver confusão entre as tarefas a serem executadas pela unidade executora e pelo Convenente, ou seja, deve haver total clareza no plano de trabalho e no instrumento celebrado a respeito de quais objetos e/ou metas serão executados pela unidade executora. 1.4.1.2. Deve-se registrar, contudo, que não há empecilhos a que haja compartilhamento de objetos, metas ou tarefas entre Convenente e unidade executora, pois a Portaria não exige que a unidade executora execute totalmente o objeto. Com isso, é plenamente possível a divisão de tarefas, desde que o compartilhamento conste expressamente do plano de trabalho, até porque o §1º do mesmo artigo prevê que o Convenente continuará responsável pela execução do convênio. 370 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 370-378, jan./mar. 2014 1.4.1.3. Aliás, é possível que a unidade executora não conste originariamente do Convênio, mas nada impede que ela venha a integrar posteriormente o convênio e executar o objeto. Neste caso, desde que previamente aprovado pelo Concedente e alterado com clareza as metas, objetos e tarefas previstas no plano de trabalho, por meio de termo aditivo ao instrumento. 1.4.2. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA UNIDADE EXECUTORA COM O CONVENENTE Art. 43-A. [...] § 1º No caso descrito no caput, o convenente continuará responsável pela execução do convênio, sendo que a unidade executora responderá solidariamente na relação estabelecida. § 2º Quando constatado o desvio ou malversação de recursos públicos, irregularidade na execução do contrato ou gestão financeira do convênio, responderão solidariamente os titulares do convenente e da unidade executora, na medida de seus atos, competências e atribuições. § 3º A responsabilização prevista nos parágrafos 1º e 2º deverá constar no instrumento celebrado, como cláusula necessária. 1.4.2.1. Os parágrafos acima indicam a responsabilidade solidária entre Convenente e unidade executora. Há, todavia, uma peculiaridade na redação dos parágrafos. 1.4.2.2. No caso de execução do convênio, a responsabilidade solidária foi estabelecida expressamente e sem delimitações. Por outro lado, no tocante a responsabilidade pelo desvio, malversação de recursos e irregularidade na execução do contrato ou gestão financeira do convênio, houve o estabelecimento da responsabilidade solidária, todavia, houve a previsão expressa de que a responsabilidade, embora solidária, se dará na medida dos seus atos, competências e atribuições. 1.4.2.3. Como se sabe, a obrigação solidária é aquela em que na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda 4. Assim, a redação do §2º incorreria em 4 Código Civil, artigo 264. Humberto Fernandes de Moura 371 uma imprecisão jurídica, pois se é caso de responsabilidade solidária, não há que se falar em limitação da responsabilidade aos atos, competências e atribuições5. 1.4.2.4. Na hipótese de desvio, malversação ou irregularidade na execução do contrato ou gestão financeira do convênio, como se trata de ato ilícito, a responsabilidade pela indenização do dano causado ao erário é realmente solidária nos termos do artigo 942 do Código Civil6. Ademais, a limitação da responsabilidade aos atos, competências e atribuições poderá ser aferida em eventual ação de regresso a ser movida contra o verdadeiro culpado pelo dano causado. De toda forma, a Portaria deve ser interpretada de maneira a ser compatível com a legislação que lhe confere validade, ou seja, a solidariedade nasce com base no art. 942 do Código Civil c/c o § 2º do art. 43 A da PIM 507, de 2011, e não da cláusula obrigatória constante do instrumento. 1.4.2.5. Por outro lado, a regra de responsabilidade administrativa funcional é pessoal. Daí, a limitação da responsabilidade pelos atos, competências e atribuições que deverá ser aferida respeitando-se o devido processo legal. 1.4.2.6. Assim, no tocante a responsabilidade pelo ressarcimento do dano ao erário a responsabilidade é solidária entre os titulares do convenente e da unidade executora, sendo que no caso da responsabilidade funcional esta é limitada aos atos, competências e atribuições. 1.4.3. REGRA A RESPEITO DO EMPENHO DOS RECURSOS Art. 43-A. [...] § 5º Os empenhos e a conta bancária do convênio deverão ser realizados ou registrados em nome do convenente. 1.4.3.1. A regra acima especifica mais uma vez a divisão de atribuições entre o “convenente” e unidade executora, sendo que a Portaria não admite que a realização do empenho e o registro da conta bancária 5 Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto. 6 Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932. 372 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 372-378, jan./mar. 2014 sejam em nome da unidade executora. Em tempo, o próprio verbo utilizado estabelece a obrigação de que tais atos sejam feitos em nome do Convenente, não abrindo margem para a discricionariedade do gestor. 1.4.3.2. Tendo em vista a redação acima, fica a dúvida: se o empenho e a conta bancária devem ser realizados em nome do Convenente, como o objeto poderia ser executado pela unidade executora? Como esta última procederia ao pagamento das despesas realizadas na execução do objeto? 1.4.3.3. Pelo que consta da portaria, a regra é que a contratação seja feita pelo próprio Convenente, dado que o empenho e a conta bancária somente podem ser realizados em seu nome. Todavia, há também uma outra alternativa qual seja, a licitação e o contrato podem ser celebrados em parceria pelo Convenente e a unidade executora. Neste caso, por exemplo, caberá à unidade executora elaborar a fase interna da licitação, bem como fiscalizar a execução do objeto e ao Convenente caberia efetuar o pagamento, sendo que em tal hipótese o Convenente exercerá o papel de interveniente no contrato administrativo. Essa alternativa, todavia, não é exclusiva, sendo que outras formas podem ser levadas ao conhecimento e aprovação do Concedente. 1.4.4. RESPONSABILIDADE PELO REGISTRO DOS ATOS NO SICONV Art. 43-A. [...] § 6º Os atos e procedimentos relativos à execução serão realizados no SICONV pelo convenente ou unidade executora, no caso previsto no caput, conforme definição no Plano de Trabalho. 1.4.4.1. Aqui a Portaria admitiu a possibilidade de que os atos praticados no SICONV sejam realizados pela unidade executora ou pelo Convenente, mas exige a especificação da responsabilidade no plano de trabalho. 1.4.5. RESPONSABILIDADE PELA FISCALIZAÇÃO E PRESTAÇÃO DE CONTAS DO CONVÊNIO Art. 43-A. § 7º O acompanhamento e fiscalização e a prestação de contas do convênio caberão ao convenente inclusive no caso previsto no caput deste artigo. Humberto Fernandes de Moura 373 1.4.5.1. Novamente, a Portaria distribui as atribuições entre “Convenente” e a unidade executora e atribui expressamente ao primeiro a prática dos atos de acompanhamento, fiscalização e prestação de contas do convênio, reforçando a conclusão de que a responsabilidade da unidade executora não deve ir além da execução do objeto. Todavia, caberá a unidade executora prestar contas da execução do objeto ao Convenente, sendo que caberá a este a avaliação dos atos praticados pela unidade executora previamente a prestação de contas ao Concedente. 5. POSSIBILIDADE DE INCLUSÃO DE UNIDADE EXECUTORA POR MEIO DE TERMO ADITIVO Art. 93-A. O art. 43-A desta Portaria poderá ser aplicado aos convênios vigentes que tenham sido celebrados a partir de 30 de maio de 2008, mediante a celebração de termo aditivo.” 5.1. A previsão normativa acima admite a possibilidade de que termo aditivo seja celebrado com vistas a incluir a unidade executora como a responsável pela execução do objeto. Vale registrar que todas as demais obrigações para a inclusão originária da unidade executora devem ser superadas para a sua admissão nos convênios vigentes a partir de 30 de maio de 2008, tais como os mesmos requisitos para cadastramento, credenciamento e condições de celebração como se fosse um novo convenente, pois assim exige o novo ato normativo. II - CONCLUSÃO 6. Diante do exposto, entende-se que, a) A unidade executora será somente o órgão ou entidade da administração pública, das esferas estadual, distrital ou municipal, excluídas as entidades privadas com fins lucrativas não integrantes da Administração Pública. b) Somente poderá ser atribuída a unidade executora a execução dos objetos definidos nos instrumentos de que trata a Portaria MPOG/MF/CGU n.º 507/2011. c) Sabe-se que os objetos dos convênios podem ser os mais variados possíveis e uma das justificativas para a utilização da unidade executora pode ser justamente a sua eficiência na execução de seus objetivos ou nas contratações que realiza. 374 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 374-378, jan./mar. 2014 Dessa forma, pode-se concluir que a unidade executora poderá executar o objeto diretamente, caso tenha estrutura e expertise para tanto (o que exigirá a demonstração da capacidade técnica específica) ou por meio de licitação ou mesmo contratação temporária a depender do objeto a ser executado. d) A unidade executora, contudo, deverá apresentar ao Convenente a prestação de contas em relação à parte que lhe foi atribuída no plano de trabalho. Tal prestação de contas, contudo, não se confunde com a prestação de contas do convênio que deverá ser apresentada ao Concedente, pois esta, por opção da Portaria, caberá exclusivamente ao Convenente, muito embora este último possa contar com o auxílio da unidade executora no preenchimento do SICONV. e) Outras atividades como fiscalização, coordenação e planejamento dos objetos não podem ser atribuídos a unidade executora. Para outras atividades que não a execução do objeto, a Portaria já estabeleceu a figura do Interveniente. f) A propósito, nota-se pela redação da Portaria que a participação da unidade executora não está restrita aos convênios. A redação autoriza que seja atribuída a unidade executora a execução dos objetos definidos nos instrumentos de que trata a Portaria. Não como negar no atual estágio que ela venha a participar de contratos de repasse, consórcios públicos, termos de cooperação e termos de parceria, desde que, no caso concreto, a compatibilidade entre tais institutos fique demonstrada. Vedar a utilização da unidade executora em outros instrumentos seria uma atitude açodada no atual estágio. g) A participação da unidade executora está dentro da esfera de discricionariedade do “Convenente” e, desde que, devidamente aprovada pelo Concedente. h) A unidade executora deverá atender a todos os dispositivos da Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU 507/2011 que sejam aplicáveis ao convenente. Assim, deve ser providenciado o cadastramento, credenciamento e documentação comprobatória da habilitação tanto para o Convenente quanto para sua unidade executora, sendo que tais obrigações são as Humberto Fernandes de Moura 375 mesmas para o caso de inclusão de unidades executoras em convênios formalizados a partir de 30 de maio de 2008. i) Deve haver total clareza no plano de trabalho e no instrumento celebrado a respeito de quais objetos e/ou metas serão executados pela unidade executora, sendo que não há empecilho ao compartilhamento de atribuições entre ela e o Convenente. j) No caso de execução do convênio, a responsabilidade solidária foi estabelecida expressamente e sem delimitações, todavia: a. na hipótese de desvio, malversação ou irregularidade na execução do contrato ou gestão financeira do convênio, como se trata de ato ilícito, a responsabilidade pela indenização do dano causado ao erário é realmente solidária e nasce da previsão do § 2º do art. 43 A da PIM 507, de 2011 c/c o artigo 942 do Código Civil, e não da cláusula obrigatória constante do instrumento. b. a regra de responsabilidade administrativa funcional é pessoal. Daí, a limitação da responsabilidade pelos atos, competências e atribuições que deverá ser aferida, respeitando-se o devido processo legal. k) O empenho e a abertura de conta corrente serão realizados exclusivamente em nome do Convenente, bem como caberá a ele os atos de acompanhamento e fiscalização e a prestação de contas do convênio. Pelo que consta da portaria, a regra é que a contratação seja feita pelo próprio Convenente, dado que o empenho e a conta bancária somente podem ser realizados em seu nome. Todavia, há também uma outra alternativa qual seja, a licitação e o contrato podem ser celebrados em parceria pelo Convenente e a unidade executora. À consideração superior, Brasília-DF, 29 de abril de 2014. Humberto Fernandes de Moura Procurador Federal 376 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 376-378, jan./mar. 2014 De acordo, na forma da unanimidade consolidada no decorrer dos trabalhos (Portaria/PGF n.º 98, de 26 de fevereiro de 2013). Érica Maria Araújo Saboia Leitão Procuradora Federal Guillermo Dicesar Martins de Araújo Gonçalves Procurador Federal Rui Magalhães Piscitelli Raphael Peixoto de Paula Marques Procurador Federal Procurador Federal De acordo. À consideração superior. Brasília, 19 de maio de 2014. Antonio Carlos Soares Martins Diretor do Departamento de Consultoria DESPACHO DO PROCURADOR-GERAL FEDERAL APROVO o PARECER Nº 02/2014/CÂMARAPERMANENTECONVÊNIOS/DEPCONSU/PGF/AGU, do qual se extrai a Conclusão que segue. Encaminhe-se cópia à Consultoria-Geral da União, para conhecimento. Brasília, 20 de maio de 2014. MARCELO DE SIQUEIRA FREITAS Procurador-Geral Federal Humberto Fernandes de Moura 377 CONCLUSÃO DEPCONSU/PGF/AGU Nº62/2014: I. A unidade executora deverá apresentar ao Convenente a prestação de contas em relação à parte que lhe foi atribuída no plano de trabalho. Tal prestação de contas, contudo, não se confunde com a prestação de contas do convênio que deverá ser apresentada ao Concedente, pois esta, por opção da Portaria, caberá exclusivamente ao Convenente, muito embora este último possa contar com o auxílio da unidade executora no preenchimento do SICONV. II. Atividades como fiscalização, coordenação e planejamento dos objetos não podem ser atribuídos a unidade executora. Para outras atividades que não a execução do objeto, a Portaria já estabeleceu a figura do Interveniente. III. É possível a participação de unidade executora em contratos de repasse, consórcios públicos, termos de cooperação e termos de parceria, desde que, no caso concreto, a compatibilidade entre tais institutos fique demonstrada. IV. A unidade executora deverá atender a todos os dispositivos da Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU 507/2011 que sejam aplicáveis ao convenente. Assim, deve ser providenciado o cadastramento, credenciamento e documentação comprobatória da habilitação tanto para o Convenente quanto para sua unidade executora, sendo que tais obrigações são as mesmas para o caso de inclusão de unidades executoras em convênios formalizados a partir de 30 de maio de 2008. V. Não há empecilho ao compartilhamento de atribuições entre a unidade executora e a Convenente. VI. A responsabilidade foi assim distribuída pela Portaria: a. No caso de execução do convênio, a responsabilidade solidária foi estabelecida expressamente e sem delimitações. b. na hipótese de desvio, malversação ou irregularidade na execução do contrato ou gestão financeira do convênio, como se trata de ato ilícito, a responsabilidade pela indenização do dano causado ao erário é realmente solidária e nasce da previsão do § 2º do art. 43 A da PIM 507, de 2011 c/c o artigo 378 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 378-378, jan./mar. 2014 942 do Código Civil, e não da cláusula obrigatória constante do instrumento. c. a regra de responsabilidade administrativa funcional é pessoal. Daí, a limitação da responsabilidade pelos atos, competências e atribuições que deverá ser aferida, respeitando-se o devido processo legal. VII. O empenho e a abertura de conta corrente serão realizados exclusivamente em nome do Convenente, bem como caberá a ele os atos de acompanhamento e fiscalização e a prestação de contas do convênio. Pelo que consta da portaria, a regra é que a contratação seja feita pelo próprio Convenente, dado que o empenho e a conta bancária somente podem ser realizados em seu nome. Todavia, há também uma outra alternativa qual seja, a licitação e o contrato podem ser celebrados em parceria pelo Convenente e a unidade executora.
ADPF N. 101 A ATUAÇÃO DA AGU NO CASO DA IMPORTAÇÃO DE PNEUS USADOS1 Filipo Bruno Silva Amorim Procurador Federal Especialista em Direito Constitucional pela UNISUL Mestre em Direito, área de concentração Políticas Públicas, pelo UniCEUB 1 O artigo visa promover uma análise descritiva da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tendo como ponto de referência a manifestação da Advocacia-Geral da União. Deste modo, inicia-se o texto com a descrição dos principais argumentos utilizados pela AGU na defesa da União, suas Autarquias e Fundações Públicas Federais, bem como os ventilados pelas partes adversas. Em seguida, descrevemse os mais relevantes fundamentos declinados pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a demanda, a fim de se verificar se a AGU efetivamente influenciou o judiciário, tendo contribuído de forma efetiva e eficaz para a implementação da política pública desafiada judicialmente. Tal conclusão (A AGU influenciou ou não o STF no seu julgamento da demanda?) fica a cargo da percepção crítica do leitor. 380 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 380-408, jan./mar. 2014 1 APRESENTAÇÃO DO CASO A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 1012, proposta pela Presidência da República, por meio da Secretaria-Geral de Contencioso da AGU (SGCT/AGU), tem por fundamento a defesa de políticas públicas que visam a garantia do direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos dos artigos 1963 e 2254, ambos da Constituição Federal, por meio do combate à importação de pneus usados, proibição essa prevista expressamente em normas de caráter infraconstitucional (Portaria DECEX 08, de 14 de maio de 1991), com exceção da importação desses produtos oriundos de países que integram o Mercosul (Portaria SECEX 14, de 17 de novembro de 20045).6 2 3 4 5 Petição inicial da ADPF n. 101, Relatora Ministra Cármen Lúcia. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br /estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincide nte=2416537>. Acesso em: 07 mar. 2012. “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Tal proibição encontra esteio no art. 27 da Portaria DECEX 08, de 14 de maio de 1991, do Departamento de Comércio Exterior, que assim dispõe: “Não será autorizada a importação de bens de consumo usados.” Referida norma teve sua constitucionalidade desafiada, em sede de controle difuso (RE 203953/CE), sendo que o STF a declarou constitucional assentado que o dispositivo encontrava fundamento no art. 237 da Constituição Federal que expressamente submeteu ao Ministro da Fazenda (órgão que à época detinha atribuição legal acerca da matéria) “A fiscalização e controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais [...]”. A ementa do Recurso Extraordinário foi assim redigida: “IMPORTAÇÃO DE AUTOMÓVEIS USADOS. PROIBIÇÃO DITADA PELA PORTARIA N. 08, DE 13.05.91 DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. ALEGADA AFRONTA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA, EM PRETENSO PREJUÍZO DAS PESSOAS DE MENOR CAPACIDADE ECONÔMICA. ENTENDIMENTO INACEITÁVEL, PORQUE NÃO DEMONSTRADO QUE A ABERTURA DO COMÉRCIO DE IMPORTAÇÃO AOS AUTOMÓVEIS TENHA O FITO DE PROPICIAR O ACESSO DA POPULAÇÃO, COMO UM TODO, AO PRODUTO DE ORIGEM ESTRANGEIRA, ÚNICA HIPÓTESE EM QUE A VEDAÇÃO DA IMPORTAÇÃO AOS AUTOMÓVEIS USADOS PODERIA SOAR COMO DISCRIMINATÓRIA, NÃO FOSSE CERTO QUE, AINDA ASSIM, CONSIDERÁVEL PARCELA DOS INDIVÍDUOS CONTINUARIA SEM ACESSO AOS REFERIDOS BENS. DISCRIMINAÇÃO QUE, AO REVÉS, GUARDA PERFEITA CORRELAÇÃO LÓGICA COM A DISPARIDADE DE TRATAMENTO JURÍDICO ESTABELECIDA PELA NORMA IMPUGNADA, A QUAL, ADEMAIS, SE REVELA CONSENTÂNEA COM OS INTERESSES FAZENDÁRIOS NACIONAIS QUE O ART. 237 DA CF TEVE EM MIRA PROTEGER, AO INVESTIR AS AUTORIDADES DO MINISTÉRIO DA FAZENDA NO PODER DE FISCALIZAR E CONTROLAR O COMÉRCIO EXTERIOR. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (STF – Pleno – RE 203954/CE – Relator Ministro Ilmar Galvão – DJ 07.02.1997)” 6 Posteriormente, essa Portaria foi substituída pela Portaria SECEX (Secretaria de Comércio Exterior) n. 14, de 17 de novembro de 2004, que assim dispõe: “Art. 40. Não será deferida licença de importação de pneumáticos recauchutados e usados, seja como bem de consumo, seja como matéria-prima, classificados na posição 4012 da NCM, à exceção dos pneumáticos remoldados, classificados nas NCM 4012.1.00, 4012.12.00, 4012.13.00 e 4012.19.00, originários e procedentes dos Estados Partes do MERCOSUL ao amparo do Acordo de Complementação Econômica n. 18.” Por oportuno, e isto foi frisado na inicial da ADPF 101, não se pode esquecer que a defesa do meio ambiente foi alçada pela Constituição de 1988 à qualidade de princípio geral da atividade econômica, conforma externado pelo inciso VI do art. 170 da Lei Fundamental, verbis: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”. Em audiência pública (junho/2008) convocada pela ministra Cármen Lúcia, a Advocacia-Geral da União – cuja participação caracteriza exemplo de atuação na defesa extrajudicial dos interesses da União, mormente em um ambiente de diálogo democrático e plural como costumam ser as audiências públicas – informou Filipo Bruno Silva Amorim 381 Não obstante a clara vedação à importação de pneus usados, uma série de decisões judiciais7 pontuais vinham autorizando a importação dos referidos produtos provenientes de países não integrantes do Mercosul. Tais decisões se alicerçavam nos seguintes fundamentos (ADPF 101, petição inicial p. 08-09): a) ofensa ao regime constitucional de livre iniciativa e da liberdade de comércio (art. 170, IV, p. único, da CF88); b) ofensa ao princípio da isonomia, uma vez que o Poder Público estaria autorizando a importação de pneus remoldados provenientes de países integrantes do Mercosul; c) os mencionados atos normativos só abarcariam pneus usados, nos quais não estariam compreendidos os pneus recauchutados; d) tais restrições não poderiam ser veiculadas por meio de ato regulamentar, mas somente por lei em sentido formal; e) a Resolução CONAMA n. 258/99, com a redação determinada pela Resolução CONAMA n. 301/2002, teria revogado a proibição de importação de pneus usados, na medida em que teria previsto a destinação de pneus importados reformados. Deste modo, a ação proposta em 2006 tinha por objetivo a obtenção de uma posição definitiva do Supremo sobre o tema, que deveria ser seguida por todas as instâncias da Justiça no país. 7 que a legislação brasileira de forma geral proíbe a importação de pneus usados, com exceção daqueles advindos de países que compõem o MERCOSUL, isto porque o Tribunal Arbitral Ad Hoc do MERCOSUL condenou o Brasil a aceitar a importação de pneus dos países do grupo, quando questionado pelo Uruguai. Na oportunidade, o Advogado-Geral da União ressaltou que a ADPF 101 foi proposta contra as decisões judiciais que permitiram a importação de pneus usados para utilização no Brasil, na chamada indústria de remodelagem e que a ação pretende a declaração de inconstitucionalidade dessas decisões judiciais bem como a declaração de constitucionalidade do normativo que veda a importação desses pneus. Ademais, foi relembrado que a ADPF em questão tem fundamento nos artigos 196 e 225 da Constituição Federal, que dispõem respectivamente, sobre o dever do Estado em garantir políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e sobre o direito da sociedade ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ações em que houve decisão versando sobre o tema em debate: 2004.38.00.021230-5/MG; 2003.50.01.003302-3/ES; 2003.50.01.003418-0/ES; 2002.51.01.007841-7/RJ; 2004.51.01.01332709/ RJ; 2004.51.01.018271-0/RJ; 2000.51.01.015268-2/RJ; 2003.51.01.009085-9/RJ; 2003.51.01.020151-7/ RJ; 2006.51.01.006669-0/RJ; 2002.51.01.021336-9/RJ; 2003.51.01.028108-2/RJ; 2006.51.01.57900/RJ; 2003.51.01.005269-6/RJ; 95.00.19425-2/RJ; 2002.51.01.005700-5/RJ; 2003.51.01.007301-1/ RJ; 2004.51.01.011794-8/RJ; 2002.51.01.021335-7/RJ; 92.00.40127-7/RJ; 2004.51.01.001799-5/RJ; 2004.51.01.021624-0/RJ; 2006.51.01.004284-2/RJ; 2006.70.003656-4/PR; 2003.70.00.047071-8/ PR; 95.00.22905-6/CE; 2003.02.01.018228-4/TRF2; 2004.50.01.011427-1/TRF2;2006.02.01.0009745/TRF2; 2004.02.01.011669-3/TRF2; 2002.51.01.014707-5/TRF2; 2002.51.01.022492-6/ TRF2; 2002.61.00.004306-9/TRF2; 2002.51.01.014705-1/TRF2; 2003.51.01.020151-7/ TRF2; 2000.02.01.049640-0/TRF2; 2001.02.01.000846-9/TRF2; 2004.02.01.007769-9/ TRF2; 2001.51.01.001651-1/TRF2; 2006.02.01.0049299-9/TRF2; 2003.02.01.003495-7/ TRF2; 2006.02.01.004450-2/TRF2; 2003.02.01.006804-9/TRF2; 2002.51.01.022377-6/ TRF2; 2004.02.01.002822-6/TRF2; 2003.02.01.016651-5/TRF2; 2005.02.01.001764-6/ TRF2; 2005.02.01.000174-6/TRF2; 2006.02.021.003524-0/TRF2; 2002.51.01.014426-1/ TRF2; 2006.04.00.004730-4/TRF4; 2002.70.00.008773-6/TRF4; 2002.70.00.045835-0/TRF4; 2002.70.00.075048-6/TRF4; 96.05.27638-0/TRF5; 245552-AI/STF; 411318-RE/STF. (ADPF 101, petição inicial, p. 20-22) 382 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 382-408, jan./mar. 2014 2 DOS ARGUMENTOS DA AGU Na inicial da ADPF n. 101 (p. 10), a AGU sustentou o cabimento da demanda uma vez que o rol de direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente não se esgota na enumeração promovida pelo art. 5º, mesmo porque o § 2º do mencionado artigo dispõe que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim, tal qual consignado por meio do julgamento da ADI 939, onde restou fixado que o princípio da anterioridade tributária é uma garantia fundamental, embora prevista no art. 150, “b” da Constituição, a AGU sustentou que tanto o direito à saúde quanto o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado8 são direitos/garantias fundamentais, ainda que não expressamente arrolados pelo art. 5º, CF/88. Noutro turno, ao final da petição inicial (p. 49-50), ainda sobre o cabimento da ADPF, a AGU sustentou a existência de controvérsia judicial relevante, eis que há decisões tanto permitindo quanto proibindo a importação de pneus usados, o que justificaria, nos termos do art. 3º, V da lei n. 9.882/1999, o manejo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Finalizando sua argumentação acerca da viabilidade processual da medida judicial em comento, a parte requerente (ADPF 101, petição inicial, p. 50-59) informa que o requisito da subsidiariedade previsto no § 1º do art. 4º da lei n. 9.882/19999 encontra-se presente, já que não há nenhuma outra ação objetiva apta a enfrentar lesões a preceitos fundamentais causadas por atos concretos do Poder Público, no caso lesões oriundas de decisões judiciais. Ademais, segundo aponta, algumas das decisões judiciais combatidas – além de nem sempre atacarem a constitucionalidade dos dispositivos que proíbem a importação de pneus usados, o que afastaria o uso da ADI ou ADC – já transitaram em julgado, 8 9 Ver ADI n. 3.540-MC/DF (voto do Ministro Celso de Mello). “Art. 4 o A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de arguição de descumprimento de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta. § 1o Não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.” Filipo Bruno Silva Amorim 383 apenas podendo ser desafiadas por uma ADPF, consoante interpretação a contrario sensu10 que faz do art. 5º, § 3º da lei 9.882/199911. Ultrapassada a fase da admissibilidade da ADPF, o fato é que, apesar da existência de legislação impeditiva, decisões judiciais estão a descumprir os normativos permitindo a importação de pneus usados, o que viola os preceitos fundamentais de defesa da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ademais, tais decisões judiciais implicaram na abertura de processo de questionamento contra o Brasil na Organização Mundial do Comércio – OMC, ao argumento de que se o Estado permite a importação de pneus usados como matéria-prima, a vedação de importação de pneus reformados equivaleria a imposição de uma barreira comercial não tarifária (ADPF 101, petição inicial p. 23). Eis a razão, sustenta a AGU, da necessidade de uma definição por parte do STF de que a vedação de importação de pneumáticos usados, inclusive os reformados, encontra supedâneo constitucional, eis que visa à proteção do meio ambiente e da saúde pública, não havendo espaço para decisões judiciais em sentido contrário. Esse posicionamento do Supremo Tribunal Federal seria fundamental, argumenta a AGU, para as pretensões do Brasil junto à OMC. Nesse sentido, aduz em sua manifestação (ADPF 101, petição inicial, p. 24-25), não haver método eficaz de eliminação de resíduos representados por pneumáticos que não revele riscos ao meio ambiente e à saúde do ser humano. O método mais difundido atualmente, a incineração, produz gases tóxicos danosos tanto ao meio ambiente ecologicamente equilibrado quanto à saúde humana. Ademais, o Brasil, tal qual a União Europeia, não permite o aterro dos pneus como método de descarte, sendo que, por outro lado, a permanência dos referidos materiais ao ar livre pode ocasionar incêndios de grandes proporções e longa duração, como também pode ser 10 “A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, por sua vez, possibilita a retirada do mundo jurídico mesmo de decisões transitadas em julgado, o que se infere da interpretação a contrario sensu extraída do art. 5º, § 3º, da Lei 9.882, de 03 de dezembro de 1999: Se existe expressa vedação de afetação de efeitos de decisões judiciais transitadas em julgado em sede de liminar da ADPF, é porque a decisão definitiva está apta a expelir do mundo jurídico tais decisões judiciais, que, ressalte-se, são as verdadeiras causas da lesão a preceito fundamental. Ora, se a ADPF não se prestar a esse papel, pode-se concluir que a Constituição não terá meios de assegurar a observância dos preceitos fundamentais por ela erigidos, em claro desprestígio de sua força normativa.” (petição inicial, p. 56) 11 “Art. 5o O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na arguição de descumprimento de preceito fundamental. [...] § 3o A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada.” 384 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 384-408, jan./mar. 2014 foco para o desenvolvimento de doenças tropicais como a malária, a febre amarela e, especialmente, a dengue. Destaca ainda (ADPF 101, petição inicial, p. 27-28), que o Brasil produz (sem contar a importação) 40 milhões de pneus por ano, já possuindo um estoque de mais de 100 milhões de pneus abandonados, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente em 2006. Sustenta também (ADPF 101, petição inicial, p. 28-29) que a argumentação dos importadores de pneus usados no sentido de que a vedação de importação deveria recair somente sobre os pneus inservíveis, já que os demais que são remodelados têm a sua vida útil aumentada, não se constituindo em lixo ambiental, não merece prosperar, eis que ainda que servíveis, os pneus reformados têm vida útil bem inferior ao pneu novo, sendo que o INMETRO informa que os pneus de carro de passeio só podem passar por uma reforma. Desgastado após a reforma, o pneu torna-se lixo. Justamente por essa razão é que a norma proíbe, de igual modo, a importação de pneus que serviriam como matéria-prima e pneus já reformados (o que é contestado pela União Europeia na OMC). Outro detalhe informado pela AGU (ADPF 101, petição inicial p. 29-30) é o de que só se sabe se o pneu é inservível ou reformável quando colocado na máquina de reforma, não sendo possível aferir tal característica em momento anterior a fim de impedir a importação de material sem qualquer utilidade industrial. Nesse contexto, os importadores estimam e já admitem que 10% dos pneus importados seriam inservíveis, ao passo que o governo brasileiro diz que esse percentual é três vezes maior (30%). A AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 30) traz ainda dois dados interessantes a serem considerados pelo Supremo Tribunal Federal: a) o fato de que há no Brasil (dados de 2006) 100 milhões de pneus abandonados e que boa parte deles poderia ser utilizada como matériaprima para outros pneus, o que reduziria em muito a necessidade de importação do referido insumo; b) dados da Mazola Comércio, Logística e Reciclagem Ltda., sociedade que seleciona carcaças reformáveis para a DPascoal, maior revendedora de pneus no Brasil, informam que 30% dos pneus da frota de veículos brasileira é reformável, o que tornaria desnecessária a importação de pneus para esse fim. Assim, a utilização de carcaças brasileiras poderia aliviar o passivo de pneumáticos existentes no país, diferentemente do que ocorre com Filipo Bruno Silva Amorim 385 a prática da importação desses materiais, sendo, consequentemente, de grande valia para a proteção do meio ambiente e da saúde da população (ADPF 101, petição inicial, p. 31). Outro argumento utilizado pelos importadores e pelos magistrados que permitiram, via decisão judicial, a importação dos pneus usados é o de que referida limitação quanto à entrada do produto no Brasil incorreria em ofensa à livre iniciativa e à liberdade de comércio, ao que a AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 35-36) retruca informando que constitui princípio geral da atividade econômica a proteção e defesa do meio ambiente, inclusive com tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços (art. 170, VI, CF/8812), sendo que, deste modo, não há “direitos absolutos” não sujeitos à redução (ou eventual ampliação) de seu alcance por meio de processos interpretativos que visem à harmonização do ordenamento quando em jogo interesses jurídicos passíveis de ponderação. Nesse sentido, não há que se aventar a impossibilidade da prática comercial eis que, como dito pela AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 37), há um passivo de 100 milhões de pneus usados (dados de 2006) aptos à reforma, o que, por si só, garante a continuidade do negócio. Embora esta não seja a melhor opção comercial, já que a importação do pneu usado ainda é mais barata que a compra do produto no mercado interno, o empreendimento não restará inviabilizado com a proibição da importação. Noutro turno, sustenta a AGU ser descabido se falar em quebra do princípio da isonomia ante o fato de a proibição das importações não se estender aos países integrantes do Mercosul. Com efeito, o Brasil não importa pneus usados para utilização como matéria-prima de qualquer país que seja (inclusive dos países membros do Mercosul), mas tão só pneus já reformados (ADPF 101, petição inicial, p. 38). Ademais, consoante lembrado pela AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 38), o Brasil aderiu livremente à jurisdição do Tribunal Arbitral “ad hoc” do Mercosul, razão pela qual não se pode querer sustentar quebra da isonomia pelo fato de tal exceção não ser aplicável aos países 12 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;” 386 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 386-408, jan./mar. 2014 estranhos ao Mercado Comum do Sul, já que muito embora o Brasil discorde dos termos da mencionada decisão arbitral, que desconheceu dos argumentos de natureza ambiental e de saúde pública, deve a ela integral cumprimento, pois também se revela essencial para os interesses do Estado brasileiro a manutenção das relações harmônicas com os países do Mercosul13, a fim de buscar a “integração econômica, política, social e cultura dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”, conforme previsto pelo parágrafo único do artigo 4º da Constituição Federal de 1988. Noutro giro, a AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 40) combateu o argumento de ofensa ao princípio da legalidade afirmando que o art. 237 da CF/8814 legitimou a normatização da questão via portaria do Ministério da Fazenda (Portaria DECEX 08/1991), já que é deste a competência para fiscalizar e controlar o comércio exterior. De igual modo, mas desta vez sob a perspectiva de proteção ao meio ambiente, o art. 225, § 1º, V da Constituição garante ao Poder Público a competência para “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (ADPF 101, petição inicial, p. 41). Nesse contexto, a Convenção de Basiléia, incorporada ao ordenamento pátrio com estatura de lei por meio do decreto n. 875/1993, previu a possibilidade de todo Estado soberano proibir não somente a entrada ou eliminação de resíduos perigosos estrangeiros em seu território, mas de qualquer outro resíduo (ADPF 101, petição inicial, p. 41). 13 Paralelamente, transcrevemos trecho da petição inicial da ADPF n. 101, onde a AGU, ainda sobre o princípio da isonomia, aduz que: “A par disso, para se falar em isonomia de tratamento, deveria se considerar países em situação ao menos assemelhada, no que se refere a quantitativo de pneus existente como passivo ambiental. Afinal, como se extrai das lições de Aristóteles, o que com propriedade denominou de ‘igualdade recíproca’, a verdadeira igualdade consiste em dar tratamento desigual àqueles que se encontrem em situações desiguais, na justa medida da sua desigualdade. Ora, querer comparar o que a União Européia pode representar em termos de danos ambientais e à saúde com os seus milhões de pneus, com o que os países do Mercosul poderiam representar nessa área, é no mínimo desarrazoado. Para se compreender a dimensão do abismo existente entre esses dois paradigmas, basta dizer que os países do Mercosul foram responsáveis pela importação de apenas 500 mil pneus em 2005, o que representa 5% dos 10 milhões de pneus importados pelo Brasil da União Européia. Desse modo, a argumentação de violação ao princípio da igualdade mostra-se falaciosa, pois, além de o Brasil ter sido compelido judicialmente a permitir a importação apenas de pneus remoldados dos países do Mercosul, e não de pneus usados para servirem como matéria-prima, seria plenamente justificável conferir tratamento distinto aos mesmos, pelo fato de o Mercosul se tratar de União Aduaneira e por razões de equidade e de política internacional, considerando, sobretudo, o diminuto impacto ambiental que tais importações poderiam representar.” (petição inicial, p. 39) 14 “Art. 237. A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda.” Filipo Bruno Silva Amorim 387 Por fim, a AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 47-49) sustenta que não houve revogação da proibição da importação de pneus usados em razão da nova redação da Resolução CONAMA n. 258/1999 determinada pela Resolução CONAMA n. 301/2002. Com efeito, ao disciplinar a destinação dada aos pneus importados, a Resolução CONAMA n. 301/2002, em seus considerandos15, fez constar expressamente a proibição da importação de pneus usados, nos termos das Resoluções CONAMA n. 23/200616 e 235/9817. 3 DO ACÓRDÃO DO STF E DO PARECER DO MPF O fato é que a relatora, Ministra Cármen Lúcia, votou parcialmente favoravelmente à ADPF n. 101 em março de 200918, tendo sido acompanhada pela maioria dos ministros do STF19, com exceção do ministro Marco Aurélio. 15 Resolução CONAMA 301/2002: “Art. 1º Alterar e incluir os seguintes Considerandos à Resolução CONAMA n. 258, de 26 de agosto de 1999, que passam a vigorar com a seguinte redação: [...] Considerando que a importação de pneumáticos usados é proibida pelas Resoluções CONAMA n.s 23, de 12 de dezembro de 1996 e 235, de 07 de janeiro de 1998;” 16 “Art. 4º. Os Resíduos Inertes – Classe III não estão sujeitos a restrições de importação, à exceção dos pneumáticos usados cuja importação é proibida.” 17 A Resolução CONAMA n. 235/1998 apenas confirma a proibição quanto à importação de pneumáticos usados, na medida em que, conferindo nova redação ao Anexo 10 da Resolução CONAMA n. 23/1996, classificou os pneumáticos usados como resíduos inertes – Classe III – de importação proibida. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res97/res23597.html>. Acesso em: 15 abr. 2012. 18 Voto da Ministra Cármen Lúcia. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/voto-carmen-lucia-pn.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2012. 19 A Ementa restou assim redigida: “EFEITOS NOCIVOS À SAÚDE E AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO. AFRONTA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA SAÚDE E DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO. COISA JULGADA COM CONTEÚDO EXECUTADO OU EXAURIDO: IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO. DECISÕES JUDICIAIS COM CONTEÚDO INDETERMINADO NO TEMPO: PROIBIÇÃO DE NOVOS EFEITOS A PARTIR DO JULGAMENTO. ARGUIÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. Adequação da arguição pela correta indicação de preceitos fundamentais atingidos, a saber, o direito à saúde, direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (arts. 196 e 225 da Constituição Brasileira) e a busca de desenvolvimento econômico sustentável: princípios constitucionais da livre iniciativa e da liberdade de comércio interpretados e aplicados em harmonia com o do desenvolvimento social saudável. Multiplicidade de ações judiciais, nos diversos graus de jurisdição, nas quais se têm interpretações e decisões divergentes sobre a matéria: situação de insegurança jurídica acrescida da ausência de outro meio processual hábil para solucionar a polêmica pendente: observância do princípio da subsidiariedade. Cabimento da presente ação. 2. Arguição de descumprimento dos preceitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos: decisões judiciais nacionais permitindo a importação de pneus usados de Países que não compõem o Mercosul: objeto de contencioso na Organização Mundial do Comércio – OMC, a partir de 20.6.2005, pela Solicitação de Consulta da União Europeia ao Brasil. 3. Crescente aumento da frota de veículos no mundo a acarretar também aumento de pneus novos e, consequentemente, necessidade de sua substituição em decorrência do seu desgaste. Necessidade de destinação ecologicamente correta dos pneus usados para submissão dos procedimentos às normas constitucionais e legais vigentes. Ausência de eliminação total dos efeitos nocivos da destinação dos pneus usados, com malefícios ao meio ambiente: demonstração pelos dados. 4. Princípios constitucionais (art. 225) a) do desenvolvimento sustentável e b) da equidade e responsabilidade intergeracional. Meio ambiente ecologicamente equilibrado: preservação para a geração 388 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 388-408, jan./mar. 2014 Em seu voto, após minucioso relatório, a relatora inicia apontando o cabimento da ADPF (p. 12), uma vez que restou demonstrado pelo autor que há preceitos fundamentais sendo descumpridos por reiteradas decisões judiciais, daí a razão de sua total pertinência. Em complemento, a relatora destaca a formação de uma controvérsia judicial relevante em torno do caso, a justificar o ajuizamento da medida, como única ação capaz de enfrentar a celeuma jurídica posta, especialmente ante o fato de se estar atacando atos concretos do Poder Público o que já denota o respeito à regra da subsidiariedade que deve permear toda e qualquer ADPF20. atual e para as gerações futuras. Desenvolvimento sustentável: crescimento econômico com garantia paralela e superiormente respeitada da saúde da população, cujos direitos devem ser observados em face das necessidades atuais e daquelas previsíveis e a serem prevenidas para garantia e respeito às gerações futuras. Atendimento ao princípio da precaução, acolhido constitucionalmente, harmonizado com os demais princípios da ordem social e econômica. 5. Direito à saúde: o depósito de pneus ao ar livre, inexorável com a falta de utilização dos pneus inservíveis, fomentado pela importação é fator de disseminação de doenças tropicais. Legitimidade e razoabilidade da atuação estatal preventiva, prudente e precavida, na adoção de políticas públicas que evitem causas do aumento de doenças graves ou contagiosas. Direito à saúde: bem não patrimonial, cuja tutela se impõe de forma inibitória, preventiva, impedindo-se atos de importação de pneus usados, idêntico procedimento adotado pelos Estados desenvolvidos, que deles se livram. 6. Recurso Extraordinário n. 202.313, Relator o Ministro Carlos Velloso, Plenário, DJ 19.12.1996, e Recurso Extraordinário n. 203.954, Relator o Ministro Ilmar Galvão, Plenário, DJ 7.2.1997: Portarias emitidas pelo Departamento de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – Decex harmonizadas com o princípio da legalidade; fundamento direto no art. 237 da Constituição da República. 7. Autorização para importação de remoldados provenientes de Estados integrantes do Mercosul limitados ao produto final, pneu, e não às carcaças: determinação do Tribunal ad hoc, à qual teve de se submeter o Brasil em decorrência dos acordos firmados pelo bloco econômico: ausência de tratamento discriminatório nas relações comerciais firmadas pelo Brasil. 8. Demonstração de que: a) os elementos que compõem o pneus, dando-lhe durabilidade, é responsável pela demora na sua decomposição quando descartado em aterros; b) a dificuldade de seu armazenamento impele a sua queima, o que libera substâncias tóxicas e cancerígenas no ar; c) quando compactados inteiros, os pneus tendem a voltar à sua forma original e retornam à superfície, ocupando espaços que são escassos e de grande valia, em especial nas grandes cidades; d) pneus inservíveis e descartados a céu aberto são criadouros de insetos e outros transmissores de doenças; e) o alto índice calorífico dos pneus, interessante para as indústrias cimenteiras, quando queimados a céu aberto se tornam focos de incêndio difíceis de extinguir, podendo durar dias, meses e até anos; f) o Brasil produz pneus usados em quantitativo suficiente para abastecer as fábricas de remoldagem de pneus, do que decorre não faltar matéria-prima a impedir a atividade econômica. Ponderação dos princípios constitucionais: demonstração de que a importação de pneus usados ou remoldados afronta os preceitos constitucionais de saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado (arts. 170, inc. I e VI e seu parágrafo único, 196 e 225 da Constituição do Brasil). 9. Decisões judiciais com trânsito em julgado, cujo conteúdo já tenha sido executado e exaurido o seu objeto não são desfeitas: efeitos acabados. Efeitos cessados de decisões judiciais pretéritas, com indeterminação temporal quanto à autorização concedida para importação de pneus: proibição a partir deste julgamento por submissão ao que decidido nesta arguição. 10. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental julgada parcialmente procedente.” 20 “A adequação da presente Arguição está na comprovação de existência de múltiplas ações judiciais sobre as normas aqui questionadas tendo como objeto exatamente os preceitos constitucionais fundamentais. Na peça inicial da Arguição se comprova que alguns daqueles casos foram julgados: a) em primeiro grau; b) em grau de recurso e, ainda, c) com trânsito em julgado. Desta pletora de decisões, algumas conflitantes, e como não houve declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade das normas relativas à matéria, tem-se a manutenção de atos concretos do Poder Público. Filipo Bruno Silva Amorim 389 Em seguida, a Ministra Cármen Lúcia promoveu uma detida análise acerca dos processos citados na inicial (vide nota de rodapé n. 8) como sendo representativos de decisões favoráveis à importação de pneus usados, tendo excluído da ação vários arguidos uma vez que, segundo informações por eles mesmos prestadas, não teriam proferido decisões nos termos informados pela AGU na sua peça vestibular. Adentrando ao mérito, a relatora aponta que o cerne da questão debatida nos autos põe em confronto princípios constitucionais caros à nação brasileira: de um lado estão o direito à saúde e o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e do outro lado está o princípio do desenvolvimento econômico sustentável. Nesse sentido, a relatora promoveu um estudo histórico acerca de toda a legislação nacional da proteção ao meio ambiente, mormente as normas que vedam a importação de material usado, em especial pneumáticos. Ao final dessa contextualização história, a Ministra Cármen Lúcia (voto, p. 54-55) chega à seguinte conclusão, verbis: 8.3. Esse histórico das normas serve a comprovar que apenas durante um curtíssimo intervalo de tempo, entre a edição das Portarias Decex n. 1/92 e 18, de 13.7.1992, é que se permitiu a importação de pneus usados e, ainda assim, com a ressalva de que fossem utilizados como matéria-prima para a indústria de recauchutagem. É esse, aliás, o entendimento sedimentado neste Supremo Tribunal Federal, como se tem, por exemplo, no Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 118: ‘Registrou-se que, à exceção do período compreendido entre as Portarias DECEX 1/92 e 18/92, desde a edição da Portaria DECEX 8/91, não é permitida a importação de bens de consumo usados. Asseverou-se que a proibição geral de importação de bens de consumo ou de matéria-prima usada vigorou até a edição da Portaria SECEX 2/2002, consolidada na Portaria SECEX 17/2003 e, mais recentemente, na Portaria SECEX 35/2006, que Esses, porém, são tidos como não aplicáveis às situações descritas em diferentes processos mencionados nos autos. A aplicação diferenciada e simultânea das normas pelas decisões judiciais contrárias parecem poder traduzir descumprimento de preceitos constitucionais fundamentais. Não há, pois, outra ação na qual se possa suscitar o questionamento posto na presente Arguição com a efetividade da prestação jurisdicional pretendida, donde a comprovação de acatamento ao princípio da subsidiariedade.” (Voto da Ministra Cármen Lúcia, p. 13-14) 390 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 390-408, jan./mar. 2014 adequou a legislação nacional à decisão proferida pelo Tribunal Arbitral do Mercosul para reiterar a vedação, com exceção da importação de pneus recauchutados e usados remoldados originários de países integrantes do Mercosul’ (Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 12.12.07) 9. Foi, pois, por força da decisão do Tribunal Arbitral ad hoc que, em 2003, o Brasil viu-se obrigado a aceitar a importação, por ano, de até 130 mil pneus remoldados dos Países partes do MERCOSUL, basicamente do Uruguai. Observo, ainda, que a mesma proibição de pneus usados foi objeto de normas argentinas, também questionada pelo Uruguai e matéria de lide perante o Tribunal ad hoc. É de se atentar que conferir destinação adequada a todo tipo de pneu tem sido desafio constante para todos os Países. Fixado que o Brasil quase que perenemente, à exceção de um curto espaço de tempo, proibiu e continua a proibir a importação de pneumáticos usados, salvo os provenientes (pneus reformados) do Mercosul, em razão de decisão do Tribunal Arbitra ad hoc do Mercosul, resta saber se as decisões judiciais que permitiram a importação de pneus usados provenientes de Estados não integrantes do Mercado Comum do Sul descumpriram algum preceito fundamental da Constituição Federal. Registra a relatora a necessidade premente de se pacificar o cuidado judicial com essa matéria em razão do questionamento feito pela União Europeia em face do Brasil na Organização Mundial do Comércio21, que combate o fato de o Brasil só permitir a importação de 21 “Os Países integrantes da União Européia ressaltaram então: a) a proibição de importação de pneus remoldados; b) a imposição de multa de quatrocentos reais para quem importa ‘comercializa, transporta, armazena, guarda ou mantém em depósito pneu usado ou reformado’; c) a isenção de proibição de importação e de penalidades econômicas por parte do Brasil aos Países integrantes do Mercosul; d) que a existência de legislações proibitivas da comercialização de pneus reformados importados afrontaria os princípios de livre comércio e isonomia entre os Países membros da OMC. O Brasil argumentou, então, sobre a necessidade de adoção das medidas para evitar danos ambientais, pois os pneus usados têm vida útil mais curta que os novos, além de se transformarem em resíduos de difícil aproveitamento e de grave contaminação do meio ambiente e comprometimento da saúde humana. Demonstrou, ainda, que, em Países tropicais, a proibição de importação de pneus faz-se especialmente necessária como procedimento de combate às doenças transmitidas por mosquitos, que neles se instalam. Em resumo, a proibição da importação é uma providência imprescindível adotada para, dando cobro às normas constitucionais vigente (sic), cuidar-se do meio ambiente e da saúde da população brasileira. Ponderou, ainda, haver dificuldades no armazenamento de pneus procedentes de outros Países, além daqueles produzidos internamente, defendendo a tese da responsabilização pela correta destinação, ou seja, o Estado produtor deveria dar solução ao problema do resíduo de seu produto.” Filipo Bruno Silva Amorim 391 pneumáticos usados de países integrantes do Mercosul, sendo que tal preocupação também restou consignada na manifestação da AdvocaciaGeral da União. Veja-se o seguinte trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia (p. 73) que bem explicita a perplexidade dos órgãos internacionais diante da plêiade de decisões judiciais conflitantes, o que enfraqueceria substancialmente os objetivos do Brasil apresentados junto à OMC: Essa a razão fundamental de cá estarmos reunidos hoje, a resolver definitivamente sobre uma pendência que, conforme o resultado a que chegarmos, no plano internacional, justificaria a derrocada das normas proibitivas sobre a importação de pneus usados, pois, para o Órgão de Apelação da OMC, se uma parte do Poder Judiciário brasileiro libera empresas para importá-los, a despeito da vigência das normas postas, é porque os objetivos apresentados pelo Brasil, perante o órgão internacional do comércio, não teriam o fundamento constitucional que as justificariam e fundamentariam. Fosse o contrário, sendo uma única e mesma Constituição a do Brasil e tendo eficácia plena e efetividade jurídica incontestável a matéria, não haveria as frestas judiciais permissivas do que nelas se veda. Com efeito, informou a relatora que, em 03 de dezembro de 2007, o órgão de apelação da OMC externou a conclusão de que seria justificável a medida adotada pelo Brasil quanto à proibição da importação de pneus usados e reformados, de modo a proteger a saúde e o meio ambiente, nos termos do art. XX (b) do GATT22. Todavia, o mesmo órgão de apelação fixou: a) que haveria discriminação injustificável em relação aos demais países exportadores de pneus usados que não integram o Mercosul, independentemente do volume de importação de pneus reformados; Demonstrou, ademais, “que a isenção do Mercosul da proibição de importações e das multas anticircunvenção é também justificada pelo Artigo XX(D) porque é uma medida ...‘necessária para assegurar o cumprimento de leis ou regulamentos’ que não são inconsistentes com o GATT. [E] que a isenção dos países do Mercosul da proibição e das multas é necessária para assegurar o cumprimento pelo Brasil de suas obrigações no âmbito do Mercosul, conforme determinado pelo Tribunal ad hoc do Mercosul” (Segunda Petição do Brasil perante a Organização Mundial do Comércio apresentada em 11.8.2006, p. 62-63, tradução livre).” (Voto da Ministra Cármen Lúcia, p. 57-58) 22 Textualmente, aquele artigo do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio estabelece: “Artigo XX. Exceções Gerais. Sujeito aos requisitos de que tais medidas não sejam aplicadas de maneira que possam constituir arbitrária ou injustificada discriminação entre países onde as mesmas condições prevaleçam, ou disfarçada restrição ao comércio internacional, nada neste Acordo poderá ser interpretado de forma a evitar a adoção ou aplicação por qualquer parte contratante de medidas: (b) necessárias para proteger a vida ou saúde humana, animal ou vegetal”. 392 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 392-408, jan./mar. 2014 b) que a isenção do Mercosul caracterizou discriminação injustificável; c) que a importação de pneus usados e reformados por meio de liminares judiciais constituiria discriminação de comércio internacional ainda que não ocorressem em volumes significativos; d) que a importação de pneus usados e reformados consistiu em discriminação arbitrária. Assim, tem-se que a OMC reconheceu a legitimidade da medida proibitória de importação de pneumáticos adotada pelo Brasil a fim de proteger a saúde da população e o meio ambiente; todavia também se reconheceu que o Brasil estaria a aplicar referida medida de modo contraditório, já que permite a importação de pneus reformados de países integrantes do Mercosul, bem como ante a profusão de decisões que desafiam a legislação nacional. Diante desse cenário, destaca a Ministra relatora, o Supremo Tribunal Federal é convidado a pacificar e solucionar a controvérsia judicial, a fim de, ao menos sob esse aspecto, robustecer (acaso acatem a tese da AGU) os objetivos apresentados pelo Brasil junto à OMC23. Em sequência, a relatora tece um longo arrazoado acerca do procedimento de fabricação de pneus, bem como dos materiais necessários à sua composição, para, em seguida, tratar das formas de reaproveitamento dos pneumáticos usados. O fato é que seja na reforma de pneus, seja os utilizando como arrecifes artificiais de corais, seja os aproveitando na composição de asfalto ou na fabricação de cimento, os danos ambientais e à saúde humana são consideráveis. Nesse sentido diz que a preocupação com o meio ambiente em termos globais e a preocupação com a destinação conferida aos resíduos domésticos e industriais decorrem da conclusão de dois fatores: a) os 23 A relatora aponta, com base na argumentação desenvolvida pela AGU, as nefastas consequências para o Brasil acaso a OMC desse ganho de causa à União Europeia, verbis: “Como ponderado pelo Arguente, se a Organização Mundial de Comércio desse ganho de causa à União Europeia, ‘o Brasil poder(ia) ser obrigado a receber, via importação, pneus reformados de toda a Europa, que detém um passivo de pneus usados da ordem de 2 a 3 bilhões de unidades, abrindo-se a temível oportunidade de receber pneus usados do mundo inteiro, inclusive dos Estados Unidos da América, que também possuem um número próximo de 3 bilhões de pneus usados’.” (voto da Min. Cármen Lúcia, p. 100) Filipo Bruno Silva Amorim 393 recursos naturais têm se tornado mais escassos, pelo mau uso a eles dado pelo homem; b) a ameaça de segurança à saúde que deles decorre. Ciente disso, o Brasil, mesmo antes da Constituição Federal de 1988, promulgou a lei n. 6.938/81, que dispondo sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, em seu art. 3º, I, definiu o meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”24, sendo que com o advento da Constituição de 1988, 24 Também destacou que o STF já assegurava a proteção ao meio ambiente antes mesmo do advento da Constituição de 1988, como demonstra o precedente MS n. 22.164, de relatoria do Ministro Celso de Mello (DJ 17.11.1985), cuja ementa foi assim lavrada: “A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Direito de terceira geração. Princípio da solidariedade. O direito à integridade ao meio ambiente. Típico direito de terceira geração. Constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos da segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela de uma essencial inexauribilidade. Considerações doutrinárias” (Plenário, DJ 17.11.85). (Observação: A ementa acima foi extraída do voto da Ministra Cármen Lúcia (p. 104-105). Mas em pesquisa junto ao sítio do STF, não encontramos tal acórdão. No caso o MS n. 22.164 se refere a uma questão fundiária/ reforma agrária e foi movida por um particular contra o Presidente da República, sendo da relatoria do Ministro Celso de Mello e tendo sido publica do no DJ em 17.11.1995) Sendo que essa tendência protecionista se confirmou no julgamento da ADI n. 3.540-MC, de relatoria do Ministro Celso de Mello, cuja ementa segue abaixo reproduzida: “E M E N T A: MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQUENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS. - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de 394 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 394-408, jan./mar. 2014 pela primeira vez na história do constitucionalismo pátrio, se dedicou um capítulo inteiro e exclusivo ao meio ambiente, adotando-se, por meio da norma inscrita no art. 22525, o princípio da responsabilidade e da solidariedade intergeracional. Portanto, afirma em seu voto a relatora que “a existência do meio ambiente ecologicamente equilibrado significa não apenas a sua preservação para a geração atual, mas, também, para as gerações futuras.” E prossegue afirmando que se nos dias atuais a palavra de ordem é desenvolvimento sustentável, tal conceito deve compreender titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina. A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. - A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a “defesa do meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bemestar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. - O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDIDA PROVISÓRIA N. 2.166-67/2001: UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. - A Medida Provisória n. 2.166-67, de 24/08/2001, na parte em que introduziu significativas alterações no art. 4o do Código Florestal, longe de comprometer os valores constitucionais consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário, mecanismos que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidas no âmbito das áreas de preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e lesivas ao patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa, agora propiciada, de modo adequado e compatível com o texto constitucional, pelo diploma normativo em questão. - Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal. - É lícito ao Poder Público - qualquer que seja a dimensão institucional em que se posicione na estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a execução de obras e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais especialmente protegidos, desde que, além de observadas as restrições, limitações e exigências abstratamente estabelecidas em lei, não resulte comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quanto a tais territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III).” 25 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Filipo Bruno Silva Amorim 395 tanto o crescimento econômico quanto a garantia paralela da saúde da população, cujos direitos devem ser observados tendo-se em mira não apenas as suas necessidades atuais, mas também as que se podem prever e que se devem prevenir para as futuras gerações (p. 109). Lembra que na ECO-92 foi confeccionado documento denominado “Declaração do Rio de Janeiro” o qual contém 27 princípios dentre os quais destaca o da “precaução”26 que, indo além da simples prevenção, prevê que “quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. Por essa razão é que não há de se esperar a comprovação de um risco real, atual e comprovado de dano que pode sobrevir de uma dada atividade para que se adotem medidas que visem impedi-lo. Essa é a diferença básica entre prevenção e precaução: naquela o risco precisa ser iminente e comprovado, enquanto que nesta o risco pode ser apenas potencial, ou seja, é a prevenção de algo que não se tem certeza se vai ou não ocorrer. Deste modo, ainda que se entenda necessária e imperiosa a garantia do desenvolvimento econômico, não se pode superar uma crise gerando outra potencialmente mais danosa, como seria um severo desequilíbrio ambiental com implicações sérias à saúde da população. Tanto é assim, que a própria Constituição em seu art. 170, VI, destaca a relatora, alça a proteção ao meio ambiente como fundamento próprio do desenvolvimento econômico. Não é por outra razão que a Ministra Cármen Lúcia conclui no que tange ao preceito fundamental da proteção ao meio ambiente: As medidas impostas nas normas brasileiras, que se alega terem sido descumpridas nas decisões judiciais anotadas no caso em pauta, atendem, rigorosamente, ao princípio da precaução, que a Constituição cuidou de acolher e cumpre a todos o dever de obedecer. E não desacata ou desatende os demais princípios constitucionais da ordem 26 Sobre o princípio da precaução a relatora fala (p. 110): “O princípio da precaução vincula-se, diretamente, aos conceitos de necessidade de afastamento de perigo e necessidade de dotar-se de segurança os procedimentos adotados para garantia das gerações futuras, tornando-se efetiva a sustentabilidade ambiental das ações humanas. Esse princípio torna efetiva a busca constante de proteção da existência humana, seja tanto pela proteção do meio ambiente como pela garantia das condições de respeito à sua saúde e integridade física, considerando-se o indivíduo e a sociedade em sua inteireza.” 396 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 396-408, jan./mar. 2014 econômica, antes com eles se harmoniza e se entende, porque em sua integridade é que se conforma aquele sistema constitucional (p. 112). Quanto à proteção da saúde, a relatora lembra que a Constituição Federal de 1988 a trouxe em seu art. 19627 como sendo direito de todos e dever do Estado, verdadeiro corolário da vida digna. Sendo de relevância pública as ações e os serviços destinados à saúde da população em geral, consoante disposto no art. 19728. De igual modo, a Constituição de 1988, em seu art. 6º29, também classificou o direito à saúde como sendo espécie de direito social, previsto no Título destinado aos direitos e garantias fundamentais. Assim, a relatora destaca que o reconhecimento Constitucional do direito à saúde como direito social fundamental tem como consequência serem exigíveis do Estado ações positivas para assegurá-lo e dotá-lo de eficácia plena. Nesse contexto relembra que a ADPF em análise tem por escopo a proteção do preceito fundamental “saúde” visando impedir a importação de pneumáticos usados que podem causar (princípio da precaução) severos danos à saúde da população, não podendo, deste modo, quedar-se inerte ou omisso o Estado. Sem discrepar da linha de raciocínio seguida, a Ministra Cármen Lúcia argumenta: Seja realçado que o direito à saúde não é apenas o direito à ausência de doença, mas, também, o direito ao bem-estar físico, psíquico e social, como se tem no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde - OMS. É vedado, portanto, ao Poder Público ser insuficiente ou imprevidente em suas ações e decisões que tenham o precípuo objetivo de dotar de proteção os direitos fundamentais, sob pena de essa inoperância ou ausência de ações afrontar o núcleo central desses direitos. Desta insuficiência ou imprevidência afastou-se o Poder Público brasileiro 27 “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” 28 “Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.” 29 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Filipo Bruno Silva Amorim 397 ao adotar as medidas normativas proibitivas de importação de resíduos que conduzem ao comprometimento da saúde pública e da saúde ambiental. É isto o que se busca, aqui, resguardar e garantir a efetividade dos direitos constitucionais fundamentais. 19. Constatado que o depósito de pneus ao ar livre - a que se chega, inexoravelmente, com a falta de utilização dos pneus inservíveis, mormente quando se dá a sua importação nos termos pretendidos por algumas empresas - é fator de disseminação de doenças tropicais, o razoável e legítimo é atuar o Estado de forma preventiva, com prudência e com a necessária precaução, na adoção de políticas públicas que evitem as causas que provoquem aumento de doenças graves ou contagiosas. (p. 116-117) E mais à frente arremata a Ministra relatora (p. 118): “Se a proteção à saúde é dever do Estado, manifestando-se por cada qual de seus três poderes, cabe ao Judiciário assegurar a plena, efetiva e eficaz aplicação das normas que determinam as medidas necessárias para assegurá-la”. Lembra que excesso de pneus na natureza, sem utilização, produz o ambiente mais favorável possível à proliferação de doenças tropicais, especialmente a dengue. Pondera, ademais, que do mesmo modo que os ovos do Aedes Aegypti podem permanecer vivos em meio seco por até um ano, vindo a eclodir com o primeiro contato com a água (acumulada nos pneus), o Brasil pode, juntamente com os pneus usados, estar importando doenças (ovos em estado de adormecimento) ainda não incidentes no país, ou dele já erradicadas, o que demandaria maiores gastos do Estado com a já precária saúde pública nacional (p. 118-119). Contra-argumentando, os interessados na importação aduzem que a sua proibição afrontaria o princípio constitucional da livre iniciativa e a busca pelo pleno emprego, já que inúmeras fábricas e inúmeros postos de trabalho seriam fechados. A Ministra Cármen Lúcia, por sua vez, rebate a crítica com a seguinte afirmação: Os dados assim apresentados, contudo, não conectam os princípios constitucionais definidos para a ordem econômica e para a ordem social, como antes acentuado. Nem há desenvolvimento, incluído o econômico, sem educação e sem saúde. Porque o desenvolvimento 398 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 398-408, jan./mar. 2014 constitucionalmente protegido é o que conduz à dignidade humana, não à degradação - inclusive física - humana (p. 120). Nesse sentido, sustenta que a importação de pneus usados causa potencialmente mais danos à saúde e ao meio ambiente que benefícios econômicos e pondera que, no caso, quem mais sofre com a situação criada com o lixo gerado pelos pneus é a população de baixa renda, que não dispõe de meios materiais para se desfazer ou se proteger dos males advindos do referido lixo. Argumenta ainda, que “sendo o direito à saúde um bem não patrimonial, sua tutela faz-se na forma inibitória, preventiva, impedindose a prática de atos de importação de pneus usados – prática, aliás, adotada pelos Países ricos que deles querem se livrar –, quando demonstrado que estes não são plenamente aproveitados pela indústria.” (p. 122) Ao enfrentar o argumento de que a proibição da importação de pneus só poderia se dar por meio de lei formal, a relatora afirmou que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, criado pela Medida Provisória n. 1.911-8, de 29.7.99, tem como área de competência o desenvolvimento de “políticas de comércio exterior” e a “regulamentação e execução das atividades relativas ao comércio exterior”, sendo que no referido Ministério há o Departamento de Comércio Exterior - Decex, responsável pelo monitoramento e pela fiscalização do comércio exterior, cujas normas, por si editadas, são imediatamente aplicáveis, em especial aquelas proibitivas de trânsito de bens no território nacional. Assim, amparado pelo Decreto 99.244/9030 (alterado pelo Decreto n. 99.267/90), o Decex no uso de suas atribuições restringiu a emissão de licenças de importação e exportação de bens que poderiam causar danos ao País e editou a Portaria n. 8/91, que obstou, por sua vez, a importação de bens de consumo usados, entre eles, o pneu. 30 São competências do Decex, dentre outras: “Art. 165. Ao Departamento de Comércio Exterior compete: [...] VII - traçar diretrizes da política do comércio exterior; VIII - adotar medidas de controle das operações do comércio exterior, quando necessárias ao interesse nacional; [...] X - baixar normas necessárias à implementação da política de comércio exterior, bem assim orientar e coordenar a sua expansão; [...] XXI - normatizar, supervisionar, orientar, planejar, controlar e avaliar as atividades aduaneiras.” Filipo Bruno Silva Amorim 399 Deste modo, não se há que falar em ofensa ao princípio da legalidade, pois é expresso o fundamento no Decreto 99.244/90, editado em face do artigo 237 da Constituição, matéria esta que já foi, inclusive, examinada pelo Supremo Tribunal que, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 202.313, Relator o Ministro Carlos Velloso (Plenário, DJ 19.12.1996) e do Recurso Extraordinário n. 203.954, Relator o Ministro Ilmar Galvão (Plenário, DJ 7.2.1997), decidiu pela constitucionalidade das Portarias Decex n. 8/91 e Secex n. 8/00, que vedam a importação de bens de consumo usados, tendo aquelas normas fundamento direto na Constituição. Lembre-se, ademais, que em 1995 foi editada Portaria Interministerial n. 3/95, entre os Ministérios da Fazenda e o Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, impedindo a importação de qualquer bem de consumo usado. Noutro turno, sustenta a relatora, a Convenção da Basiléia, da qual o Brasil é signatário, determinou a adoção de procedimentos para o controle de resíduos perigosos, o que deu ensejo à edição da Resolução CONAMA31 n. 23/1996 que, dentre outras providências, proibiu a importação de pneus usados. Posteriormente, o CONAMA editou duas outras resoluções, a de n. 258/1999 e a de n. 301/2002 que, diferentemente do alegado pelos arguidos, não revogaram, ao contrário confirmaram, a resolução n. 23/1996. 31 O CONAMA foi criado pela lei n. 6.938/81 e detém as seguintes atribuições: “Art. 8º Compete ao CONAMA: (Redação dada pela Lei n. 8.028, de 1990) I - estabelecer, mediante proposta do IBAMA, normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos Estados e supervisionado pelo IBAMA; (Redação dada pela Lei n. 7.804, de 1989) II - determinar, quando julgar necessário, a realização de estudos das alternativas e das possíveis consequências ambientais de projetos públicos ou privados, requisitando aos órgãos federais, estaduais e municipais, bem assim a entidades privadas, as informações indispensáveis para apreciação dos estudos de impacto ambiental, e respectivos relatórios, no caso de obras ou atividades de significativa degradação ambiental, especialmente nas áreas consideradas patrimônio nacional. (Redação dada pela Lei n. 8.028, de 1990) III - (Revogado pela Lei n. 11.941, de 2009) IV - homologar acordos visando à transformação de penalidades pecuniárias na obrigação de executar medidas de interesse para a proteção ambiental; (VETADO); V - determinar, mediante representação do IBAMA, a perda ou restrição de benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público, em caráter geral ou condicional, e a perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito; (Redação dada pela Lei n. 7.804, de 1989) VI - estabelecer, privativamente, normas e padrões nacionais de controle da poluição por veículos automotores, aeronaves e embarcações, mediante audiência dos Ministérios competentes; VII - estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos. Parágrafo único. O Secretário do Meio Ambiente é, sem prejuízo de suas funções, o Presidente do Conama. (Incluído pela Lei n. 8.028, de 1990)” 400 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 400-408, jan./mar. 2014 A única exceção a essa expressa proibição foi dada em razão da decisão do Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul que, como dito diversas vezes, obrigou o Brasil a permitir a importação de pneus reformados (não para uso como matéria-prima) provenientes de países integrantes do bloco do cone sul, não podendo tal exceção, destaca a Ministra Cármen Lúcia (p. 127), ser caracterizada como prática discriminatória relativamente aos países não integrantes do Mercado Comum do Sul. Corroborando o dado trazido pela AGU de que a importação de pneu usado é mais barata do que a compra do mesmo material no mercado interno, a relatora põe em dúvida a real justificativa para tal “generosidade” dos países exportadores, acaso esse material não fosse prejudicial à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado32. Nessa esteira, pondera a relatora, cai por terra o argumento dos arguidos de que a proibição da importação feriria os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, pois, como afirma em seu voto (p. 132), “se fosse possível atribuir peso ou valor jurídico a tais princípios relativamente ao da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado preponderaria a proteção desses, cuja cobertura, de resto, atinge não apenas a atual, mas também as futuras gerações.” A título de conclusão a Ministra relatora conduz seu raciocínio do seguinte modo: Os preceitos fundamentais da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado são constitucionalmente protegidos e estão a ser descumpridos por decisões que, ao garantir a importação de pneus usados ou remoldados, afronta aqueles direitos fundamentais. A Arguente demonstrou que a) a gama de elementos que compõem o pneu, dando-lhe durabilidade, é responsável pela demora na sua decomposição quando descartado em aterros – mais de cem anos -; b) a dificuldade de seu armazenamento impele a sua queima, o que libera substâncias tóxicas e cancerígenas no ar; c) quando compactados inteiros, os pneus tendem a voltar à sua forma original e retornam à superfície, ocupando espaços que são escassos e de grande valia, em especial nas grandes 32 “Há notícias de que pneus chegam ao Brasil por preços ínfimos, em torno de 20 a 60 centavos de dólar por unidade. A questão é: qual a causa de tamanha ‘generosidade’, qual o motivo de preço tão ínfimo se o bem fosse tão bom, servível ou mesmo aproveitável e não agressivo à saúde ou ao meio ambiente? Ou seria isso apenas ‘despejo’ de material inservível? Essas interrogações não têm resposta prévia. Nem mudam o que aqui se há de decidir com base na Constituição. Mas sobre ela, sertaneja, diria como Guimarães Rosa, ‘eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa’.” (voto da Ministra Cármen Lúcia, p. 128) Filipo Bruno Silva Amorim 401 cidades; d) a desintegração dos pneus para serem depositados em aterros é procedimento de alto custo; e) os pneus inservíveis e descartados a céu aberto são ideais para o criadouro de insetos e outros vetores de transmissão de doenças, em razão de seu formato; f) se de um lado o alto índice calorífico dos pneus é interessante para as indústrias cimenteiras, quando queimados a céu aberto, tornam-se focos de incêndio difíceis de extinguir, podendo durar dias, meses e até anos; g) o Brasil produz pneus usados em quantitativo suficiente para abastecer as fábricas de remoldagem de pneus, do que decorre não faltar matéria-prima a impedir a atividade econômica. [...] 30. Os Interessados insistem em que o que os leva a demandar a permissão para continuar a importação de pneus usados é a má qualidade das rodovias brasileiras, que deterioram bastante os pneus a serem remoldados. Na audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal, especialistas informaram que os pneus usados importados não são previamente classificados antes da importação, havendo resíduo da ordem de 30% a 40% nos contêineres, que são simplesmente passivo ambiental, inservível para remoldagem. Isso apenas reforça a conclusão de afronta aos preceitos fundamentais relativos à saúde e ao meio ambiente. Ao contrário do que sustentam eles, as decisões judiciais que autorizaram as importações de pneus usados é que afrontam o art. 170 da Constituição brasileira, pois o material refugado agride o meio ambiente, causa impacto ambiental, contrariando o disposto no inciso VI do art. 170, bem como aos arts. 196 e 225, especialmente. Ademais, essa transferência de material inutilizável representa, por si só, afronta ao disposto na Convenção da Basiléia, da qual o Brasil é signatário. [...] Assim, apesar da complexidade dos interesses e dos direitos envolvidos, a ponderação dos princípios constitucionais demonstra que a importação de pneus usados ou remoldados afronta os preceitos constitucionais da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado e, especificamente, os princípios que se expressam nos arts. 170, inc. I e VI e seu parágrafo único, 196 e 225, da Constituição do Brasil. 25. Pelo exposto, encaminho voto no sentido de ser julgada parcialmente procedente a presente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para: 402 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 402-408, jan./mar. 2014 a) declarar válidas constitucionalmente as normas do art. 27, da Portaria DECEX n. 8, de 14.05.1991; do Decreto n. 875, de 19.7.1993, que ratificou a Convenção da Basiléia; do art. 4º, da Resolução n. 23, de 12.12.1996; do art. 1º, da Resolução CONAMA n. 235., de 7.1.1998, do art. 1º, da Portaria SECEX n. 8, de 25.9.2000; do art. 1º da Portaria SECEX n. 2, de 8.3.2002, do art. 47-A no Decreto n. 3.179, de 21.9.1999 e seu 2º, incluído pelo Decreto 4592, de 11.2.2003; do art. 39, da Portaria SECEX n. 17, de 1.12.2003; e do art. 40, da Portaria SECEX n. 14, de 17.11.2004 com efeitos ex tunc; b) declarar inconstitucionais, com efeitos ex tunc, as interpretações, incluídas as judicialmente acolhidas, que, afastando a aplicação daquelas normas, permitiram ou permitem a importação de pneus usados de qualquer espécie, aí incluídos os remoldados, ressalva feita quanto a estes àqueles provenientes dos Países integrantes do MERCOSUL, na forma das normas acima listadas. c) Excluo da incidência daqueles efeitos pretéritos determinados as decisões judiciais com trânsito em julgado, que não estejam sendo objeto de ação rescisória, uma vez que somente podem ser objeto da Arguição de Preceito Fundamental atos ou decisões normativas, administrativas ou judiciais impugnáveis judicialmente. Ora, as decisões cobertas pelo manto constitucional da coisa julgada, cujo conteúdo já tenha sido executado e exaurido o seu objeto, já não podem ser desfeitas, menos ainda pela via eleita pelo Arguente, que, de toda sorte, teve opções processuais para buscar o seu desfazimento, na forma da legislação vigente, não se tendo a comprovação de que tenha buscado atingir tal objetivo ou que tenha tido sucesso em suas ações. Não se incluem nesta exceção conteúdos decisórios em aberto ou dispostos de forma ilimitada para o futuro, pois a partir do que aqui definido ficam proibidas importações de pneus, dando-se o estrito cumprimento das normas vigentes com os contornos e exceções nela previstas (p. 135-140). O Ministro Eros Grau33, por sua vez, ao trazer em mesa seu voto vista acompanhando a relatora na sua conclusão, fez questão de destacar que não acatava as razões de decidir do voto da Ministra Cármen Lúcia, 33 Voto do Ministro Eros Grau. Disponível em: <http://jusvi.com/files/document/pdf_file/0004/0666/ ADPF101 ERus.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2012. Filipo Bruno Silva Amorim 403 pois não entendia possível a chamada ponderação de princípios defendida pela referida magistrada34. No caso, ponderou o Ministro Eros Grau que a decisão acerca da inconstitucionalidade dos atos tidos por descumpridores dos preceitos fundamentais referentes à defesa da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado devem surgir não de sua ponderação com relação à livre iniciativa e liberdade de comércio, pois o que se pondera são valores e não princípios e a ponderação de valores é discricionária, o que gera, por consequência, insegurança jurídica. No caso, entende o referido Ministro que a inconstitucionalidade advém da interpretação da totalidade da Constituição, do todo que a Constituição é. Em seu voto (p. 04), afirma textualmente que: Interpretar o direito é formular juízos de legalidade, ao passo que a discricionariedade é exercitada mediante a formulação de juízos de oportunidade. Juízo de legalidade é atuação no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve contido pelo texto. Ao contrário, o juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente. Uma e outra são praticadas em distintos planos lógicos. Segundo defende, o direito moderno é racional, pois pautado por critérios de legalidade que permitem uma previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos, deixando de ser, portanto, arbitrário e aleatório em suas decisões35. Nesse sentido, reafirma a impossibilidade de ponderação entre princípios, mas de interpretação 34 “Acompanho o voto entendendo, contudo, ser outra a fundamentação da afirmação de inconstitucionalidade das interpretações judiciais que autorizaram a importação de pneus. Isso de um lado porque recuso a utilização da ponderação entre princípios para a decisão da questão de que se cuida nestes autos. De outro porque, tal como me parece, essa decisão há de ser definida desde a interpretação da totalidade constitucional, do todo que a Constituição é. Desse último aspecto tenho tratado, reiteradamente,em textos acadêmicos. Não se interpreta o direito em tiras; não se interpreta textos normativos isoladamente, mas sim o direito, no seu todo --- marcado, na dicção de Ascarelli, pelas suas premissas implícitas.” (voto do Ministro Eros Grau, p. 03) 35 “O direito moderno, posto pelo Estado, é racional porque cada decisão jurídica é a aplicação de uma proposição abstrata munida de generalidade a uma situação de fato concreta, em coerência com determinadas regras legais. Eis o que define a racionalidade do direito: as decisões deixam de ser arbitrárias e aleatórias, tornam-se previsíveis. Racionalidade jurídica é isso: o direito moderno permite a instalação de um horizonte de previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos, sobretudo àqueles que se dão nos mercados.” (voto do Ministro Eros Grau, p. 08) 404 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 404-408, jan./mar. 2014 sistêmica. Todavia, como dito, embora discorde das razões de decidir, conclui da mesma forma que a Ministra relatora concluiu. Noutro turno, o Ministro Gilmar Mendes36, acompanhando na íntegra o voto da Ministra Cármen Lúcia, desenvolve uma fundamentação muito próxima à externada pela Ministra relatora e, consequentemente, acatando diversos argumentos deduzidos na inicial da ADPF pela Advocacia-Geral da União. De início aduz ser inequívoca a relevância da questão posta à análise da Corte sob a ótica da proteção aos preceitos fundamentais do direito à saúde e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado em sua interpretação sistêmica especialmente com relação ao princípio da liberdade de iniciativa. E acrescenta, tal qual observado pela AGU em sua manifestação, que a Corte já fixou a desnecessidade de o direito fundamental, que segundo entende “rima” com preceito fundamental, estar elencado no rol do art. 5º, já que o mesmo não é taxativo a teor do que dispõe o seu § 2º37. Na sequência, após destacar a especial atenção com que a preservação ambiental e a saúde pública são tratadas pela Constituição, destaca que na inicial da AGU é dito que a comercialização de pneus usados no Brasil contribui para incrementar o risco ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, consequentemente, à saúde, já que não há meio seguro e eficaz de eliminação dos resíduos apresentados pelos pneumáticos de qualquer espécie. Deste modo, diante da potencial nocividade dos referidos resíduos, o controle de sua produção, consubstanciado no caso pela vedação de sua importação, seria medida condizente com a proteção à saúde e ao meio ambiente preconizadas pela 36 Voto do Ministro Gilmar Mendes. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/ material/682_101%20 GM.PDF>. Acesso em: 25 abr. 2012. 37 “Na forma da jurisprudência desta Corte, que se apreende inclusive a partir dos precedentes acima evidenciados, vê-se que a importação de pneus usados de qualquer espécie, a despeito de estar expressamente materializada em diversos atos normativos federais, consubstancia questão constitucional relevante, por envolver a interpretação sistêmica do conteúdo normativo do direito à saúde (art. 196), do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225) e do direito à liberdade de iniciativa (art. 170). O contexto da referida discussão evidencia a complexidade do sistema constitucional de proteção dos direitos fundamentais, que são, num só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. [...] É inequívoca, pois, a relevância constitucional da controvérsia submetida a esta Corte, quanto à ofensa aos artigos 196 e 225 da Constituição, que, inevitavelmente, envolve também a consideração do artigo 170. Dessa forma, há implicação de preceitos fundamentais de enunciação expressa na Constituição, bem como uma repercussão jurídica evidente na sociedade quanto às distintas posições interpretativas adotadas em atos judiciais e atos normativos federais. [...] Já firmamos o entendimento de que os direitos fundamentais rimam com a ideia de preceitos fundamentais e de que outros direitos fundamentais compõem a nossa ordem constitucional, sem necessariamente estarem topograficamente estabelecidos no art. 5º da Constituição.” (voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 04-06) Filipo Bruno Silva Amorim 405 Constituição Federal. Ademais, destaca o Ministro Gilmar Mendes, não se pode esquecer que a proibição de importação dos pneumáticos é medida que milita em favor da proteção à saúde humana na medida em que impede a criação de ambiente favorável à proliferação de doenças tropicais, como é o caso da dengue38. Nesse sentido, assevera que a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado é cofator necessário à proteção do direito à saúde, bem como à execução de políticas públicas sanitárias, sendo que a interpretação do artigo 170 que veicula a liberdade de iniciativa e de comércio sofre relevantes temperamentos constitucionais, uma vez que tal prerrogativa deve restar harmonizada com a defesa do meio ambiente, nos termos do seu inciso VI, tal qual apontado pela Advocacia-Geral da União39. Lembrando o princípio da responsabilidade e da solidariedade intergeracional de proteção do meio ambiente, destaca a faceta da prevenção e da precaução que permeiam a norma Constitucional inserta no art. 225 e, de igual modo, aduz que a redação dada ao art. 196 da Lei Fundamental aponta para um dever geral de garantia da saúde, sendo, ambas, determinações constitucionais que visam evitar riscos, o que, via de consequência, autoriza o Estado a adotar medidas de proteção ou prevenção à saúde e ao meio ambiente, inclusive quanto ao 38 “O tema da garantia da preservação ambiental e da saúde pública é tratado pela Constituição com especial atenção. Como se pode perceber, no caput do art. 225 e nos incisos do seu parágrafo único, afirma-se o direito dos cidadãos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como meio de fruição de uma sadia qualidade de vida, bem como se destaca o dever do Poder Público de efetivar meios objetivos para consecução de tal fim. Entre os variados meios, aponta-se o controle da produção, da comercialização e do emprego de métodos, técnicas e substâncias que comportem risco para a vida, para a qualidade de vida e para o meio ambiente. Na inicial, alega-se que a comercialização de pneus usados de qualquer espécie envolve riscos para o meio ambiente e para a sadia qualidade de vida, na medida em que o grande volume importado desses bens para produção gera um passivo ambiental extremamente preocupante e não há método eficaz de eliminação completa dos resíduos apresentados pelos pneumáticos usados de qualquer espécie. Assim, diante do risco conhecido de nocividade dos resíduos desses bens, que não recebem adequado descarte no meio ambiente, o controle da produção, em termos de proibição de importação, seria medida conforme à determinação constitucional. Ao mesmo tempo, o artigo 196 da Constituição trata a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. Nos termos da inicial, a proibição de importação de pneus usados de qualquer espécie se enquadraria como política socioeconômica voltada à redução de risco de doença e outros agravos, na medida em que o número excessivo de pneus consubstancia um aumento efetivo de vetores de doenças e sua eliminação inadequada no meio ambiente gera a liberação de diversas substâncias tóxicas e cancerígenas.” (voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 07-08) 39 “Nesses termos, apreende-se que a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui um cofator ou dimensão que potencializa a fruição do direito à saúde e a execução de políticas públicas sanitárias. A efetividade de um direito é dependente, em certa medida, da efetividade do outro direito. Além disso, a interpretação do artigo 170 da Constituição evidencia que o direito fundamental à livre iniciativa e ao livre comércio não é absoluto, mas deve guardar compatibilidade com a defesa do meio ambiente. Tal como outras Constituições brasileiras anteriores, a Constituição de 1988 consagra a técnica de estabelecimento de restrição a diferentes direitos individuais.” (voto do Ministro Gilmar Mendes, p.09) 406 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 406-408, jan./mar. 2014 desenvolvimento técnico ou tecnológico, o que deságua, por conseguinte, na utilização (importação) de pneumáticos de qualquer espécie40. Nesse contexto, traz à baila o inciso V do § 1º do art. 225 da Constituição, que determina expressamente que o Poder Público poderá controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias nocivas à vida, à saúde e ao meio ambiente, de modo que a noção de controle de produção e de comercialização veicula em seu significado a possibilidade de restrição da importação de bens que ao menos tragam potencialmente riscos aos bens constitucionalmente tutelados (voto do ministro Gilmar Mendes, p. 16-17). Por fim, o Ministro Gilmar Mendes tratando dos atos normativos federais que disciplinam a importação de pneus usados e sua relação com uma provável inviabilização da atividade comercial, acentua que: Os atos normativos federais aqui discutidos não proíbem, contudo, a comercialização dos pneus usados de qualquer espécie, oriundos do mercado nacional. A principal alegação econômica dos interessados no processo de importação seria a baixa qualidade dos pneus usados de origem nacional em relação aos pneus usados importados. Contudo, apreende-se que, em tese, não se inviabiliza a atividade comercial das empresas de reforma de pneus usados, mas restringe-se sua liberdade de livre iniciativa de importação ilimitada daqueles bens, em razão da proteção e da defesa da saúde, do meio ambiente e, em última instância, da soberania nacional junto à OMC. (voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 21) Importante mencionar que o Ministério Público Federal41 aderiu à tese sustentada pela AGU e, em seu, parecer opinou pela total procedência da ADPF. 40 “O artigo 225 da Constituição, ao impor à coletividade e ao Poder Público o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, apresenta um dever geral de prevenção dos riscos ambientais, na condição de uma ordem normativa objetiva de antecipação de futuros danos ambientais, que são apreendidos juridicamente pelos princípios da prevenção (riscos concretos) e da precaução (riscos abstratos). Também o artigo 196 da Constituição, ao impor expressa determinação de execução de políticas socioeconômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, aponta para um dever geral de garantia da saúde. [...] As referidas determinações constitucionais de evitar riscos (Risikopflicht) são explicitadas no texto da Constituição (art. 196 e art. 225), o que autoriza o Estado a atuar com objetivo de evitar riscos para o cidadão em geral, mediante a adoção de medidas de proteção ou de prevenção da saúde e do meio ambiente, especialmente em relação ao desenvolvimento técnico ou tecnológico, que resulta também da utilização de pneus usados de qualquer espécie”(voto do Ministro Gilmar Mendes, p.13-14). 41 Parecer da Procuradoria-Geral da República. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/ material/422 _ADPF_101_MPF.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2012. Filipo Bruno Silva Amorim 407 Em seu parecer, o Procurador-Geral da República afirma, acerca da importação de pneumáticos usados, não ter dúvidas quanto ao potencial extremamente prejudicial à saúde e ao meio ambiente, tanto em face da sua complexa composição química, cuja queima produz elevados índices de toxicidade, somada às condições físicas do produto e sua tendência ao amontoamento em larga escala, bem como, no que toca ao amontoamento referido, por ser berço para procriação de insetos vetores de doenças tropicais infectocontagiosas42. Além disso, o parquet advoga o cabimento da medida judicial proposta pela AGU, “ante a provocação articulada de questão constitucional viva, de relevo incontestável43, [...], avaliado sob a perspectiva – ilegítima – por meio de decisões judiciais reiteradas que, em seu conjunto, estabelecem quadro de preocupante reversão de determinada política pública” (Parecer do PGR, p. 08). Ingressando no mérito da questão posta em discussão, o Ministério Público afirma que a inexistência de destinação viável para os pneumáticos usados ou reformados, finalizada a vida útil econômica do bem, é um argumento insuperável no que toca ao acerto da medida governamental de vedação de sua importação. Ademais, não se sustenta o argumento de que a utilização/importação de pneus usados diminuiria a fabricação de pneus novos, o que implicaria em um ganho ao meio ambiente, pois, como sustentado pela AGU, cerca de 30% dos pneumáticos usados importados já ingressam em solo nacional em estado imprestável para qualquer utilização. Ou seja, cerca de 30% do que se importa é essencialmente lixo, nocivo ao meio ambiente e, por consequência, à saúde humana44. 42 “Tendo em consideração a complexa composição química do material, aliada às condições físicas do produto e sua propensão ao amontoamento de larga escala, os meios de controle não têm hoje nenhuma dúvida quanto ao potencial extremamente prejudicial não só ao equilíbrio do meio ambiente, como também à saúde coletiva. Além de berço da procriação de insetos vetores de doença infecto-contagiosas, a queima de pneus usados, afora a própria degradação do material de sua composição, é item de índices de imensa toxicidade.” (Parecer do PGR, p. 03) 43 Refere-se ao âmbito normativo dos arts. 196 e 225 da Constituição da República. 44 “49. Um argumento insuperável diz com a já instalada questão do despojo dos dejetos, que, finalizada a vida útil econômica do bem, não têm destinação viável para nenhum processo aperfeiçoado de reutilização. Fala-se em alguns destinos, como a moagem para pavimentação de estradas, mas todas – absolutamente todas – as saídas são por demais dispendiosas, a ponto de se inviabilizarem, ao menos neste momento, como solução para a questão. 50. De outro lado, a utilização comercial de produtos reformados não se justifica ante a perspectiva da substituição de pneus novos, que, virtualmente, deixariam de ser comercializados. Há um dado relevante nesse ponto, que é bem destacado nas razões apresentadas pelo arguente. Absolutamente não há como se promover válido controle dos pneus que entram no país nesse processo de importação, sendo verificado que, sem maiores considerações quanto ao montante que é destinado aos processos de reforma, desde logo 30% (trinta por cento) dos lotes já chegam ao país inteiramente degradados, sem a menor condição sequer de aproveitamento pelos importadores/consumidores.” (Parecer do PGR, p. 12) 408 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 408-408, jan./mar. 2014 Deste modo, aduz que, de saída, a importação de material absolutamente inutilizado para armazenamento em terras brasileiras milita contra a responsabilidade e solidariedade intergeracional na proteção ao meio ambiente prevista no texto do art. 225, caput, razão pela qual a atividade econômica desenvolvida pelos importadores de pneumáticos usados deveria ser contida45. E, nesse contexto, prossegue em sua linha de raciocínio afirmando que a proibição da importação do referido material não anula a iniciativa privada nesse setor de comércio e indústria, já que o solo nacional é fértil na produção de pneumáticos reformáveis, sendo que a insistência na importação desse produto reflete exclusivamente interesses econômicos individuais, focados na redução do preço da referida matéria-prima46. Por fim, o Ministério Público Federal defende que as decisões judiciais que admitem a importação de pneumáticos de modo amplo nulificam a política pública de defesa do meio ambiente e proteção à saúde pretendidas pelo Estado brasileiro, sendo equivalente a dizer, especialmente à comunidade internacional, que a atividade econômica pode ser exercida ainda que contrarie decisão soberana adotada pelo Brasil em sentido diametralmente oposto. Ademais, a mencionada violação não afeta tão só os artigos 196 e 225 da Constituição, mas o próprio dispositivo constitucional que regula a livre iniciativa e a liberdade da atividade comercial, que deverá observar tanto a soberania nacional quanto a defesa do meio ambiente, como princípios fundantes para o seu exercício47. 45 “52. A importação constitui-se, já de saída, na transferência de material absolutamente inutilizado proveniente dos países exportadores para o seu armazenamento em terras brasileiras. Essa é uma situação que, por si só, parece lançar muitas luzes quanto à relação dessa atividade econômica com o plano de equilíbrio que o Estado brasileiro, comprometido com futuras gerações de brasileiros, deve atender. 53. Portanto, a importação de pneus usados, uma vez apurada a patente ligação com o meio ambiente e seu equilíbrio, há de ser considerada como um fator a ser legitimamente regulado pelo Estado, em garantia a direitos fundamentais de ordem de brasileiros que, sequer, muitos deles, ainda nasceu.” (Parecer do PGR, p. 13) 46 “54. Há que se considerar que a proibição da importação de pneus usados e reformados não anula a iniciativa privada nesse setor de comércio e de indústria. O parque industrial instalado no país é expressivo, e tem no próprio consumo de pneus internamente realizado material infindável de produção. O interesse pela irrigação do mercado interno com pneus importados atende apenas a questões individuais e de ordem eminentemente econômica, centrada na redução dos preços da matéria prima.” (Parecer PGR, p. 15) 47 “O ambiente gerado pelos pronunciamentos, que tão abrangentemente admitem o processo de importação de pneumáticos, nulifica por completo a política pública adotada. Isso é o mesmo que se dizer que atividade econômica pode, sim, ser exercida sem rédeas, e mesmo à revelia da decisão soberana adotada pelo Brasil perante organismos internacionais. A violação, ao que se constata, é não só aos arts. 196 e 225 da Lei Maior, mas também ao art. 170, I e VI, e seu parágrafo único: ‘Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; [...] VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 42, de 19.12.2003) [...] Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.’”(Parecer do PGR, p. 18)
OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E OS DIREITOS HUMANOS: A UTILIZAÇÃO DA LEGAL OPPORTUNITY COMO ESTRATÉGIA PARA MUDANÇAS POLÍTICO-CULTURAIS CONTRAMAJORITÁRIAS NEW SOCIAL MOVEMENTS AND HUMAN RIGHTS: THE LEGAL OPPORTUNITY AS A STRATEGY FOR COUNTERMAJORITARIAN POLITICAL-CULTURAL CHANGES Luciano Pereira Vieira Advogado da União em exercício da Procuradoria Seccional da União em Campinas/SP1 José Antonio Remedio Promotor de Justiça Aposentado2 SUMÁRIO: Introdução; 1 Novos movimentos sociais e a influência da Political Opportunity na definição das estratégias de mobilização; 2 A judicialização como atuação estratégica dos Movimentos Sociais (Legal Opportunity Structures versus Political Opportunity 1 Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba/SP (UNIMEP). Professor de Curso de Pós-Graduação em Direito. Foi Aluno Especial do Mestrado em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 2 Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Professor de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Promotor de Justiça Aposentado. 202 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 202-224, jan./mar. 2014 Structures); 3 O Poder Judiciário e seu papel nas mudanças político-culturais contramajoritárias como instrumento de proteção dos Direitos Humanos; Conclusão; Referências. RESUMO: O trabalho investiga uma tendência atual de participação, direta ou indireta, dos denominados Novos Movimentos Sociais na implementação dos direitos humanos, através da judicialização de questões político-culturais contramajoritárias, com a assunção do enfrentamento dessas questões pelo Poder Judiciário como poder político. Analisa o perfil dos Novos Movimentos Sociais e os motivos que os estimulam, ainda que momentaneamente, a se afastarem de suas estratégias clássicas de atuação contra-hegemônica (lobby e protesto) e a optarem pela judicialização de seus pleitos, seja pela defesa individual de seus membros, seja pela implementação de políticas públicas. Aponta que a ausência de ambiente político institucional favorável à discussão sobre as necessidades e queixas dos Novos Movimentos Sociais na agenda do Estado, somada às dificuldades de mobilização, são fatores que os conduzem à judicialização. Conclui que a utilização das estruturas de oportunidades legais pelos Novos Movimentos Sociais denota o reconhecimento do Poder Judiciário como espaço institucional formal em que o diálogo democrático com a sociedade civil e com o Estado pode viabilizar não só a alavancagem de seus frames e repertórios, mas também ensejar a formulação e a proteção de direitos que lhes são inerentes, dentre eles a implementação de políticas públicas contramajoritárias. PALAVRAS-CHAVE: Judicialização de Políticas Públicas. Novos Movimentos Sociais. Direitos Humanos. Direitos Fundamentais Coletivos. Oportunidades Legais. Oportunidades Políticas. ABSTRACT: This paper investigates a trend detected in recent times towards the direct or indirect contribution of the so-called New Social Movements to the exercise of human rights by way of the judicialization of countermajoritarian political-cultural issues through the debate of these issues by the Judicial Branch in the role of political power. It examines and delineates the profile of the New Social Movements, allowing to comprehend the motivations that drive them away, although for a moment, from their traditional strategies of counter-hegemonic maneuvers, such as lobbying and protesting, and that make they choose to judicialize their needs, aspirations or demands, either by means of the individual defense of their members or for the adoption of countermajoritarian public policies. KEYWORDS: Judicialization of Public Policies. New Social Movements. Human Rights. Collective Fundamental Rights. Legal Opportunities. Political Opportunities. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 203 INTRODUÇÃO O presente estudo tem por objetivo analisar uma tendência que vem se verificando na atualidade, consistente na participação, direta ou indireta, dos denominados Novos Movimentos Sociais na implementação de direitos humanos, através da judicialização de questões políticoculturais contramajoritárias, individuais e coletivamente consideradas, com a assunção do enfrentamento de tais questões pelo Poder Judiciário, na qualidade de poder político. Partindo desse escopo, buscar-se-á investigar e compreender não só as características individualizadoras dos “Novos Movimentos Sociais”, como também os motivos e as condições estruturais do Estado (political opportunity structures) que acabam compelindo ou estimulandoos, ainda que momentaneamente, a abandonarem ou mitigarem suas estratégias clássicas de atuação contra-hegemônica – como o lobby e o protesto – e a optarem pela judicialização de suas necessidades ou pretensões, inclusive por meio da implementação de políticas públicas, tanto em relação aos indivíduos que os integram, como no tocante ao grupo coletivamente considerado. Quando os movimentos sociais, notadamente os relativos às minorias, não encontram ambiente político institucional favorável à inserção de suas necessidades e queixas na agenda política do Estado e, somando-se a isso, identificam dificuldade de mobilização para sua ação (falta de recursos materiais e humanos, não atração de sua temática pelo interesse coletivo, etc.), mas, por outro lado, verificam espaços institucionais que lhes franqueiam a adoção de ações legais (legal opportunity structures), acabam se valendo da judicialização como meio de alavancar suas ações e pretensões e de compelir o Estado a implementar, pela via judicial, mudanças que, na arena das disputas políticas institucionalizadas, dificilmente seriam acolhidas e implantadas, por serem contramajoritárias. O Poder Judiciário, nessa mudança de atuação estratégica dos Novos Movimentos Sociais, ganha nova roupagem, que não mais se coaduna com a clássica teoria da tripartição de poderes, passando a atuar como instrumento de aplicação das regras contramajoritárias para a preservação do Estado de Direito Democrático, bem como transformando-se em mais um espaço institucional formal do Estado em que o diálogo democrático com a sociedade civil e com os movimentos sociais torna-se viável, assegurando-se, com isso, a amplitude da governabilidade democrática. 204 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 204-224, jan./mar. 2014 Após a explanação das bases teóricas sobre as quais repousam a estrutura do presente estudo, serão elencados alguns casos emblemáticos recentemente enfrentados pela Jurisdição Constitucional brasileira, exercida pelo Supremo Tribunal Federal, nos quais não só foi descortinado um importante cenário de atuação estratégica para os movimentos sociais em situações de escassez ou inexistência de estruturas de oportunidades políticas, como também restou consolidada a franca assunção, pelo Poder Judiciário, de sua função política contramajoritária, quando em jogo a preservação de direitos e garantias de pessoas ou grupos minoritários, direitos e garantias esses carentes de regulamentação normativa favorável e expressa. 1 OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E A INFLUÊNCIA DA POLITICAL OPPORTUNITY NA DEFINIÇÃO DAS ESTRATÉGIAS DE MOBILIZAÇÃO Ao discorrer sobre as teorias dos movimentos sociais e sua evolução ao longo da História Ocidental, Angela Alonso recorda que a expressão movimentos sociais, na década de 1960, “foi cunhada para designar multidões bradando por mudanças pacíficas”, “desinteressadas do poder do Estado”.3 Essa nova visão lançada sobre a mobilização coletiva, não mais baseada na típica luta entre classes sociais do modelo clássico marxista, em que o emprego da revolução e da violência ganhavam graus distintivos,4 foi paulatinamente adquirindo corpo, alterando o eixo de atenção da figura do Estado para a da sociedade civil. É uma época de ebulição dos movimentos pautada por repertórios culturais e econômicos, de feição nitidamente pós-materialista, “não mais voltadas para as condições de vida, ou para a redistribuição de recursos, mas para a qualidade de vida, e para a afirmação de diversidade de estilos de vivê-la”.5 Nessa transição, as ideias de violência e revolução vão aos poucos cedendo lugar às de persuasão e de ação coletiva, e o elo entre os integrantes do movimento social começa a se corporificar a partir da formação de uma identidade coletiva baseada num interesse comum racionalmente ponderado, seja ele de cunho ético, étnico, de gênero, ambiental ou político. 3 ALONSO, Angela. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço do Debate. São Paulo: Lua Nova, n. 76, 2009. p. 49-86. 4 PICOLOTTO, Everton Lazzaretti. Movimentos Sociais: Abordagens Clássicas e Contemporâneas. Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano I, 2. ed. nov. 2007, p. 156-177. 5 ALONSO, op. cit., p. 51. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 205 O processo de mobilização dos movimentos sociais, em qualquer de suas modalidades, passa a ser fruto de uma escolha estratégica racional. Embora Alberto Melucci identifique até mesmo espaço para sentimentos e emoções na construção da identidade coletiva,6 parece-nos razoável afirmar que as opções e decisões de mobilização são marcadas preponderantemente pela racionalidade, não só quanto às questões estruturais do movimento (recursos humanos, financeiros, etc.), mas sobretudo quanto aos resultados esperados dessa experiência coletiva. Esta também aparenta ser a opinião de McAdam, Tarrow e Tilly, ao rejeitarem que a atividade do movimento social é irracional e ao afirmarem que “tal atividade é uma escolha estratégica entre outras feitas pelos atores quando é a resposta mais apropriada aos seus recursos, oportunidades e restrições”, ou seja, a atividade do movimento social é escolhida como uma alternativa, determinada pela situação, a uma diversidade de outras formas de comportamento, entre as quais ações coletivas não estruturadas, organizações de grupos de interesse e ativismo no interior de partidos políticos e instituições.7 Angela Alonso, por sua vez, esclarece que, sob a ótica da teoria do processo político (TPP), a mobilização dos movimentos sociais “baseia-se num conflito entre partes, uma delas momentaneamente ocupando o Estado, enquanto a outra fala em nome da sociedade”.8 Contudo, essas posições não seriam estanques, mas cambiáveis, razão pela qual a relação do Estado com os movimentos sociais deveria ser vista de modo diverso de como vinha ocorrendo, com novo olhar sobre as fronteiras que separam o Estado da sociedade. Ainda segundo Angela Alonso, a análise deve suplantar as barreiras convencionais que definem Estado e Sociedade como entidades coesas e monolíticas. Nesse contexto, ao invés de definir a equação como Movimentos Sociais versus Estado, “a TPP [Teoria do Processo Político] opõe ‘detentores do poder’ (os membros da polity), que têm controle ou acesso ao governo que rege uma população (incluídos os meios de repressão), e ‘desafiantes’, que visam obter influência sobre o governo e acesso aos recursos controlados pela polity”.9 6 MELUCCI, Alberto. Challenging Codes: Collective Action in the Information Age. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 80-83. 7 MCADAM, Doug; TAROW, Sidney; TILLY, Charles. Para Mapear o Confronto Político. São Paulo: Lua Nova, n. 76, 2009. p. 33. 8 ALONSO, op. cit., p. 56. 9 Ibidem. 206 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 206-224, jan./mar. 2014 Em síntese, os Novos Movimentos Sociais estão agora centrados numa identificação ideológica, e não numa composição homogênea pautada por classes, característica que viabiliza que o recrutamento ocorra nas mais variadas classes sociais.10 A atuação dos Novos Movimentos Sociais, embora tenha o lobby e o protesto como formas tradicionais de atuação, está adstrita, sob nossa ótica, ao Direito e à Lei, não se compadecendo com a violência. Nesse sentido, ao apreciar questão relativa à efetivação da reforma agrária, decidiu o Supremo Tribunal Federal brasileiro que “o respeito à lei e à autoridade da Constituição da República representa condição indispensável e necessária ao exercício da liberdade e à prática responsável da cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da ordem jurídica”, nem mesmo a atuação de movimentos sociais, qualquer que seja o perfil ideológico que ostentem.11 A exata compreensão desses Novos Movimentos Sociais e seus contornos teóricos, na verdade, comportaria uma longa e profunda digressão pelos meandros da Ciência Política, destacadamente sobre as obras e estudos produzidos, entre outros, por John D. McCarthy, Charles Tilly, Sidney Turrow, Doug McAdam, Alain Touraine, Jürgen Habermas, Manuel Castells, Alberto Melucci. Entretanto, não é este o ambiente adequado para essa análise. Aqui, o objetivo é investigar e tentar compreender os motivos e as condições estruturais do Estado que acabam compelindo ou estimulando os Movimentos Sociais, ainda que momentaneamente, a abandonarem ou mitigarem as suas estratégias clássicas de atuação contra-hegemônica (o lobby e o protesto), por uma excepcional escolha: a judicialização de suas necessidades e pretensões, em especial por meio da implementação de políticas públicas. As estratégias de lutas antes focadas nas estruturas de oportunidades políticas (political opportunity structures), como o lobby e o protesto, ganham novas arenas, sobretudo após a década de 1970, muitas delas consubstanciadas em espaços pouco antes explorados pelos movimentos sociais tradicionais. 10 BUECHLER, Steven M. New Social Movement Theories. The Sociological Quarterly, v. 36, n. 3, jun. 1995. p. 453. 11 BRASIL, 2004, p. 07. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 207 É o caso da utilização, como estratégia, das estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures), em especial por meio da judicialização de políticas públicas. Em países como o Brasil, em que há relativa facilidade de acesso às instituições formais do sistema legal do Estado, os movimentos sociais têm a seu dispor a possibilidade de utilizarem a estrutura do Poder Judiciário na intermediação dos conflitos político-culturais, sobretudo por força da carga programática e valorativa da Constituição da República de 1988, ou de apenas provocarem a judicialização por meio do contato institucional permanente com o Ministério Público, a Defensoria Pública ou as Organizações Não Governamentais (ONGs). Assim, diante de algum motivo político ou de ordem material que impeça os movimentos sociais de lograrem êxito em inserir, via lobby ou protesto, as políticas sensíveis às suas causas na agenda do Estado, sempre haverá a possibilidade paralela, direta ou indireta, de judicialização da questão. Prova disso é que muitos movimentos sociais, de modo gradativo, têm se valido desse espaço institucional para manter ativas ou reativar suas bandeiras em ambientes escassos de espaço político de atuação ou quando a pequena representatividade do grupo seja o fator inviabilizador da mobilização, como ocorre em relação às minorias. Esse aproveitamento estratégico da estrutura de oportunidades legais (legal opportunity strcutures), através do litígio judicial, muitas vezes sequer objetiva, em um primeiro momento, a obtenção de decisões judiciais favoráveis às suas queixas. Em alguns casos, até mesmo uma derrota nos tribunais poderá revelar-se útil aos propósitos do movimento social, seja pela publicização de seus frames e repertórios, seja pela inserção da sociedade na discussão política do processo judicial nos momentos que antecedem e sucedem o seu julgamento pela Corte.12 Tal discussão, em muitas hipóteses, pode culminar em decisões judiciais que representem mudanças socioculturais contramajoritárias ou, então, apenas reabrir a agenda política do Estado para o tema debatido perante o Poder Judiciário, algo que seria impensável obter num campo político-institucional desfavorável ao movimento social. 12 ANDERSEN, Ellen Ann. Out of Closets & Into the Courts: Legal Opportunity Structure and Gay Rights Litigation. Michigan: The University of Michigan Press, 2008. p. 216-218. 208 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 208-224, jan./mar. 2014 Essa nova postura vem transformando o Poder Judiciário, especialmente a Jurisdição Constitucional, que não detém competências executivas, em um espaço onde são travadas importantes discussões entre os movimentos sociais e suas forças opositoras, cujos efeitos extrapolam o campo jurídico e materializam o dinâmico embate entre as forças hegemônicas e contra-hegemônicas existentes na sociedade civil e no Estado, as quais, num ambiente democrático, podem periodicamente alternar-se nos polos. Disso igualmente resulta sua importância como instrumento de salvaguarda dessa dinâmica natural do processo político, por permitir “o livre desenvolvimento das forças sociais e políticas”.13 Afinal, consoante ressalta Angela Alonso (pautada em bases teóricas de Tarrow, Tilly e Kriesi), em estruturas de oportunidades políticas favoráveis os “grupos insatisfeitos organizam-se para expressar suas reivindicações na arena pública”.14 Porém, quando em ambiente política e materialmente hostil, meios alternativos de atuação devem ser buscados pelos movimentos sociais, dentre os quais está a judicialização de políticas públicas como ferramenta estratégica viável a esse fim. 2 A JUDICIALIZAÇÃO COMO ATUAÇÃO ESTRATÉGICA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS (LEGAL OPPORTUNITY STRUCTURES VERSUS POLITICAL OPPORTUNITY STRUCTURES) McCann destaca que os estudiosos dos movimentos sociais, pelo menos até recentemente, não se mostravam preocupados em compreender o papel da lei, muito menos os juristas se revelavam interessados pelo estudo dos movimentos sociais.15 Tal quadro, todavia, vem se alterando a ponto de muitos estudiosos reconhecerem a ação legal (ou judicialização, como preferimos) como um instrumento para a mudança social, embora os juristas tenham pouco contribuído para a construção de uma teoria sobre a dinâmica do movimento social.16 13 SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 72. 14 ALONSO, op. cit., 2009, p. 55. 15 MCCANN, Michael. Law and Social Movements: Contemporary Perspectives. Annual Review of Law and Social Science, v. 2, 2006. p. 17-38. 16 Ibidem, p. 18. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 209 McCann reconhece que a ação legal fornece aos ativistas do movimento uma fonte de alavancagem institucional e simbólica contra os opositores.17 Daí a importância do estudo também dessa estratégia de luta dos movimentos sociais. Afinal, alguns movimentos sociais passaram a se valer do litígio judicial como meio de criar uma ponto de acesso institucional formal ao Estado, cujo start gera inexoravelmente consequências para ambos os lados, seja para reconhecer ou negar direitos daquele primeiro, seja para constranger ou chancelar atos ou omissões deste último.18 A imprevisibilidade desse acesso institucional formal, por intermédio do Poder Judiciário, passa a servir como meio de pressão para, no mínimo, o estabelecimento de canais de diálogo e divulgação das queixas e reivindicações que constam da agenda do movimento social e que, por ausência de um ambiente político favorável, estão alijadas da agenda estatal. Em suma, o Poder Judiciário, notadamente por meio da Jurisdição Constitucional, passa a também desempenhar um relevante papel político, algo bastante delicado para os movimentos sociais, pois, do mesmo modo que os valores pessoais dos juízes influenciarão ideologicamente o resultado do julgado, o eventual alinhamento da convicção desses julgadores com o movimento provavelmente representará mudanças na opinião pública e na da própria elite política do país.19 Muito interessante é a questão relativa à identificação das condições e do momento em que os movimentos sociais decidem utilizar das estruturas de oportunidades legais, em detrimento das estruturas de oportunidades políticas (protesto e lobby), uma vez que os últimos instrumentos são bastante importantes e marcantes em sua atuação tradicional. Hilson, em estudo publicado no Journal of European Public Policy, esquadrinhou o papel da legal opportunity para os Novos Movimentos Sociais.20 De acordo com Hilson, a estrutura de oportunidades políticas disponível aos movimentos sociais influencia diretamente na opção 17 MCCANN, op. cit., p. 29. 18 Ibidem, p. 29-30. 19 ANDERSEN, op. cit., p. 209. 20 HILSON, Chris. New Social Movements: the Role of Legal Opportunity. Journal of European Public Policy. v. 9, Iss. 2, p. 238-255, abr. 2002. DOI: 10.1080/13501760110120246. Acesso em: 13 jan. 2012. 210 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 210-224, jan./mar. 2014 pelo uso das oportunidades legais (judicialização ou litígio judicial), em detrimento dos modelos estratégicos tradicionais de luta (protesto e o lobby). A falta de oportunidade política (PO) pode “influenciar” a adoção do litígio como uma estratégia, ao invés do lobby, assim como a escolha do protesto como uma estratégia pode ser “influenciada” pela escassez de oportunidades política e legal.21 Entretanto, a escolha da estratégia (lobby, protesto ou litígio judicial), ainda segundo Hilson, não ocorre apenas a partir da análise do quanto é ou não favorável a oportunidade política ou a oportunidade legal, já que outros fatores também a influenciam, como a estrutura do movimento social, a identidade política, seus ideais, valores e recursos disponíveis.22 Além disso, mesmo numa estrutura de oportunidades políticas favoráveis – como o fácil acesso à estrutura institucional formal do Estado por meio de partidos políticos –, é possível que não haja receptividade política às reivindicações do movimento social, por se revelarem contramajoritárias, fato esse que poderá abrir flanco à utilização do protesto ou do litígio, a depender não só das oportunidades legais disponíveis, mas novamente daqueles fatores acima elencados. Em resumo, a opção pelo litígio judicial, como estratégia de atuação dos movimentos sociais, não é uma decisão simples. Ela exige muita maturidade e sagacidade dos atores envolvidos, sobretudo pelos riscos de esvaziamento que uma decisão judicial favorável ou desfavorável poderá engendrar em termos de mobilização futura.23 De qualquer modo, o ponto pacífico a ser afirmado é que os movimentos sociais, cada vez mais, têm reconhecido no Poder Judiciário seu papel de ator político24 na estrutura formal institucional do Estado, e disso têm se aproveitado, embora ainda com certa reticência, para, a partir das decisões judiciais, influenciar a tomada de decisões políticas pelos demais Poderes Legislativo e Executivo, bem como para implementar mudanças culturais na esfera privada da sociedade civil. 21 HILSON, op. cit., p. 239. 22 Ibidem, p. 240-242. 23 ANDERSEN, po. cit., p. 216-218. 24 WILSON, Bruce; CORDERO, Juan Carlos Rodríguez. Legal Opportunity Structures and Social Movements. In: Comparative Political Studies. v. 39, n. 03. abr. 2006, p. 325-351. Disponível em: <http:// cps.sagepub.com>. Acesso em: 02 set. 2009. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 211 O jurista Streck, ao reconhecer a relação existente entre Direito e Política, ressalta a importância da judicialização como forma de compelir o Estado ao cumprimento da Constituição, qualificando essa atuação como uma modalidade de “luta política”. Sendo a Constituição o elo que liga a Política ao Direito, o grau de dirigismo e da força normativa da Constituição “dependerá não somente, mas também, da atuação da sociedade civil, instando as instâncias judiciárias ao cumprimento da Constituição, mediante o uso dos diversos mecanismos institucionais (ações constitucionais, controle difuso e concentrado de constitucionalidade)”, isto também implicando em lutas políticas, bastando para tanto ver “o considerável número de ações constitucionais intentadas por partidos políticos”.25 Como os Novos Movimentos Sociais possuem reivindicações de cunho pós-materialista, voltadas para a mudança cultural da sociedade e não apenas de suas leis – reconhecimento de identidades e estilos de vida, como os movimentos ambientalistas e os direitos dos homossexuais –, Angela Alonso, valendo-se de premissas habermasianas, acentua que eles passam a se caracterizar como “formas de resistência à colonização do mundo da vida, reações à padronização e à racionalização das interações sociais e em favor da manutenção ou expansão de estruturas comunicativas, demandando qualidade de vida, equidade, realização pessoal, participação, direitos humanos”.26 Em síntese, como afirmado anteriormente, as estratégias de lutas, antes focadas nas estruturas de oportunidades políticas (political opportunity structures), ganham, sobretudo após a década de 1970, novos palcos ou arenas, muitos deles consubstanciados em espaços pouco antes explorados pelos movimentos sociais tradicionais, como se verificou com a utilização das estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures) como estratégia de atuação e ação. Tal postura transforma os tribunais, que não detêm competências executivas, em um espaço onde serão travadas importantes discussões entre os movimentos sociais e suas forças políticas opositoras, que extrapolam o campo jurídico e no qual serão buscadas, muitas vezes, a obtenção de decisões que representam mudanças socioculturais contramajoritárias, algo impensável de ser atingido num campo meramente político-institucional desfavorável. 25 STRECK, Lênio Luiz. Teoria da Constituição e Jurisdição Constitucional. Caderno de Direito Constitucional: Módulo V. Porto Alegre: EMAGIS, 2006. p. 40, grifo do autor. 26 ALONSO, op. cit., 2009. p. 62. 212 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 212-224, jan./mar. 2014 Esse quadro passa a exigir dos Novos Movimentos Sociais a atualização das estratégias até então utilizadas para a consecução das mudanças por eles pretendidas, já que o lobby e o protesto, como formas de expressão das estruturas de oportunidades políticas, não são mais as únicas ferramentas viáveis para a busca das mudanças, passando a fazer parte de sua estratégia, também, as estruturas de oportunidade legais. 3 O PODER JUDICIÁRIO E SEU PAPEL NAS MUDANÇAS POLÍTICO-CULTURAIS CONTRAMAJORITÁRIAS COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A utilização das estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures), principalmente através da judicialização de políticas públicas patrocinadas direta ou indiretamente pelos movimentos sociais, de um lado, politiza a justiça e, de outro lado, judicializa a política. O papel político do Poder Judiciário, especialmente da Jurisdição Constitucional, vem ganhando destaque no cenário do Estado de Direito Democrático, sobretudo quando sua atuação implica diretamente em intervenção na formulação ou implementação de políticas públicas, em especial contramajoritárias. Política pública é programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados (processo eleitoral, de planejamento, de governo, orçamentário, legislativo, administrativo e judicial), “visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”.27 O Supremo Tribunal Federal fixou o entendimento no sentido de que é função institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas públicas quando os órgãos estatais competentes, em razão do descumprimento dos encargos político-jurídicos de sua responsabilidade, vierem a comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais ou coletivos impregnados de estatura constitucional, mesmo que derivados de cláusulas de conteúdo programático.28 27 BUCCI, Maria Paula Dallari. O Conceito de Política Pública em Direito. In.: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 39. 28 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário – AgRgRE n. 367.432PR. Relator: Ministro Eros Grau, Segunda Turma, 20 de abril de 2010. Brasília, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 86, p. 83, 14 maio 2010. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 213 É cada vez mais notório que o Poder Judiciário, portanto, tem crescentemente participado do processo político democrático do país, não apenas no bojo de suas manifestações nos julgamentos das ações e recursos judiciais, mas destacadamente pela emissão de opinião sobre os mais variados temas públicos, mesmo quando ainda não judicializados. Esse papel político tem sido denominado como ativismo judicial que, embora criticado, tem gerado a produção de inúmeras decisões políticas de relevo para o país. Streck reconhece e ressalta a importância e legitimidade da Jurisdição Constitucional na aplicação das regras contramajoritárias para a preservação do Estado de Direito Democrático, destacando a sua proeminência nas atuais relações de poder do Estado, já que não mais limitado à clássica função de checks and balances, mas segundo “uma atuação que leve em conta a perspectiva de que os valores constitucionais têm precedência mesmo contra textos legislativos produzidos por maiorias eventuais”.29 Ainda segundo Streck, “a jurisdição constitucional é igualmente uma invenção destinada a dar eficácia a los frenos anclados en la Constituición”, porquanto “de nada adiantaria a existência de regras contramajoritárias se não houvesse mecanismos para fazer valê-los”.30 E o mais interessante disso tudo é que, ao assumirem esta nova veste, numa transição do Estado Legislativo para o Estado Constitucional de Direito,31 “os tribunais ampliam o leque de atores que podem influenciar a implementação de políticas públicas, mesmo depois de elas serem aprovadas por amplas maiorias legislativas”.32 A abertura política dos Tribunais transforma-os em mais um espaço institucional formal do Estado em que o diálogo democrático com a sociedade civil e com os movimentos sociais torna-se viável, assegurando-se, com isso, a governabilidade democrática. 29 STRECK, op. cit., p. 45. 30 STRECK, op. cit.,p. 43-44. 31 VÁZQUEZ, Rodolfo. Justicia Constitucional y Democracia: la independencia judicial y el argumento contramayoritario. In: CARBONELL, Miguel; JARAMILLO, Leonardo García. El Canon Neoconstitucional. Madrid: Trotta, 2010. p. 381. 32 TAYLOR, Matthew MacLeod. O Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, ano 50, n. 2, 2007. p. 234. 214 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 214-224, jan./mar. 2014 Com essa abertura, o Poder Judiciário, antes instituição eminentemente técnico-jurídica, pluraliza-se política e culturalmente e, por conseguinte, legitima-se para o debate democrático, em especial quando este envolver as difíceis escolhas contramajoritárias. O cientista político Matthew MacLeod Taylor, estudioso do papel do Poder Judiciário na formulação de políticas públicas, destaca em um de seus ensaios que a atuação política dos tribunais não se limita à intervenção judicial de políticas públicas depois de formuladas pelo Executivo ou Legislativo. Em verdade, essa intervenção (“o timing da intervenção”, em suas palavras) pode ocorrer antes mesmo da existência de uma determinada política pública, porquanto “os integrantes do Judiciário brasileiro têm capacidade de influenciar a discussão das políticas públicas antes de elas serem aprovadas, sinalizando suas preferências e as fronteiras que as mudanças provocadas por essas políticas podem atingir”.33 A judicialização de políticas públicas pelos movimentos sociais geralmente ocorre em situações em que são verificadas estruturas de oportunidades legais favoráveis em contraposição às estruturas de oportunidades políticas escassas ou inexistentes. Assim, quando o Poder Judiciário abre-se como espaço público do debate democrático, os movimentos sociais passam a dispor de mais um instrumento de reverberação de seus frames e repertórios, cuja importância ganha realce em momentos de ostracismo de suas queixas e reivindicações na agenda política estatal. Com isso, o acolhimento de seu pleito ou pretensão poderá representar o clímax de sua atuação estratégica, embora a simples abertura de um canal de diálogo direto com a sociedade e com o aparato formal do Estado já terá representado uma importante conquista. Esse fenômeno somente é possível de ser verificado, como já pontuado, numa sociedade pautada por valores democráticos, dentre os quais está a compreensão de que se vive numa sociedade aberta de intérpretes da Constituição e, por isso, não é possível estabelecer, numerus clausus, os legítimos intérpretes da Constituição, havendo necessidade de se admitir, nesse processo, a mais ampla participação social. Afinal, “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos”.34 33 VÁZQUEZ, op. cit., p . 241. 34 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 13. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 215 Nesse contexto, um emblemático exemplo de legítimo exercício da função contramajoritária do Poder Judiciário, asseguradora de direitos e garantias a grupos minoritários frente à injustificada omissão estatal, foi o julgamento conjunto proferido em 5 de maio de 2011 pelo Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte Jurisdicional do Brasil, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 132-RJ e da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI n. 4.277-DF. No caso em tela, estava em julgamento o direito dos casais homossexuais em terem reconhecido o direito à pactuação formal da união estável, tal qual já era assegurado aos casais heterossexuais, mesmo inexistindo norma legal expressa disciplinando referida questão em relação aos casais homossexuais. Note-se que esse direito, bem como outros decorrentes da união civil entre homossexuais, não lograva êxito em regular tramitação legislativa perante o Congresso Nacional brasileiro. Embora existissem inúmeros projetos legislativos voltados para essa temática, a verdade é que eles não encontravam ressonância no campo majoritário da política nacional, notadamente conservadora. Na oportunidade, ficou assentado que o Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de guardião da Constituição por força do art. 102 da Constituição Federal, poderia desempenhar função contramajoritária, “em ordem a dispensar efetiva proteção às minorias contra eventuais excessos (ou omissões) da maioria”, isto porque “ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, à autoridade hierárquico-normativa e aos princípios superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado”.35 O julgado em questão sepultou, em termos jurisdicionais, qualquer interpretação preconceituosa ou discriminatória do disposto no art. 1.723 do Código Civil de 2002, para dele excluir qualquer significado que implicasse em inviabilizar o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, como família, na mesma extensão em que é reconhecida a união estável heteroafetiva. É verdade que já existiam manifestações judiciais de outras instâncias jurisdicionais por todo o Brasil, até mesmo mais antigas, na 35 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI n. 4.277/DF. Relator: Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, Brasília, 05 de maio de 2011, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 198, p. 20-21, 13 out. 2011c. 216 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 216-224, jan./mar. 2014 mesma linha do que restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Entretanto, é inegável a carga simbólica e o peso dessa decisão emanada da mais alta Corte do país em termos culturais e políticos, sem contar o alcance social dos efeitos desse julgado, realçado pela ampla divulgação do referido julgamento pelos meios de comunicação. A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal representou, ainda que implicitamente, uma importante vitória para os movimentos sociais voltados para o reconhecimento dos direitos dos homossexuais, embora não tenham sido eles os autores diretos da referida provocação judicial, inclusive por ausência de legitimidade ativa constitucional para tanto (Lei 9.882, de 3-12-1999, art. 2º, I; CF/88, art. 103), sendo inegável, porém, sua participação e apoio à demanda judicial. O julgado em destaque possui um valor simbólico muito maior do que se pode, a princípio, aferir. Afinal, o Supremo Tribunal Federal, com essa decisão, fortaleceu as estruturas de oportunidades legais disponíveis às minorias e aos grupos vulneráveis, sejam eles corporificados ou não em movimentos sociais, mesmo sem sua provocação direta, porquanto expressamente consignou, com grande vigor, sua função jurídico-política contramajoritária. A partir dessa repercutida auto-compreensão de sua função estatal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, o STF reforçou a necessidade de também reconhecê-la como poder político do Estado, quando esteja em jogo o eventual abuso da maioria ou a injustificada omissão estatal na formulação e implementação de ações ou medidas contramajoritárias. A compreensão do alcance dessa afirmação é deveras necessária, pois dificilmente movimentos sociais que representem minorias ou grupos vulneráveis conseguem introduzir na pauta do Congresso Nacional ou na agenda do Poder Executivo suas mais importantes demandas, justamente pelo seu déficit de representatividade, sobretudo em termos eleitorais. Afinal, uma concepção majoritária de democracia pode ser desvirtuada facilmente para uma ditadura da maioria. Conforme Eduardo Appio, a regra da maioria, nas sociedades pós-modernas, imersas em um universo marcado pela tecnologia da informação ou pela comunicação social, pode facilmente ser convertida em ditadura das maiorias. As minorias, de uma maneira geral, “por ausência de força política suficiente em sua representação no Congresso, seriam reféns permanentes da intolerância das massas”. Numa sociedade em que Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 217 se “aspira o pluralismo como um dos seus principais objetivos históricos, a regra da maioria deve ser revista, o que significa dizer que o Judiciário tem a missão de preservar um espaço intangível da individualidade humana”.36 Relativamente ao direito das minorias, a igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias, ou seja, o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença.37 Não se admite que a maioria, mediante seus representantes eleitos, possa “democraticamente” decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual nutre alguma eventual aversão. Cabe prioritariamente ao Poder Judiciário, e não ao Legislativo, exercer um papel contramajoritário e protetivo a respeito, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre objetivando a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias ou das maiorias. Ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece nessa hipótese, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.38 Conforme expressado em voto pelo Min. Celso de Mello quando do julgamento do AgRgRE 477.554/MG, é assegurado às minorias, em sede jurisdicional, “a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os direitos fundamentais que a todos, sem distinção, são assegurados, pois ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República”.39 Em síntese, “constitui princípio básico de hermenêutica relativo aos direitos fundamentais que, onde a Constituição não limita, não pode a norma infraconstitucional limitar”.40 36 APPIO, Eduardo. Direito das Minorias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 41. 37 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial – REsp n. 1.183.378-RS. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, Brasília, 25 de outubro de 2011. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 980, 1o fev. 2012a. 38 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, op. cit. 39 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário – AgRgRE n. 477.554MG. Relator: Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, Brasília, 16 de agosto de 2011, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 164, p. 55, 25 de ago. 2011a. 40 REMEDIO, José Antonio. Mandado de segurança individual e coletivo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 350. 218 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 218-224, jan./mar. 2014 Por outro lado, também é inegável que decisões judiciais como a proferida pelo Supremo Tribunal Federal acabam por expor as feridas de um grande contraste entre os textos normativos e os valores albergados pela sociedade. E isso é mais um ponto a ser sopesado pelos Novos Movimentos Sociais na utilização das estruturas de oportunidades legais num contexto político desfavorável. Nesses casos, os tribunais acabam, muitas vezes, compelidos à transposição das raias de suas funções típicas – dentre elas, a de expungir do seio social as normas jurídicas ilegais ou inconstitucionais – para adotar uma postura próxima ao do legislador positivo, como que num apelo ao legislador ordinário para que proceda às mudanças necessárias à adequação dos textos legais à realidade social em mutação. O recado, portanto, que emana do julgamento das ADPF n. 132-RJ e ADI n. 4.277-DF, é o de que também é possível, pela atuação dos Novos Movimentos Sociais, o estabelecimento, pela via judicial, sobretudo em sede de controle concentrado de constitucionalidade, de mudanças de valores da sociedade a médio e longo prazos. É preciso destacar, porém, que embora existam no Brasil estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures) relativamente favoráveis aos Novos Movimentos Sociais, especialmente pela possibilidade de contato institucional com diversos órgãos públicos, entre os quais o Ministério Público e a Defensoria Pública, infelizmente seu acesso direto à Corte Suprema (STF), pelos movimentos sociais, não é uma realidade, já que somente um limitado e taxativo rol de legitimados ativos detêm essa possibilidade (Constituição Federal, art. 103). Em suma, o acesso direto à Suprema Corte brasileira, pelos movimentos sociais, para o exercício do controle concentrado de constitucionalidade, não está assegurado por ausência do requisito da legitimidade processual (standard requirement). Por isso, esse acesso dependerá sempre, - ao menos até que sobrevenha alteração via emenda constitucional ampliativa -, das relações institucionais das minorias, dos grupos vulneráveis e dos movimentos sociais, com outras instituições estatais, como o Ministério Público e a Defensoria Pública ou, ainda, das estruturas de oportunidades políticas (political opportunity structures) disponíveis, como o apoio, entre outros, de partidos políticos, confederações sindicais e governadores de Estado, dentre outros. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 219 Embora destituídos de legitimidade ativa para o exercício do controle concentrado de constitucionalidade, é possível, por meio desse contato institucional, que as minorias ou os Novos Movimentos Sociais acabem por conseguir espaço para manifestação perante a Suprema Corte através de outros mecanismos, como a participação em audiências públicas, o ingresso na ação como amicus curiae ou o fornecimento direto de informações relevantes aos julgadores, através de memoriais escritos. Foi o que se constatou, por exemplo, em outros julgamentos proferidos recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, que contaram com a participação de movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs) na condição de debatedores em audiência pública ou, ainda, admitidos como amicus curiae para a realização de sustentação oral perante o Plenário da Corte. Entre tais julgamentos podem ser citados a ADPF n. 54-DF, cujo objeto era a análise da constitucionalidade da interrupção da gravidez de feto anencéfalo como preceitos da dignidade da pessoa humana e dos direitos de saúde, sexuais e reprodutivos das mulheres, e a ADPF n. 186-DF, que versava sobre a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa de reserva de vagas em Universidades Públicas - política de cotas étnico-raciais. Além dessa participação, os movimentos sociais diretamente interessados no julgamento dessas ações permaneceram constantemente no foco da mídia nacional enquanto a apreciação da causa pelo Supremo Tribunal Federal não ocorria. Com isso, independentemente do resultado que se obteria com o julgamento, certo é que a discussão política que interessava aos movimentos sociais sobre os temas contramajoritários que seriam enfrentados pela Suprema Corte já haviam se alastrado por todo o país, pluralizando o debate. Todo esse percurso, todavia, se mal planejado ou mal sucedido, pode se tornar uma via crucis e um retorno às modalidades tradicionais de manifestação dos movimentos sociais típicos. Afinal, se os novos movimentos não tiverem relativo acesso às instâncias formais do Estado por meio do lobby ou do protesto, dificilmente lograrão êxito na assunção de seus pleitos diretamente perante o STF por iniciativa de algum dos legitimados ativos previstos no art. 103 da Constituição Federal de 1988. Por outro lado, como bem apontado por Andersen, o aumento das oportunidades legais não se traduz automaticamente em litígios exitosos, 220 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 220-224, jan./mar. 2014 já que “mudanças na estrutura de oportunidades legais propiciam oportunidades de ação, não a ação propriamente dita”.41 Esse êxito, mesmo diante de precedentes judiciais, vai sempre depender da “habilidade dos atores do movimento social em reconhecer e responder às oportunidades apresentadas”,42 sendo que uma das facetas dessa habilidade é a de saber tirar proveito político desses julgados de modo não a potencializar o número de opositores, mas de neutralizá-los e, dessa forma, incrementar o apoio da sociedade como um todo, inclusive da elite política do país.43 Os motivos dessa ponderação decorrem novamente das observações feitas por Andersen, sobre os efeitos que as decisões judiciais, em caso de vitória ou derrota, podem provocar sobre o movimento social. Ou seja, “as vitórias judiciais podem, às vezes, reverter em perdas políticas, enquanto que derrotas judiciais podem ser usadas para avançar objetivos políticos”.44 É cediço que o sistema legal constrange os atores e eles reagem a isso, seja politicamente, seja pela mudança da própria estrutura de oportunidades legais. Logo, os litígios judiciais promovidos por minorias ou pelos Novos Movimentos Sociais – ou em prol deles – são realmente de consequências imprevisíveis, disso decorrendo a necessidade de a utilização dessa estratégia de atuação ser devidamente sopesada, sob pena de grave risco não só à perpetuação do grupo ou do movimento social como ação coletiva, como também de acabar sendo literalmente atropelado por seus próprios atos impensados. De qualquer modo, essa observação denota como o Poder Judiciário adquiriu importância política na eleição dos rumos dos Novos Movimentos Sociais. Até bem pouco tempo atrás, ele era visto apenas como um órgão conservador e refratário às mudanças contramajoritárias. Atualmente, o Poder Judiciário, embora ainda não tenha se desgarrado totalmente dessa pecha por parte dos movimentos sociais, tem se revelado uma das mais importantes facetas das estruturas de oportunidades legais do Estado, por servir, em muitos casos, como um espaço aberto para o diálogo institucional entre a sociedade civil, os 41 ANDERSEN, op. cit., p. 215. 42 Ibidem. 43 DELLA PORTA, Donatella; DIANI, Mario. Social Movement: an Introduction. 2. ed. Oxford: Blackwell, 2006. p. 137. 44 ANDERSEN, op. cit., p. 217. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 221 movimentos sociais e o Estado, sobretudo em momentos de escassez ou inexistência de estruturas de oportunidades políticas. 4 CONCLUSÃO Os movimentos sociais, tradicionalmente, tem-se utilizado da estratégia da political opportunity structures, como o lobby e o protesto, na busca de realização de suas queixas, necessidades, pretensões ou reivindicações. Os Novos Movimentos Sociais, por sua vez, sem prejuízo da political opportunity structures, tem se valido, cada vez mais, direta ou indiretamente, da estratégia das estruturas de oportunidades legais (legal opportunity structures) na busca de realização de seus pleitos, especialmente mediante a judicialização de suas pretensões. Esse modo de atuação revela-se como uma nova estratégia à disposição dos movimentos sociais, a par dos métodos clássicos de atuação contra-hegemônica, que são o lobby e o protesto, diante de situações momentâneas de escassez ou insuficiência de estruturas de oportunidades políticas (political opportunity structures) para a alavancagem de seus frames e repertórios perante a agenda estatal. A utilização das estruturas de oportunidades legais pelos Novos Movimentos Sociais denota o reconhecimento do Poder Judiciário como poder político, ou seja, um espaço institucional formal em que o diálogo democrático com a sociedade civil e com o Estado ganha corpo e viabilidade, sobretudo em termos de formulação ou implementação de medidas ou ações contramajoritárias. Afinal, é cada vez mais corrente a participação do Poder Judiciário no processo político democrático do país, inclusive quanto a temas de grande relevo nacional ainda não judicializados, o que o transforma num fértil ambiente para a propagação e pluralização do debate político. É notório como determinadas ações judiciais ganham espaço nas mídias de massa, principalmente quando dão entrada perante a Jurisdição Constitucional, potencializando horizontalmente o alcance do referido debate. No Brasil, a relativa facilidade de acesso às estruturas de oportunidades legais acaba por estimular, de modo gradativo, que os Novos Movimentos Sociais passem a se utilizar do Poder Judiciário para a pluralização e intermediação do conflito político-cultural contrahegemônico, mediante a judicialização dos temas que lhe são mais caros e de difícil inserção na agenda política do Estado. Essa judicialização, no 222 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 222-224, jan./mar. 2014 entanto, nem sempre se dá por atuação direta dos movimentos sociais, sendo também possível e viável que ocorra mediante provocação ou interposição de terceiros, entre os quais, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as Organizações Não Governamentais (ONGs) e os Partidos Políticos. Destarte, pode-se afirmar que os recentes julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54-DF, 132-RJ e 186-DF, bem como da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277-DF, que contaram com efetiva participação dos Novos Movimentos Sociais dentro e fora dos processos judiciais, estão a demonstrar, inclusive pelos resultados contramajoritários desses julgados, uma nova faceta dos embates democráticos travados pelas forças hegemônicas e contra-hegemônicas: desta vez, estão pautados por repertórios culturais e econômicos, de feição nitidamente pós-materialista, e o cenário de seu desenvolvimento ganhou nova arena, o Poder Judiciário. REFERÊNCIAS ANDERSEN, Ellen Ann. Out of Closets & Into the Courts: Legal Opportunity Structure and Gay Rights Litigation. Michigan: The University of Michigan Press, 2008. ALONSO, Angela. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço do Debate. São Paulo: Lua Nova, n. 76, 2009. APPIO, Eduardo. Direito das Minorias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial – REsp n. 1.183.378-RS. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, Brasília, 25 de outubro de 2011. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 980, 1o fev. 2012a. ______. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário – AgRgRE n. 367.432-PR. Relator: Ministro Eros Grau, Segunda Turma, 20 de abril de 2010. Brasília, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 86, p. 83, 14 maio 2010. ______. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário – AgRgRE n. 477.554-MG. Relator: Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, Brasília, 16 de agosto de 2011, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 164, p. 55, 25 de ago. 2011a. ______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n. 54/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, Brasília, 12 de abril de 2012. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 77, p. 44, 16 abr. 2012b. Luciano Pereira Vieira José Antonio Remedio 223 ______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 186/DF. Relator: Ministro Ricardo Levandowski, Tribunal Pleno, Brasília, 26 de abril de 2012. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 86, p. 19-20, 03 mai. 2012c. ______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 132/RJ, Relator: Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, Brasília, 05 de maio de 2011. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 198, p. 21-22, 13 out. 2011b. ______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI n. 4.277/DF. Relator: Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, Brasília, 05 de maio de 2011, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 198, p. 20-21, 13 out. 2011c. ______. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade – MC-ADI n. 2.213-DF. Relator: Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, Brasília, 04 de abril de 2002, Diário da Justiça, Brasília, DF, n. 77, p. 07, 23 abr. 2004. BUCCI, Maria Paula Dallari. O Conceito de Política Pública em Direito. In.: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. BUECHLER, Steven M. New Social Movement Theories. The Sociological Quarterly, v. 36, n. 3, jun. 1995. CARBONELL, Miguel; JARAMILLO, Leonardo García. El Canon Neoconstitucional. Madrid: Trotta, 2010. DELLA PORTA, Donatella; DIANI, Mario. Social Movement: an Introduction. 2. ed. Oxford: Blackwell, 2006. DIANI, Mario. Networks and Social Movements: a Research Programme. In: DIANI, Mario; MCADAM, Doug. Social Movements and Networks: Relational Approaches to Collective Action. New York, Oxford University Press, 2003. HÄBERLE, Peter. 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AS COOPERATIVAS DE TRABALHO NAS LICITAÇÕES PÚBLICAS – UMA NECESSÁRIA MUDANÇA DE PARADIGMA COOPERATIVES WORKING IN PUBLIC BIDDINGS – A NECESSARY PARADIGM SHIFT Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão Procurador Federal SUMÁRIO: Introdução; 1 Necessidade de análise do instituto do termo de ajustamento de conduta; 2 A possibilidade cooperativas de participação em licitações e o combate às falsas cooperativas; 3 A alteração do contexto normativo gera a retirada de eficácia da sentença determinativa; 4 Conclusão; Referências. 110 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 110-132, jan./mar. 2014 RESUMO: O presente estudo visa analisar a superação do termo de conciliação firmado na justiça do trabalho que proibiu a participação de cooperativas de trabalho em licitações no âmbito da Administração Pública Federal, considerando o atual quadro normativo. O foco da pesquisa foi buscar a máxima eficácia da nova legislação, evitando a interpretação retrospectiva. Foi fixado que a não há violação à coisa julgada pela aplicação da nova legislação, levando em consideração que se trata de sentença determinativa, sujeita à cláusula rebus sic standibus. PALAVRAS-CHAVE: Cooperativa. Termo de Ajustamento de Conduta. Lei n. 12.690/2012. Interpretação Retrospectiva. Sentença Determinativa. ABSTRACT: The purpose of this study is to analyze the overcoming of the Labor´s Court conciliation agreement term that had prohibited the cooperatives’ participation in (Public) bids. It was considered the current regulatory framework in the context of the federal administration. The focus of the research is to apply the new legislation maximum effectiveness by avoiding the retrospective interpretation. It was concluded that there is no res judicata violation by applying the new legislation, and considering that this is a determinate sentence, it is subjected to the rebus sic standibus clause. KEYWORDS: Cooperative. Settlement Class. Law no. 12.690/2012. Retrospective Interpretation. Determinate Sentence. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 111 INTRODUÇÃO O presente estudo visa analisar a questão relativa à participação de cooperativas de trabalho em Licitações no âmbito da Administração Pública Federal, considerando o novo quadro normativo inaugurado com a edição da Lei nº 12.349, de 15 de dezembro de 2010 que alterou a Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993, e da Lei nº 12.690, de 19 de julho de 2012, passando a vedar qualquer forma de restrição em relação às referidas associações. O ponto central da discussão diz respeito à superação das restrições constantes no Termo de Conciliação Judicial homologado pela Justiça do Trabalho nos autos da ação civil pública nº 01082-2002-02010-00-0, firmado entre o Ministério Público do Trabalho e a União, onde ficou acordado que a Administração Pública Federal abster-se-ia de “contratar trabalhadores, por meio de cooperativas de mão-de-obra, para a prestação de serviços ligados às suas atividades-fim ou meio, quando o labor, por sua própria natureza, demandar execução em estado de subordinação, quer em relação ao tomador, ou em relação ao fornecedor dos serviços, constituindo elemento essencial ao desenvolvimento e à prestação dos serviços terceirizados”. Para enfrentar tão complexa questão será necessário superar os seguintes pontos: (i) a natureza jurídica do termo de conciliação homologado pela Justiça do Trabalho nos autos da ação civil pública nº 01082-2002-020-10-00-0; (ii) a manutenção das restrições trazidas pelo termo de conciliação com as Leis n.º 12.690/2012 e 12.349/2010; (iii) a coisa julgada formada no âmbito da demanda coletiva trabalhista em decorrência da homologação por sentença do termo de conciliação. 1 NECESSIDADE DE ANÁLISE DO INSTITUTO DO TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA Entendemos justificada a insegurança causada no espírito do Administrador diante da sucessão de atos estatais divergentes sobre um mesmo tema, principalmente levando-se em consideração uma provável contradição entre atos normativos federais posteriores ao termo de Conciliação Judicial firmado em sede de ação civil pública de âmbito nacional. O Termo de Conciliação foi homologado nos autos da Ação Civil Pública proposta perante a 20ª Vara do Trabalho de Brasília (Processo 01082-2002-020-10-00-00) movida pelo Ministério Público do 112 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 112-132, jan./mar. 2014 Trabalho, depois de constatado que algumas cooperativas só tinham sido criadas para burlar a legislação trabalhista. O mencionado Termo de Conciliação contem os seguintes compromissos: Cláusula Primeira – A UNIÃO abster-se-á de contratar trabalhadores, por meio de cooperativas de mão-de-obra, para a apresentação de serviços ligados às suas atividades-fim ou meio, quando o labor, por sua própria natureza, demandar execução em estado de subordinação, quer em relação ao tomador, ou em relação ao fornecedor dos serviços, constituindo elemento essencial ao desenvolvimento e à prestação dos serviços terceirizados, sendo eles: a) Serviços de Limpeza; b) Serviços de Conservação; c) Serviços de segurança, de vigilância e de portaria; d) Serviços de recepção; e) Serviços de copeiragem; f) Serviços de reprografia; g) Serviços de telefonia; h) Serviços de manutenção de prédios, de equipamentos, de veículos e de instalações; i) Serviços de secretariado e secretariado executivo; j) Serviços de auxiliar de escritório; k) Serviços de auxiliar administrativo; l) Serviços de office boy (continuo); m) Serviços de digitação; n) Serviços de assessoria de imprensa e de relações públicas; o) Serviços de motoristas, no caso de os veículos serem fornecidos pelo próprio órgão licitante; p) Serviços de ascensorista; q) Serviços de enfermagem; e r) Serviços de agentes comunitário de saúde. Parágrafo Primeiro – O disposto nesta Cláusula não autoriza outras formas de terceirização sem previsão legal. Parágrafo Segundo – As partes podem, a qualquer momento, mediante comunicação e acordos prévios, ampliar o rol de serviços elencados no Caput. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 113 Cláusula Segunda - Considera-se cooperativa de mão-de-obra, aquela associação cuja atividade precípua seja a mera intermediação individual de trabalhadores de uma ou várias profissões (inexistindo assim vínculo de solidariedade entre seus associados), que não detenham qualquer meio de produção, e cujos serviços sejam prestados a terceiros, de forma individual (e não coletiva), pelos seus associados. Cláusula Terceira - A UNIÃO obriga-se a estabelecer regras claras nos editais de licitação, a fim de esclarecer a natureza dos serviços licitados, determinando, por conseguinte, se os mesmos podem ser prestados por empresas prestadoras de serviços (trabalhadores subordinados), cooperativas de trabalho, trabalhadores autônomos, avulsos ou eventuais; Parágrafo Primeiro - É lícita a contratação de genuínas sociedades cooperativas desde que os serviços licitados não estejam incluídos no rol inserido nas alíneas “a” a “r” da Cláusula Primeira e sejam prestados em caráter coletivo e com absoluta autonomia dos cooperados, seja em relação às cooperativas, seja em relação ao tomador dos serviços, devendo ser juntada, na fase de habilitação, listagem contendo o nome de todos os associados. Esclarecem as partes que somente os serviços podem ser terceirizados, restando absolutamente vedado o fornecimento (intermediação de mão-de-obra) de trabalhadores a órgãos públicos por cooperativas de qualquer natureza. Apesar de ter sido nominado de Termo de Conciliação Judicial, o instrumento firmado nos autos da ação civil pública em tela não importou numa transação judicial, sendo necessário lançar algumas considerações a respeito dos acordos firmados em sede de tutela coletiva de diretos. O Ministério Público do Trabalho, conforme a lição de Emerson Garcia1, possui atribuição para perquirir irregularidades, de ordem comissiva e omissiva, envolvendo a realização de concurso para a contratação de servidores públicos ou a terceirização de serviços, por força do art. 83, III2, da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, 1 GARCIA, Emerson. Ministério Público - Organização, Atribuição e Regime Jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2005. p. 87. 2 Art. 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho: […] III - promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos; 114 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 114-132, jan./mar. 2014 sendo competente a Justiça do Trabalho para julgar eventual demanda coletiva a respeito do tema. Conforme reza o § 6o do art. 5o da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública), qualquer legitimado para a propositura da ação civil pública pode firmar compromisso de ajustamento de conduta com aquele que, reconhecendo implicitamente que sua conduta ofende interesse difuso ou coletivo, assume o compromisso de eliminar a ofensa através de adequação de seu comportamento às exigências legais4. 3 Cumpre salientar que o ajustamento de conduta não se confunde com a transação (art. 840 do Código Civil), pois esta última consubstancia concessões recíprocas, ao passo que o ajustamento, como o próprio nome diz, visa ao reconhecimento de uma obrigação legal a ser cumprida, ou, como explica Cezar Fiúza5, “[é] negócio Jurídico Bilateral em que credor e devedor, por meio de concessões recíprocas, põem fim a uma obrigação”. Explica Rogério Pacheco Alves6 que, de modo a evitarem-se equívocos interpretativos, é necessário distinguir transação e termo de ajustamento de conduta. A transação, negócio jurídico que importa em concessões recíprocas, está absolutamente vedada pelo sistema em razão da indisponibilidade dos interesses difusos. Quanto a eles, os difusos, em razão de sua dimensão dispersa e sua enorme significado para a sociedade, não se pode conceber qualquer disposição pelos legitimados, chegando-se a tal resultado, conforme apontado por Fernando Grella Vieira7, pelo próprio “descompasso entre a legitimidade e a titularidade dos interesses”. Tal entendimento é reforçado pela redação peremptória do art. 841 do Código Civil, vazado nesses termos, verbis: Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação. 3 § 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial. 4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2001. p. 202. 5 FIÚZA, Cezar. Direito Civil - Curso Completo. 3. ed. Belo Horizonte, MG: DelRey, 2009. p. 582. 6 ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2006. p. 615. 7 VIEIRA, Fernando Grella. A transação na defesa da tutela dos interesses difusos e coletivos: compromisso de ajustamento de conduta. 2001. p. 225. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 115 Quanto a esse aspecto de não se permitir qualquer tipo de concessão em favor do interessado, merece fazer menção à lição de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro8, no sentido de que: O compromisso de ajustamento de conduta não pode implicar em qualquer tipo de renúncia de direitos, ou mesmo de outras concessões que possam implicar na aceitação de uma conduta, por parte de terceiro, que não espelhe o total atendimento, de acordo com a lei, à proteção do direito difuso em discussão. Forte nessas premissas, mesmo que tenha sido nominado de Termo de Conciliação Judicial, o instrumento firmando no seio da Ação Civil Pública Trabalhista n° 01082-2002-020-10-00-00 entre o MPT e a União tem o regime jurídico típico do Termo de Ajustamento de Conduta. Assim, por força do § 6º do art. 5º da Lei 7.347/1985, uma vez confirmada a violação ao conteúdo do termo de ajustamento firmado, cabível será a propositura de ação de execução visando a tutela específica para ver cumprida as obrigações de fazer constantes no referido instrumento, cabendo colacionar as graves sanções previstas na cláusula quarta do mencionado termo de ajustamento, verbis: DAS SANÇÕES PELO DESCUMPRIMENTO Cláusula Quarta – A UNIÃO obriga-se ao pagamento de multa (astreinte) correspondente a R$ 1.000,00 (um mil reais) por trabalhador que esteja em desacordo com as condições estabelecidas no presente Termo de Conciliação, sendo a mesma reversível ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Páragrafo Primeiro – O servidor público que, em nome da Administração, firmar o contrato de prestação de serviços nas atividades relacionadas nas alíneas “a” a “r” da Cláusula Primeira, será responsável solidário por qualquer contratação irregular, respondendo pela multa prevista no caput, sem prejuízo das demais cominações legais. Parágrafo Segundo – Em caso de notícia de descumprimento dos termos firmados neste ajuste, a UNIÃO, depois de intimada, terá prazo de 20 (vinte) dias para apresentar sua justificativa perante o Ministério Público do Trabalho. 8 Apud José dos Santos Carvalho Filho, op cit, p. 207. 116 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 116-132, jan./mar. 2014 Com a edição da Lei 12.690/2012 e da Lei 12.349/2010 houve uma ampla alteração legislativa, inaugurando uma nova situação jurídica, que merece ser confrontada com as obrigações constantes no mencionado Termo de Conciliação Judicial. 2 A POSSIBILIDADE COOPERATIVAS DE PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÕES E O COMBATE ÀS FALSAS COOPERATIVAS Para melhor entendimento, cabe transcrever os dispositivos pertinentes da Lei 8666/93, com a redação dada pela Lei 12.349/2010, e da Lei 12.690/2012, que assim dispõem respectivamente: Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. § 1o É vedado aos agentes públicos: I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5o a 12 deste artigo e no art. 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991;[…] Art. 10. A Cooperativa de Trabalho poderá adotar por objeto social qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu Estatuto Social. […] § 2o A Cooperativa de Trabalho não poderá ser impedida de participar de procedimentos de licitação pública que tenham por escopo os mesmos serviços, operações e atividades previstas em seu objeto social. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 117 Percebe-se que a intenção do legislador foi a de dar concreção ao comando constitucional de estimular o cooperativismo, previsto no § 2º do art. 174 da Constituição da República9, reconhecendo a grave crise instaurada em torno das cooperativas, vislumbrando tanto a necessidade de estimular a criação, como de preservar os direitos dos cooperados contra a utilização como intermediadora de mão de obra e fraudadora dos direitos dos trabalhadores. A respeito do tema, pertinentes são as considerações constantes da exposição de motivos do Projeto de Lei nº 7009/2006, que deu que origem à Lei 12.690/20012, nos seguintes termos: 3. A Constituição da República Federativa do Brasil determina, no § 2 º do artigo 174, que a lei apóie e estimule o cooperativismo e outras formas de associativismo, ficando claro que as cooperativas revelamse como um instrumento de desenvolvimento local e regional que permite o estabelecimento de formas democráticas no espaço da produção e, por isso, devem ser aprendidas como um valioso recurso no processo de construção da cidadania. 4. Desde a publicação da Lei nº 8.949/94, porém, sérias ameaças ao cooperativismo e aos direitos trabalhistas materializaram-se por meio da criação de cooperativas que, no processo de terceirização largamente instalado nas empresas brasileiras, vêm substituindo postos formais de emprego e inserindo trabalhadores subordinados no mercado de trabalho, tolhendo-lhes, todavia, o acesso aos direitos sociais. É a mercancia da mão-de-obra que não cria oportunidades novas, mas, ao contrário, torna precários os postos de emprego, de forma nunca vista em nosso país. 5. A par da necessidade de se regulamentar adequadamente o fenômeno de terceirização nas empresas, faz-se, premente, o regramento do cooperativismo de trabalho que, como se sabe, está na própria raiz das virtudes e dos problemas acima apontados. 6. A presente proposta visa a coibir as fraudes, vedando, terminantemente, a intermediação de mão-de-obra sob o subterfúgio das cooperativas de trabalho. Esta prática abusiva vem se revelando 9 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. […] § 2º - A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo. 118 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 118-132, jan./mar. 2014 como meio degradante de prestação de trabalho, uma vez que o trabalhador presta serviços em condições próprias de emprego, privado dos direitos reconhecidos pela Constituição Federal e pela legislação trabalhista. 7. Estas cooperativas de intermediação de mão-de-obra apresentam mera aparência de cooperativas, uma vez, não obstante formalizemse como tal, obedecendo aos requisitos legais para tanto, substancialmente não o são, pois o trabalhador `cooperado´ que presta serviços pessoais e subordinados a terceiros, nada mais é, senão empregado. Sua força de trabalho transfere lucro aos tomadores, o que é compatível com o vínculo de emprego, mas não com o cooperativismo. Trata-se, portanto, de emprego precário, porque não protegido pelos direitos sociais que lhe seriam inerentes. Em reforço, observa-se que a Instrução Normativa no 02, de 30 de abril de 2008 da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento (SLTI/MP) estabelece expressamente a possibilidade de participação de cooperativas nos certames licitatórios, exigindo-se, contudo, o preenchimento de alguns requisitos, a saber: Art. 4º A contratação de sociedades cooperativas somente poderá ocorrer quando, pela sua natureza, o serviço a ser contratado evidenciar: I - a possibilidade de ser executado com autonomia pelos cooperados, de modo a não demandar relação de subordinação entre a cooperativa e os cooperados, nem entre a Administração e os cooperados; e II - a possibilidade de gestão operacional do serviço for compartilhada ou em rodízio, onde as atividades de coordenação e supervisão da execução dos serviços, e a de preposto, conforme determina o art. 68 da Lei nº 8.666, de 1993, sejam realizadas pelos cooperados de forma alternada, em que todos venham a assumir atribuição. Parágrafo único. Quando admitida a participação de cooperativas, estas deverão apresentar modelo de gestão operacional adequado ao estabelecido neste artigo, sob pena de desclassificação. Art. 5º Não será admitida a contratação de cooperativas ou instituições sem fins lucrativos cujo estatuto e objetivos sociais não prevejam ou não estejam de acordo com o objeto contratado. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 119 Parágrafo único. Quando da contratação de cooperativas ou instituições sem fins lucrativos, o serviço contratado deverá ser executado obrigatoriamente pelos cooperados, no caso de cooperativa, ou pelos profissionais pertencentes aos quadros funcionais da instituição sem fins lucrativos, vedando-se qualquer intermediação ou subcontratação. Por outro lado, cabe registrar que a Lei 12.690/2012 conferiu extenso rol de direitos aos cooperados, rol este disposto em termos muito próximos do conferido aos trabalhadores em geral, tornando em grande medida esvaziada a preocupação da utilização da cooperativa como instrumento de fraude aos direitos trabalhistas do cooperado, conforme dispõe o art. 7º da mencionada lei, verbis: Art. 7o A Cooperativa de Trabalho deve garantir aos sócios os seguintes direitos, além de outros que a Assembleia Geral venha a instituir: I - retiradas não inferiores ao piso da categoria profissional e, na ausência deste, não inferiores ao salário mínimo, calculadas de forma proporcional às horas trabalhadas ou às atividades desenvolvidas; II - duração do trabalho normal não superior a 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais, exceto quando a atividade, por sua natureza, demandar a prestação de trabalho por meio de plantões ou escalas, facultada a compensação de horários; III - repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; IV - repouso anual remunerado; V - retirada para o trabalho noturno superior à do diurno; VI - adicional sobre a retirada para as atividades insalubres ou perigosas; VII - seguro de acidente de trabalho. Percebe-se que a Lei 12.690/12 foi clara em vedar as chamadas falsas cooperativas, que servem como meras intermediadoras de mão de obra, oferecendo a prestação de serviços de pessoas que em nada se assemelham a de um cooperado, servindo como uma simulação de contrato de trabalho, conforme dispõe o art. 5°: 120 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 120-132, jan./mar. 2014 Art. 5o A Cooperativa de Trabalho não pode ser utilizada para intermediação de mão de obra subordinada. Nota-se, especialmente, que a nova sistemática do trabalho mediante a coordenação prevista no § 6º do art. 7º da Lei 12.690/1210 tem o propósito de caracterizar a cooperativa e eliminar eventual possibilidade de subordinação ao terceiro tomador do serviço. O coordenador dos cooperados está para os serviços prestados pela cooperativa, assim como o preposto (art. 68 da Lei 8.666), para os empregados das empresas locadoras de mão de obra especializada, mas sem hierarquia11. Tão séria é essa figura do coordenador dos cooperados, e dos pressupostos mencionados no § 6º do art. 7º, que a Lei 12.690 estabelece presunção legal da intermediação de mão de obra caso não haja observância de tal sistemática, conforme disposto nos §§ 1º e 2º do art. 17: Art. 17. Cabe ao Ministério do Trabalho e Emprego, no âmbito de sua competência, a fiscalização do cumprimento do disposto nesta Lei. § 1º A Cooperativa de Trabalho que intermediar mão de obra subordinada e os contratantes de seus serviços estarão sujeitos à multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) por trabalhador prejudicado, dobrada na reincidência, a ser revertida em favor do Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT. § 2º Presumir-se-á intermediação de mão de obra subordinada a relação contratual estabelecida entre a empresa contratante e as Cooperativas de Trabalho que não cumprirem o disposto no § 6o do art. 7o desta Lei. […] 10 § 6o As atividades identificadas com o objeto social da Cooperativa de Trabalho prevista no inciso II do caput do art. 4 o desta Lei, quando prestadas fora do estabelecimento da cooperativa, deverão ser submetidas a uma coordenação com mandato nunca superior a 1 (um) ano ou ao prazo estipulado para a realização dessas atividades, eleita em reunião específica pelos sócios que se disponham a realizá-las, em que serão expostos os requisitos para sua consecução, os valores contratados e a retribuição pecuniária de cada sócio partícipe. 11 PÉRCIO, Gabriela Verona. Cooperativas, licitação e Lei 12.690/12: ainda vige o Termo de Conciliação entre a União e o MTB? Disponível em: <http://gestaopublica-gabrielapercio.blogspot.com.br/2012/08/ cooperativas-licitacao-e-lei-1269012.html>. Acesso em: 27 set. 2013. Joinville, SC: Gestão Pública, 20 de agosto de 2012. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 121 Importantes são as considerações de Gabriela Verona Pércio12, que bem esclareceu o contexto em que surgiu o novo regramento das cooperativas de trabalho em relação às terceirizações, conforme trecho que merece ser colacionado: Frente a tais constatações, não é crível supor que a Lei em comento [Lei 12.690] tenha vindo a lume alheia à atual crise da terceirização no serviço público e para promover mudanças nas práticas que vinham sendo adotadas. Some-se a ela o anterior julgamento da ADI 16 pelo STF e a consequente reformulação da Súmula 331 pelo TST, diretamente relacionadas ao tema, provavelmente propulsores da aprovação do projeto de lei que tramitava no Congresso desde 2006. O reconhecimento da constitucionalidade do §1º do art. 71 da Lei 8.666, que a princípio gerou a sensação de queda da referida Súmula, apenas consolidou a responsabilização subsidiária trabalhista, pois, apesar de permanecerem as discordâncias no meio acadêmico, não mais sobrevivem dúvidas sobre o assunto. É de clareza solar a prevalência da proteção do trabalhador e de seus direitos fundamentais sobre a proteção do erário e do interesse público. Aliás, a rigor, seguese na linha de prioridades estabelecida pela própria Constituição da República, a despeito de todas as críticas que possam ser tecidas pelos adeptos da impossibilidade de responsabilização da Administração Pública. […] Assim, a Lei 12.690/12 autoriza o funcionamento de cooperativas de trabalho tendo quaisquer serviços como objeto social, estabelece regras a serem observadas para garantir o respeito aos trabalhadores e ao instituto do cooperativismo, especialmente em situações com potencial para burlarem esse sistema institucionalizado de proteção ao trabalhador, como é o caso dos serviços eminentemente subordinados. Dessa forma, diferentemente do entendimento constante no Termo de Conciliação Judicial assinado entre o MPT e a União, para a nova lei, o ponto central não é a subordinação da mão de obra na prestação do serviço, mas, sim, o fato de se tratar de uma verdadeira cooperativa que preste um serviço, seja ele qual for, desde que lícito, e que a cooperativa seja constituída e atue com observância dos requisitos trazidos pela Lei 12.690/2012. 12 PÉRCIO, op. cit. 122 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 122-132, jan./mar. 2014 A premissa que o Ministério Público do Trabalho, à qual a União aderiu, aparentemente, foi uma eventual impossibilidade legal de constituir cooperativas para a prestação de serviços “cujo labor, por sua própria natureza, demandarem execução em estado de subordinação”, partindo do pressuposto de que tais serviços não representariam um “meio de produção” próprio, suficiente para se tornar objeto social de uma cooperativa, pois sempre seriam executados individualmente por terceiros (cf. Cláusula Segunda do Termo de Conciliação13). No regime anterior não havia regra com o objetivo de proteger os trabalhadores e os cofres públicos, o que caracterizava uma lacuna legislativa grave. Desse modo, por uma questão de prudência, a proibição da contratação frearia as ações das “falsas cooperativas” e reduziria a possibilidade de responsabilização trabalhista da Administração Pública. Contudo, não parece haver dúvida quanto à modificação da ordem jurídica expressa, conforme disposições acima transcritas. Verifica-se, aliás, que a Lei 12.690/12 regulamentou a atuação das cooperativas de trabalho de forma bastante completa quando garantiu aos associados direitos similares aos dos empregados regidos pela CLT e tornando tal forma de cooperação bastante próxima – mas não igual, frise-se - ao próprio vínculo empregatício. Percebe-se que a Lei 12.690/12 gerou verdadeira virada de Copérnico no tratamento jurídico das cooperativas, com a necessária reformulação de todos os paradigmas que deram ensejo à assinatura do Termo de Conciliação, em grande medida pelo fato de a nova normatização ter trazido uma série de direitos aos cooperados que antes lhes eram negados, permitindo que as verdadeiras cooperativas possam fornecer serviços de qualidade, com cooperados qualificados, que participam da gestão coletiva da instituição de maneira democrática, e que possuem direitos à semelhança dos direitos garantidos aos trabalhadores em geral14. 13 Cláusula Segunda - Considera-se cooperativa de mão-de-obra, aquela associação cuja atividade precípua seja a mera intermediação individual de trabalhadores de uma ou várias profissões (inexistindo assim vínculo de solidariedade entre seus associados), que não detenham qualquer meio de produção, e cujos serviços sejam prestados a terceiros, de forma individual (e não coletiva), pelos seus associados. 14 Lei 12.690/2012: Art. 3o A Cooperativa de Trabalho rege-se pelos seguintes princípios e valores: I - adesão voluntária e livre; II - gestão democrática; III - participação econômica dos membros; IV - autonomia e independência; V - educação, formação e informação; VI - intercooperação; VII - interesse pela comunidade; Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 123 Pensamento diverso, contudo, foi externado por Fernanda Mesquita Ferreira15 em brilhante artigo sobre o tema envolvendo a participação de cooperativas de trabalho em licitações públicas, tendo essa autora concluído que o Termo de Conciliação celebrado no âmbito da Justiça do Trabalho permanece válido, não obstante o advento da Lei n° 12.690/2012, conforme excerto que ora colaciono: Como se vê, mesmo após a nova redação do artigo 3º, § 1º da Lei nº 8.666/1993, e da Súmula TST nº 331, e ainda com o advento da Lei nº 12.690/2012, o Termo de Conciliação Judicial celebrado entre a União Federal e o Ministério Público do Trabalho permanece válido. Tal ocorre porque o objetivo deste Termo não é afastar toda e qualquer sociedade cooperativa das licitações públicas, mas tão somente aquelas que pretendam prestar serviço que demande trabalho subordinado. Note-se que para prestarem serviço de caráter subordinado, as sociedades cooperativas estariam violando um dos requisitos legais de sua constituição, qual seja: a autonomia dos cooperados. Na verdade, chega-se à conclusão que o Termo de Conciliação Judicial pretendeu afastar a participação de falsas cooperativas nas licitações públicas. Para as demais hipóteses de licitação de serviços que não demandem mão-de-obra com vínculo de subordinação, não haverá impedimento legal para participação de sociedades cooperativas, já que o serviço será prestado com absoluta autonomia dos cooperados. Aliás, esta previsão vem expressa no Parágrafo Primeiro da Cláusula Terceira do referido Termo de Conciliação Judicial, e pode ser depreendida do art. 5º da Lei nº 12.690/2012. Com todo o respeito que merece tal posicionamento, ouso divergir. VIII - preservação dos direitos sociais, do valor social do trabalho e da livre iniciativa; IX - não precarização do trabalho; X - respeito às decisões de asssembleia (sic), observado o disposto nesta Lei; XI - participação na gestão em todos os níveis de decisão de acordo com o previsto em lei e no Estatuto Social. 15 FERREIRA, Fernanda Mesquita. A Participação das Cooperativas nas Licitações Públicas: análise à luz da doutrina, jurisprudência e legislação, incluindo-se a nova lei de cooperativas de trabalho (Lei nº 12.690/2012). Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 30 jan. 2013. Disponível em: <http://www. conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.41925&seo=1>. Acesso em: 27 set. 2013. 124 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 124-132, jan./mar. 2014 Como toda mudança legislativa, necessário se faz que busquemos na nova normatização sua máxima eficácia, garantindo que o novo seja implementado, e a ordem anterior seja considerada superada, afastando a síndrome da interpretação retrospectiva das leis. A interpretação retrospectiva é uma patologia jurídica que, conforme leciona Uadi Lammego Bulos16, tem como resultado o de que o texto novo deve ficar, tanto quanto possível, igual ao velho. Assim, o ato interpretativo não inova em coisa alguma. O atraso permanece. A mesma exegese de outrora é mantida. Não se olha o presente, tampouco o futuro, mas, tão só o passado. Com a mesma sensibilidade, os professores Maurício Portugal Ribeiro, Mário Engler Pinto Junior e Lucas Navarro Prado17 destacam que [m]uito comum no meio jurídico é a suposição de que a Constituição Federal incorpora, como parte de seu núcleo duro de sentido, o conjunto de decisões institucionais tomadas por lei, por instrumentos normativos infralegais e também o conjunto de percepções e ideias que formam o senso comum jurídico. Essa suposição se manifesta com frequência quando uma nova disposição legal altera normas ou práticas tradicionais, e é, por isso, taxada de inconstitucional. De uma perspectiva cognitiva, seria possível explicar isso pelo maior impacto que as experiências reais, palpáveis e atuais possuem sobre os sentidos humanos, quando comparadas a experiências imaginadas, abstratas ou passadas. Ainda segundo os referidos autores18, [e]ssa força da realidade projetada sobre a atividade de interpretação do texto constitucional cria tendência ao escamoteio da multiplicidade de sentidos e de interpretações que lhe pode ser dada, de maneira a considerar toda a inovação, todo o que contraria o senso comum jurídico e os textos infraconstitucionais como inconstitucional. 16 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2012. p. 466. 17 RIBEIRO, Mauricio Portugal; PINTO JUNIOR, Mário Engler; PRADO, Lucas Navarro. Regime Diferenciado de Contratação - Licitação de Infraestrutura pára Copa do Mundo e Olimpíadas. São Paulo, SP: Atlas, 2012. p. 10-11. 18 Ibidem, p. 11. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 125 Dessa forma, e pedindo vênia para quem entende em contrário, não cabe sustentar que as normas trazidas pelas Leis 12.690/2012 e 12.349/2010 em nada inovaram e que cumpre manter a anterior interpretação sobre o regime jurídico das cooperativas, com a manutenção de todas as vedações trazidas pelo Termo de Conciliação Judicial firmado entre o MPT e a União. Diante da Lei 12.690/12, o Termo de Conciliação celebrado entre o MPT e a União em 2003 não pode mais prevalecer, merecendo uma leitura à luz do novo quadro normativo instaurado. O referido Termo obsta, absolutamente, a participação em licitação e posterior contratação pela União de “genuínas cooperativas” para os serviços listados nas alíneas “a” a “r” da sua Cláusula Primeira, o que não pode subsistir diante da nova ordem jurídica. Com maior ênfase, sustenta o Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho19 a inconstitucionalidade do próprio Termo de Conciliação, tamanha foi a restrição imposta às contratações das cooperativas de trabalho pela Administração Pública, conforme trecho abaixo: […] Justamente por isso, causa espécie o termo de conciliação judicial imposto pelo Ministério Público do Trabalho à União, para que não admitisse em licitações de serviços cooperativas de trabalho. O termo de ajuste de trabalho, a par de inconstitucional, já que vai de encontro aos arts. 5º, XVIII, e 174, § 2º, da Constituição Federal, atenta contra a própria normativa internacional, alijando cooperativas e seus associados do mercado de trabalho ofertado pelo setor público. Com efeito, a Carta Política, além de colocar como missão do Estado estimular e apoiar o cooperativismo, impede a intervenção estatal no funcionamento das cooperativas. O termo de conciliação representa intervenção indevida na própria sobrevivência das cooperativas, desestímulo à sua atuação, a par de atentar flagrantemente contra um dos pilares do devido processo legal, que é a garantia do contraditório, uma vez que o termo foi tomado em processo ajuizado contra a União, sem defesa das 19 Apud, PÉRCIO, Gabriela Verona. Cooperativas, licitação e Lei 12.690/12: ainda vige o Termo de Conciliação entre a União e o MTB? Disponível em: <http://gestaopublica-gabrielapercio.blogspot.com.br/2012/08/ cooperativas-licitacao-e-lei-1269012.html>. Joinville, SC: Gestão Pública, 20 de agosto de 2012. Acesso em: 27 set. 2013. 126 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 126-132, jan./mar. 2014 cooperativas atingidas ou do ente confederativo que as congrega, em matéria que as afeta diretamente! […] Sem adentrar na questão da inconstitucionalidade do multicitado termo de conciliação, a nova legislação leva à conclusão de que deve ser reputado o mencionado instrumento como superado. Os editais não poderão vedar a participação de cooperativas de trabalho em licitações para contratar serviços com cessão de mão de obra, inclusive com dedicação exclusiva, que comprovem ser “genuínas cooperativas” e atendam às condições estabelecidas pela referida Lei. A Administração, nas licitações, deverá se certificar quanto à regularidade de tais sociedades e também da relação mantida com seus cooperados, seguindo as orientações da Instrução Normativa nº 02/2008-SLTI/ MPOG, cujo texto, aliás, não contradiz a Lei 12.690, além de exigir a prestação do serviço de forma coordenada, nos termos do art. 7º, § 6º do novo Estatuto das Cooperativas. Frise-se que tal entendimento inclusive é necessário para o sucesso do Programa Nacional do Fomento às Cooperativas de Trabalho – PRONACOOP, na medida em que tal programa, conforme disposto no capítulo IV da Lei 12.690/12, tem por finalidade promover o desenvolvimento e a melhoria do desempenho econômico e social da Cooperativa de Trabalho (art. 19), e as contratações governamentais são fundamentais para o estímulo e desenvolvimento da atividade cooperada, não havendo qualquer razão para recusar, em licitações públicas, as cooperativas de trabalho licitamente constituídas e em regular funcionamento, seja qual for o seu objeto. Até porque, como já dito, tal recusa violaria o texto expresso contido no §1º do art. 3º da Lei nº 8.666/93, com a nova redação dada pela Lei nº 12.349/2010, e todo o espírito da Lei nº 12.690/2012, notadamente o § 2º do seu art. 10. É a importância social das cooperativas, e não simplesmente o seu interesse individual, que justifica esta assunção de responsabilidades por parte dos entes governamentais. As cooperativas nascem da iniciativa dos cidadãos e funcionam com autonomia e independência, mas dependem na sua capacidade de ação do ambiente que as envolve. E um ambiente promotor e facilitador das cooperativas resulta das decisões que a esse respeito são tomadas no âmbito econômico e social, mas igualmente na esfera política. Anote-se que tal entendimento vai ao encontro do compromisso internacional assumido pelo Brasil quando da 90ª Conferência Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 127 Internacional do Trabalho em Genebra, já que tal compromisso busca resolver o problema das “pseudocooperativas”, e a referida recomendação além de prever a necessidade de garantia dos direitos dos trabalhadores, incluiu a necessidade de os Governos promoverem o papel das cooperativas, conforme dispositivos que ora colacionamos, verbis: 8. (1) As políticas nacionais deveriam sobretudo: […] (b) assegurar que não se formem ou sejam usadas cooperativas para escapar à observância das leis trabalhistas ou usadas para mascarar relações de emprego, e combater falsas cooperativas que violam direitos trabalhistas, garantindo a aplicação da legislação trabalhista em todas as empresas; […] 9. Os governos deveriam promover o importante papel das cooperativas na transformação de atividades freqüentemente marginais de sobrevivência (algumas vezes referidas como “economia informal”) em trabalho legalmente protegido, plenamente integrado no contexto da vida econômica. (Recomendação 193 - 90ª sessão, da OIT – Organização Internacional do Trabalho, em junho de 2002). Forte nessas premissas, cabe garantir às cooperativas a participação nas licitações promovidas pelo Poder Público, para qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu Estatuto Social, e desde que haja observância dos ditames da Lei 12.690/2012 e da Instrução Normativa nº 02/2008-SLTI/MPOG. 3 A ALTERAÇÃO DO CONTEXTO NORMATIVO GERA A RETIRADA DE EFICÁCIA DA SENTENÇA DETERMINATIVA Cumpre, por fim, analisar se o entendimento que reputa superado o termo de conciliação homologado em juízo, pela superveniência das Leis 12.349/2010 e 12.690/2012, prejudica a coisa julgada, prevista o art. 5º XXXVI, da Constituição da República. A coisa julgada material incidente nas relações jurídicas de trato sucessivo alcança tão somente as prestações vencidas e exigíveis, dada a repercussão da cláusula rebus sic stantibus sobre o princípio da 128 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 128-132, jan./mar. 2014 imutabilidade das sentenças, na medida em que cuida de decisões proferidas consoantes o arcabouço fático-jurígeno existente ao tempo da prolação, que pode sofrer alteração superveniente. A norma encontra-se consagrada no inciso I, do art. 471, do Código de Processo Civil, verbis: Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; Conforme leciona Alexandre de Paula20 a respeito do referido dispositivo legal: 3. O que a norma, em síntese, consagra, é a repercussão da cláusula rebus sic stantibus sobre o princípio da imutabilidade da sentença. No fundo, a revisão se opera em homenagem mesmo à coisa julgada, de vez que a sentença considerou, no momento de sua emissão, fatos e circunstâncias relevantes que não mais perduram, que sofreram alterações de tal ordem, que traduziria summa injuria, verdadeira denegação da Justiça, mantê-la intocável na sua letra, per omnia secula […] Sobre o tema, cumpre registrar a precisa lição do eminente Ministro Teori Albino Zavascki21: Quanto às relações jurídicas sucessivas [...], a regra é a de que as sentenças só têm força vinculante sobre as relações já efetivamente concretizadas, não atingindo as que poderão decorrer de fatos futuros, ainda que semelhantes. Isso se deve à própria natureza da função jurisdicional, que, conforme se viu, tem por matéria de trato os fenômenos de incidência das normas em suportes fáticos presentes ou passados. O campo do direito tributário é fértil nessa discussão, sendo no sentido acima indicado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Elucidativa desta linha de pensar é a Súmula 20 PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil Anotado v. 4, 7. ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 1998. p. 1903. 21 ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2001. p. 84-89. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 129 239, segundo a qual “decisão que declara indevida a cobrança de imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores”. A mesma orientação norteou os precedentes em que ficou assentado que ‘a declaração de intributabilidade, no pertinente a relações originadas de fatos geradores que se sucedem no tempo, não pode ter o caráter de imutabilidade e de normatividade a abranger eventos futuros. Nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a respeito da superação de sentença transitada em julgado de relação jurídica continuativa no caso de superveniência de lei, verbis: PROCESSUAL CIVIL. COBRANÇA DE TARIFA PROGRESSIVA DE FORNECIMENTO DE ÁGUA A PARTIR DA VIGÊNCIA DA LEI N. 11.445/07. NOVA SITUAÇÃO JURÍDICA. NÃO OFENSA À COISA JULGADA. 1. Noticiam os autos que o agravante - Condomínio Santa Mônica - ajuizou ação ordinária contra a CEDAE, com vistas a afastar a cobrança de água pela tarifa progressiva, sob o fundamento de ilegalidade. O pedido foi julgado procedente, transitando em julgado em 2006. Em 2007, entrou em vigor a Lei n. 11.445, que chancelou expressamente essa modalidade de cobrança progressiva. 2. Cinge-se a controvérsia ao momento em que a tarifa progressiva instituída pela Lei n. 11.445/07 poderia ser cobrada do Condomínio, no caso de haver sentença transitada em julgado em sentido contrário. 3. O art. 471, inciso I, do CPC reconhece a categoria das chamadas sentenças determinativas. Essas sentenças transitam em julgado como quaisquer outras, mas, pelo fato de veicularem relações jurídicas continuativas, a imutabilidade de seus efeitos só persiste enquanto não suceder modificações no estado de fato ou de direito, tais quais as sentenças proferidas em processos de guarda de menor, direito de visita ou de acidente de trabalho. 4. Assentadas essas considerações, conclui-se que a eficácia da coisa julgada tem uma condição implícita, a da cláusula rebus sic stantibus, norteadora da Teoria da Imprevisão, visto que ela atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando da prolação da sentença. 130 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 130-132, jan./mar. 2014 5. Com base nos ensinamentos de Liebman, Cândido Rangel Dinamarco, é contundente asseverar que “a autoridade da coisa julgada material sujeita-se sempre à regra rebus sic stantibus, de modo que, sobrevindo fato novo ‘o juiz, na nova decisão, não altera o julgado anterior, mas, exatamente, para atender a ele, adapta-o ao estado de fatos superveniente’.” 6. Forçoso concluir que a CEDAE pode cobrar de forma escalonada pelo fornecimento de água a partir da vigência da Lei n. 11.445/2007 sem ostentar violação da coisa julgada. Agravo regimental improvido.22 Dessa forma, em se tratando de relação jurídica continuativa, mutável no prolongamento do tempo, não é menos cediço que a sentença que dela cuide – denominada em doutrina como “sentença determinativa” – traz em si, implicitamente, a cláusula rebus sic standibus, vez que, ao promover o acertamento definitivo da lide, leva em consideração a situação de fato e de direito existente, prevalecendo enquanto este contexto perdurar. Destarte, se, por um lado, a sentença transitada em julgado que cuide de relação jurídica continuativa ostenta, sim, “eficácia” de coisa julgada, por outro lado, não tem o condão de impedir as variações dos elementos constitutivos daquela relação continuativa, vale dizer, não obsta que lei nova regule diferentemente os fatos ocorridos a partir de sua vigência. Assim, constatado que houve alteração do quadro normativo que conferia base para o termo de ajustamento de conduta firmado, não há que se falar em violação à coisa julgada pela aplicação da Lei nº 12.690/12 para as novas licitações deflagradas a partir da vigência da nova legislação. 4 CONCLUSÃO Vistos os principais pontos relativos à inovação normativa das cooperativas de trabalho na legislação brasileira, chegou a hora de sistematizar algumas considerações acerca de sua potencial participação em matéria de contratações públicas. 22 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1193456/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 07/10/2010. DJe 21/10/2010. Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão 131 (i) deve ser considerado superado Termo de Conciliação Judicial homologado pela Justiça do Trabalho nos autos da ação civil pública nº 01082-2002-020-10-00-0, firmado entre o Ministério Público do Trabalho e a União, por força edição da Lei nº 12.690/2012 e da Lei nº 12.349/2010 que alterou a lei 8666/93; (ii) cabe garantir às cooperativas a participação nas licitações promovidas pelo Poder Público, para qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu Estatuto Social, e desde que haja observância dos ditames da Lei 12.690/2012 e da Instrução Normativa nº 02/2008-SLTI/ MPOG; (iii) por se tratar de relação jurídica continuada, não viola a coisa julgada a aplicação da nova legislação para as novas licitações deflagradas a partir da vigência. REFERÊNCIAS ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2006. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1193456/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em: 07/10/2010. DJe 21/10/2010. BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2012. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2001. FERREIRA, Fernanda Mesquita. A Participação das Cooperativasnas Licitações Públicas: análise à luz da doutrina, jurisprudência e legislação, incluindo-se a nova lei de cooperativas de trabalho (Lei nº 12.690/2012). Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com. br/?artigos&ver=2.41925&seo=1>. Acesso em: 27 set. 2013. Conteudo Juridico. Brasilia, DF, 30 de Janeiro de 2013. FIÚZA, Cezar. Direito Civil - Curso Completo. 3. ed. Belo Horizonte, MG: DelRey, 2009. 132 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 132-132, jan./mar. 2014 GARCIA, Emerson. Ministério Público - Organização, Atribuição e Regime Jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2005. PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil Anotado v. 4, 7. ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 1998. PÉRCIO, Gabriela Verona. Cooperativas, licitação e Lei 12.690/12: ainda vige o Termo de Conciliação entre a União e o MTB? Disponível em: <http:// gestaopublica-gabrielapercio.blogspot.com.br/2012/08/cooperativas-licitacaoe-lei-1269012.htm>. Acesso em: 27 set. 2013. Joinville, SC: Gestão Pública, 20 de agosto de 2012. RIBEIRO, Mauricio Portugal, PINTO JUNIOR, Mário Engler, PRADO, Lucas Navarro. Regime Diferenciado de Contratação - Licitação de Infraestrutura pára Copa do Mundo e Olimpíadas. São Paulo, SP: Atlas, 2012. VIEIRA, Fernando Grella. A transação na defesa da tutela dos interesses difusos e coletivos: compromisso de ajustamento de conduta. 2001. ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2001.
ESTADO CONSTITUCIONAL E PROCESSO ADMINISTRATIVO STATE CONSTITUTIONAL AND ADMINISTRATIVE PROCEDURE Raimundo Márcio Ribeiro Lima1 Procurador Federal/AGU SUMÁRIO: Introdução; 1 Direito pré-moderno; 2 Estado legislativo de Direito; 3 Estado constitucional; 4 Processo administrativo; 5 Estado constitucional e processo administrativo; 6 Lei geral do processo administrativo federal; 7 Conclusão; Referências. 1 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Associado do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP). 274 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 274-308 jan./mar. 2014 [...] nenhuma ciência pode iluminar-nos sobre a felicitas, sobre a fortuna, sobre a economia do bem e do mal, sobre os valores da existência; todo indivíduo morre e carrega com ele o seu segredo2. RESUMO: O artigo discute a evolução dos paradigmas constitucionais e suas consequências na Administração Pública, especialmente no processo administrativo, revelando, assim, as possíveis mudanças na atuação administrativa em cada paradigma constitucional. Dessa forma, é possível verificar uma evolução no exercício do poder administrativo, isto é, de uma atuação administrativa autocrática para uma atuação administrativa democrática. Portanto, há uma análise da atuação administrativa e da participação do cidadão na Administração Pública. O trabalho objetiva, ainda, salientar a importância da existência de organização, procedimento e orçamento na concretização dos direitos fundamentais, pois todo direito demanda custos do Poder Público e, claro, dos cidadãos. PALAVRAS-CHAVE: Estado Constitucional. Direitos Fundamentais. Processo Administrativo. Administração Pública. Atuação Administrativa. ABSTRACT: The article discusses the evolution of constitutional paradigms and their consequences in Public Administration, especially in the administrative proceeding, thereby revealing possible changes in administrative actions in each constitutional paradigm. Thus, it is possible to observe a trend in the exercise of administrative power, that is, of an autocratic administrative role to a democratic administrative role. Therefore, there is an analysis of the administrative role and of the citizen participation in Public Administration. The work aims to also emphasize the importance of organization, procedure and budget in the implementation of the fundamental rights, because every right demand costs of the government and of course the citizens. KEYWORDS: Constitutional State. Fundamental Rights. Administrative Proceeding. Public Administration. Administrative Role. 2 CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 51, ao destacar a moral na História Natural de Plínio. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 275 INTRODUÇÃO A vida em sociedade sempre demandou um mínimo de regulação social, senão o império da desordem na consecução das relações sociais não teria fim, só que, e isso não revela qualquer novidade, a temida desordem pode resultar justamente da regulação promovida e, nesse caso, ela se torna um verdadeiro apelo à anarquia da disciplina social, como que uma anarquia institucionalizada, particularmente àquela que se prende ao campo da disciplina jurídica dos institutos e, claro, das suas formas operativas em face das infindáveis demandas do cotidiano hipermoderno. Pois bem. Ao longo dos séculos, uns mais demorados e outros mais curtos3, diversos foram os levantes de imposição de poder do homem sobre o homem, bem como vários foram os instrumentos dessa dominação. O Direito, não raras vezes, e isso não representa qualquer exagero, foi um desses instrumentos, de modo que a sua evolução, como expressão de ciência jurídica, sempre se preocupou em consolidar os parâmetros de uma regulação normativa que prestigiasse uma efetiva proteção do homem (i) em face do próprio homem e, (ii) naturalmente, em face do Estado, aliás, sempre tão entregue à autocracia, a despeito, e talvez por isso, da existência de fatores não jurídicos de subjugação existentes em toda sociedade. Consequentemente, a evolução histórica do Direito foi moldando a noção de Estado existente em cada época ou, na pior hipótese, serviu de instrumento para a perfectibilização do regime de poder imposto pelas forças políticas ou econômicas existentes. Em todo caso, o Direito sempre teve pretensões mais nobres: gravar meios para consolidar uma estrutura normativa que disciplinasse adequadamente a todos e, principalmente, o próprio Estado4, mas o problema consiste justamente no uso dessa particular instrumentalidade como mecanismo de salvaguarda de direitos dos cidadãos, já que a teia de direitos tende a contrapor-se à cambiante matriz dos interesses políticos ou econômicos dos também cidadãos que arvoram o domínio do Estado. Portanto, se o poder cria ou interfere diretamente na criação dos direitos, o Direito, por sua vez, limita o poder em função dos fins institucionais dos órgãos ou das entidades do Estado precipuamente destinados à salvaguarda 3 Naturalmente, não se referencia à cronologia dos séculos, já que são sempre iguais em anos, logo, eles não podem ser mais demorados ou mais curtos, mas, sim, à cronologia dos horrendos períodos de dominação e de submissão do homem a cada centenário. 4 Ora, nós somos o Estado, ainda que isso possa representar, quase sempre, a qualidade de meros terceiros imersos numa contextura maior, e geralmente bem distante dos verdadeiros desígnios da nação, chamada povo. 276 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 276-308 jan./mar. 2014 dos interesses dos cidadãos. Em outros termos, sem qualquer fantasia, e para isso é necessário se desprender das afirmações tranquilas, a disciplina jurídica limita o poder através das conquistas ou dos avanços da senda protetiva do cidadão, e também do próprio Estado5, decorrente do inevitável confronto discursivo entre as garantias constitucionais e o exercício autoritário, e maquinalmente velado, do poder por parte dos gestores públicos. E, nesse ponto, é relevante destacar a importância do processo administrativo, pois nele são carreados os institutos que norteiam à atuação administrativa6, uma vez que na processualidade administrativa desenrolam-se os meios ou os modos de conter o exercício arbitrário de quaisquer dos Poderes, já que todos eles possuem Administração Pública. Notadamente, os paradigmas constitucionais lançam as bases axiológico-operativas do Direito e, nesse sentido, criam os caminhos para a evolução dos direitos na contextura das relações jurídicas administrativas. Aliás, em termos bem sintéticos, pode-se mencionar a existência de três grandes estágios paradigmáticos na relação conformativa entre o Estado e o Direito: (i) Direito Pré-Moderno; (ii) Estado Legislativo de Direito; e (iii) Estado Constitucional7. Assim, tendo em vista as mudanças paradigmáticas na ordenação constitutiva e protetiva dos direitos nos Estados modernos, por certo, também se modificou a teia de direitos e garantias entregues aos cidadãos, que peca pela parca operatividade, fazendo com que exista um lento processo de evolução aquisitiva de direitos e, mais lento ainda, outro de consolidação deles. Aliás, por ser oportuno afirmar desde logo, a ausência de operatividade não se relaciona necessariamente à limitação de recursos por parte do Poder Público, mas, e principalmente, em função 5 Não se olvide que as instituições estatais, assim como os cidadãos, podem sofrer duros golpes e, assim, não resistir a uma gestão autocrática ou despótica. É dizer, instituições fortes e democráticas são verdadeiras barreiras de proteção do próprio Estado e, consequentemente, dos cidadãos. 6 O objeto da ação administrativa é classicamente dividido em dois segmentos, a saber, a atividade de polícia e os serviços públicos, no primeiro caso, que também é um serviço público, dentre outros pormenores, observase uma preocupação na manutenção da ordem pública por meio de prescrições jurídicas, no que vai desaguar evidentes consequências fático-jurídicas aos cidadãos; no segundo, tem-se a atividade comprometida com as prestações públicas, conforme as necessidades dos cidadãos e, claro, nos limites da disciplina jurídica da atuação estatal (DEVOLVE, Pierre. Le Droit Administratif. 5. ed. Paris: Dalloz, 2010. p. 37-38). 7 Por certo, outros paradigmas podem ser grafados, particularmente os que antecedem à consolidação do Estado Constitucional, quais sejam, o Estado Liberal e o Estado Social, constituindo-se as mais notórias formas do Estado de Direito. Aliás, o Estado Constitucional revela-se como uma dimensão evolutiva da conjunção entre o Estado Liberal e o Estado Social. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 277 da vergonhosa e canhestra relação de instrumentalidade consorciada entre a má disciplina jurídica e a má gestão pública. Nesse contexto, e com enfoque na efetivação dos direitos, assomam em importância as garantias constitucionais nos processos administrativos, bem como a organização estatal destinada a empreender o catálogo de direitos salvaguardados na ordem jurídica, no que depende, evidentemente, da regular e eficiente gestão dos recursos públicos. Naturalmente, o Estado deve realizar os comandos estabelecidos na Carta Política, por isso, ele sempre demandou uma Administração Pública que espelhasse concretamente os mecanismos necessários à promoção dos desígnios constitucionais, muito embora, algumas vezes, tal propósito não passasse de mera pretensão e, mesmo assim, apenas em um vislumbre programático8, fazendo com que os imperativos constitucionais fossem confortavelmente confundidos com comandos políticos transitórios e movediços. Ademais, a senda administrativa também segue, por processos desejosamente evolutivos, as vicissitudes da ordenação do poder e da dinâmica constitucional; logo, é possível enumerar alguns modelos de Administração Pública, observando-se que nem todos alcançaram um momento de efetivo predomínio sobre os demais: (i) patrimonial; (ii) burocrática; (iii) gerencial; e (iv) dialógica. Esses modelos representam o cerne dos valores da atuação administrativa em determinada época, isto é, as diretrizes que norteiam os rumos da consecução material da atividade estatal ou, simplesmente, pairam sobre o universo das realizações administrativas. Como clara expressão de limites à atuação estatal, o processo administrativo constitui, sem nenhum favor, um meio para permear as disposições do texto constitucional, daí a sua inarredável importância para figurar os providenciais valores do Estado Constitucional, que é indiscutivelmente um Estado Democrático. Com arrimo nas considerações acima, este breve trabalho pretende discutir a evolução dos modelos de Estado e suas implicações na seara processual administrativa, especialmente no que concerne ao atual modelo pretensamente preponderante. 8 Entendido, nessa passagem, na sua tradicional compreensão, isto é, como mero conselho político destituído de qualquer normatividade e, consequentemente, sem exigibilidade. 278 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 278-308 jan./mar. 2014 1 DIREITO PRÉ-MODERNO Evidentemente, o Direito, como ciência, passou por diversas transformações ao longo dos séculos, no que o vincula a uma necessária historicidade; afinal, ele também é um elemento histórico, aliás, sempre vivo e dinâmico, fazendo com que os direitos sejam cambiantes no decorrer do tempo. Com efeito, tal afirmação pode ser mencionada sem que se adentrem nos esteios das mais diversas escolas doutrinárias ou dos mais variados sistemas jurídicos, pois se o Direito existe para o homem, obviamente, que ele só pode expressar os domínios humanos em função da temporalidade que carreia toda convivência social e, portanto, ele perpassa por processos contínuos de adaptação em virtude das vicissitudes sociais, bem como serve de parâmetro para outras transformações sociais, tudo numa constante relação de recíproca referencialidade. Assim sendo, o Direito pré-moderno era bem diverso do atual, porque se centrava em modelo também diverso de formação das normas, bem como tributava maior importância à correção material dos comandos normativos9, isto é, existia uma pretensão de justiça na determinação das normas. Destarte, no Direito pré-moderno prevaleciam às insurgências de cunho doutrinário e jurisprudencial, de maneira que a existência e a validez das normas não se vinculavam a sua forma de produção, mas, sim quanto à racionalidade e à justiça do seu conteúdo, daí o brocardo veritas, non autorictas facit legem10 . Resulta claro que no Direito pré-moderno, que perdurou até o marco da Revolução Francesa, havia uma inegável influência do jusnaturalismo11, 9 Isso não quer dizer, sob nenhum aspecto, que o Direito pré-moderno tenha sido justo por excelência, não mesmo, já que não se pode negar a forma autocrática e despótica do seu exercício nos mais diversos rincões do mundo; contudo, o seu fundamento se baseava na imanência dos direitos, o que já revelava uma preocupação no homem nos ordinários parâmetros de justiça. Ademais, não se pode olvidar a influência da religião na composição do direito pré-moderno, como se pode observar nessa ligeira passagem (COULANGES, Fustel de. Ancient City. Translated by Willard Small. 4th. Boston: Lee and Shepard, 1882. p. 248): “Among the Greeks and Romans, as among the Hindus, law was at first a part of religion. The ancient codes of the cities were a, collection of rites, liturgical directions, and prayers, joined with legislative regulations. The laws concerning property and those concerning succession were scattered about in the midst of rules for sacrifices, for burial, and for the worship of the dead”. 10 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2005. p. 13-29. p. 15. 11 A expressão Direito natural é vaga, de modo que pode se referir precipuamente a normas morais, sem falar que seus princípios podem ser religiosos, antropológicos ou até mesmo analíticos (PECZENIK, Raimundo Márcio Ribeiro Lima 279 pois a lei carecia de um fundamento pautado na verdade ou no valor justo das coisas. De toda forma, o Direito pré-moderno, por se basear em grande parte na jurisprudência, tinha como relevante fonte de direito as decisões tomadas pelas pessoas autorizadas para tal fim, fazendo com que existisse uma pretendida regularidade nas decisões pautadas nos moldes consagrados pela cultura jurídica de cada época. Evidentemente, ainda que isso não representasse tecnicamente segurança jurídica, e mesmo justiça, fazia com que se concebesse uma regular afirmação dos direitos. Nesse contexto, em que não se observava uma Administração Pública concretamente definida, e o mesmo se podia dizer quanto à própria concepção moderna de Estado, haja vista, em linhas gerais, a estrutura estamental da sociedade e o perfil despótico dos governantes, mormente antes da Revolução Francesa, cumpre afirmar que o sistema de direitos e garantias, jungidos a uma regular organização e procedimentalização, era muito incipiente, de modo que, sem medo de errar, não havia como consolidar uma efetiva cobertura jurídica do homem12 em face de terceiros e da própria concepção de Estado até então existente. Portanto, a idealidade do justo ou do verdadeiro não expressavam uma necessária conquista de direitos, mas, sim, uma clara estatuição dos direitos por quem podia impô-los, mesmo que para isso fosse necessário arquear astuciosamente a bandeira da justiça. Desse modo, o processo na ambiência administrativa, quanto existia, tinha um caráter meramente cartorário, cujos resultados eram previamente condensados na frieza das determinações régias e/ou tiranas13. É dizer, o expediente do direito justo revelou-se um claro instrumento de consolidação de injustiças e, consequentemente, de limitação de direito e de contenção das transformações sociais, o que pode ser facilmente explicado, mormente Aleksander. A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence. Scientia Juris. Legal Doctrine as Knowledge of Law and as a Source of Law. Dordrecht, 2005, p. 83-84), fazendo com que impere uma diversidade de fundamentos, o que para a Ciência do Direito não representa um problema, salvo se vierem jungidos a elementos que acarretem sempre uma inevitável insegurança jurídica. Todavia, um problema insolúvel do Direito natural se relaciona à negativa da historicidade do direito. 12 A contextualização da cidadania era algo sem expressão à época, de modo que o termo cidadão foi simples e genericamente expressado pela palavra homem, já que este poderia ser desde um súdito ou escravo até os notáveis senhores da sociedade feudal, observados os largos extremos de possibilidades de exercício do direito de cada um deles. 13 Há alguma dúvida de que, em algumas pequenas cidades brasileiras, boa parte dos processos administrativos ainda segue esse odioso parâmetro decisório? Isto é, que processo administrativo não simboliza qualquer garantia ao cidadão, porquanto os resultados são prévia e galhardamente determinados pelo jugo político-econômico. Noutras palavras: não há processo, mas seu simulacro. 280 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 280-308 jan./mar. 2014 no contexto do Brasil colônia, pela tentativa de perpetuação de evidentes discriminações e subjugações entre povos e raças. 2 ESTADO LEGISLATIVO DE DIREITO Passadas as ligeiras considerações sobre os fundamentos do Direito pré-moderno, impende mencionar alguns pontos do Direito moderno, de forma a extrair (i) os parâmetros distintivos do paradigma anterior e, claro, (ii) conceber o seu fundamento. No Direito Moderno, que nasce com a forma do Estado Legislativo de Direito, tem-se a realização histórica do princípio da legalidade, de forma que, a partir daqui, o direito existe e é válido independentemente de ser justo14. Nesse ponto, teve capital importância a Constituição francesa, consolidada no período pós-revolucionário de 1789/1791, pois, apesar de não se configurar a primeira Constituição escrita, honraria tributada à Constituição do Estado de Virgínia de 1776, e até mesmo por ter sofrido influência da Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, obteve uma inegável universalidade, tanto que serviu de norte para as vindouras constituições europeias ou, de modo mais amplo, para as constituições de todo o mundo ocidental. Considerando esse novo modelo, a jurisprudência deixa de ser, de certa forma, fonte legitimação do direito, vez que impera a lei e o princípio da legalidade15, sem que isso constitua, por si só, uma necessária redução da importância da atuação judicial, já que o princípio da legalidade, como expressão de direitos e de disciplina jurídica, persiste até os nossos dias, só que, a toda evidência, as intervenções judiciais estão cada vez mais frequentes e também, algumas vezes, mais frenéticas. Nesse quadrante, tem-se o brocardo auctoritas, non veritas facit legem, que constitui o marco do positivismo jurídico16. Veja-se que o modo de constituição das normas não se centra no domínio ou conhecimento da natureza fundamental das coisas, mas, tão-somente, na convenção decorrente dos comandos criados pela autoridade competente para tanto. 14 FERRAJOLI, op. cit., 2005. p. 16. 15 Ibidem, p. 16. 16 Ibidem, p. 17. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 281 Portanto, inexiste um vislumbre ideológico17 assentado no que deva ser considerado justo; isto é, no conteúdo dos textos jurídicos, mas, sim, nos procedimentos e na forma de sua constituição. O positivismo jurídico constitui o marco teórico do Estado Legislativo do Direito, assim como o princípio da legalidade, que remonta aos cânones da Revolução Francesa, representa a linha central da atuação jurídica do Estado, pelo menos como forma de atuação e controle dos particulares. Por uma questão de coerência, não se pode dizer que a jurisprudência não tinha um papel importante no positivismo jurídico, haja vista a criação do direito através das normas de decisão18, acredita-se apenas que tal papel não era devidamente observado em face dos imperativos do próprio positivismo, que prestigiava a atividade judicial como uma atuação mecânica de clarividência da lei, quer dizer, atividade meramente de intelecção e não de criação, muito embora não se possa negar, em qualquer caso, a sua expressão volitiva19. Em rigor, nem mesmo o mais ferrenho dos positivistas poderia negar a inviabilidade lógica da ausência de criação dos direitos pelos magistrados no caso concreto, porém, e isso é evidente, pretendia-se arvorar uma compreensão da dogmática jurídica a partir da segurança dos parâmetros abstratos de resolução dos conflitos, pois, assim, e isso é aplicável à expressiva parcela da atuação decisional do Estado, traria previsibilidade e certeza aos eventuais desdobramentos conflitivos entre o Estado e os particulares e, claro, entre os próprios particulares. 17 Não se quer dizer que os fundamentos de uma determinada vertente do Direito sempre estejam jungidos a uma mera ideologia, mas que eles sempre expressam alguns substratos de uma ideia maior e, claro, as suas virtudes e os seus equívocos. Aliás, e não por outra razão, que Norberto Bobbio bem aventou e criticou o positivismo ideológico (BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. p. 223 e segs). 18 Nesse ponto, cumpre transcrever uma ligeira passagem doutrinária do maior mentor da doutrina positivista, na qual realça uma concepção diversa da inicialmente franqueada aos positivistas (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 391): “Dizer que uma sentença judicial é fundada em lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral”. Veja-se que o trecho denuncia claramente a ocorrência da discricionariedade judicial nos limites da moldura tracejada pela lei, de forma que isso representa uma verdadeira abertura conteudística na decisão judicial, na qual vai desaguar, inevitavelmente, na confluência dos princípios norteadores da contextura fática do conflito a ser dirimido. 19 KELSEN, op. cit., 2009. p. 391. 282 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 282-308 jan./mar. 2014 Porém, a admissão da discricionariedade judicial acarretou enormes inconvenientes à puritana perspectiva positivista. Ora, isso tende a criar uma amplitude decisória que, mesmo que os positivistas não reconheçam expressamente, abarca os princípios e, por conseguinte, os valores circundantes à questão a ser dirimida, uma vez que o imperativo da tutela jurisdicional é exigido em qualquer contexto, com ou sem resolução de mérito, com ou sem aplicação de regras20. Aqui, impõe-se um ligeiro contraponto. A perspectiva principiológica, no que evidencia uma pretensa superação do direito como sistema de regras, tende também a revelar, em última instância, apenas, e tão-somente, a regra do caso concreto. E isso fica ainda mais evidente quando a decisão apresentada, e tudo em função do seu acerto ou consenso, torna-se um parâmetro normativo a ser seguido nos casos vindouros, portanto, uma regra. Disso resulta que, a despeito dos meios ou mecanismos existentes, a expressão deôntica do direito sempre é veiculada em uma regra de decisão, isto é, quando os princípios e as regras são devidamente interpretados, levando-se em conta todos os fatores, ambos constituem, tão-somente, uma regra precisa e expressa21. Nesse contexto, calcado no Estado Legislativo de Direito, consolidou-se o que se convencionou chamar de Administração Pública burocrática, em que o exercício das funções públicas deveria ser permeado na lei em todos os seus meandros, de forma que a conduta não autorizada legalmente não poderia ser promovida pelo servidor sem, evidentemente, uma verdadeira ofensa ao princípio da legalidade22. 20 Nesse ponto, precisa e reflexiva é seguinte passagem doutrinária: “Si no se reconoce que algunos principios son obligatorios para los jueces, exigiéndoles en conjunto que lleguen a determinadas decisiones, entonces tampoco de ninguna o de muy pocas reglas puede decirse que son obligatorias para ellos“ (DWORKIN, Ronald. ¿Es el derecho un sistema de reglas? Cuaderno de Crítica 5. México-DF: Universidad Nacional Autônoma de México – UNAM, 1977. p. 41). 21 AARNIO, Aulis. Las reglas en serio. In: ______; VALDÉS, Ernesto Garzón; UUSITALO; Jyrki (Coord.). La normatividad del derecho. Barcelona: Gedisa, 1997. p. 17-36, p. 32. 22 O mais curioso é que a autoridade administrativa, bem afeita aos prognósticos do positivismo, e mesmo com acentuada aceitação, sempre fez uso da discricionariedade desregrada numa perspectiva assombrosa, tanto que os limites da atuação administrativa, evidenciada na limitação da discricionariedade, representou um dos grandes marcos da luta contra as várias formas de desmedido exercício do poder na Administração Pública, como bem denuncia a seguinte passagem abaixo: “La historia de la reducción de estas inmunidades, de esta constante resistencia que la Administración ha opuesto a la exigencia de un control judicial plenario de sus actos mediante la constitución de reductos exentos y no fiscalizables de su propia actuación, podemos decir que es, en general la historia misma del Derecho Administrativo” [ENTERRÍA, Eduardo García de. La lucha contra las inmunidades del poder en el Derecho Administrativo (Poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes normativos). Revista de Administración Pública – RAP, Madrid, nº 38, p. 159-205, mayo./ago. 1962. p. 166]. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 283 Obviamente, todo exercício da atividade administrativa deve encontrar fundamento em lei, e isso também é observado hodiernamente, apesar da redução da abstratividade e da generalidade das leis na atualidade23 em função da dinâmica das relações sociais em uma sociedade hipermoderna24, só que na burocracia apenas a lei em sentido estrito expressam, e até mesmo a diretriz regulamentar, os próprios e inabaláveis parâmetros de racionalidade da conduta dos servidores, olvidando-se, portanto, da pertinência da iniciativa dos agentes públicos e dos particulares como um mecanismo possibilitador de eficiência da gestão pública. Além disso, cumpre informar que no Estado Legislativo de Direito havia claros mecanismos formais25 de defesa dos direitos e garantias fundamentais, inclusive no âmbito da Administração Pública, que prestigiava a adoção de procedimentos que viabilize a concreção das pretensões dos administrados. Isto é, pelo menos do ponto de vista formal, existia o plano normativo da proteção jurídica, muito embora sem os necessários parâmetros de sua operatividade, já que não eram empreendidos os mecanismos processuais assegurador de direitos, mas apenas veiculadores de arquétipos processuais desprovidos de efetividade. Isso denuncia que abertura decisória do positivismo, que já expressa um grave problema na seara judicial, potencializa os seus efeitos na seara administrativa, uma vez que a miríade fática rompida na prossecução do interesse público exige um sem número de decisões sem precisos determinantes normativos, fato que pode ensejar o arbítrio, isto é, a negativa de uma discricionariedade regrada, o que não se coaduna com os nortes de qualquer modelo constitucional moderno. Afinal, “é claro que a lei não faculta a quem exercita atividade administrativa adotar providências absurdas, ilógicas, pois a norma de Direito não pode pretender disparates: muito menos permitir que o autor de um ato administrativo dê às palavras normativas o conteúdo e a extensão que bem lhe agrade, retirando dos vocábulos utilizados pela regra de direito o significado corrente, normal, que têm, para atribuir-lhes, a seu sabor, o sentido que ad hoc lhes queira emprestar” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 92-93). 23 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid: Trotta, 2009. p. 37. 24 Que é, sem sombra de dúvida, uma sociedade policêntrica e sincrônica; a primeira qualificadora decorre da existência de diversos pontos de convergência decisória na sociedade hipermoderna, inclusive, relevantes decisões, com reflexo em âmbito mundial, é tomada, muitas vezes, sem qualquer intervenção direta dos Estados ou organizações estatais; a segunda, expressa a configuração de um estágio de considerável sincronia na tomada de decisão entre os grandes centros econômicos, políticos e culturais, em todos os possíveis âmbitos espaciais, contanto que tais decisões repercutam no universo de atuação desses centros; desse modo, uma epidemia ou uma crise econômica demandam uma necessária sincronia de esforços na sociedade hipermoderna, senão não há como evitá-las ou contê-las. 25 Não se quer dizer que não existiam substratos substanciais nas normas de organização e procedimento, mas, tãosomente, salientar que a perspectiva material de consolidação de direitos não era a tônica da atuação estatal. 284 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 284-308 jan./mar. 2014 Todavia, e isso não pode ser olvidado, a relação entre o Estado e o administrado era focada numa perspectiva de rigidez procedimental26 fulcrada na lei, no que denota o reflexo de uma atuação estatal centralizadora, já que se tinha unidade e centralização do poder exercido em nome do povo e da Nação através de um Estado tido como absoluto27. Desse modo, ainda no Estado Legislativo de Direito, o modelo de Administração Pública patrimonial, já que o patrimonialismo possui uma enorme capacidade mimética, representava a força centralizadora do exercício autocrático do poder na ambiência administrativa, de forma que a atuação administrativa consagrava as práticas patrimonialescas, em particular a apropriação privada dos recursos públicos por meio de um sistema político de cooptação dos cargos públicos e, desse modo, permeava a vontade soberana da autoridade pública. 3 ESTADO CONSTITUCIONAL28 Sabe-se que a Constituição Federal de 1988 adota terminologia diversa, quer dizer, fórmula política diversa, a saber, Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput); logo, se fosse seguido um parâmetro estritamente normativo, melhor dizer parâmetro textual, por certo, a expressão cunhada tinha de ser a albergada no texto constitucional. Contudo, inclina-se pelo termo Estado Constitucional por três motivos: (i) a democracia consagra a inarredável garantia política para o 26 Lembrando-se sempre da clara advertência de Aleksander Peczenik no sentido de que “[…] cuanto mayor es el grado de predecibilidad del ejercicio del poder público sobre la base de reglas jurídicas, tanto mejor es el Estado de derecho” (PECZENIK, Aleksander. Derecho y Razón. México-DF: Ediciones Coyoacán, 2003, p. 129), porém isso não quer dizer que o maio grau de certeza deva decorrer necessariamente das prescrições gerais e abstratas de um sistema jurídico. 27 MEDAUAR, Odete. Evolução do Direito Administrativo. Boletim de Direito Administrativo (BDA), São Paulo, ano 07, nº 05, p. 285-289, maio 1992. p. 285. 28 Considerando a importância do constitucionalismo no mundo, tem-se que três grandes famílias constitucionais podem ser identificadas no constitucionalismo moderno, a saber, (i) a de matriz inglesa que se caracteriza pelo viés consuetudinário e flexível; (ii) a de matriz americana que legou o federalismo e o controle difuso; e (iii) a de matriz francesa de caráter revolucionário com forte significação na separação dos poderes (MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 71-110). Só que, no século XIX, e a depender das particularidades que essas famílias tiveram na efetivação das Constituições estatais, não se pode olvidar que o “[...] constitucionalismo foi um compromisso histórico entre a monarquia tradicional e a burguesia progressiva [...]” (MAURER, Hartmut. Ideia e realidade dos direitos fundamentais. In: ______. Contributos para o Direito do Estado. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 15-34, p. 19), exercendo, assim, um papel conservador na luta pela aquisição e consolidação dos direitos mediante concessões que demovessem eventuais revoluções transformadoras da realidade social e política vigente. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 285 exercício do poder; portanto, não há como engendrar uma compreensão política de Estado, mormente o Constitucional, sem a observância do paradigma do Estado Democrático; (ii) a ideia de Direito já se encontra na palavra Estado, pois o Estado é necessariamente de Direito, não há como conceber o Estado moderno sem sua vinculação ao Direito; e (iii) a palavra Constitucional quer expressar, dentre outros diversos fatores, que a ordem jurídica tem o seu centro de sustentação/fundamentação na Constituição, isto é, nas normas constitucionais que, dentre outras diretrizes, prestigia a democracia, no que revela a importância do exercício do poder conforme os parâmetros democráticos29. Antes de adentrar na temática do Estado Constitucional, cumpre divisar dois sentidos sobre o termo Estado de Direito, a saber, (i) em sentido amplo, fraco ou formal, Estado de Direito designa-se todo ordenamento em que os poderes públicos são conferidos pela lei, bem como exercitados nas formas e com os procedimentos legalmente estabelecidos30 - 31; e (ii) em sentido forte ou material a expressão Estado de Direito designa apenas aqueles ordenamentos em que os agentes públicos não estão apenas sujeitos à lei em sentido formal e, portanto, assim vinculados a ela, mas, também, com relação ao seu conteúdo. Quer dizer, há uma vinculação ou respeito aos princípios substanciais do ordenamento, tudo devidamente expressado nas normas constitucionais que salientam, dentre outras coisas, a divisão dos poderes e os direitos fundamentais32. Luigi Ferrajoli sustenta, em face dos dois sentidos acima assinalados, uma relação entre o sentido fraco ou formal com o modelo paleojuspositivista do Estado Legislativo de Direito (ou Estado Legal) e, por outro lado, defende uma relação entre o sentido forte ou material33 com o modelo neopositivista do Estado Constitucional de Direito (ou Estado Constitucional) 34. 29 Aliás, a expressão Estado Constitucional Democrático é empregada por ALEXY, Robert. Los Derechos Fundamentales en el Estado Constitucional Democrático. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2005. p. 31-47. 30 FERRAJOLI, op. cit., 2005. p. 13. 31 Esse sentido representa o termo em alemão chamado de Rechtsstaat. 32 Ibidem, p. 14. 33 The Rule of Law inglês foi uma das primeiras manifestações de Estado de Direito em sentido forte. Deve-se ter em conta que a Grande Ilha não se alinhava ao modelo jurídico europeu continental, já que possuía disposição própria de promover o exercício do poder e a salvaguarda dos direitos dos cidadãos em função de uma longeva de teia de direitos remonta à Carta Magna do Rei João sem Terra de 1215, até mesmo por isso os ingleses nunca se preocuparam com a ideia de direitos fundamentais de caráter universal, mas sim nos direitos do povo inglês. 34 FERRAJOLI, op. cit., 2005. p. 14. 286 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 286-308 jan./mar. 2014 Agora, na perspectiva do Estado Constitucional quatro importantes mudanças são observadas em relação aos modelos anteriores: (i) a validez das normas não depende apenas da sua forma de produção, mas da coerência delas com os princípios constitucionais; ademais, as normas formalmente válidas podem ser materialmente inválidas, justamente por contraposição aos princípios constitucionais; (ii) o estatuto epistemológico da ciência jurídica sofre uma alteração renovadora, de modo a permitir uma relação de divergência entre a Constituição e a Legislação não apenas de caráter explicativo, mas, sim, crítico e projetivo em relação ao próprio objeto de suas prescrições; (iii) muda o papel da jurisdição, pois não se limita a aplicar a lei sob o signo do automatismo judicial35, mas, e isso se revela bem importante, a analisar a sua compatibilidade com a Constituição; e (iv) a subordinação das leis aos princípios constitucionais com vista a modelar uma dimensão material da democracia36. Numa alusiva síntese, pode-se mencionar que a fórmula política do Estado Constitucional traz a consagração de uma operativa fórmula que permeia o equilíbrio político-social com vista a evitar a ocorrência de dois arbítrios de antanho, nem tão pretéritos assim, corporificados na autocracia absolutista e nos odiosos privilégios de ranços medievais37. Como se pode observar, no Estado Constitucional há uma preocupação em salvaguardar a supremacia da Constituição como forma de consolidação dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, o que pode ser aferida na operativa compatibilidade dos comandos normativos de proteção da Constituição, que pode ser chamado de sistema de garantia do texto constitucional, com os mecanismos da jurisdição constitucional destinados à defesa do núcleo inquebrantável dos direitos fundamentais consagrados na nova ordem vigente. Isto é, o parâmetro da atuação normativa, em qualquer caso, deve guardar harmonia com o texto constitucional e, mais que 35 O condenável automatismo judicial, na sua sempre criticável jurisprudência mecânica, representa um verdadeiro risco aos fins do próprio Direito, já que possibilita a concreção de decisões judiciais díspares em face de contexturas idênticas ou assemelhadas, justamente por não refletir uma necessária cientificidade no conteúdo dos julgados, mas, tão-somente, carrear o amparo pragmático da política judiciária, donde “las personas pueden ganar o perder más por el asentimiento de un juez que por cualquier acto general del Congreso o Parlamento” (DWORKIN, Ronald. El Imperio de la Justicia. De la teoría general del derecho, de las decisiones e interpretaciones de los jueces y de la integridad política y legal como clave de la teoría y práctica. Barcelona: Editorial Gedisa, 1992. p. 15). 36 FERRAJOLI, op. cit., 2005. p. 16-17. 37 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 90. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 287 isso, com os valores superiores38-39 que a ordem constitucional emana e, desse modo, preservando a própria Constituição, faz recrudescer os prognósticos de realizabilidade dos direitos fundamentais. Na seara administrativa, portanto, o processo administrativo cumpre o papel de tentar permear os direitos fundamentais na consecução da atuação administrativa, donde desponta a importância de aquilatar os precisos esteios da fórmula política do Estado Constitucional, já que a concreção dos enunciados normativos, devidamente decantados na confluência dos imperativos constitucionais, exige uma atividade administrativa consentânea com a realizabilidade dos direitos, pois, não raras vezes, ela costuma caminhar, infelizmente, alheia aos desígnios constitucionais que alardeiam a consolidação dos direitos. Assim sendo, a lei, como expressão de juízos hipotéticos destinados à regulação social, não pode ser vista como mero jugo de palavras com sentidos e alcances pré-determinados, pois, a depender do caso concreto e em face de ponderáveis e racionais propósitos de sua aplicação, deve ser perseguida uma efetiva aproximação dos comandos legais com os valores expressos ou implícitos devidamente albergados na Carta Fundamental, contanto que não sejam inobservados os limites do parâmetro normativo definido pelo legislador, uma vez que a concretização de direitos não legitima uma atuação que represente o desconhecimento da mensagem do Parlamento. Dessarte, também se prestigia o alcance da democracia material, quer dizer, o fomento e a aplicação de mecanismos que possibilitem uma atuação política dos cidadãos, em todos os níveis de poder, na promoção da atividade decisória do Estado. Essa ideia de envolvimento do cidadão convola-se com a ideia de democracia de ação coletiva comunitária40, na qual concebe um 38 A Constituição espanhola reconheceu a importância de determinados valores superiores na ordem constitucional de 1978, nestes termos: “Artículo 1.1. España se constituye en un Estado social y democrático de Derecho, que propugna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la igualdad y el pluralismo político”. Aliás, tais valores representam um autêntico pórtico normativo da Constituição espanhola, de maneira que os demais princípios constitucionais não possuem o mesmo alcance e nem a mesma fundamentalidade (PECES-BARBA, Gregorio. Los Valores Superiores. 1. ed. 1ª reimpresión. Madrid: Tecnos, 1986. p. 37 e 41). 39 Aqui, é necessário um ligeiro tergiversar, a saber, existem tais valores superiores na nossa ordem constitucional, tal como a preceituada na Constituição espanhola de 1978? Notadamente, a Constituição Federal de 1988 não adota a mesma terminologia, porém não há como negar que os fundamentos do art. 1º constituem o ápice da contextura valorativa da nossa ordem constitucional. Cumpre lembrar que os valores superiores, longe de um vislumbre jusnaturalista, expressam o reconhecimento, haja vista a historicidade e os dilemas de cada povo, de inarredáveis diretrizes axiológicas para a fecunda realizabilidade dos prognósticos constitucionais, justamente para impedir ou afastar os horrores de antanho. 40 DWORKIN, Ronald. Constitutionalism and Democracy. European Journal of Philosophy, Hoboken, v. 03, number 01, p. 02-11, Apr. 1995. p. 04. 288 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 288-308 jan./mar. 2014 grupo necessário e distinto das ações meramente individuais e que promove efetivamente uma conquista de um propósito comum e legítimo, o que demonstra uma atuação uti cives dos membros da comunidade política. Sobremais, por tributar, ou simplesmente reconhecer, uma inegável importância à cultura de um povo na formulação política de um Estado, Peter Häberle concebe o Estado Constitucional como uma conquista cultural, de forma que empreende a existência de certos elementos ideais e reais nesse tipo de Estado, muito embora eles não sejam alcançados simultaneamente41, tais como, dentre outros, os seguintes: (i) a dignidade da pessoa humana decorrente da cultura de um povo; (ii) o princípio da soberania popular; (iii) a Constituição como um contrato que constitua um novo marco para a sociedade e que possua valores orientadores; (iv) o princípio da divisão dos poderes; (v) as garantias dos direitos fundamentais; e (vi) a independência da jurisdição42. Com efeito, não há como afastar o entendimento de que a ambiência social, em que se reflete a cultura de um povo, é precipuamente responsável pelos processos evolutivos relacionados ao paradigma de Estado adotado ou assumido em determinada época. Aliás, essa mesma ambiência social explica a razão da enorme dissonância entre as diretrizes do paradigma constitucional vigente e a realidade constitucional observada no seio da sociedade: a cultura de imobilidade ou de conservadorismo empedernida na aplicação dos novos institutos jurídicos43 ou dos fundamentos da Constituição, pondo em xeque ou em desconfiança os prognósticos de realizabilidade dos preceitos constitucionais44. Por fim, e em forma de síntese, tem-se que na época pré-moderna o jusnaturalismo constituiu a filosofia jurídica dominante, de modo que não se tinha o monopólio estatal da produção jurídica, haja vista a imanência dos direitos consagrados na ordem social; por outro lado, 41 A própria ideia da Constituição como um processo evolutivo e aquisitivo de direitos já revela a inviabilidade de eventual concomitância inicial de tais elementos numa perspectiva consolidadora de direitos no meio social. 42 HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Trad. Héctor Fix-Fierro. México-DF: UNAM, 2003. p. 01-02. 43 Como é o caso do mandado de injunção, do habeas data e da ADPF. 44 Em Portugal, tal dilema é explicitado nos seguintes termos: “Também entre nós se proclama a ‘realidade da inexistência constitucional’ e se considera o ‘retorno à constituição como hipótese de irrealidade’. A ‘força normativa dos factos’ é suficientemente dura para não se levar a sério as propostas de eliminação do desfasamento entre o texto e o contexto através de um novo poder constituinte” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A Constituição de 1976 dez anos depois: do grau zero da eficácia a longa marcha através das instituições. Revista Crítica de Ciências Sociais, Lisboa, nº 18/19/20, p. 269-279, fev. 1986, p. 270). Raimundo Márcio Ribeiro Lima 289 o positivismo caracteriza-se pelas codificações e pelo nascimento do Estado moderno, com que um sopro de racionalidade e segurança nas relações jurídicas; e o constitucionalismo moderno notabiliza-se pela introdução da garantia jurisdicional da rigidez da Constituição45. Aliás, sem medo de errar, até mesmo pela contextura favorável da ambiência democrática e garantidora de direitos, é justamente no Estado Constitucional que o processo administrativo ganha força como instrumento da atuação administrativa, haja vista o seu caráter instrumental e decididamente consagrador dos valores e princípios da nova ordem constitucional, representando, assim, o mecanismo ideal na integração de interesses dos membros da comunidade política, sempre tão intensos e, muitas vezes, conflitantes. 4 PROCESSO ADMINISTRATIVO46 Tendo em vista as mais diversas atividades administrativas a serem promovidas pelo Estado, exsurge a necessidade de instituir meios para imprimir segurança ou, no mínimo, regularidade às decisões do Poder Público; assim sendo, o processo administrativo constitui a sede própria para a maturação e exposição, devidamente externada no ato administrativo pertinente, das posições tomadas pelos Entes Políticos e os seus desdobramentos orgânico-funcionais. Isto é, ele é a sede própria de integração de interesses no âmbito da Administração Pública. Tudo isso confere ao processo administrativo uma importante função na consecução de qualquer atividade estatal, pois nele se inserem, na sua larga teia de eventos, todas as questões relacionadas aos petitórios, litigiosos47 ou não, dos administrados, assim como às decisões tomadas unilateralmente pela estatalidade. 45 FERRAJOLI, op. cit., 2005, p. 20. 46 A conceituação de processo administrativo encontra-se na passagem abaixo: “Representa um instrumento do Estado Democrático de Direito destinado a preparar, numa relação jurídica administrativa substantiva, sempre que possível através da participação administrativa, donde extrai o seu lastro legitimatório, uma decisão final capaz de afetar direta ou indiretamente os cidadãos ou o próprio Estado, que se revela por meio de um ato administrativo, pautada na estabilidade das relações jurídicas e promovedora de justiça social, justamente por não descurar dos valores superiores da nossa ordem constitucional, mormente o princípio da dignidade humana” (RIBEIRO LIMA, Raimundo Márcio. Administração Pública Dialógica. Curitiba: Editora Juruá, 2013. p. 141-142). 47 Não se identifica o processo administrativo pela efetiva existência de um conflito de interesses, mas, tão-somente, pela possibilidade de o Poder Público afetar direitos ou interesses dos cidadãos, no que impõe o devido cumprimento das prescrições do art. 5º, inciso LV, da CF/88, contanto que a ampla defesa e o contraditório já não tenham sido observados em se judicial, nesse sentido, vide: STF, Primeira 290 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 290-308 jan./mar. 2014 Nesse contexto, não constitui qualquer exagero afirmar que o processo administrativo representa a estrutura básica para formação da decisão do Poder Público e, consequentemente, reúne um complexo sistema de garantias para assegurar uma regular atuação da Administração Pública. Na verdade, e isso revela um elementar reconhecimento da realidade processual administrativa brasileira, o processo administrativo ainda não cumpre fielmente os propósitos acima decantados, o que não retira, evidentemente, a sua importância na consolidação de um Estado Democrático de Direito, conforme a fórmula política estampada na Carta Fundamental, pois corporifica um instituto com inegável vocação garantística, sem falar que expressa um sopro legitimador às manifestações do Poder Público, justamente por respeitar as regras processuais do jogo democrático, devidamente consagrado na fórmula do devido processo legal na sua feição substantiva. Uma indagação deve ser formulada: qual a razão de o processo administrativo, independentemente do sistema de jurisdição, é igualmente adotado, muito embora com diferentes níveis de qualidade decisória, como sede de integração de interesses? Primeiramente, deve-se considerar que a Administração Pública adota ritos para empreender as suas mais diversas atividades, alcançando, assim, um nível desejável de formalidade para a definição das decisões administrativas. Aliás, isso apenas expressa a existência de determinações legais que conformam uma habitual, e também pretensamente racional, consecução das atividades administrativas48. Dessa forma, assoma em importância a procedimentalização das atividades administrativas, particularmente a racionalidade49 dela para contemplar uma precisa integração de interesses na ambiência processual administrativa e, mas que isso, controlar o exercício do poder administrativo. Em rigor, pode-se gizar que o processo administrativo representa uma reação do Estado Liberal contra as arbitrariedades promovidas pela Administração Pública50, uma vez que não basta permear o sistema jurídico Turma, MS nº 29.247/RN, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 20.11.2012, DJe-036, publicado em 25.02.2013. Obviamente, mero procedimento administrativo, que ocorre em maior número, não possui essa importante inferência processual e, muito menos, os expedientes administrativos, ainda mais numerosos. 48 PASTOR, Juan Alfonso Santamaría. Principios de Derecho Administrativo General. v. II. 2. ed. Madrid: Iustel, 2009. p. 25. 49 Essa pretensão de racionalidade exige, sobretudo, uma diuturna capacidade de adaptação do procedimento às demandas administrativas existentes, sem, contudo, perder as características da processualidade previamente em lei ou regulamento. 50 PASTOR, op. cit., 2009. p. 26. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 291 de nortes legais para o exercício do poder administrativo, é preciso mais que isso, é necessário estabelecer diretrizes processuais capazes de concretizar os propósitos que animam determinada disciplina legal. Desse modo, os ranços do antigo regime na promoção da gestão pública, reverberada na formação autocrática da decisão administrativa, sofre um forte golpe com a consagração do processo administrativo, cuja procedimentalização limita as possibilidades de o Poder Público empreender caprichos ou arbitrariedades na pretensa consecução do interesse público. Numa palavra: processo é garantia, todavia, o grau de sua efetividade não depende apenas da norma constitucional ou legal, vai mais além, cotejando-se, inclusive, a dinâmica da normatividade constitucional51 em cada ordem jurídica. Coteja-se, ainda, que o agigantamento da Administração Pública demanda uma precisa configuração da hierarquia administrativa e uma definição dos papéis dos agentes públicos52, criando, assim, uma normalização funcional dos órgãos e entidades estatais e tal realidade, evidentemente, é comportada na ideia de processo administrativo, uma vez que nele são concretizados os claros parâmetros do exercício do poder administrativo, mormente (i) os que se vinculam à disciplina do funcionamento do aparato orgânico-funcional do Estado, até mesmo para alcançar a boa ordem das atividades administrativas e, no que se revela igualmente importante, (ii) os que se prendem à determinação dos procedimentos e, com isso, uma possível previsibilidade das medidas a serem tomadas pelo Poder Público53. Sobremais, a perspectiva burocrática de empreender a gestão pública exige a segurança dos procedimentos adotados pelo Poder Público, daí a importância em estabelecer os modelos procedimentais destinados a alcançar os fins administrativos, no que vai prestigiar a racionalidade da procedimentalização estabelecida no seio da Administração, fazendo com que a seara administrativa tenha menos trabalho para realizar 51 A expressão é precisamente elucidada na passagem abaixo: “Entre dois aspectos principais o teor literal de uma prescrição juspositiva é apenas a ‘ponta do iceberg’. Por um lado, o teor literal serve, em regra, à formulação do programa da norma, ao passo que o âmbito da norma normalmente é apenas sugerido como um elemento coconstitutivo da prescrição. Por outro lado, a normatividade, pertencente à norma segundo o entendimento veiculado pela tradição, não é produzida por esse mesmo texto. Muito pelo contrário, ela resulta dos dados extralinguísticos de tipo estatal-social: de um funcionamento efetivo, de um reconhecimento efetivo e de uma atualidade efetiva desse ordenamento constitucional para motivações empíricas na sua área; portanto, de dados que mesmo se quiséssemos nem poderiam ser fixados no texto da norma no sentido da garantia de sua pertinência” (grifos do autor) (MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. Trad. Peter Naumann. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 54-55). 52 No que já evidencia uma possível matriz sobre a diversidade da qualidade decisória no processo administrativo, a depender da ordem jurídica. 53 PASTOR, op. cit., 2009. p. 27. 292 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 292-308 jan./mar. 2014 os seus propósitos, justamente porque não terá que discutir qual o procedimento a ser adotado em face de cada demanda administrativa, mas, simplesmente, empreender o procedimento pré-definido54. Atualmente, o Poder Público não possui a pretensão de definir os nortes da processualidade administrativa de modo absoluto, uma vez que os parâmetros procedimentais devem ser flexíveis, justamente para permitir uma possível adequação à dinâmica da inarredável facticidade nas relações jurídicas administrativas, no que exige o regular exercício da discricionariedade instrutória55 por parte da Administração Pública. Em outras palavras, exige-se muito mais que meras concreções procedimentais, pois o processo administrativo deve alcançar fins ou propósitos sem descurar: (i) do mínimo de previsibilidade procedimental; e (ii) da necessária qualidade da atividade processual, o que não seria possível com a invariabilidade da procedimentalização adotada pela Administração Pública. Portanto, no Estado Constitucional o processo administrativo é um instrumento de integração de interesses e, nessa qualidade, o Estado não pode prescindi-lo, sem falar que ele representa um mecanismo para democratizar o processo de definição da decisão administrativa, uma vez que ele permite o envolvimento político da sociedade civil, por meio das consultas públicas ou audiências públicas56, na contextura das grandes questões administrativas. Por fim, cumpre gizar que o ato administrativo não possui mais a galharda hegemonia de outrora na contextura da atuação administrativa, uma vez que a ambiência processual que o parteja tem sido objeto de uma crescente e intensificadora fonte de estudos no Direito Administrativo moderno, pela simples e elementar razão de ela expressar os nortes da perfectibilização do 54 PASTOR, op. cit., p. 27. 55 O núcleo compreensivo da discricionariedade instrutória é explicitada na passagem abaixo: “A discricionariedade instrutória pode descobrir-se [...] nas normas de conduta sobre as acções procedimentais, constem de procedimentos especiais ou do procedimento modelo, sendo a discricionariedade assim conferida ao abrigo de normas que conferem alternativas […]: decorre de normas permissivas, de normas impositivas com alternativas disjuntivas na estatuição ou, apesar de menos frequente, quer em termos genéricos, quer especificamente na discricionariedade instrutória, de normas proibitivas que, ao vedarem comportamentos procedimentais, admitem outros implicitamente” (DUARTE, David. A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa. A teoria da norma e a criação de normas de decisão na discricionariedade instrutória. Coimbra: Livraria Almedina, 2006. p. 533). 56 Sobre a temática, vide: (i) o interessante trabalho de BIM, Eduardo Fortunato. Audiências Públicas no Direito Administrativo e Ambiental. In: MORAES, Alexandre de; e KIM, Richard Pae (Cord.). Cidadania. O novo conceito jurídico e sua relação com os direitos fundamentais individuais e coletivos. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 201-252; e, (ii) numa perspectiva parcialmente diversa, RIBEIRO LIMA, op. cit., 2013. p. 392-425. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 293 ato administrativo. Em outras palavras, conhecer a decisão, e mesmo cumprila, não exaure a senda conformadora da manifestação estatal, imprescindese discutir a razão de ser das coisas ou o porquê delas serem de um modo ou de outro e, por evidente, tais questionamentos não são possíveis em face de um ato administrativo, mas, sim, no processo administrativo que o antecede. 5 ESTADO CONSTITUCIONAL E PROCESSO ADMINISTRATIVO Antes de tudo, cumpre gizar que o processo administrativo representa uma garantia jurídica dos cidadãos, porque corporifica, simultaneamente, um instrumento de integração de interesses e um mecanismo de controle da atuação estatal. Daí, a importância do processo administrativo é facilmente demonstrada nos permeios do Estado Constitucional57, pois ele constitui um instrumento para exercício e controle58 da atividade administrativa. E não apenas isso, vai mais além, e de modo mais preciso, regula (i) o exercício das prerrogativas públicas, que devem ser sempre instrumentais; (ii) os direitos subjetivos dos administrados; e (iii) as liberdades públicas59. Ademais, e sob a ótica da tutela coletiva de direitos, há processos administrativos que extrapolam, e muito, a mera ordem dos interesses individuais, já que empreende questões que afetam direta ou indiretamente várias pessoas ou, conforme o caso, toda uma coletividade. Nesse sentido, a atividade processual administrativa ganha os ares da objetividade jurídica, na qual empreende regras, princípios e valores que devem ser observados na relação jurídica administrativa, fazendo com a primazia de tal ordem objetiva afastem empeços à efetiva consolidação de direitos ou, no mínimo, estabeleça os cânones para uma regulação prossecução do interesse público. Ora, a tutela da ordem objetiva é uma das mais evidentes implicações do Estado Constitucional na seara administrativa. Tal questão é bem relevante, 57 O mesmo não se pode dizer no Direito pré-moderno e no Estado Legislativo. 58 Nesse sentido, tem-se uma a seguinte exposição doutrinária (DROMI, Roberto. Derecho Administrativo. 5 ed. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1996. p. 199): “No procedimento administrativo importa: 1) a legitimação ativa para solicitar informação clara, veraz e completa sobre as atividades desenvolvidas pelo Estado; 2) o princípio da publicidade como regra e do segredo como exceção; e 3) as exceções ao princípio da publicidade baseadas em pressupostos limitados, taxativos e fixados em lei”. 59 DROMI, op. cit., 1996. p. 759. 294 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 294-308 jan./mar. 2014 para exemplificar, basta observar a existência de infindáveis conflitos entre os cidadãos e a Administração Pública sobre direitos que se afiguram evidentes na ordem constitucional vigente, porém, e isso não raras vezes acontece, tais direitos são centrados numa trôpega regulamentação legal, na qual o espírito doentio de algumas autoridades públicas é demonstrado no mais horrendo perfil de uma atuação administrativa castradora de direitos e, claro, com uma atuação corporificada na desfaçatez do cristalino cumprimento de um imperativo legal ou regulamentar canhestro60. Portanto, a perspectiva objetiva da atividade processual administrativa acaba por revelar que a ambiência social permeada numa relação jurídica administrativa substantiva, portanto, centrada nos cânones constitucionais, traz benefícios concretos a toda coletividade61 e pode, evidentemente, reduzir os conflitos entre os cidadãos e a Administração Pública, seja por ela carrear uma proposição corretiva da atuação do Poder Público, seja por expressar os interesses partejados pela coletividade e isso, por certo, somente é possível numa relação de diálogo entre o Poder Público e a sociedade civil. Dessa forma, a democratização da relação jurídica administrativa é uma clara implicação do Estado Constitucional. Por conta disso, cumpre gizar que o processo administrativo não pode revelar-se um círculo fechado de integração de interesses, isto é, não há como admiti-lo sob o estigma da atuação processual monológica, nem mesmo quando decide questão meramente técnica, cuja capacidade dos órgãos ou das entidades é plenamente reconhecida, uma vez que tal procedimento pode fazer com que o exercício da jurisdição administrativa restrinja-se ao juízo decisório do gestor público, isto é, limite-se ao horizonte cognitivo da burocracia administrativa. 60 Veja-se o caso da solução de continuidade no serviço público. Explica-se: o MPOG exige a vacância do cargo no mesmo dia em que o cidadão entrar em exercício em outro cargo inacumulável. Ora, que candidato nomeado pode fazer diante de uma exigência estúpida dessa? Rezar, apenas. É dizer, a identidade de data, na maioria das vezes, revela-se impossível, seja em função de questões fáticas ou espaciotemporais, seja em função de atos administrativos expedidos independentes do desvelo do candidato. Aqui, a solução de continuidade não é uma questão temporal, mas jurídica, e é demonstrada na impossibilidade de o candidato nomeado realizar, simultaneamente, os trâmites exigidos por órgãos ou entidades públicas diversas. Só uma mente doentia não consegue enxergar tal ponderação e somente a estupidez da atuação administrativa pode consagrar uma exigência de tal natureza. 61 É dizer, “where settled legal standards govern the allocation of welfare benefits, we may conclude that the society has decided that welfare ought to be distributed according to those standards. The careful and accurate application of the standards means that welfare is distributed as society wishes, and in that sense the social good is realized” (GALLIGAN, D. J. Due process and fair procedures. A study of Administrative Procedures. Oxford: Clarendon Press, 1996. p. 31). Raimundo Márcio Ribeiro Lima 295 É dizer, sem o controle da processualidade dialógica, em boa parte dos casos, resulta inviabilizado a aferição dos limites decisórios dos poderes administrativos, matéria necessariamente afeta à revisibilidade judicial dos atos da Administração Pública62, pela simples razão de que os fatos relevantes à questão administrativa não poderão ser precisamente assentados em juízo. Em contraponto, uma excessiva participação administrativa possui o inconveniente de retardar demasiadamente os planos de regulação e prossecução do interesse público, fulminando, assim, a realizabilidade da agenda do Poder Público, que exige uma prática e dinâmica forma de concreção das prestações públicas em exíguos lapsos temporais. É dizer, tal compreensão levaria ao entendimento de que a lógica progressiva da participação desaguaria na progressiva lógica do desastre na consecução do interesse público63. Nem tanto o mar, nem tanto a terra. A dialogia na ambiência administrativa é centrada no plano da realizabilidade dos direitos e, portanto, na racionalidade no exercício do status activus processualis, de forma que a intensificação da participação administrativa, no que prestigia o envolvimento político do cidadão na gestão pública, não pode ser mensurada pela quantidade das vias participativas, mas, sim, pela qualidade delas diante do universo das possibilidades administrativas. Pois bem, considerando as assertivas acima, quais implicações fático-jurídicas podem ser dessumidas na configuração do processo administrativo no Estado Constitucional? Naturalmente, a interrogação impõe o reconhecimento de que o paradigma constitucional impulsiona uma nova ordem na consecução da atividade processual administrativa, devidamente revelada nos seguintes e importantes pontos: (i) o processo administrativo tem por objetivo permear uma inarredável relação discursivo-operativa no exercício da função administrativa, a saber, democracia e atuação pública64, uma vez que ele carreia os nortes para a prossecução do exercício do poder administrativo, mormente as diretrizes procedimentais 62 SCHWARTZ, Bernard. Mixed Questions of Law and Fact and the Administrative Procedure Act. Fordham Law Review (FLR), New York, v. XIX, number 01, p. 73-87, March 1950. p. 80. 63 MASHAW, JERRY L. Due Process in the Administrative State. New Haven: Yale University Press, 1985. p. 262-263. 64 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución. Estudios de Teoría Constitucional de la sociedad abierta. Estudio preliminar y traducción de Emilio Mikunda-Franco. Madrid: Tecnos, 2002. p. 131. 296 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 296-308 jan./mar. 2014 para promoção de uma Administração Pública mais democrática e, claro, prestigia os cânones processuais corporificados nos valores, princípios e regras da nossa ordem constitucional; (ii) a instrumentalidade do processo, calcada na adequação procedimental, deve ser verdadeiramente dirigida à prossecução do interesse público e não trilhar o mero seguimento de uma procedimentalização rígida, possivelmente canhestra em função do imobilismo de seus propósitos, uma vez que os fins da atuação administrativa, por guardar estreita relação com os imperativos constitucionais, não pode abonar qualquer resultado. Isto é, o resultado do processo administrativo não pode ser qualquer ato, mas apenas aquele que revela uma precisa sintonia com a norma constitucional65; (iii) a racionalidade decisória alcança um patamar de indiscutível pertinência na agenda estatal e a razão é simples: não há como os processos administrativos consagrar determinações que destoa a lógica e que chega mesmo a colocar em dúvida a ética da autoridade pública ou do tribunal administrativo. Portanto, e apenas para exemplificar, (1) não há como admitir a devolução de valores, por eventual acúmulo indevido de cargo público, quando o servidor já se encontrava licenciado, sem remuneração, em um dos cargos públicos acumulados; (2) exigir o cumprimento de determinações do contrato administrativo que acarrete maior onerosidade à prestação do serviço público, sem, contudo, representar qualquer benefício imediato ou mediato à própria Administração Pública, contanto que, em qualquer caso, reste preservada a moralidade administrativa; (3) negar a recomposição de preços no contrato administrativo, por conta de discutível parâmetro legal ou regulamentar, e, logo em seguida, promover contratação emergencial com valores exponencialmente maiores; (4) negar a nomeação de candidato em virtude de erro procedimental da própria Administração Pública, tal como ocorre na hipótese de deficiente publicidade dos atos administrativos ou, ainda, em função de nomeações desprovidas de qualquer efetividade de êxito, isto é, 65 Nesse ponto, transcreve-se um preciso escólio doutrinário: “No direito constitucional evidencia-se com especial nitidez que uma norma jurídica não é um ‘ juízo hipotético’ isolável diante do seu âmbito de regulamentação, nenhuma forma colocada com autoridade por cima da realidade, mas uma inferência classificadora e ordenadora a partir da estrutura material do próprio âmbito social regulamentado” (MÜLLER, op. cit., 2010. p. 58). Raimundo Márcio Ribeiro Lima 297 sem o efetivo conhecimento dos interessados66; e (5) não concessão de colação de grau, com sacrifício de direito fundamental social, em função da rigidez do calendário acadêmico, na hipótese de o estudante ter cumprido todos os créditos da grade curricular. Desse pequeno rol, inclusive facilmente potencializado, dessumese que na ambiência administrativa, e não apenas nela, a atividade decisória ainda se revela órfã de uma necessária racionalidade, e isso tem acarretado uma despicienda intensificação dos conflitos entre o Poder Público e o cidadão; (iv) o prestígio pelo envolvimento político do cidadão na definição das políticas públicas. Trata-se de tarefa bem árdua, seja pela habitual apatia cívica do brasileiro, seja pelo custo da participação administrativa, todavia ela não pode ser desprezada em função de tais obstáculos, pelo contrário, tais empeços apenas revelam o potencial universo das prestações públicas numa gestão pública democrática, isto é, aquela que não despreza uma visão compartilhada na prossecução do interesse público, pois, só assim, a sinergia dos esforços tende a representar maior efetividade na medida a ser adotada pelo Poder Público; e (v) o reconhecimento de que a consolidação dos direitos fundamentais é, antes de tudo, uma tarefa administrativa e, nesse sentido, o processo administrativo, dentro de uma linha operativa dos custos da atuação administrativa, conforme a disponibilidade econômica e uma justa gestão orçamentária67 do Poder Público, na consecução das prestações positivas fáticas, e mesmo normativas, devem empreender os mecanismos necessários à regularidade da execução orçamentária, o que vai muito além dos meros prognósticos técnicos de controle dos gastos públicos, uma vez que exige economicidade na consecução das medidas administrativas, mas sem descurar da necessária qualidade na promoção das prestações públicas, mormente a eleição de prioridades que expressem uma efetiva justiça distributiva na alocação dos recursos públicos. Portanto, o processo administrativo deve perseguir soluções e não arvorar ou espelhar os mesmos dilemas como expressão de uma solução 66 Nesse ponto, vide: STJ, Primeira Turma, AgRg no AREsp nº 90.433/BA, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 26.06.2012, DJe em 02.08.2012. 67 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The costs of rights. Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton, 2000. p. 35-48. 298 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 298-308 jan./mar. 2014 administrativa, conforme a mais estoica convencionalidade burocrática, típica do Conselheiro Acácio, da obra O Primo Basílio, de Eça de Queiroz. Assim, entre o impeditivo que nada realiza, e tudo onera, porque vinculada à inatividade material, prefere-se uma posição operativa dos instrumentos jurídicos, ainda que, em rigor, não possa representar o purismo das decisões ordinariamente tomadas pelo Poder Público, mas contempladora de uma necessária racionalidade na prossecução do interesse público, justamente por não olvidar as inevitáveis inferências fáticas decorrentes do inócuo sopesar exclusivista das contexturas meramente normativas. 6 LEI GERAL DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FEDERAL Não há como negar a proposta eminentemente teórica deste trabalho, contudo, urge assentar ligeiras impressões dogmáticas sobre a matéria. Aqui, ressoa uma das mais importantes temáticas relacionadas à função administrativa no Estado Constitucional, a saber, o necessário engendro funcional entre organização e procedimento68 na Administração Pública hodierna. Dito de outro modo, a exigência de organização e procedimento, como antecedentes lógicos da atuação estatal na concretização dos direitos fundamentais, faz com que, por inevitável consequência, exsurja a necessidade de estabelecer uma eficiente regulamentação do processo administrativo e, claro, uma estrutura orgânico-funcional adequada à operatividade da atividade processual administrativa do Estado. Nesse sentido, a Lei nº 9.784/99, também conhecida como a Lei Geral do Processo Administrativo Federal (LGPAF), veio a resolver uma lacuna normativa69 no direito brasileiro, pois lançou os novos nortes que o processo administrativo pátrio deve seguir para operar uma atuação processual administrativa observadora dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, mormente quando a Carta Fundamental 68 Notadamente, o procedimento não se prende à mera procedimentalização, mas a todo um esteio de considerações relativas ao próprio modo de atuação e legitimação do Poder Público; aliás, “o procedimento é uma categoria-chave para a compreensão do pensamento contemporâneo” (LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. O procedimento administrativo entre a eficiência e a garantia dos particulares. Coimbra: Coimbra, 1995. p. 17), incluindo no seu objeto, obviamente, à atuação administrativa. 69 Isso não dizer, de modo algum, que não existisse lei dispondo sobre processo administrativo, mas apenas salientar que inexistia uma lei geral sobre processo administrativo no âmbito federal. Aliás, para o devido registro, ainda que no âmbito de um Estado-membro, a primeira lei, que se tem notícia como lei geral sobre processo administrativo, é a Lei Complementar Estadual nº 33, de 26 de dezembro de 1996, do Estado de Sergipe, intitulada de Código de Organização e de Procedimento da Administração Pública do Estado de Sergipe (PETIAN, Angélica. Regime Jurídico dos Processos Administrativos Ampliativos e Restritivos de Direito. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 68, nota de rodapé nº 69). Raimundo Márcio Ribeiro Lima 299 consagrou igual importância constitucional ao processo judicial e administrativo, ex vi, art. 5º, inciso LV, da CF/88. Como os direitos fundamentais influenciam todos os ramos do Direito, em especial o Direito Administrativo e o Processual70, pois nesses ramos se observam, dentre outros propósitos, respectivamente, a necessidade de promover a organização e o procedimento com vista a consolidar os direitos dos cidadãos, a normatização do processo administrativo, como primeiro passo, deve contemplar os esteios principiológicos que revelem os valores da ordem constitucional vigente e, num segundo momento, deve constituir os instrumentos para que o Poder Público aparelhe-se para efetivar os direitos prestacionais positivos fáticos e normativos salvaguardados na Constituição Federal71. Assim sendo, a organização (estrutura administrativa adequada) e o procedimento (mecanismos processuais operativos e efetivos) constituem duas claras exigências para a consolidação dos direitos fundamentais72, pois diminuem as distâncias ou diferenças reveladas na contextura fática que encerra a concretização dos direitos fundamentais, isto é, eles imprimem uma instrumentalidade que não se limita ao mero cumprimento das fórmulas processuais, uma vez que alcança ou deve alcançar uma perspectiva transformadora na teia dos direitos fundamentais, de forma que a cadência dos direitos, de uma vaga expressão normativa, ganhe corpo na materialidade das realizações do Poder Público. A LGPAF, sem sombra de dúvida, trouxe enormes avanços normativos73 para que a atividade processual administrativa se compatibilizasse com a ordem constitucional vigente, pois sendo a Constituição a abóbada do nosso sistema jurídico, muito embora isso ainda não tenha sido devidamente compreendido pela realidade 70 HESSE, Konrad. Significado de los derechos fundamentales. In: BENDA; HEYDE; ______; MAIHOFER; VOGEL. Manual de Derecho Constitucional. Trad. Antonio López Pina. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 83-115, p. 93. 71 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 201-203. 72 Konrad Hesse, op. cit., 2001. p. 102-104. 73 No que foi seguida, com algumas reservas, por leis administrativas mais recentes, e que não são objeto de análise neste trabalho, mormente a Lei nº 12.527/2011 (Lei de acesso à informação) e a Lei nº 12.846/2013 (Lei de responsabilização civil e administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública nacional ou estrangeira). 300 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 300-308 jan./mar. 2014 administrativa brasileira74, não há como vislumbrar regulamentações gerais que não acompanhem os desígnios constitucionais, em especial os institutos ou mecanismos criados para promover o seu grandioso projeto de transformação social75. Assim sendo, sem adentrar nos pormenores da regulamentação e dentre outros avanços objetivamente aferíveis na LGPAF, podem-se destacar os seguintes: (i) o reconhecimento e a positivação de diversos princípios jurídicos, bem como apresentou as diretrizes básicas para uma regular atuação da Administração Pública, firmando, assim, um perfil garantístico à atividade processual do Estado (art. 2º). Aliás, o centro de gravidade de toda a LGPAF encontra-se no seu art. 2º, caput, inciso I, porquanto há nele a essência constitutiva dos valores que norteiam a consecução da atividade administrativa no Estado Constitucional; (ii) o regime de legitimação no processo administrativo se coaduna a definição de competências administrativas, bem como o disciplinamento do regime de delegação e avocação administrativas (arts. 11 a 17), afirmando a importância do princípio do julgador/decisor natural ou legal; (iii) a ruptura com o regime de tomada de decisão isolada ou autocrática do Poder Público, haja vista a existência de claros instrumentos de participação administrativa, v. g., audiência pública, consulta pública, reunião conjunta etc. (arts. 31 a 35), o que deve denunciar maior transparência na elaboração, definição e execução das políticas públicas; afinal, “[...] o Poder Executivo tem a palavra final no processo de interpretação, mediação e aplicação das normas primárias com vistas a alcançar uma possível consensualidade 74 Haja vista a primazia aplicativa, em considerável parte da Administração Pública, de normas secundárias ou terciárias na disciplina da atuação administrativa, fazendo com que, no que revela enorme preocupação, ocorra uma verdadeira inversão valorativa dos veículos normativos, especialmente quando despontam um notório descompasso entre a diretriz constitucional ou legal e a efetiva disciplina infralegal. 75 Naturalmente, vinculada aos objetivos fundamentais estampados no art. 3º da CF/88. Nesse ponto, por expressar um tema de inevitável relevância à atuação estatal, é pertinente destacar a importância da constituição das liberdades instrumentais assentadas por Amartya Sen, a saber, liberdades política, facilidades econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora, pois elas, em regime de complementariedade, propiciam uma capacidade geral de a pessoa viver mais livremente, fortalecer a liberdade global e usufruir os benefícios que o desenvolvimento, direta ou indiretamente, permite à humanidade (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 58-60). Raimundo Márcio Ribeiro Lima 301 extrajudicial; entretanto, deve-se submeter a um processo transparente para chegar a ela” 76; (iv) a disciplina básica sobre os prazos processuais (arts. 66 e 67), bem como o estabelecimento de uma procedimentalização flexível, justamente para acompanhar a dinâmica da atividade processual, mas sem descurar de uma função uniformizadora em face da diversidade de conteúdos decisórios77, no que permite alcançar uma racionalidade decisória por meio de uma discricionariedade instrutória administrativa (art. 38); (v) a determinação dos casos de impedimento e suspeição, prestigiando, assim, os princípios da moralidade e impessoalidade administrativas (arts. 18 a 21), no que revela um providencial mecanismo para tentar limitar o exercício indevido do poder administrativo no caso concreto; (vi) a determinação de critérios temporais, materiais e subjetivos para anulação, revogação e convalidação dos atos administrativos (arts. 53 a 55), no que vai prestigiar o princípio da segurança jurídica na sua ambiência objetiva; e (vii) o estabelecimento de critérios para recorribilidade e revisibilidade da decisão administrativa, no particular (1) o limite máximo de 03 (três) instâncias decisórias administrativas, (2) a proibição de reformatio in pejus das decisões administrativas sancionadoras em sede de revisão administrativa (arts. 56 a 65) 78 e (3) o regime de conformidade com enunciado de súmula vinculante, no que 76 GUERRA, Sérgio. Discricionariedade e Reflexividade. Uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 22. 77 MERKL, Adolfo. Teoría General del Derecho Administrativo. Edición al cuidado de José Luis Monereo Pérez. Granada: Editorial Comares, 2004, p. 281, pois, mesmo que se considere a necessidade de empreender algumas particularidades procedimentais em face do conteúdo dos atos administrativos, não há como conceber o entendimento de que para cada tipo de ato administrativo deve ser promovido um tipo diverso de procedimento, uma vez que deve existir uma matriz procedimental uniformizadora, apesar de flexível e cambiante no caso concreto. 78 Por mais que se arvore a ideia de que a proibição da reformatio in pejus também se aplica ao art. 64 da LGPAF, não há como concordar com esse entendimento, sobre a temática vide: RIBEIRO LIMA, Raimundo Márcio. O Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus e os Princípios do Regime JurídicoAdministrativo: uma Improvável Conciliação! Boletim de Direito Administrativo (BDA), São Paulo, ano XXVI, nº 06, p. 683-704, jun. 2010. p. 696 e segs. 302 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 302-308 jan./mar. 2014 prestigia economia processual e racionalidade decisória ao processo administrativo79. Por outro lado, ainda que sejam fora de discussão os bons propósitos que animaram a redação da LGPAF, duas evidentes críticas são levantadas contra o seu texto, haja vista o grave problema que estas omissões causam na consecução do interesse público no processo administrativo, quais sejam: (i) a ausência de disciplina do silêncio administrativo80, pois não bastar firmar o dever de fundamentar e decidir (arts. 48 a 50), é preciso mais: impõe-se a instituição que estabeleça limites temporais com efeitos processuais e substantivos à atuação administrativa, fato que não é observado no art. 49 da LGPAF, uma vez que não foi prestigiada a determinação de um lapso temporal máximo para a instrução processual, mas, sim, um prazo máximo para o julgamento do processo, ainda passível de prorrogação, contanto que tenha sido concluída a instrução processual, pouco importando a sua demora, de forma que tal disciplina jurídica destoa das diretrizes constitucionais (art. 5º, inciso LXXVIII, da CF/88). Desse modo, sem a existência de prazo limite na instrução processual e, claro, sem a previsão de sanção administrativa na ocorrência de inatividade formal do Poder Público, resulta patente que a eficácia dos parâmetros normativos dos deveres de fundamentar e decidir encontrase, por assim dizer, seriamente prejudicada, uma vez que o seu círculo de operatividade é reduzida a mero controle da atuação tardia da Administração Pública; e (ii) a inexistência de regramento da conclusão consensual do processo administrativo ou da expedição de atos administrativos 79 Por certo, tal prescrição só fora assentada na LGPAF posteriormente, aliás, com a Lei nº 11.417/2006. 80 Sobre a temática, tem-se o livro de SADDY, André. Silêncio administrativo no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2013; aliás, trata-se, certamente, da mais demorada obra sobre o assunto na doutrina brasileira. Além disso, dentre outros, vejam-se os seguintes artigos; (i) SADDY, André. Efeitos jurídicos do silêncio positivo no direito administrativo brasileiro. Revista Brasileira de Direito Público (RBDP), Belo Horizonte, ano 07, n. 25, p. 45-80, abr./jun. 2009, p. 69 e segs.; e (ii) RIBEIRO LIMA, Raimundo Márcio. O Silêncio Administrativo: A Inatividade Formal do Estado como uma Refinada Forma de Ilegalidade! Boletim de Direito Administrativo (BDA), São Paulo, ano XXVII, nº 04, p. 403-423, abr. 2011, p. 412 e segs., bem como o livro RIBEIRO LIMA, Raimundo Márcio. O Silêncio Administrativo e o Dever de Decidir da Administração Pública. Mossoró: Queima-Bucha, 2012. p. 107 e segs. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 303 consensuais81. Infelizmente, a LGPAF82 não encampou o paradigma da consensualidade, que é uma marca incontestável da Administração Pública democrática, uma vez que seguiu os ordinários parâmetros da autocracia, muito embora atenuada pelas vias de participação administrativa, devidamente decantada na terminação unilateral dos processos administrativos. Ora, a constituição de mecanismos consensuais no seio da atividade processual administrativa, contanto que não olvide os parâmetros legais, seria bem mais benéfica às partes, e consequentemente ao atendimento do interesse público, do que os demorados e onerosos desdobramentos processuais promovidos unilateralmente pelo Poder Público numa tensa e conflitiva relação jurídica administrativa83. Portanto, a omissão legislativa representa um sério dilema à consagração da consensualidade na ambiência administrativa, no que acarreta enormes transtornos e custos aos cidadãos e à própria Administração Pública84. 81 No que retiraria a ideia de manifestação unilateral do ato administrativo, desvinculada de qualquer manifestação convergente do particular, configurando-se, assim, uma verdadeira ruptura com a sua tradicional concepção. 82 Nesse sentido, cumpre transcrever a disciplina jurídica da matéria no art. 88 da Lei espanhola nº 30, de 26 de novembro de 1992 (Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo Común), nestes termos: “Artículo 88. Terminación convencional”. “1. Las Administraciones Públicas podrán celebrar acuerdos, pactos, convenios o contratos con personas tanto de derecho público como privado, siempre que no sean contrarios al Ordenamiento Jurídico ni versen sobre materias no susceptibles de transacción y tengan por objeto satisfacer el interés público que tienen encomendado, con el alcance, efectos y régimen jurídico específico que en cada caso prevea la disposición que lo regule, pudiendo tales actos tener la consideración de finalizadores de los procedimientos administrativos o insertarse en los mismos con carácter previo, vinculante o no, a la resolución que les ponga fin”. “2. Los citados instrumentos deberán establecer como contenido mínimo la identificación de las partes intervinientes, el ámbito personal, funcional y territorial, y el plazo de vigencia, debiendo publicarse o no según su naturaleza y las personas a las que estuvieran destinados”. “3. Requerirán en todo caso la aprobación expresa del Consejo de Ministros, los acuerdos que versen sobre materias de la competencia directa de dicho órgano”. “4. Los acuerdos que se suscriban no supondrán alteración de las competencias atribuidas a los órganos administrativos ni de las responsabilidades que correspondan a las autoridades y funcionarios relativas al funcionamiento de los servicios públicos” (ESPANHA. Ley nº 30, de 26 de noviembre de 1992. Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo Común. Disponível em: <http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/l30-1992.t6.html#a88>. Acesso em 31 mar. 2013). 83 ENTERRÍA, Eduardo García de; e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. v. II. 12 ed. Madrid: Civitas, 2011. p. 526. 84 Veja-se, por exemplo, os processos administrativos previdenciários, pois boa parte dos indeferimentos, os relacionados à questão de fato, são judicializados justamente por conta da inexistência de norma que autorize à autoridade pública terminar o processo de forma consensual. Com efeito, uma vez existente a 304 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 304-308 jan./mar. 2014 Todavia, em que pesem as ligeiras críticas formuladas, não há como olvidar a quadra evolutiva da atividade processual administrativa brasileira após a LGPAF, pois, como norma geral da União, cumpriu bem o papel de estabelecer os parâmetros normativos processuais devidamente albergados na nossa Carta Fundamental e, principalmente, criou uma nova lógica na integração dos interesses entre administrados e Administração Pública: a atuação processual administrativa deve ser garantidora de direitos e não mera procedimentalizadora dos requerimentos administrativos futuramente judicializados. 7 CONCLUSÃO Considerando os posicionamentos defendidos no texto, em particular a importância do fortalecimento do processo administrativo para a regularidade da atuação administrativa do Estado, concluímos que: (i) a Administração Pública tem andado a reboque dos paradigmas constitucionais, haja vista que não acompanha a evolução do constitucionalismo vigente, nem concebe precisamente a Constituição como um processo de evolução aquisitiva de direitos, de forma que não basta considerar formalmente os permeios normativos vigentes, mas alcançar a performance normativa85 em função dos desígnios constitucionais e da ciranda fática apresentada no caso concreto que melhor contemple o árduo processo de integração de interesses numa sociedade hipermoderna; (ii) o parâmetro do Estado Legislativo de Direito, cujos ranços ainda persistem na nossa cultura jurídica, em que se prestigiou o princípio da legalidade como uma expressão do poder supremo do Parlamento, não mais atende às exigências da sociedade hipermoderna, já que a complexidade que permeia a atual atividade administrativa, posicionada numa sociedade policêntrica e sincrônica, haja vista a envergadura das prestações estatais, não pode limitar-se a conceber (1) meras razões de mera subsunção jurídica ou (2) uma aplicação demanda judicial, e já tendo decorrido todo o trâmite e custo do processo administrativo e da demanda judicial, muitos acordos são promovidos pelos Procuradores Federais, mesmo seguindo todos os rigores legais e regulamentares sobre a matéria. E por que isso acontece? Porque simplesmente há um verdadeiro e injustificável descrédito legal do processo administrativo como sede própria para integração consensual de interesses na ambiência pública e, claro, todos perdem com isso, excetuando-se, os advogados privados com honorários sucumbenciais e contratuais, estes nem sempre presente em matéria previdenciária. 85 Adequada disciplina jurídica dos institutos por meio de uma regulamentação criteriosa, sem, contudo, perder a flexibilidade no procedimento. Raimundo Márcio Ribeiro Lima 305 do direito sem observar a convergência normativa decorrente da senda principiológica que ostenta a nossa ordem constitucional86; (iii) o Estado Constitucional o constitui um paradigma pautado no prestígio da norma constitucional, no que revela um expressivo valor à normatividade constitucional, e na posição jurídica do cidadão na sociedade, e mesmo sua centralidade na ordem jurídica, no que denota a cultura de uma nação, pois dela brotam ou recrudescem os direitos que transformam a realidade social e, nesse contexto, o processo administrativo é a sede precípua de concretização desses direitos; e (iv) a LGPAF, como expressão da ordem constitucional vigente, abraça o ideário da participação administrativa, uma vez que prestigia a atuação dos administrados na formação da decisão da autoridade administrativa, o que confere uma nova releitura na consecução da função administrativa decisória do Estado, pois pretende demover a perspectiva autocrática no exercício das prerrogativas públicas. 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São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 86 O que não quer dizer, de modo algum, que a atuação administrativa deva pautar-se apenas ou primordialmente por princípios, mas, e no que se revela importante, deve considerá-los como expressão normativa necessária para encontrar a regra do caso concreto. 306 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 306-308 jan./mar. 2014 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A Constituição de 1976 dez anos depois: do grau zero da eficácia a longa marcha através das instituições. Revista Crítica de Ciências Sociais, Lisboa, nº 18/19/20, fev. 1986. ______. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. COULANGES, Fustel de. Ancient City. Translated by Willard Small. 4th. Boston: Lee and Shepard, 1882. DEVOLVE, Pierre. Le Droit Administratif. 5. ed. Paris: Dalloz, 2010. DROMI, Roberto. Derecho Administrativo. 5. ed. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1996. ______. Sistema Jurídico e Valores Administrativos. 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THE INTERNATIONAL AGREEMENTS AND REDUCING THE DEMAND FOR FRESHWATER: A PATH TOWARD A NEW REGULATION 1 BRAZILIAN FEDERAL ATTORNEY, MASTER OF LAWS AT GEORGETOWN UNIVERSITY (USA), AND MASTER OF LAW AT LUSIADA UNIVERSITY (PORTUGAL) Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira TABLE OF CONTENTS: Introduction; 1 Major International water resources rules: How they address the problem of reducing the demand for freshwater; 2 Toward new Good Practices and Standards; 2.1 Recycling and Reusing Water; 2.2 Green Government Management; 3 Proposal Rules; 4 Conclusions; Referências. 1 This article was presented as a final paper to the course: “International Law Seminar: Water Resources” taught by Prof. Edith Brown Weiss at Georgetown University, fall semester/2012. 48 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 48-66, jan./mar. 2014 SUMMARY: In an era of water scarcity, this article analyzes the possible solutions for the lack of international regulations about the reduction of water demand. First it analyzes major international rules in this area and after it proposes some solutions for new international regulations to control and reduce the water consumption such as: good practices and standards, recycling and reusing of water, and green government management. KEYWORDS: Water. Scarcity. International. Rules. Agreements. Reduce. Consumption. Good Practices. Standards. Recycling. Reusing. Green. Government. Management. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 49 INTRODUCTION The great importance of water for human life, for human well being, for the ecosystem and for life in general is currently well known. Furthermore, it is widely accepted that water has been contributing to the development of human society. As a consequence of this development different kinds of freshwater uses are growing. These water uses, such as energy power, industrial, agricultural and cities have had an increased impact on the water supply2 generating a great concern about water scarcity and the necessity to find more sources of water. This concern is even higher in this millennium, a time of climate change and growing human population. As a result, states and the international community have become more aware about problems related to the freshwater supply, especially the ones related to pollution, allocation and sharing a single river basin between countries. In order to deal with water scarcity and conflicts generated by different kinds of water uses, states have entered into many agreements, bilateral, regional, and multilateral, among countries trying to solve their conflicts in sharing the same river basin. Besides that, the international community is also realizing the limits on supply solutions because of the increased demand due to the growing population and the development of new uses for water and also climate change, all this impacting the availability of freshwater. As a consequence, some states have been developing new approaches that focus on reducing the demand for freshwater. However the issues related to reducing the demand for freshwater have not yet been well developed in the international scenario when compared to the other supply related problems, such as pollution control and allocation of water for different uses. The new approaches on reducing the demand for freshwater focus on efficiency of water uses and the decrease of water waste. One approach that has been discussed is the market solution that for some points of 2 CHOPRA, Kanchan et al. Findings of the Responses Working Group of the Millennium Ecosystem Assessment. Ecosystems and Human Well-being: Policy Responses, v. 3, Islandpress, p. 218. Available at International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material page 419. 50 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 50-66, jan./mar. 2014 view can push consumers toward efficiency in water use through the market and price regulation. In this article this solution will not be considered because the market solution would be an entire article itself. The other issue this article will not address is about the possibilities of punishment for individuals and states that do not comply with the rules about efficient water use. Whether to punish misuse or not, and how to develop a system for monitoring user responsibility is an issue for another article as well. Therefore this article will focus on solutions, new practices and standards, except for the market solution, that can lead to the efficiency in water use. Also this article will address the lack of international regulation in this matter3 and offer suggested solutions for how an international regulation can contribute to the development of the efficiency in water uses. I will analyze how this regulation could and should work, taking into consideration some drafts of practices, specifically recycling and reuse of water, and government management programs, already developed in some countries. In order to develop these ideas the article will first show how major International rules about water resources address the problem of reducing water demand of water problem, analyzing the most broad and influential rules in this issue: the 1997 Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Water Courses; the UNECE Convention on the Use of Transboundary Watercourses and International Lakes; and the International Law Association Berlin Rules. Second, I present a brief overview of important examples of good practices and standards, recycling and reusing water and government management, addressing their meaning and importance in the development of more efficient use and in reducing the water demand. Third, this article will develop how these practices can be adopted by these international rules, the meaning and importance of them in the international scenario. In the end, some conclusions and prognostics for this issue will be described. 1 MAJOR INTERNATIONAL WATER RESOURCES RULES: HOW THEY ADDRESS THE PROBLEM OF REDUCING THE DEMAND FOR FRESHWATER. First international document to be analyzed is the Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses 3 WEISS, Edith Brown. The Evolution of International Water Law, Recueil des cours, 2007. page 229-230. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 51 because of its importance and broad reach as a convention adopted by the United Nations. The Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses was adopted by the General Assembly of the United Nations on May 21, 1997. This Convention has it sources in the provisions of the Charter of United Nations – articles 1, 2 and 13 paragraph 1 (a) – and in the necessity to address the problems of increasing demand and pollution of watercourses, as stated in the considerations of the preamble of the document.4 Nonetheless the 1997 Convention on the Law of the Nonnavigational Uses of International Watercourses begins with this general accomplishment to address the increasing demand problem, as this article demonstrates, it seems that this commitment did not lead the Convention to develop rules about reducing demand in comparison to what they do with pollution. It is not the purpose of this article to discuss the reasons behind this lack of reduced water demand rules, but only to analyze it as a source of the necessity for new rules, that this article has the aim to develop. According to article 3, the 1997 Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses is a non-binding convention with the important purpose of developing guidelines for international agreements, bilateral or multilateral, on watercourses. Article 5 of this UN Convention inaugurates the equitable and reasonable utilization of international watercourse. The states are called to “utilize an international watercourse in equitable and reasonable manner … with a view to attaining optimal and sustainable utilization … consistent with the adequate protection of the watercourse.” It is clear that these ideas of reasonable, optimal and sustainable use are related to the reduction of water demand and the efficiency in water use. Especially this idea about “optimal” can be interpreted toward an efficient use, while the other words, sustainable and reasonable, are more vague. Depending on the context, reasonable or sustainable can be related, for example, to pollution issues. 4 Available at International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material, page 35. 52 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 52-66, jan./mar. 2014 As a general principle this purpose can be stated broadly and generally but these words alone do not say too much. The necessity of developing more detailed provisions, this is the lack of rules that this article analyzes and tries to address. Article 6 of the 1997 Convention describes the “factors relevant to equitable and reasonable utilization” and has the purpose of developing the provisions of article 5. However, in the issue of efficiency in water use, this article does not have any more detailed rule, only the letter “f ” that speaks generally about “economy of use”. Part IV of this UN Convention is about “protection, preservation and management”. This part has some more detailed rules about pollution but in article 24 about management and in paragraph 2 letter (b) there are the same general and broad words such as “promoting the optimal and rational utilization” that can be interpreted as related to the issue of reducing the demand for water. Consequently, one can conclude that the 1997 Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses has no detailed rules about the reduction of water demand. The Convention has only very general and vague wording, such as “rational”, “optimal”, “sustainable” related to the utilization of international watercourses, that can or cannot be related to reducing water use, and accepts different kinds of interpretation. Then one can state the necessity of developing rules about the ideas of “rational”, “optimal”, “sustainable” use which must include provisions about how to reduce demand for water, specific directions about the efficiency of water use. Another important instrument is the UNECE Convention on the Use of Transboundary Watercourses and International Lakes. This is a convention state by the United Nations Economic Council for Europe (UNECE) on March 17, 1992 and has the main purpose to address pollution problems in the European rivers. Likewise, the 1997 UN Convention in article 2 about the general provision and paragraph 2 that states the “appropriate measures to ensure that transboundary water are used” letter b “with the aim of ecologically sound and rational water management”. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 53 The UNECE Convention on the Use of Transboundary Watercourses and International Lakes in the above cited article 2 paragraph 5 letter c) states that for the paragraph 2 measures the Parties have to be guided by the general principle that the “water resources shall be managed so that the needs of the present generation are met without compromising the ability of future generations to meet their own needs”. This principle is important because there should be a general assumption that it is related to the reduction of water demand. This article is not the space to better develop this idea, but it comes from the general assumption that the problems of water scarcity and security in a time of growing population and climate change have to be addressed by the reduction of water demand or else the needs of the next generations will not be guaranteed. Another important aspect of the UNECE Convention is the presence of detailed rules about pollution. These rules address issues such as sharing information among states, research, public information, cooperation, mutual assistance, monitoring etc. Nonetheless the UNECE Convention does not have the same provisions about the reduction of water demand, but it provides a model used for pollution that can be adapted to the issues related to efficiency in water use and the reduction of water demand that will be developed later in this article. Another important document is the more recent International Law Association Berlin Rules.5 Before this Berlin Rules launched in 2004, there were the Helsinki Rules created in 1966, on the same purpose to suggest a framework of rules about the uses of the water of international rivers. The International Law Association was founded in 1873 and is a private association with approximately 4000 members worldwide that studies and advances the international law.6 This association is a kind of council of experts from many countries. The 2004 International Law Association Berlin Rules have been developed according to its preface with the purpose of addressing 5 International Law Association Berlin Conference (2004) Water Resources Law available at: <http:// www.internationalwaterlaw.org/documents/intldocs/ILA_Berlin_Rules-2004.pdf>, last consulted on: Dec., 20, 2012. 6 Editors’ Introductory Note Regarding the International Law Association’s Helsinki and Seoul Rules. Available at International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material, page 53. 54 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 54-66, jan./mar. 2014 the problems created by the increased water demand, the supply limited by pollution and climate change that has become a source of conflict between countries. They are not an agreement but they reflect the customary international law and they are applied not only as law between countries but law that regulates water resources at all, according to the article 1. Then the purpose of these Rules is to propose management water solutions. In the article 3 about definitions in the paragraph 19 the meaning of sustainable use is “the integrated management of resources to assure efficient use of and equitable access to waters for the benefit of current and future generations…” Management is understood in a broad view that includes the terms of this article 3, paragraph 14, development, use, protection, allocation, regulation, and control of waters. Despite addressing the efficiency in use in the definition of sustainable use, when chapter 2 states the principles that shall regulate the management of water in article 7 again the idea is expressed only vaguely in words such as “manage water sustainably.” Moreover there is the article 13 about reasonable use and the relevant factors related to it. In the list of these relevant factors there are again vague words such as “the sustainability of proposed and existing use” in letter “h”. And again there is no direct reference to the reduction of water issue, only the same broad words as the 1997 Convention, “economy in use” in letter “f ”. This lack of regulation about efficiency in water use is sensible when related, for example, to assessment and responsibility. These two critical areas must take into consideration the efficiency in use. Article 29 is about the assessment and that its content does not give any reference to the efficiency in use or the avoidance of waste of water. At the same time, article 68 only states that responsibility is related to the sustainable management, but whether this idea of sustainable management is described in the other articles is not linked clearly, in a more detailed way, to the issue of a reduction in the demand for water. As a result, it becomes difficult to demonstrate the responsibility that any state should have for activities that lead to the waste of water. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 55 The International Law Association Berlin Rules were established in 2004, so they are recent and they have some considerable advancement in many areas, including integrating groundwater, navigation and nonnavigation, extreme and war rules, relationship between states, pollution, allocation, primacy of human vital uses, assessment, public participation, cooperation. There are many new important rules but it is very surprising that there is no specific rule about efficiency in use, measures to reducing the demand of water that clearly are needed to fulfill the purpose of the Berlin Rules to collaborate on the development of the International Law and to address the increasing demand of water in a situation of decreasing supply. So, for these Berlin Rules, the same comments are applicable as those stated above about the other documents. In conclusion, it is fair to say that there is a clear demonstration that the international documents analyzed above have not developed detailed rules or even a more clarified principle that includes the issue of a reduction of water demand, adopting the efficiency in water use as a central problem that should have measures to be addressed, such as the development and adoption of good practices and standards, as this article will analyze bellow. 2 TOWARD NEW GOOD PRACTICES AND STANDARDS This part of the article describes two new good practices and standards used in different activities that have been adopted by some countries and that develop new solutions and ways of addressing the efficiency in water use and the reduction of the demand for water problem. There are other practices and standards that could be brought here and in the same way with an important impact for the efficiency in water use, for example some agricultural new practices that can avoid the waste of water and produce good quality food. The article analyzes these two examples only to illustrate and show that the government has a very important role in both. These two examples come along with a necessity for regulation, new laws and government leadership in directing the solutions. This is important for the role that could be played by the international law as well. 56 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 56-66, jan./mar. 2014 2.1 RECYCLING AND REUSING WATER In recent years the development of the recycling and reusing of water has increased as an important solution regarding the growing water demand. The costs and benefits analysis related to the recycling and reusing of water has pushed Governments to consistently find solutions to avoid barriers and better develop these practices. One example of this development on the reuse and recycling of water is in the western states of the United States. In these states there is already a general assumption that their problems regarding population growth, scarcity of water and the lack or cost of new water supplies has directed them to the solutions offered by the reuse and recycling of water.7 The reuse of wastewater is a practice that has been growing especially because of the improvement of technology for water treatment. The reclaimed water is a kind of water effluent, a wastewater that had certain kind of treatment utilizing the wastewater treatment plant (WWTP) effluent. The reclaimed water can be use in many ways but recently this practice is being developed in many cities to provide tap water for the population.8 In many kinds of water reuse the effluent is treated and goes back to watercourse and then back to houses. However there are other reuse or recycling practices that do not need a treatment or that the water does not go back to the watercourse. In these reuse and recycling practices the efficiency is improved and avoid the costs of treatment or the loss of water in dry climate areas. One example is the use of effluent in industries that have their own equipment to treat water and use it again in the same facility for the cooler.9 Another example is the grey water that does not need specific treatment for the effluent. The grey water use means to reuse the nontoilet household water, for example, in agriculture and garden watering. 7 BRACKEN, Nathan S. Water Reuse in the West: State Programs and Institutional Issues. A Report Complied by the Western States Water Council, 18 Hastings W.- N.W. Journal Environmental Law & Policy 451, 528-29 (2012). 8 CHAPMAN, Ginette. From Toilet to Tap: The Growing Use of Reclaimed Water and the Legal System’s Response. Arizona Law Review 47, 773 (2005). 9 Ibid. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 57 This is one example of recycling water that has been adopted successfully in the US’ western states.10 The advantages related to this practice are low cost compared to other supply solutions; the ecological benefits related to recycling as wastewater because there is an abundance of wastewater due to a growing population that at the same time provides an increased source for recycling water.11 There are some barriers that have to be addressed in order to implement recycling and reusing water as an effective program. The western States in the US have for example addressing problems regarding legal drafts to adapt the reuse and recycle issue to the water rights already established.12 Therefore there are many different legal frameworks that have been developed not only in the U.S. but around the world that are able to regulate and stimulate this practice. The solutions have to come from a better development of policies related to education and funding too. The implementation of the reuse and recycling water policy needs a strong political will and at the same time more public participation and society’s involvement.13 2.2 GREEN GOVERNMENT MANAGEMENT Some countries, such as Brazil, United States, Canada and Israel are developing governmental programs in order to stimulate new water management practices in public administration. These practices happen inside the government, in its own facilities and offices. The programs can be called green government or green government management or green public administration. These programs have a focus first on public procurement in order to purchase products that in their production use less water or energy or 10 SNODGRASS, Michael R.F. Greywater - the Reuse of Household Water: A Small Step Toward Sustainable Living and Adaptation to Climate Change. Georgetown International Environmental Law Review, 22, 591 (2010). 11 Ibid. 12 STEIN, Jay F. et al. Water use and reuse: the new hydrologic cycle. Rocky Mountain Mineral Law Foundation-Institute 29-1 (2011). 13 STEIN, Jay F. et al. op. cit. 58 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 58-66, jan./mar. 2014 can reduce the waste of water, improve energy efficiency and recycling in government buildings. This public procurement can be called green procurement and has a focus in buying products that help to improve water efficiency not only in the government, but also outside, in industry and agriculture, because the government will give preference to products that use less water in their production or products that come from a process that uses recycled or reused water or that has been developed in a way to avoid the waste of water. These programs have the importance to stimulate a new market for products, in the case of water, that leads to efficient water use and to a recycling and reusing water operation. Also these programs focus on a changing pattern of using water, energy and other goods and promoting a culture to avoid waste inside the government. In order to achieve these targets, some of them, such as the Brazilian program, rely more on changing civil servants’ habits, others rely more on management changing and equipment purchasing or everything combined. Moreover, for example in Brazil14, there are educational programs for the civil servants to stimulate the efficiency in water use in order to change their habits and culture of water waste. This educational approach is equally important to stimulate not only the civil servants but the entire society to be more careful about the waste of water. The government has an important role as a leader in stimulating the efficient use of water, the production of these products and new technology that is more efficient in water use. Another way to achieve the targets of reduction of water use is the governmental green buildings equipped with equipment in restrooms, for example, to avoid the waste of water. Another interesting example is the adoption of a reservoir on the top of governmental buildings that can collect rainwater and use this water directly in the toilets. This technology is easy to install, 14 FERREIRA, Maria Augusta. Apontamentos sobre Gestão Socioambiental na Administração Pública Brasileira. In: BLIACHERIS, Marcos Weiss and FERREIRA, Maria Augusta, Sustentabilidade na Administração Pública: Valores e Práticas de Gestäo Socioambiental. Belo Horizonte: Forum, 2012. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 59 has a low cost and is important in some Brazilian cities that have been suffering with floods during the rainy season. In these Brazilian cities and states, the government has been adopting laws that require this kind of equipment in order to give permits for new buildings. However this practice has to begin in the government building itself to set the example and the directions to the entire society. Another good example of green government management is the US program implemented by the Executive Order 13514. Specifically in the water issue the EO 13514 directs the federal agencies and offices to an efficient use of water.15 This US program has been developing reduced water consumption goals to be achieved by the agencies and a monitoring system to assure the achievements. It has a special focus on a management system that can lead to achieving the targets, measuring concrete results of less use of water and monitoring this achievement.16 The US government structure is well developed in the hierarchy system beginning with the President and the EO 13514 and continues up to the high levels of the agencies commanding the staff to achieve the goals and reporting the achievements to a central committee that directs the information back to the President’s office. These programs are examples of how the government can play a special role to indicate and stimulate a new path toward more efficient water use. As President Barack Obama said: “As the largest consumer of energy in the U.S. economy, the federal government can and should lead by example when it comes to creating innovative ways to reduce greenhouse gas emissions, increase energy efficiency, conserve water, reduce waste and use environmentally responsible products and technologies.”17 Despite all this contribution as a leadership program, these governmental programs have to address some internal problems, such 15 FIORINO, Daniel. Implementing Sustainability in Federal Agencies an early assessment of President Obama’s Executive Order 13514. Available at:<http://www.businessofgovernment.org/sites/default/files/ Implementing%20Sustainability%20in%20Federal%20Agencies.pdf>. Last consulted on: Dec., 20, 2012. 16 Ibid. 17 FIORINO, op. cit. 60 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 60-66, jan./mar. 2014 as lack of resources, internal political conflicts and economic sector resistances. In some countries there are legal problems too. Even in Brazil, for example, where new laws were established in order to support these green governmental approaches, there are some problems to accept these new laws when they generate a conflict with old laws well established in the Brazilian courts, especially in green procurement issues, challenging governmental lawyers to develop and promote a new interpretation of the old laws in order to conciliate them with the new ones.18 Furthermore there is no specific provision in international law about the government’s role or responsibility in developing these programs. The green government management is not explicitly stated in any International document. International declarations and covenants in the environmental area address green or sustainable management issues but without mentioning the governmental management and the specific role that has to be played by the public administration in this area. The public green procurement is one exception. It is stated in the plan of implementation of Johannesburg Declaration at item III, paragraph 19, letter “c”. This item is about “changing unsustainable patterns of consumption and production” and paragraph 19 is about the actions that have to be taken from authorities in all levels including: “c - promote public procurement policies that encourage development and diffusion of environmentally sound goods and services”.19 However the Johannesburg implementation plan does not largely consider the role of the government as a big consumer and as, in certain way, a producer of some goods as well. This international document does not cite the government’s special role in order to change these patterns of production and consumption, beginning inside the government and spreading to the society through new ones. As President Barack Obama said, the kind of leadership that comes with his own actions in consumption and production inside the government. 18 FERREIRA, Maria Augusta. As Licitações Públicas e as Novas Leis de Mudança Climática e de Resíduos Sólidos. In: SANTOS, Murillo Giordan and BARKI, Teresa Villac Pinheiro. Licitações e Contratações Públicas Sustentáveis. Belo Horizonte: Forum, 2011. 19 Plan of Implementation of the Johannesburg World Summit on Sustainable Development. Available at: <http://www.un-documents.net/jburgpln.htm#V>. Last consulted on: Dec., 19, 2012. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 61 The necessity of International provisions about green government programs goes in the direction that this article is trying to address: international law supporting and pushing for the development of these programs which can help the government to fight its own internal resistances and problems that attempt to harm the development of this programs. 3 PROPOSAL RULES All these practices, standards, and examples, ways to reduce the waste of water, listed above are feasible and easy to implement but they do have to face some challenges to a better and broad development. The most important challenges are the political will and society’s involvement. On the other hand, these practices are not clearly expressed in any major international agreement or rule. As seen above the International rules are vague in their references about the efficiency in water use and the reduction of the waste of water, despite the urgency of these issues in this century’s international water scenario. The existence of rules incorporating the practices and standards exemplified above in a context of a major international agreement or rule does not necessarily need to be a binding instrument, but at least a framework of a model that can be followed and adapted by the countries in their bilateral, regional or multilateral agreements. This article demonstrates that the three documents analyzed above could have been inserted, in an easy way, not confronting already existing rules, the practices and standards above described. The adoption of these rules, even in a broad way, would be very important to push the governments and societies in order to facilitate the adoption of these practices as much as possible. These rules could be included, for example, in the article 6 of the 1997 UN Convention cited above. This article describes “factors relevant to equitable and reasonable utilization”. So a new letter “h” could talk about the existing practices and standards used by the watercourse states or other states that are able to promote efficiency in water use and the recycling and reusing of water. In the article 24 of this UN Convention that is about management, in paragraph 2 a new letter (c) there could be a mandate to promoting 62 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 62-66, jan./mar. 2014 best practices to avoid the waste of water and another letter (d) to promote the recycling and reuse of water. The UNECE Convention on the Use of Transboundary Watercourses and International Lakes in the above cited article 2 about the general provision and paragraph 2 that could have a new letter stating about the “appropriate measures to ensure that transboundary water are used with the application of the best practices and standards available to reduce the waste of water, specially considering the use of recycled and reused water”. The UNECE Convention has also, as cited above, detailed rules about pollution. The same kind of rules can be used to efficiency in water use too. These related rules are adequate to be applied or adapted to the efficiency issue as well. The best practices, recycling and reuse issues need rules such as the UNECE Convention has about pollution directed to share data and information; promote research, public information and participation; cooperation and mutual assistance between the countries for the adoption and development of the good practices. The 2004 International Law Association Berlin Rules in the article 3 about definitions paragraph 14 about management could include recycling and reuse. This paragraph 14 states that “management of water and to manage waters includes the development, use, protection, allocation, regulation, and control of waters.” So it is clearly possible to add after use, recycling and reuse. Also the chapter 2 about the principles that shall regulate the management of water in article 7 could add the word efficiently in its terms and becoming: “States shall take all appropriate measures to manage waters sustainably and efficiently.” Article 13 is about the relevant factors to consider about a reasonable use including “economy in use” in letter “f ” and “the sustainability of proposed and existing use” in letter “h”. Here could be added another letter about best practices and standards and another about recycling and reuse of water as a relevant factor to consider in order to address the reasonable use. In the Berlin Rules the impact assessment is regulated in article 29. this impact assessment could include the analyses of alternative solutions using the best practices and the recycling and reuse to analyze the possibility of other solutions. Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 63 The responsibility aspect that is addressed by the Berlin Rules is very important as well, but at least initially, in our opinion, the best way to promote the water efficiency is to stimulate these good practices and standards than to punish the waste of water. The punishment can be a second measure when the good practices are already well developed and broadly applied. Other issues addressed by these international documents are very important in the good practices promotion as well. The articles in these documents that address issues such as, public participation, international cooperation, sharing information and funding, for example, should be integrated in this reducing of water demand problem too. The proposing rules developed here aim to show that is easy to include the efficiency, recycling, reuse, best practices and standards in conventions, international rules, and other kinds of international documents. Furthermore, the international rules about efficiency in water use would play the same influence as the already better developed pollution rules. The increasing and expanding detail of the pollution rules has been very helpful for the pollution decrease and control in many countries. The same idea can be applied to the waste water control and decrease. The more detailed the rules the easier to apply them, to comply and even to demand responsibility if they are not observed. The results can be followed and monitored by the riparian countries that can win in more quantity of water and sharing technology, research and information in a spirit of mutual assistance and cooperation. Otherwise, the reference to these practices or standards in an international agreement or rule would influence the bilateral or regional agreements to include them and to rely on the possibility of reducing the waste of water in one feasible alternative for conflict solution. At the same time, these new international rules about water efficiency could be spread not only to riparian countries and their basin, but other basins and countries in a virtuous cycle. And it is not necessary that these international rules be binding. Some of the agreements or rules discussed in this article are non binding, however they have been influencing many countries to adopt their model of rules in the basin agreements as well as in regional or multilateral agreements. 64 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 64-66, jan./mar. 2014 On the other hand, as in almost all environmental issues, the public participation and information have a central role in the issues related to efficiency in water use. The civil society, NGOs, environmental groups, business groups and other stakeholders have important roles to play in the development and expansion of the reduction of the waste of water in each country and in the international community. This involvement of the society and the international community can be pushed and developed by the adoption of the efficiency in water use in the International agreements and rules. It does not matter if these rules are binding or non-binding instruments because in the current international law scenario the only existence of these rules would play a very important role in promoting these practices in many countries and would help to improve the practices already existent in other countries. 4 CONCLUSION As discussed above, given the current consensus about the necessity of states and the international community to address the increasing problems related to water scarcity and given the limits of the supply solutions that have already been developed, reactions direct the states and the international community to the adoption of solutions aiming at the reduction of the water demand. One of those kinds of solutions are the best practices and standards such as the two examples explained above. These examples give an idea about how these practices have already been adopted by some countries, the important role that they play in the issue of reducing the demand for water and some general problems that these countries have been facing in order to improve the implementation of these new practices. In addition to that, this article explained the necessity and the lack of an approach for the reduction of water demand, and especially the best practices idea, in international agreements or rules, as frameworks, binding or non-binding rules. Moreover, the adoption of the reduced demand of water focus is not difficult to be included in these kinds of international documents. This inclusion would play a very important role by contributing Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira 65 to the development and improvement of these practices in many countries through the involvement and participation of society and the international community. In conclusion, the adoption of international rules on the reduction of water demand will indeed contribute to the most important purpose of all the discussion stated above: water security and quality of life for present and future generations. REFERÊNCIAS BRACKEN, Nathan S. Water Reuse in the West: State Programs and Institutional Issues. A Report Complied by the Western States Water Council, 18 Hastings W.- N.W. Journal Environmental Law & Policy 451, 52829 (2012). CHAPMAN, Ginette. From Toilet to Tap: The Growing Use of Reclaimed Water and the Legal System’s Response. Arizona Law Review 47, 773 (2005). CHOPRA, Kanchan et al. Findings of the Responses Working Group of the Millennium Ecosystem Assessment. Ecosystems and Human Well-being: Policy Responses, v. 3. Islandpress, p. 218. Available at International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material. FERREIRA, Maria Augusta. Apontamentos sobre Gestão Socioambiental na Administração Pública Brasileira. In: BLIACHERIS, Marcos Weiss and FERREIRA, Maria Augusta, Sustentabilidade na Administração Pública: Valores e Práticas de Gestäo Socioambiental. Belo Horizonte: Forum ed. 2012. FERREIRA, Maria Augusta. As Licitações Públicas e as Novas Leis de Mudança Climática e de Resíduos Sólidos. In: SANTOS, Murillo Giordan and BARKI, Teresa Villac Pinheiro. Licitações e Contratações Públicas Sustentáveis. Belo Horizonte: Forum, 2011. FIORINO, Daniel. Implementing Sustainability in Federal Agencies an early assessment of President Obama’s Executive Order 13514. Available at: <http://www.businessofgovernment.org/sites/default/files/ Implementing%20Sustainability%20in%20Federal%20Agencies.pdf >. Last consulted on: Dec., 20, 2012. 66 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 66-66, jan./mar. 2014 International Law Association Berlin Conference (2004) Water Resources Law available at: <http://www.internationalwaterlaw.org/documents/ intldocs/ILA_Berlin_Rules-2004.pdf>, last consulted on: Dec., 20, 2012. Plan of Implementation of the Johannesburg World Summit on Sustainable Development. Available at: <http://www.un-documents.net/jburgpln. htm#V>. Last consulted on: Dec., 19, 2012. SNODGRASS, Michael R.F. Greywater - the Reuse of Household Water: A Small Step Toward Sustainable Living and Adaptation to Climate Change. Georgetown International Environmental Law Review, 22, 591 (2010). STEIN, Jay F. et al. Water use and reuse: the new hydrologic cycle. Rocky Mountain Mineral Law Foundation-Institute 29-1 (2011). WEISS, Edith Brown. The Evolution of International Water Law, Recueil des cours, 2007. page 229-230. _______International Law Seminar: Water Resource, Prof. Edith Brown Weiss, course material.
O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS NO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES (LEI Nº 12.462/11) THE REGISTRATION SYSTEM PRICES IN DIFFERENTIAL TREATMENT OF CONTRACTS (RULE Nº 12.462/11) Juliano Heinen1 Procurador do Estado do Rio Grande do Sul SUMÁRIO: Introdução; 1 Natureza jurídica da Lei nº 12.462/11; 2 Premissas constitucionais sobre o tema; 3 Procedimentos auxiliares no RDC; 4 Sistema de Registro de Preços; 4.1 Objeto; 4.2 Atores do regime de preços; 4.3 A natureza jurídica e os efeitos da ata oriunda do Sistema de Registro de Preços; 4.4 Etapas do registro de preços; 4.5 Critérios de julgamento; 4.6 Da revisão e da revogação (cancelamento) dos preços registrados; 4.7 Adesão; 5 Conclusão; Referências. 1 Mestre em Direito (UNISC). Ministra aulas na Universidade de Caxias do Sul (Extensão), Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (Pós-Graduação), na Faculdade IDC (Extensão e Pós-Graduação), na Escola Superior da Magistratura Federal (ESMAFE), na Fundação Escola Superior da Defensoria Pública (FESDEP), na Escola Superior da Advocacia Pública (ESAPERGS), no Curso Verbo Jurídico. 174 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 174-200, jan./mar. 2014 RESUMO: O presente trabalho aborda, por meio de uma análise crítica, os principais aspectos no que se refere ao procedimento auxiliar do Registro de Preços do Regime Diferenciado de Licitações, modalidade de seleção pública, pela qual a Administração Pública registra em ata as propostas de preços para aquisições futuras e periódicas. Contudo, esta sistemática foi redimensionada a partir da edição da Lei nº 12.462/11. Para tanto, a pesquisa desenvolvida traz à tona possíveis soluções às incongruências compreendidas frente aos textos legais que tratam da matéria. Conclui-se, por fim, o estudo sobre o mencionado procedimento auxiliar ainda é prematura, a ainda revelar, portanto, intensos debates. PALAVRAS-CHAVE: Licitação. Regime Contratações. Sistema de Registro de Preços. Diferenciado de ABSTRACT: This paper discusses, through a critical analysis of the main aspects regarding the auxiliary procedure registry pricing, inclued in Rule off Differential Treatment of Contracts, public screening modality by which the Public records minutes at the proposed prices for future acquisitions and periodicals. However, this system was resized from the enactment of Rule n. 12.462/11. Therefore, the study conducted brings out possible solutions to the inconsistencies understood against legal texts dealing with the matter. It is concluded finally, the study of the mentioned auxiliary procedure is premature, the still prove therefore intense debate. KEYWORDS: Public Selection. Regime Differentiated Contracts. Registration System Prices. Juliano Heinen 175 INTRODUÇÃO Foram os eventos esportivos importantes que o Brasil vai sediar que começaram a lançar questionamentos sobre a vetusta e atual Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93), especialmente por esta não dar cabo de lançar soluções a contento aos problemas atuais. Sua defasagem é considerada notória2. Dessa forma, como dito, esta responsabilidade de sediar eventos de repercussão mundial fez com que se percebesse ser imprescindível a modificação do regime licitatório tradicional, apresentando-se outro modelo, que foca em resolver a complexidade das contratações necessárias a partir do momento em que o Brasil passa a ser sede destes acontecimentos esportivos. Assim, a princípio, ter-se-ia um modelo licitatório transitório. Contudo, tanto o legislador, como a própria doutrina apostam que este procedimento será o novo arranjo jurídico que tomará o papel protagonista no que se refere ao regime das licitações e dos contratos administrativos. Até porque, como será percebido adiante, não só já se produziram mudanças ao modelo geral, como o regime diferenciado foi estendido perenemente a outros setores nodais à Administração Pública (v.g. saúde e educação). Antes do advento do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), surgiram outras tentativas de implementar um novo regime jurídico, como a Medida Provisória (MP) nº 489/10, que não foi apreciada no tempo devido, o que fez com que ela perdesse seu objeto; após, foi editada a MP nº 503/10, a qual sofreu uma série de emendas, sendo, por fim, este ato normativo rejeitado por inteiro; além disso, a MP 521/10, que também tratava da matéria, teve o mesmo destino. Quando da edição e apreciação da MP nº 527/10, que tratava sobre a estrutura e o regime jurídico dos aeroportos, foi apresentada uma emenda que acabou levando a efeito e vigência o modelo atual do RDC. Então, esta Medida Provisória acabou sendo convertida na Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, a qual disciplina o procedimento licitatório denominado de “Regime Diferenciado de Contratações” ou “RDC”3. 2 HEINEN, Juliano. A contratação integrada no Regime Diferenciado de Contratações - Lei nº 12.462/11. Fórum de Contratação e Gestão Pública. v. 145, Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 37-45. 3 Essa legislação foi alterada pelas Leis Federais nº 12.688/12, nº 12.722/12 e nº 12.745/12, e o Decreto Federal nº 7.581/11 regulamentou a referida lei. 176 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 176-200, jan./mar. 2014 Cabe destacar que justamente é esta uma das críticas feitas ao regime, porque foi apresentado e gestado em um contexto completamente diverso, ou seja, como se fosse um rescaldo de uma legislação que, definitivamente, não tratava de licitações e de contratos administrativos4. Era como se este novo modelo licitatório tivesse sido “encaixado” em outra legislação não afeta diretamente ao tema. Contudo, muito do que se questiona no que se refere ao RDC é fruto de um rompimento de paradigma, o que naturalmente causa certa contingência. É trivial que todo câmbio normativo cause um atrito à harmonia jurídiconormativa estabelecida. Ao longo da exposição, será percebido que o RDC não necessariamente trouxe novidades bastantes a se perfazer tamanha celeuma em relação a ele, dado que ele se aproxima, em larga medida, com o procedimento do pregão (Lei nº 10.520/02). Há, aqui, uma conjunção de boas técnicas constantes nos outros modelos licitatórios, agregando-se, no texto legal, outras soluções já apontadas pela doutrina e pela jurisprudência, principalmente do Tribunal de Contas da União (TCU)5. Dessa maneira, o RDC tem por escopo, em essência, romper com o anacrônico modelo licitatório atual, viabilizando boas práticas que intentam conseguir dar maior celeridade aos procedimentos licitatórios, combater eventuais fraudes nesta seara, permitir a eficiência na viabilização das obras e nos serviços públicos tão necessários à Nação etc. Assim, o RDC é uma tentativa de perfazer um câmbio na conjuntura que se processa atualmente. Há a necessidade de que se perceba que estas “inovações” trazidas por este prematuro regime muito refletem práticas já desenvolvidas por organismos estatais, por pessoas jurídicas de direito privado da Administração Pública indireta ou por organismos internacionais. E assim, o RDC passa a positivar as práticas consideradas já popularizadas no limiar da própria Nação brasileira6. Deve ser salientado que, nem bem a MP nº 527/11, convertida na Lei nº 12.462/11, entrou em vigor, já é objeto de Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI), tombada sob o nº 4.655, a qual foi promovida pela Procuradoria-Geral da República. A primeira alegação é de natureza 4 Tanto é verdade que a Medida Provisória em questão foi gestionada na Secretaria de Aviação Civil, sendo que em nenhum momento fez-se menção à criação de um regime diferenciado de contratação. 5 HEINEN, Juliano. Procedimentos auxiliares no Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/13). Interesse Público. v. 80, Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 125-138. 6 SCHWIND, Rafael Wallbach. Remuneração Variável e Contratos de Eficiência no Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC). Revista Brasileira de Direito Público. v. 36, Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 177-206. Juliano Heinen 177 formal, já que a referida medida provisória acabou por converter, em lei, tema estranho à proposta original, conforme salientado logo antes. Além disso, outros vícios de ordem material são ventilados, como a inconsistência do art. 1º, em não especificar quais as obras e serviços seriam disciplinados pelo RDC7; alega-se, ainda, a violação do princípio da igualdade por mecanismos como a adoção prioritária da empreitada integral em certos objetos, o sistema de pré-qualificação etc.8 Da mesma maneira, a Lei nº 12.462/11 ainda é questionada pela ADI nº 4.645, proposta pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, pelo Democratas – DEM e pelo Partido Popular Socialista - PPS (art. 103, inciso VIII, da CF/88). Alegam, entre outros fundamentos, justamente o abuso no poder de emendar as medidas provisórias, dado que, no presente caso, o objeto original do mencionado ato normativo foi completamente modificado9. O que é certo é a convicção de que o modelo atual não está a contento. E, a partir desta verdade é que se deve passar a visualizar o RDC como uma nova modalidade que visa a trazer inéditas soluções à área de licitações e de contratos. E estas incursões inserem-se em um modelo gerencial de Administração. Temos a certeza de que ainda há muito que se debater sobre o tema, e, para tanto, deve-se dar os devidos passos neste sentido. Para os limites deste trabalho, optar-se-á por estudar apenas um dos procedimentos auxiliares do RDC, qual seja, o Sistema de Registro de Preços (SRP). Porque incluído neste tema, far-se-á uma análise também dos meandros do instituto da adesão, também denominada de “carona”. 1 NATUREZA JURÍDICA DA LEI Nº 12.462/11 A Lei nº 12.461/11 não foi clara em estabelecer a natureza jurídica das regras do RDC. Não há dúvidas que foi estabelecida uma nova modalidade licitatória10, na linha do que já dispunha a Lei nº 8.666/93 7 Consideramos essa alegação débil, porque mesmo a Lei nº 8.666/93 não especifica as obras a serem tuteladas por um regime geral de procedimentos licitatórios. 8 KRAWCZYK, Rodrigo. Contratação pública diferenciada RDC. Entendendo o novo regime - Lei nº 12.462/11. In: Âmbito Jurídico. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/%20 http:/www.dgmarket.com/AppData/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11678&revista_ caderno=4>. Acesso em: 17 abr. 2014. 9 Neste aspecto, o próprio § 4º do art. 4º da Resolução nº 1 de 2002, oriunda do Congresso Nacional, veda a apresentação de emendas que versem sobre matérias estranhas ao objeto da medida provisória. 10 Para os limites teóricos deste trabalho, utilizar-se-ão, como sinônimos, os termos “modalidades” e “procedimentos” licitatórios. 178 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 178-200, jan./mar. 2014 – e suas várias espécies de procedimentos licitatórios (concorrência, tomada de preços, convite, concurso, leilão e registro de preços) e a Lei nº 10.520/02 (que trata do rito de pregão). A questão é definir quais os artigos tratariam de normas gerais e quais deles seriam afetos somente ao ente federado União. Enfim, quais normas seriam de caráter nacional, e quais delas teriam a natureza de normas federais. Cabe referir, por oportuno, que o uso do RDC é opcional, ou seja, lastreado na oportunidade e conveniência do administrador público. Convive, assim, em paralelo com a atual Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93). 2 PREMISSAS CONSTITUCIONAIS SOBRE O TEMA A primeira premissa que deve ser trazida à tona reflete a certeza de que o RDC deve estar compatível com os parâmetros estabelecidos no inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal de 198811 (CF/88). Assim, p. ex., este modelo licitatório deve ser pautado a partir dos seguintes parâmetros: imperioso ter presente a igualdade de condições a todos os concorrentes, incluindo-se cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento. Além disso, devem ser mantidas as condições efetivas da proposta, bem como somente permitirá as exigências de qualificação técnicas e econômicas indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Veja que deverá ser reputada inconstitucional qualquer exigência no RDC que rompa com a igualdade entre os concorrentes, ou mesmo que exija uma qualificação técnica não pertinente ao objeto licitado. Da mesma forma, o art. 22, inciso XXVII12, do texto constitucional, determina que compete privativamente à União legislar sobre normas gerais sobre licitações. Sendo assim, o RDC é típica regra geral de licitação – sendo esta típica “lei quadro” –, tendo natureza de lei nacional, ou seja, vale, de maneira uniforme, a todos os entes federados, até porque atinge interesses de todos eles, sendo que seu objeto transborda de uma 11 CF/88, Art. 37, inciso XXI: “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. 12 CF/88, Art. 22, inciso XXVII: “Compete privativamente à União legislar sobre: normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;”. Juliano Heinen 179 perspectiva particularizada. Nada impede que os Estados, Municípios e Distrito Federal editem regras específicas sobre o regime diferenciado, respeitando, por óbvio, as normas de caráter geral. Importante perceber, nesse aspecto, se o Decreto federal nº 7.581/12, que regulamenta a Lei nº 12.462/11 no âmbito da União, pode ser estendido aos Estados federados. Para isso devemos partir das premissas estruturais dos arts. 22 a 24, da Constituição Federal de 1988, que dão a base orgânica à federação brasileira. A partir disso, evidenciou-se quem faz o quê. Tomando por base de um elementochave inserido na estrutura federativa, a regulamentação impositiva e infralegal pelo Presidente da República aos demais entes federados seria impensável em matérias legislativas em que sua competência não é plena ou privativa, mesmo diante de um modelo federativo brasileiro, vamos dizer, “híbrido”. Mas, avançando, a partir disso temos de que evidenciar os limites normativos do art. 84, inciso IV, CF/88 – poder deste Chefe da Nação em fazer cumprir as leis. Assim, conclui-se preliminarmente que: a) assume-se que a Lei nº 12.462 é regra que estabelece normas gerais e, portanto, Estados, DF e Municípios estão vinculadas a ela; estes só podem editar, no seu âmbito, a legislação de normas especiais que se baseia na lei geral; contudo, conservase, aqui, a devida autonomia federativa; b) Nesse sentido, o Decreto federal nº 7.581/12 só tem validade no âmbito da União, não tendo natureza nacional; desse modo, cada Poder Executivo dos demais entes federados deveria ou poderia editar o seu decreto; Ademais, por estes e outros fundamentos, também se considera impossível a compreensão de que os Estados, DF e Municípios possam aplicar o Decreto federal por analogia, salvo previsão expressa em lei local, nas matérias em que este trata de temas específicos à lei local. 3 PROCEDIMENTOS AUXILIARES NO RDC Os procedimentos auxiliares são ferramentas que visam a prestar uma assistência ao administrador público que quer adquirir produtos ou serviços pelo regime diferenciado instituído pela Lei nº 12.462/11. Apesar disso, tais procedimentos conservam a sua autonomia em relação 180 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 180-200, jan./mar. 2014 ao rito principal do RDC. São ferramentas que serão criadas para auxiliar vários procedimentos licitatórios realizados sob esta modalidade13. O RDC, no art. 29, discriminou quais são os procedimentos auxiliares das licitações regidas pelo disposto nesta Lei: (a) pré-qualificação permanente – art. 30; (b) cadastramento – art. 31; (c) sistema de registro de preços – art. 32; e (d) catálogo eletrônico de padronização – art. 33. 4 SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS O sistema de registro de preços, em igual medida do que se viu no que se refere a outros procedimentos auxiliares, já não é nenhuma novidade, até porque, há muito, previsto expressamente no art. 15, §§ 1º a 8º, da Lei nº 8.666/93. A lei geral adota esta ferramenta para aquisições, a fim de viabilizar um procedimento mais célere aos entes estatais, no intuito de estes obterem produtos de que se necessita corriqueiramente. Embora autoaplicável, o referido dispositivo pode sofrer limitações por regulamento estadual ou municipal, como previsto no § 3º do mencionado art. 1514. E esta normatização infralegal, no âmbito da União, tem assento no Decreto federal nº 7.892/1315. Contudo, a legislação do RDC (falo, aqui, tanto da Lei nº 12.482/11, como do Decreto nº 7.581/11) deu cabo de cumprir com uma agenda ainda a ser preenchida: a regulamentação mais completa e minuciosa desta modalidade licitatória. Esta medida tributou uma adaptação do registro de preços à realidade atual, no intuito de superar eventuais inconvenientes surgidos a partir da legislação de outrora. Enfim, pode-se dizer que o sistema de registro de preços é a modalidade de licitação apta a viabilizar diversas contratações 13 DIOS, Laureano; ZYMLER, Benjamin. Regime Diferenciado de Contratação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 195-196. 14 GUIMARÃES, Edgar; NIEBUHR Joel de Menezes. Registro de preços – aspectos práticos e jurídicos. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 15 STJ, REsp. nº 15.647/SP, Segunda Turma, j. 25/03/2003 Juliano Heinen 181 concomitantes ou sucessivas, sem a realização de um específico procedimento licitatório para cada uma delas. Este sistema pode servir a um ou a mais órgãos da Administração Pública. Normalmente é empregado para o caso de compras corriqueiras de determinados bens ou serviços, quando não é conhecida a quantidade que será necessária adquirir. Ou, ainda, quando estas compras tiverem a previsão de entregas parceladas. Visa, com isto, a agilizar as contratações e a evitar a formação de estoques, os quais geram um custo de manutenção muito grande, sem contar no risco de que tais bens possam vir a perecer ou a se deteriorar16. O Decreto federal nº 7.581/11 definiu o Sistema de Registro de Preços (SRP) no art. 88, inciso I, com redação dada pelo Decreto federal 8.080/13: “Sistema de Registro de Preços - SRP - conjunto de procedimentos para registro formal de preços para contratações futuras, relativos à prestação de serviços, inclusive de engenharia, de aquisição de bens e de execução de obras com características padronizadas.”. Em verdade, a parte final do dispositivo veio a incorporar o entendimento do TCU na matéria, qual seja, de que é possível contratar a execução de obras, desde que elas adotem uma metodologia comum, ou seja, padronizada. Antes, discutia-se muito se este tipo de contratação seria viável por esta modalidade de licitação, tendo em vista que uma obra, no mais das vezes, possui peculiaridades casuísticas e uma complexidade bastante a inviabilizar um padrão. Contudo, na prática, percebeu-se que, em certas situações, as obras podem receber uma padronização que franqueie a contratação pelo registro de preços. De outro lado, consegue-se, além destas vantagens, propiciar a transparência quanto aos bens e serviços que são frequentemente contratados, uma vez que qualquer sujeito tem legitimidade para impugnar preço constante na tabela geral, quando distorcidos ou incompatíveis com o mercado (art. 15, § 6º). Com essa modalidade de licitação quer-se evitar problemas como o desabastecimento de produtos de que se necessita corriqueiramente, ou a perda de produtos perecíveis quando não utilizados. Afinal, conseguese, com o registro de preços, uma aquisição corriqueira ou em momentos específicos, evitando-se a burocracia de um procedimento licitatório 16 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários ao RDC: (Lei 12.462/11 e Decreto 7.581/11). São Paulo: Dialética, 2013. p. 345-355. 182 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 182-200, jan./mar. 2014 complexo. Enfim, visa a regularizar situações em que não se tem a condição de se ter aquisições uniformes. Essa concepção impõe que a Administração Pública fique dispensada de mencionar, no instrumento convocatório, o montante mínimo a ser adquirido. Contudo, há necessidade de estipulação do quantitativo máximo a ser contratado, até para se auferir, já de início, o quanto os fornecedores poderão ser demandados, bem como os limites à figura da adesão, a seguir estudada. Segundo decidiu o TCU, no caso de eventual prorrogação da ata de registro de preços, dentro do prazo de vigência não superior a um ano, não se restabelecem os quantitativos inicialmente fixados na licitação, sob pena de se infringirem os princípios que regem o procedimento licitatório, indicados no art. 3º da Lei nº 8.666/9317. É um sistema muito profícuo para a aquisição de produtos ou para a prestação de serviços aos entes estatais. Tanto que o art. 15, inciso II, da Lei nº 8.666/93, preceitua que as compras feitas pelo Poder Público, na medida do possível, devem ser adquiridas por este sistema. Com ele consegue-se um ganho muito importante: a potencial participação de empresas menores, uma vez que o fornecimento é parcelado ao longo do prazo de validade da ata de registro de preços. Quando mais de uma unidade administrativa pretende adquirir os mesmos produtos ou serviços, pode se utilizar do mesmo procedimento de registro de preços, sendo desnecessário que cada órgão ou ente repita o certame. Neste caso, encarrega-se um determinado órgão ou ente de conduzir a licitação, gerir o sistema, formar o cadastro, etc., sendo denominado de “órgão gerenciador”. Assim, o legislador percebe que o registro de preços poderia bem ser aplicado ao RDC, momento em que o insere a partir das premissas alocadas no art. 3218, podendo ser utilizado para várias espécies contratações. Uma diferença candente entre o sistema de registro de preços inserido na lei geral de licitações (art. 15, § 3º, inciso I, da Lei nº 8.666/93), para com aquele previsto pelo RDC (art. 32, § 2º, inciso II, da Lei nº 12.462/11) é a seguinte: enquanto que o primeiro adota, inexoravelmente, a modalidade de concorrência para a formação do registro, no regime diferenciado este certame é feito de acordo com os procedimentos previstos em regulamento. 17 TCU, Acórdão nº 991/2009, Pleno j. 13/05/2009. 18 Decreto federal nº 7.581/11, art. 87 e ss. Juliano Heinen 183 4.1 OBJETO No RDC, o registro de preços está previsto no art. 32, sendo mais bem detalhado nos art.s 87 e ss., do Decreto federal nº 7.581/11. Para se ter uma ideia de quais seriam os objetos desta espécie de procedimento, o art. 89 do referido decreto traz uma lista19. Contudo, é de se referir que o registro de preços, com o tempo, passou a ser considerado como um mecanismo muito eficiente a inúmeros tipos de contratações, porque é notadamente mais ágil, reduzindo significativamente a necessidade de se realizar um certame para cada objeto idêntico de que se necessitar. Hoje se discute se este sistema poderia ser estendido a serviços e a obras, aplicando-o, assim, a outras situações20. Um exemplo interessante de aplicação do SRP pode aclarar este panorama: a Administração Pública não tem como prever, de antemão, quantos medicamentos de determinada espécie ficará obrigada a fornecer, ou mesmo terá dificuldade de armazenar todo este plantel de fármacos. Com o registro de preços, ela vai adquirindo aos poucos a quantidade de remédios, de acordo com a demanda da população. Em certos meses pode necessitar de uma quantia diversa de outros períodos. O importante é que indique ao mercado uma estimativa de custos, ou seja, quanto pretende gastar em face a determinada quantidade de produtos, a fim de parametrizar a licitação por esta modalidade aqui comentada. Além disso, a Administração Pública utiliza o registro de preços não só para produtos de que necessita periodicamente, mas também para quando está diante de vários entes estatais interessados em contratar o mesmo objeto. Neste caso, o mesmo produto pode ser objeto de contratação por alguns órgãos ou entes públicos, momento em que se racionaliza o procedimento, permitindo, é certo, que se franqueiem estas várias pretensões contratuais em um único certame. Exemplificando: imagine que vários órgãos (que podem ser, inclusive, pertencerem a entes federados diversos) pretendam adquirir determinado mobiliário. 19 Decreto Federal nº 7.581/11, Art. 89: “O SRP/RDC poderá ser adotado nas seguintes hipóteses: I - quando, pelas características do bem ou serviço, houver necessidade de contratações frequentes; II quando for mais conveniente a aquisição de bens com previsão de entregas parceladas ou contratação de serviços remunerados por unidade de medida ou em regime de tarefa; III - quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação de serviços para atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programas de governo; e IV - quando, pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela administração pública.” 20 DIOS; ZYMLER, op. cit., p. 206-207. 184 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 184-200, jan./mar. 2014 Sendo assim, estabelece-se a quantidade que cada um quer contratar e se faz, em conjunto, um único certame pela modalidade de registro de preços. Visualizam-se, aqui, duas vantagens: racionalizam-se recursos, porque se faz um único certame, em vez de vários, bem como se tem a potencialidade de se conseguir preços melhores ao objeto licitado, porque a quantidade a ser adquirida é maior. Então, o objeto do registro de preços não se destina a selecionar um fornecedor para uma contratação específica, como ocorre com os certames comuns (gerais). Ao contrário, visa a dar cabo de escolher a melhor proposta para eventuais contratações sequenciais, escalonadas e não específicas, ou seja, que podem ocorrer repetidas vezes durante o prazo do registro. Em resumo, o registro de preços se presta a firmar os seguintes negócios jurídicos administrativos21: (a) quando o objeto tiver se ser entregue de maneira parcelada; (b) quando a contratação de produtos forem remunerados por unidade ou os serviços forem remunerados por tarefa; (c) quando se tiver a necessidade de contratações frequentes; (d) quando o objeto a ser contratado for de interesse de mais de um órgão ou se prestar a satisfazer um programa de governo; (e) quando não se consegue definir a quantidade a ser adquirida no momento de se perfazer o certame licitatório22; Na hipótese de contratações frequentes, consegue-se perceber um ganho em celeridade no que se refere à economia de procedimentos licitatórios. Por consequência e igualmente, intenta-se evitar que se gastem recursos públicos com a realização do próprio procedimento. Contudo, quando se esta diante de objetos com entrega parcelada 21 Decreto federal nº 7.892/13, art. 3º e Decreto federal nº 7.581/11, art. 89, com redação conferida pelo Decreto federal nº 8.080/13. 22 Nesse último caso, a vantagem da adoção do registro de preços mostra-se muito congruente, porque se evitam desperdícios com a contratação de quantitativos maiores do que o realmente necessário. A Corte de Contas federal declarou que não é incompatível com a lei ou com a Constituição Federal a utilização desse sistema, que o admite, quando, pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela Administração (TCU, Acórdão nº 0492/2012, Pleno, j. 07/03/2012). Juliano Heinen 185 (em etapas), a economia não necessariamente é percebida com mais intensidade, porque, pragmaticamente, o registro de preços não se diferencia da contratação comum, cuja entrega do objeto seria feita desta mesma maneira23. Especificamente quanto àquilo que pode ser adquirido, o SRP de preços, ao menos em termos de RDC, permite que se contrate a “[...] prestação de serviços, inclusive de engenharia, e aquisição de bens, para contratações futuras;” – art. 88, inciso I, do Decreto federal nº 7.581/11. Destaque a ser feito no que se refere aos serviços de engenharia, sendo inseridos como uma possibilidade de aquisição por esta modalidade de certame. Destacamos que a legislação foi alterada para que se permitisse que se fizesse registro de preços para obras de engenharia – parte final do inciso I do art. 88. Ademais, importante mencionar que o sistema em questão, quando normatizado pelas regras do RDC, difere da Lei nº 8.666/93, porque, neste último caso, somente se permitiu o registro de serviços de natureza comum24 . O novo regime de contratações veio a corrigir este equívoco, permitindo, ao nosso ver, a contratação de serviços comuns ou não, porque, justamente, este dado não é relevante à espécie. Uma disposição interessante consta no art. 93, § 2º, do Decreto federal nº 7.581/11, o qual determina que será evitada a adoção da contratação simultânea disciplinada no art. 11, da Lei nº 12.462/11, ou seja, a contratação de mais de uma empresa para a execução do mesmo serviço em uma mesma localidade no âmbito do mesmo órgão ou entidade. Esta providência visa, assim, a assegurar a responsabilidade contratual e o princípio da padronização. No caso de contratação de obras, o Decreto federal 8.080/13 preocupou-se em fornecer requisitos para ofertar a devida segurança jurídica à espécie. Para tanto, inseriu várias condições no parágrafo único no art. 89, do Decreto federal 7.581/11, dizendo que a contratação deste objeto somente pode ser feito por esta modalidade de licitação se: (a) for conveniente para atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programas de governo; ou 23 Tanto que o próprio TCU apontou como sendo inadequado o uso do registro de preços em licitação para objeto de entrega parcelada, porque não se justificava a adoção desta moralidade em relação ao certame comum (TCU, Acórdão nº 3.272/2010, 2ª Câmara). 24 De acordo com o posicionamento do TCU, Acórdão 668/2005, Pleno. 186 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 186-200, jan./mar. 2014 (b) pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela administração pública. Ainda, diz o dispositivo que as licitações deverão ser realizadas pelo “Governo federal” para que se possam contratar obras pelo Sistema de Registro de Preços. Aqui, o legislador não se pautou pela melhor técnica, pois se afastou dos denominativos típicos da ciência do direito administrativo. O correto seria alocar, no local do termo “Governo federal”, a expressão “Administração Pública direta”, “Administração Pública central” etc. Também, exige-se que as obras tenham projeto de referência padronizado, básico ou executivo, sem esquecer as peculiaridades que se encontram nas regiões. Significa dizer que as obras construídas na Amazônia, no Nordeste ou no Sul do País, p. ex., possuem e devem ter características diversas, dado que as condições climáticas, atmosféricas e geológicas reclamam adaptações próprias. Assim, o padrão exigido pelo artigo deve ser regionalizado. Por fim, no caso de se ter a figura “carona”, exige-se que haja compromisso do aderente em suportar as despesas das ações necessárias à adequação do projeto padrão às peculiaridades da execução. 4.2 ATORES DO REGIME DE PREÇOS Segundo a interpretação autêntica feita pelo art. 2º, do Decreto federal nº 7.982/2013, três personagens podem circundar no limiar do Sistema de Registro de Preços: (a) Órgão Gerenciador: órgão ou entidade da Administração Pública federal responsável pela condução do conjunto de procedimentos para registro de preços e gerenciamento da ata dele decorrente25 – suas competências estão definidas no art. 95, do Decreto federal nº 7.581/11, e no art. 5º, do Decreto federal nº 7.892/13; (b) Órgão participante: órgão ou entidade da administração pública federal que participa dos procedimentos iniciais do Sistema de Registro de Preços e integra a ata respectiva26 – suas 25 Decreto federal 7.581/11, art. 88, inciso III. 26 Decreto federal 7.581/11, art. 88, inciso IV. Juliano Heinen 187 competências estão definidas no art. 96, do Decreto federal nº 7.581/11, e no art. 6º, do Decreto federal nº 7.892/2013. A manifestação do órgão que quer aderir ao registro se dá pelo ato administrativo de Intenção de Registro de Preços; e (c) Órgão aderente (ou denominado de “não participante” pelo Decreto federal nº 7.892/13): órgão ou entidade da administração pública que, não tendo participado dos procedimentos iniciais da licitação, faz adesão à ata de registro de preços, desde que atendidos os requisitos dos atos normativos pertinentes27. 4.3 A NATUREZA JURÍDICA E OS EFEITOS DA ATA ORIUNDA DO SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS Como “produto”, por assim dizer, do registro de preços, gerase uma ata, que nada mais é do que um documento vinculativo, tanto para a Administração Pública, quanto para os particulares. Mas em que termos? A legislação estipula que o Poder Público deva respeitar a ordem de classificação e os termos estabelecidos no procedimento licitatório. E o fornecedor que tem o preço registrado obriga-se a entregar aquilo que se propôs à Administração Pública, durante o prazo estabelecido que, no máximo, pode ser de doze meses28. Assim, a validade da ata do registro de preços não será superior a doze meses, incluídas eventuais prorrogações, conforme dispõe o inciso III do § 3º do art. 15 da Lei nº 8.666/9329. Importante notar que o Decreto federal nº 7.581/12, que regulamenta o Regime Diferenciado de Contratações, no art. 99, parágrafo único, determina que a ata tenha um prazo de validade mínima de três meses, o que não se percebe nas regras licitatórias gerais. Veja que esta medida é salutar, porque se impede que se implementem certames com validade exígua, prejudicando a competitividade. Como produto do registro de preços, obtém-se um cadastro de potenciais fornecedores, o qual listará, de maneira clara e particular, o objeto a ser contratado, as quantidades que cada fornecedor têm possibilidade 27 Decreto federal 7.581/11, art. 88, inciso V. Conferir: DIOS; ZYMLER, op. cit., p. 214-216. 28 JUSTEN FILHO, Marçal. O sistema de registro de preços destinado ao RDC. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, César A. Guimarães (Org.) O regime diferenciado de contratações públicas (RDC) – Comentários à Lei nº 12.462 e ao Decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 29 Decreto federal nº 7.892/13, art. 12, “caput”. 188 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 188-200, jan./mar. 2014 de entregar quando solicitado, de acordo com o que foi definido no instrumento convocatório, e, por fim, deve a ata deixar especificado o preço de cada objeto. Todas estas informações constarão em um documento importantíssimo: a ata do registro de preços. Em resumo: na ata constará, dentre outros itens, os preços e quantitativos do licitante mais bem classificado durante a etapa competitiva, bem como os preços e quantitativos dos licitantes que tiverem aceito cotar seus bens ou serviços em valor igual ao do licitante mais bem classificado. Então, ao final, esse documento formará uma lista de potenciais fornecedores. Possui como traço marcante a possibilidade de gerar compromisso para futuras contratações, de acordo com as especificações ali mencionadas. Como dito, durante o prazo máximo um ano30, o Poder Público tem a faculdade (facultas agiendi) de solicitar os préstimos dos fornecedores registrados na ordem de classificação31. Após homologada, qualquer outra entidade pública poderá consultá-la e utilizá-la mediante prévia sondagem do órgão gerenciador daquele sistema de registro de preços, desde que devidamente comprovada a vantagem neste sentido (art. 8º, do Decreto federal nº 7.892/2013). Trata-se, aqui, da figura da “adesão” ou também chamada de “carona”, a ser analisada na sequência da exposição32. Para o fim de dar atualizar a ata para com os preços praticados no mercado, a autoridade que gerencia o sistema deverá verificar a compatibilidade do registro para com a realidade33. Constatado que o preço registrado é superior ao valor de mercado, ficarão vedadas novas contratações até a adoção das providências cabíveis, que consistem em34: (a) convocar os fornecedores para negociarem a redução dos preços aos valores praticados pelo mercado; 30 TCU, Acórdão nº 3028/2010, Segunda Câmara, j. 15/06/2010. 31 O conceito da ata do registro de preços pode ser retirado, por meio de interpretação autêntica, do texto do art. 88, inciso II, do Decreto federal nº 7.581/11: “ata de registro de preços – documento vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, em que se registram os preços, fornecedores, órgãos participantes e condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no instrumento convocatório e propostas apresentadas;”. 32 Este tema será mais bem desenvolvido no item “5.7”, que segue. 33 Decreto federal nº 7.581/11, art. 104. 34 Decreto federal nº 7.581/11, art. 105. Juliano Heinen 189 (b) os fornecedores que não aceitarem reduzir seus preços aos valores praticados pelo mercado serão liberados do compromisso assumido, sem aplicação de penalidade; (c) para os fornecedores que aceitarem reduzir seus preços aos valores de mercado, o registro de preços continua hígido, observando-se, para tanto, a classificação original. A ata de registro de preços não se confunde com os contratos administrativos celebrados com base nela. Logo, o próprio prazo do contrato poderá ser superior a doze meses, ou seja, não se baliza por este documento. Em resumo, os prazos de vigência dos contratos regem-se pelos termos do art. 57, da Lei nº 8.666/93, por exemplo35. Aliás, dela podem se gerar vários contratos, que são, como dito, documentos com regime jurídico diverso. É importante notar que o RDC não obriga a Administração Pública a contratar com o fornecedor cadastrado na referida ata, ou seja, não se defere um direito subjetivo ao interessado mais bem classificado no certame de registro de preços em ser acionado a sempre fornecer o produto a que se obrigou. O que a lei defere é um direito subjetivo à preferência na aquisição, o que é bem diverso (art. 32, § 3º, da Lei nº 12.462/11, art. 101, do Decreto federal nº 7.581/11 e art. 16, do Decreto federal nº 7.892/13). Assim, a ata do registro é um documento vinculativo e obrigacional no que se refere à preferência mencionada. Explico. O Poder Publico pode bem resolver realizar uma licitação específica no que se refere aos objetos já selecionados pelo registro de preços, desde que, no caso, assegure ao licitante vencedor deste último certame, direito de preferência no fornecimento (art. 15, § 4º, da Lei nº 8.666/93). Neste caso, o interessado não é obrigado a entregar o produto por condições diversas a que se obrigou. O que se defere ao fornecedor que integre a ata é a preferência de fornecimento, em igualdade de condições. Em outros termos, caso um ente público realize um certame específico e consiga o bem por um preço inferior, mesmo assim deve ser dada preferência para que o interessado que registrou seu preço possa cobrir a oferta, ou seja, deve ser dada premência a ele (art. 7º, do Decreto federal nº 7.892/2013). 35 Decreto federal nº 7.892/2013, art. 12, § 2º. 190 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 190-200, jan./mar. 2014 Por fim, pode-se mencionar que os contratos deverão ser assinados no prazo de validade da ata de registro de preços (art. 12, § 4º, do Decreto federal nº 7.892/13). Sendo assim, não basta que a adjudicação, p. ex., se dê neste interregno. O que precisa ser efetivado é assinatura do negócio jurídico. 4.4 ETAPAS DO REGISTRO DE PREÇOS Operacionalmente, o registro de preços pode ser resumido em três fases distintas: (a) por primeiro, estabelece uma competição entre os interessados a contratarem com o Poder Público. Cada qual oferta seus lances, gerando o registro do licitante vencedor, com seus quantitativos e preços ofertados; (b) em um segundo momento, passa-se a colher o registro dos demais interessados que anuem em praticar os mesmos quantitativos e preços do primeiro colocado, mantendo-se a ordem de classificação obtida na etapa inicial36. Logo, os demais licitantes podem reduzir seus preços para igualá-los ao primeiro colocado. Todavia, as novas ofertas não prejudicarão o resultado do certame em relação ao licitante mais bem classificado; (c) após e por fim, registram-se os preços e os quantitativos daqueles que não praticam os valores do primeiro colocado, na ordem de classificação ordenada pelos lances respectivos. Importante notar que o instrumento convocatório do registro de preços não necessariamente terá de indicar a dotação orçamentária correspondente – como ocorre com o regime geral de licitações e contratos. Ao contrário. A menção a este dado surgirá quando da realização da efetiva contratação, porque, antes – mesmo quando da formação da ata de registro de preços –, o ente estatal não se obriga a adquirir o objeto licitado37. Em resumo, como o registro de preços não cria obrigações imediatas ao Poder Público, o certame pode iniciar independentemente de se ter dotação orçamentária38. 36 Decreto federal nº 7.581/11, art. 97. 37 Decreto federal nº 7.581/11, art. 91. 38 TCU, Acórdão nº 297/2011, Pleno. Juliano Heinen 191 Aliás, a Corte de Contas federal declarou como irrazoável a consecução de registro de preços para posterior contratação dos valores constantes exatamente na ata, ou seja, para celebração de contrato com objeto absolutamente idêntico a este documento que lhe deu origem. Assim, o tribunal entendeu que o referido objeto deveria ter sido contratado por outra modalidade licitatória39. Deve-se destacar que contrato decorrente do Sistema de Registro de Preços não poderá sofrer qualquer acréscimo no seu quantitativo. Logo, não se lhe aplicam as disposições do art. 65, § 1º, da Lei nº 8.666/93, que permitem acréscimos na ordem de vinte e cinco e de cinquenta por cento. Contudo, importante notar que o art. 99, “caput”, do Decreto nº 7.581/11 dispõe que os licitantes ficam obrigados ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços nas condições a que se obrigaram, durante o prazo de validade da ata. Neste ínterim, a Administração Pública poderá realizar quantas aquisições necessite. Aqui um ponto merece destaque: as limitações quantitativas do art. 65, § 1º, da Lei nº 8.666/93, não são aplicadas à espécie. Será o instrumento convocatório que dará os contornos de quanto se pode ou se quer adquirir. Assim, as balizas quantitativas serão dispostas no instrumento convocatório. Além disso, dispõe o art. 32, § 2º, inciso II, da Lei nº 12.462/11, combinado com o art. 90, incisos I e II, do Decreto federal nº 7.581/11, que o registro de preços será efetivado por qualquer dos modos de disputa previstos neste último ato normativo, sejam eles combinados ou não. O julgamento da melhor proposta, ao seu turno, utilizará o critério de menor preço ou de maior desconto. Já o sistema geral de licitações determinava que a seleção seria feita mediante concorrência – art. 15, § 3º, inciso I, da Lei nº 8.666/93. Esta assertiva foi flexibilizada pelo art. 11, da Lei nº 10.520/200240 e recepcionada pelo Decreto federal nº 7.892/13 (art. 7º, “caput”), os quais permitiram a figura do pregão para a viabilização do registro de preços. Esta conjuntura prova, assim, que o RDC foi mais flexível do que a lei geral no que se refere às modalidades licitatórias de seleção do registro. 39 TCU, Acórdão nº 113/2012, Pleno. 40 Lei nº 10.520/2002, art. 11: “As compras e contratações de bens e serviços comuns, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando efetuadas pelo sistema de registro de preços previsto no art. 15 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, poderão adotar a modalidade de pregão, conforme regulamento específico.” 192 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 192-200, jan./mar. 2014 O registro de preços pode ter a participação de mais de um órgão ou ente. Logo, o certame é feito desde já com a presença de mais um interessado em poder contratar a partir da ata de preços a ser constituída. Assim, quando outros órgãos ou entes quiserem participar do procedimento de registro de preços, deverão manifestar sua intenção ao órgão gerenciador, no prazo por ele estipulado (art. 92, § 1º, do Decreto federal nº 7.58/11), bem como concordar com o registro de preços, indicando sua estimativa de demanda e o cronograma de aquisições (§ 2º do art. 92 do mesmo ato normativo infralegal). Esta proposição feita por outro(s) órgão(s) públicos deverá ser considerada no montante a ser licitado, ou seja, na estimativa de demanda do registro – art. 95, § 2º. Um cuidado importante neste aspecto foi tomado pelo Decreto federal nº 7.581/11, no art. 106, parágrafo único, qual seja: “os órgãos ou entidades da administração pública federal não poderão participar ou aderir à ata de registro de preços cujo órgão gerenciador integre a administração pública de Estado, do Distrito Federal ou de Município, ressalvada a faculdade de a APO [Autoridade Pública Olímpica] aderir às atas gerenciadas pelos respectivos consorciados.” Ao reverso, não se vislumbram quaisquer óbices para que as entidades públicas dos demais entes federados participem no registro de preços federal. 4.5 CRITÉRIOS DE JULGAMENTO O Decreto federal nº 7.892-2013, no art. 7º, “caput”, exige utilização do tipo “menor preço” e, excepcionalmente “técnica e preço” (§ 1º), a critério do órgão gerenciador e mediante despacho fundamentado da sua autoridade máxima. Contudo, caso escolhida a modalidade de pregão, sempre deve se adotar o critério “menor preço”. Caso seja adotado o critério de julgamento “técnica e preço”, ressalva-se que deverá ser evitada a contratação, em um mesmo órgão ou entidade, de mais de uma empresa para a execução de um mesmo serviço, em uma mesma localidade. Esta providência é salutar, pois visa a assegurar a responsabilidade contratual e o princípio da padronização (art. 8º, § 2º, do Decreto federal nº 7.892/2013). O instrumento convocatório ainda poderá prever mais um critério de seleção da proposta mais vantajosa, dado que o menor preço poderá ser aferido pela oferta de desconto sobre tabela de preços praticados no mercado, desde que tecnicamente justificado – art. 9º, § 1º, do Decreto federal nº 7.892/2013. Juliano Heinen 193 4.6 DA REVISÃO E DA REVOGAÇÃO (CANCELAMENTO) DOS PREÇOS REGISTRADOS Os preços registrados poderão ser revogados (ou ditos “cancelados” pelo Decreto federal nº 7.892/13) ou revistos, quando ocorrerem várias situações. Para uma melhor compreensão das matérias, primeiramente se apresentará um quadro-resumo em que se sistematiza a matéria41: (a) Revisão: (a1) por redução nos preços (cuja previsão não está inserida no decreto que trata do RDC, somente no decreto que disciplina o regime geral do Sistema de Registro de Preços); (a2) por aumento nos preços; (b) Revogação ou cancelamento: (b1) por inadimplência do interessado que teve seu preço registrado, sendo estabelecido, em ambos os decretos, uma lista de casos que tipificam hipóteses que autorizam esta perspectiva; A segunda hipótese de revogação/cancelamento da ata passa por uma divergência entre as duas disciplinas jurídicas: (b2.1) Decreto nº 7.892/13, art. 21: decorrente de caso fortuito ou de força maior, desde que: (b2.1.1) por motivos de interesse público; (b.2.1.2) por pedido do fornecedor. (b2.2) Decreto nº 7.581/11, art. 107, § 1º, incisos I e II: A revogação do registro poderá ocorrer: (b.2.2.1) por iniciativa da administração pública, conforme conveniência e oportunidade; ou 41 Decreto federal nº 7.892/13, arts. 105 e 107, e Decreto federal nº 7.892/13, arts. 17 a 21. 194 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 194-200, jan./mar. 2014 (b.2.2.2) por solicitação do fornecedor, com base em fato superveniente devidamente comprovado que justifique a impossibilidade de cumprimento da proposta. A revisão da tabela de registro de preços poderá ser feita por conta de eventual redução dos preços praticados no mercado ou em decorrência de fato que eleve o custo dos serviços ou bens registrados. Neste caso, o órgão gerenciador deverá negociar junto aos fornecedores as quantidades de redução ou de aumento. Veja que, diante desta conjuntura, a legislação pertinente não definiu os critérios objetivos e em que níveis podem se dar as tratativas, salvo que elas devem observar as disposições contidas na alínea “d” do inciso II do caput do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993. Quando o órgão gerenciador convocar os fornecedores para negociarem a redução dos preços aos valores praticados pelo mercado, estes não estão obrigados a aceitar reduzir seus preços aos valores ali constantes. É uma faculdade conferida a eles. Neste caso, serão liberados do compromisso assumido, sem aplicação de penalidade. Contudo, para aqueles fornecedores que aceitem reduzir seus preços, a ordem de classificação original se mantém42. Diante de um preço de mercado que se torna superior aos preços registrados e o fornecedor não puder cumprir o compromisso, a legislação autoriza o órgão gerenciador a liberar o fornecedor da obrigação assumida. Nesta situação, a comunicação deste fato deve ocorrer antes do pedido de fornecimento, para que o interessado fique isento da aplicação da penalidade, isto se confirmada a veracidade dos motivos e comprovantes apresentados. A partir da, o referido órgão deve convocar os demais fornecedores para assegurar igual oportunidade de negociação. Em qualquer caso, quando restam frustradas as negociações, o órgão gerenciador deverá proceder à revogação da ata de registro de preços, adotando as medidas cabíveis para obtenção da contratação mais vantajosa. 4.7 ADESÃO A adesão é um instituto muito peculiar e previsto no SRP, sendo apelidado de “carona”. Tem sua definição capitaneada pelo § 1º do art. 42 Decreto federal nº 7.892/13, arts. 105, § 2º. Juliano Heinen 195 32 da Lei nº 12.462/11: “Poderá aderir ao sistema referido no caput deste artigo qualquer órgão ou entidade responsável pela execução das atividades contempladas no art. 1º desta Lei”. Cabe referir, por oportuno, que esta figura jurídica já era prevista no Decreto nº 3.931/01, art. 8º, § 3º, e foi repetido pelo art. 22, do Decreto nº 7.892/13, e justamente muito se questionava a constitucionalidade do primeiro ato normativo, por justamente não possuir lastro na Lei nº 8.666/93. No caso, alegava-se que o decreto havia inovado a ordem jurídica, sendo considerado praeter legem. Este debate perdeu sentido com a alteração da lei geral de licitações, momento em que se fez previsão expressa acerca do SRP. O instituto do “carona” pode ser considerado verdadeiro caso de dispensa de licitação, sendo esta sua natureza jurídica. Cabe referir que ele somente pode derivar de previsão legal expressa, ou seja, reclama reserva de legislação. Sendo assim, por esta ótica, a figura do “carona” seria ilegal e inconstitucional caso fosse somente tutelado por ato normativo infralegal. Além disso, alegava-se que este instituto violava o art. 37, XXI, da CF/88, porque esta regra impunha a todo órgão público o dever de licitar. Contudo, este argumento não nos serve, justamente porque se adere a um procedimento em que se efetivou um certame público. O dever de licitar – que, inclusive, é relativizado em muitos aspectos – foi preservado. Essa discussão foi levada ao TCU, que se manifestou pela legalidade do procedimento43. Em termos singelos, a adesão permite que outro órgão público, que não participou do registro de preços, firme contratos com base em ata constituída por outros organismos estatais. Para tanto, a fim de se evitarem abusos, algumas premissas e condições foram previstas também no Decreto federal nº 7.892/13 – que vale para as licitações gerais do SRP, não para os registros que seguem o RDC, porque, neste último caso, temos a aplicação do Decreto federal nº 7.581/11. (a) A adesão deve contar com a anuência do órgão gerenciador44. Neste caso, segundo o art. 103, do Decreto nº 7.581/11, quando solicitado, o órgão gerenciador indicará os fornecedores que 43 TCU, Acórdão nº 1.487/2007, Pleno. 44 Art. 22, “caput”, segunda parte, e § 1º, do Decreto federal nº 7.892/13. 196 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 196-200, jan./mar. 2014 poderão ser contratados pelos órgãos ou entidades participantes ou aderentes, bem como os respectivos quantitativos e preços, conforme a ordem de classificação. Neste caso, o órgão gerenciador indicará o fornecedor registrado mais bem classificado e os demais licitantes que registraram seus preços em valor igual ao do licitante mais bem classificado; (b) Ainda, para se ter a aderência mencionada, deve-se contar com a anuência também do fornecedor beneficiário da ata de registro de preços (art. 102, § 4º, do Decreto federal nº 7.581/11), desde que não prejudique as obrigações presentes e futuras decorrentes da ata, assumidas com o órgão gerenciador e órgãos participantes (§ 5º do mesmo ato normativo)45; (c) Por fim, a adesão deve se limitar aos quantitativos definidos nos regulamentos próprios46. No art. 22, “caput”, primeira parte, do Decreto federal nº 7.892/13, estipula-se um requisito a mais, não mencionado pelo regulamento federal que trata do RDC: deve ser justificada a vantagem da adesão à ata de registro de preços. Destaca-se que o terceiro requisito (item “c”) refere-se aos limites quantitativos da adesão, ou seja, até quanto o “carona” poderá aderir. Esta previsão veio à tona, porque, outrora, muitos abusos foram cometidos neste sentido, especialmente pelo fato de, em certas oportunidades, inclusive, terem sido superadas as quantidades fixadas pelo órgão gerenciador na ata de registro. Assim, é certo que o limite “c” é o mais polêmico. Para se ter uma ideia, o TCU, ao seu turno, preocupa-se que a figura do “carona” se adapte aos quantitativos contratados, não podendo os entes públicos negociar em níveis superiores à ata homologada. Há muito a Corte de Contas federal determinava que os organismos estatais deveriam gerenciar a ata de forma que a soma dos 45 Art. 22, § 2º, do Decreto federal nº 7.892/13. 46 A Corte de Contas federal estipulou outros requisitos (TCU, Acórdão nº 2.764/2010, Pleno): (a) deve existir plena discriminação do objeto a ser contratado pelo sistema de registro de preços, acompanhado da pertinente justificativa e necessidade da contratação; (b) comprovação da compatibilidade econômica, avaliando a conectividade do valor dos bens, para com os preços de mercado; (c) respeito aos quantitativos discriminados na ata de registro de preços, sendo vedada a contratação em patamares superiores. Juliano Heinen 197 quantitativos contratados em todos os negócios derivados dela não superassem o quantitativo máximo previsto no edital47. Logo, esta decisão do citado tribunal já restringia a figura do aderente. Muito embora, após o julgamento dos embargos de declaração opostos pelo Ministério do Planejamento, o TCU tenha permitido a contratação por adesão sem os limitadores, ou seja, de maneira mais flexível, até o fim de 201248. O RDC preocupou-se com a possibilidade de se perpetrarem abusos a partir da figura da adesão. Dessa forma, no regulamento federal que detalha a Lei nº 12.462/11 previram-se limites específicos a respeito 49. No art. 102, §§ 2º e 3º, foram positivadas as seguintes limitações: (a) Os órgãos aderentes não poderão contratar quantidade superior à soma das estimativas de demanda dos órgãos gerenciador e participantes; (b) A quantidade global de bens ou de serviços que poderão ser contratados pelos órgãos aderentes e gerenciador, somadas, não poderá ser superior: (b1) a cinco vezes a quantidade prevista para cada item e, (b2) no caso de obras, não poderá ser superior a três vezes50. Veja que, no primeiro caso, veda-se que o “carona” estabeleça contratos cujas quantias sejam superiores à soma das estimativas feitas na ata de registro. Ao mesmo tempo, a soma de todas as adesões não poderá ser superior a cinco ou três vezes a quantidade estabelecida como limite máximo a cada item, dependendo do caso. Exemplificando: imagine que quatro órgãos públicos unam-se para, em um procedimento, adquirir, cada um, duzentas e cinquenta 47 TCU, Acórdão nº 1.233/2012, Pleno; TCU, Acórdão nº 2.311, Pleno. 48 TCU, Acórdão nº 2.692/2012, Pleno. 49 Instituído pelo Decreto federal nº 7.581/11. 50 O Decreto federal nº 7.892/11, no art. 22, § 4º, modifica um pouco os quantitativos previstos no regulamento do RDC. Confira: “O instrumento convocatório deverá prever que o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não poderá exceder, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes, independente do número de órgãos não participantes que aderirem.”. 198 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 198-200, jan./mar. 2014 mesas, em um total de mil. Neste caso, um eventual aderente somente poderia tomar por base esta ata de Registro de Preços para adquirir no máximo mil mesas, ou seja, o somatório do quantitativo de todos os licitantes – primeiro limite (letra “a”). Ademais, esta ata somente serve para abarcar a quantidade de “caronas” em até cinco mil cadeiras, ou seja, cinco vezes a soma do quantitativo máximo de cada item, que, no caso, era único (ex. mesas) – segundo limite (letra “b”). Essas balizas são importantes marcos à contenção de eventuais excessos, as quais não foram contempladas no regime geral de licitações disciplinado pela Lei nº 8.666/9351. O § 5º do art. 22 do Decreto federal nº 7.892/13, que disciplina, em âmbito infralegal e em caráter geral, o SRP da União, dispõe ainda outra condição para que se possa aderir a uma ata de registro de preços: o órgão gerenciador somente poderá autorizar a figura do “carona” após a primeira aquisição ou contratação por órgão integrante da ata, exceto quando, justificadamente, não houver previsão no edital para aquisição ou contratação pelo órgão gerenciador. Significa dizer que a adesão fica suspensa até que ocorra a primeira compra pelo órgão gerenciador ou por um participante. Outro dispositivo interessante trazido pelo Decreto federal 7.581/13 determina que, depois da autorização do órgão gerenciador, o órgão não participante deverá efetivar a aquisição ou contratação solicitada em até trinta dias, observado o prazo de vigência da ata (art. 103, § 4º). Logo, fixa-se aqui um prazo máximo para que o aderente ultime os negócios jurídicos para os quais pediu autorização por fim, ficando este ínterim restrito, é claro, ao limite de vigência da ata. Destaca-se que, no regime geral do Registro de Preços, este prazo passa para noventa dias (art. 22, § 6º). Acompanhando o entendimento do TCU52 , o Decreto federal nº 7.892/13 pôs fim a um debate muito corriqueiro na matéria. Diz o art. 22, § 8º que “É vedada aos órgãos e entidades da administração pública federal a adesão a ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade municipal, distrital ou estadual.”. E é compreensível esta medida, porque as compras em nível nacional possuem abrangência que destoa dos aspectos regionais e locais. Veja que, neste caso, a 51 Importante mencionar que a União não deve aderir às atas de registro de preços de órgãos estaduais e municipais, até porque estes conferem ao certame uma publicidade mais restrita (art. 106, Decreto federal nº 7.581/11). 52 TCU, Acórdão nº 3.625/2011, 2ª Câmara. Juliano Heinen 199 União não poderia se valer da ata de registro de um município, que contrata normalmente em menor escala e, neste caso, os preços possivelmente serão mais altos. Contudo, a recíproca é permitida. Veja que o § 9º do art. 22 define que é facultado aos órgãos ou entidades municipais, distritais ou estaduais a aderir à ata de registro de preços da Administração Pública Federal. Em nível de RDC, o Decreto federal nº 7.581/11 acompanhou esta mesma linha de raciocínio (art. 106, “caput” e parágrafo único). No entanto, a parte final do parágrafo faz uma ressalva, é facultada à APO aderir às atas gerenciadas pelos respectivos consorciados, independentemente de advirem de outras unidades da federação. Releva notar que esses atos normativos infralegais ampliaram ou restringiram o âmbito normativo dos dispositivos constantes em legislação de primeiro grau, seja aqueles constantes na lei geral, seja aqueles dispostos no RDC. Sendo assim, em tese, poderia se dizer que os decretos disciplinam matérias de maneira praeter legem, o que bem poderia ser alvo de questionamento. 5 CONCLUSÃO Assim como tantas outras inovações produzidas nos últimos anos em direito administrativo, o Regime Diferenciado de Contratação necessita de um período de maturação. Apesar disso, sem sombra de dúvidas, ganha, hoje, um papel protagonista no cenário nacional. Aquele que seria um regime jurídico de contratações transitório e relegado a desaparecer juntamente com a entrega da última medalha dos Jogos Olímpicos de 2016, cresce e toma espaço nas relações mais triviais das contratações públicas. Porém, não podemos nos enganar ao pensar que ele tenha chegado à fase adulta. Ao contrário, acredita-se que viva a mais pulsante adolescência, repleto de conf litos, dúvidas, acertos e erros, mas completamente vivo e mergulhado nas mais intensas aspirações (e contradições...) que esta fase deste ciclo da existência revela. Para tanto, apresentou-se, neste trabalho, uma análise crítica sobre pontos obnubilados no que se refere aos procedimentos auxiliares da Lei nº 12.462/11, especialmente se comparados ao regime geral da Lei nº 8.666/93. 200 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 39, p. 200-200, jan./mar. 2014 REFERÊNCIAS DIOS, Laureano; ZYMLER, Benjamin. Regime Diferenciado de Contratação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 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TRATADO DE ESTABILIDADE FISCAL EUROPEU, SOBERANIA E O (RE)DESENHO CONSTITUCIONAL DO ORÇAMENTO EUROPEAN STABILITY FISCAL TREATY, SOVEREIGNTY AND THE BUDGET CONSTITUTIONAL (RE)DESIGN Raphael Ramos Monteiro de Souza Advogado da União1 SUMÁRIO: Introdução; 1 Soberania e constitucionalismo na Europa; a superação dos conceitos clássicos; 2 Tratado de estabilidade: integração financeira como resposta à crise; 3 Orçamento, condicionantes externos e democracia; 4 Considerações finais; Referências. 1 Coordenador-Geral do DAE/SGCT/AGU . Especialista em Direito Público Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP/DF. Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGD/UFRJ 310 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 310-332 jan./mar. 2014 RESUMO: Firmado no auge da crise financeira do início da década como uma das principais medidas jurídicas para atenuá-la, o tratado de estabilidade fiscal europeu, em vigor a partir de 2013, contém duas previsões de especial interesse teórico. A primeira, no sentido da incorporação de regras de equilíbrio orçamentário e endividamento público pelos Estados, preferencialmente em nível constitucional, nos limites parametrizados e supervisionados pela União Europeia. A segunda, sujeitando os membros a sanções por parte do Tribunal de Justiça Europeu, na hipótese de sua inobservância. O presente artigo objetiva examinar de que maneira a introdução de novos condicionantes no ciclo orçamentário – dotado de dimensões políticas, econômicas e regulatórias precípuas dos poderes nacionais – repercute na estrutura tradicional da soberania estatal, ante arranjos constitucionais já impactados pela integração supranacional. Adota-se como ponto de partida o fenômeno da soberania compartilhada ou pós-soberania, em Habermas e MacCormick, sob a perspectiva que supera o contorno clássico do conceito e gera novas leituras naquele continente, de viés temperado, limitado ou multinível. Após abordar os antecedentes e consequentes normativos do tratado, o estudo enfrenta o debate face ao papel de atores externos na fixação dos percentuais de déficit e de dívida pública, instrumentos de planejamento estatal. Investigam-se recentes julgados de Cortes Constitucionais sobre a questão. Concluise que, à luz da dinâmica de interdependência do bloco, acentuada pela moeda única, a lógica supranacional é agora transplantada para a realidade orçamentária, esvaziando-se parte das prerrogativas nacionais em prol da preservação dos objetivos de unidade, cooperação solidária e desenvolvimento comum. PALAVRAS-CHAVE: União Europeia. Soberania. Constitucionalismo. Orçamento. Democracia. ABSTRACT: Signed at the height of this early decade financial crisis, as one of the main legal measures to minimize it and entered into force since 2013, the European fiscal stability treaty has two rules of special theoretical interest. The first, toward incorporation of balanced budget and public debit rules, preferably on constitutional level, within the limits parameterized and supervised by the European Union. The second, by subject States to the jurisdiction of the European Court of Justice, in case of not compliance. This paper aims to examine how the introduction of new constraints in the budget cycle – featured by political, economic and regulatory dimensions inherent to national powers — affects the structure of traditional state sovereignty, in the framework Raphael Ramos Monteiro de Souza 311 of constitutional arrangements already impacted by supranational integration. From the standpoint of the shared sovereignty or postsovereignty, as Habermas and MacCormick analyses, whose view overcomes the classical concept contour and generates new reflections on that continent, like temperate, limited or multilevel theories. After approach to the treaty antecedent and consequent normative aspects, it address to the issue of the external actors function in setting the percentage of deficit and public debt, tools of state planning. The article also investigates recent decisions of Constitutional Courts on the subject. It concludes that, in light of the dynamic interdependence of the Union, marked by the single currency, the supranational logic is now transplanted to budget realities, moving national prerogatives in order to preserve the principles of unity, solidarity and common development. KEYWORDS: European Union. Sovereignty. Constitutionalism. Budget. Democracy. INTRODUÇÃO A grave crise econômica pela qual a Europa, em particular, vem atravessando nos últimos anos acentuou alguns fenômenos jurídicos e políticos no processo de integração regional. Após instituir o modelo da união monetária, inserido no atual contexto de interdependência da globalização financeira, o bloco não mais pode oferecer respostas fragmentadas para os problemas que, ao final, influem na ordem comum. Estejam eles momentaneamente enfatizados na Grécia, Espanha, Chipre, Itália ou Portugal, últimos dos epicentros. As dificuldades enfrentadas repercutem diretamente na qualidade de vida da população, a partir do baixo nível de emprego, da restrição de investimentos públicos e privados, da elevação de impostos e da deterioração dos serviços prestados, conforme evidenciaram a onda de manifestações e de greves realizadas em boa parte daqueles países em recessão. Entre as principais medidas adotadas para debelar o quadro, bem como prevenir novos colapsos e resgates, figura o “Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governança na União Econômica e Monetária”2, assinado em Bruxelas, em março de 2012 - com vigência a partir de janeiro de 2013, logo após o décimo segundo membro (Finlândia) tê-lo ratificado. 2 Disponível em: <http://www.european-council.europa.eu/media/639122/16_-_tscg_pt_12.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2013. 312 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 312-332 jan./mar. 2014 A presente análise tem como objeto a previsão de incorporação pelos Estados de regras de equilíbrio orçamentário e endividamento público, preferencialmente em nível constitucional, em até um ano da entrada em vigor, isto é, em janeiro de 2014 (art. 3º). Em especial, tendo em mira o fato de que tais limites serão os parametrizados e supervisionados pela própria União Europeia. Aliado à regra que sujeita os membros ao risco de sanções por parte do Tribunal de Justiça Europeu, na hipótese de sua inobservância (art. 8º). Nesse quadro, o problema reside em examinar de que maneira tal configuração afeta a estrutura tradicional da soberania estatal, em sistemas já impactados pela integração supranacional. Sabe-se que uma das funções precípuas do Legislativo consiste na aprovação do orçamento encaminhado pelo Executivo, a qual compreende dimensões jurídicas (controle), políticas (distribuição entre grupos), econômicas (racionalidade de alocação ante conjuntura fiscal), técnicas (regras para cálculo e alcance dos fins anteriores) e regulatórias3. Na medida em que a tarefa de previsão de receitas e autorização de despesas públicas passa a se subordinar a atores externos, é sinal de que o desenho institucional dos integrantes da zona do euro4 apresenta relevantes modificações em sua modelagem. Circunstância a merecer exame sob a perspectiva constitucional. Para tanto, inicialmente, o trabalho adota como ponto de partida o fenômeno da soberania compartilhada (Habermas) ou da, similar, póssoberania (maccormick), panorama essencial para compreensão dos desdobramentos jurídicos da última crise econômica sobre o ordenamento daqueles Estados. Na sequência, enfocam-se aspectos do tratado de estabilidade financeira, propriamente dito, bem como seus antecedentes e consequentes normativos. Finalmente, a última seção chega ao debate envolvendo a limitação dos poderes nacionais frente à introdução de condicionantes externas ao processo orçamentário. Sobretudo, na fixação dos percentuais de déficit e da dívida pública, uma das principais 3 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense. 1975. p. 397398. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. v. V. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 65-77. 4 Atualmente composta por dezessete países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Malta e Portugal. A Croácia é o próximo candidato a integrar o grupo. Raphael Ramos Monteiro de Souza 313 ferramentas do planejamento estatal, por organismos alheios à estrutura de poder interno. Recentes posicionamentos de Cortes Constitucionais Europeias acerca da temática serão úteis para compor a reflexão. Investigam-se, assim, reflexos constitucionais do movimento para uma disciplina orçamentária comum, destinada a aplacar crise que colocava em risco o próprio projeto de integração europeu, em larga medida alicerçado na adoção da moeda única. 1 SOBERANIA E CONSTITUCIONALISMO NA EUROPA: A SUPERAÇÃO DE CONCEITOS CLÁSSICOS A concepção relacionada à soberania, classicamente, diz respeito ao poder absoluto, afirmação de uma autoridade política máxima de determinado território organizado, em caráter exclusivo. Desdobra-se sob a ótica interna e externa. A primeira, no sentido de que nenhum poder de comando lhe é sobreposto dentro dos limites territoriais do Estado; a segunda, na independência frente ao relacionamento com os demais Estados e também organismos internacionais5. Sem embargo, as características da unidade e supremacia, que remontam ao surgimento do Estado-Nação, não mais subsistem em toda a sua extensão no mundo contemporâneo. Seja pelo influxo do direito internacional, seja pela expansão de entes supranacionais. Notadamente, o mais expressivo exemplo deles encontra-se na União Européia. Vale lembrar que o continente foi palco de diversas guerras ao longo da história, fator que ajuda a explicar a busca por uma estável unidade, a partir da metade do século XX. Sua evolução institucional vem despertando a atenção dos teóricos, ao provocar uma releitura das formas tradicionais de soberania e de relacionamento entre seus integrantes. Um dos autores que mais se dedicou ao tema é, decerto, Jürgen Habermas. Para o alemão, a construção reflete o modelo pós-nacional, entendido como corolário da intensificação das relações transfronteiriças e do progresso científico-tecnológico, cujos desafios exigem dinâmica que extrapola as soluções meramente locais. Com a ressalva da necessidade de preservação de instrumentos de legitimação democrática para os indivíduos, sua teoria vislumbra o paradigma europeu como aprendizado 5 MACCORMICK, Neil. On Sovereignty and Pos-Sovereignty. Questioning Sovereignty. Oxford: Oxford University Press. 1999. p. 129. 314 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 314-332 jan./mar. 2014 para contornos ainda mais amplos, a ponto de chegar a advogar por uma futura ordem jurídica global6. Naquele continente, o cenário cosmopolita foi institucionalizado pelos tratados que cuidam do funcionamento da União - de Maastricht (1992) a Lisboa (2007), passando por Amsterdã (1997) e Nice (2001). São gestados, assim, novos centros segmentados de poder comum, a exemplo do Parlamento Europeu, do Conselho Europeu, do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Banco Central Europeu, entre outros. De maneira que os Estados interdependentes passam a se revestir de uma soberania compartilhada, com vistas a expandir a capacidade regulatória de interesses comuns. Em semelhante abordagem, maccormick afirma que uma parcial perda do exercício da soberania por parte dos membros é inevitável para a criação e atribuição de um novo nível de poder, não apenas em termos políticos como também jurídicos, haja vista a primazia do direito comunitário. Quadro que se coloca “para além do Estado soberano”, hoje obsoleto, uma vez que não haveria mais nenhum componente do bloco dotado desse atributo, em seus estritos termos7. Tal fenômeno é também descrito como soberania temperada8, soberania multinível9 ou soberania limitada, na qual “a plenitude do poder estatal encontra seu ocaso”10. Situação que, durante os anos 90, suscitou um intenso debate em torno da necessidade da edição de uma Constituição para a União Europeia, conexo à definição de sua natureza jurídica. De um lado, os entusiastas de uma Carta Regional argumentavam pela necessidade de se suprir o invocado déficit democrático sob uma nova roupagem, dotada de simbolismo superestatal; de outro, os defensores da manutenção da estrutura dos tratados reputavam prescindível a replicação do modelo constitucional no nível regional. grimm, integrante da última corrente pela desnecessidade, em virtude da função já bem desempenhada 6 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Littera Mundi. 2001. p. 78-89. The Crisis of the European Union: a Response. Cambridge: Polity Press. 2012. p. 54-70. 7 MACCORMICK, Neil. On Sovereignty and Pos-Sovereignty. Questioning Sovereignty. Oxford: Oxford University Press. 1999. p. 126-130. 8 FIORAVANTI, Maurizio. Costituzionalismo: percorsi della storia e tendenze attuali. Bari: Laterza. 2009. p. 143-148. 9 PERNICE, Ingolf E. The Treaty of Lisbon: Multilevel Constitutionalism in Action. Columbia Journal of European Law. v. 15, n. 3. 2009. p. 406.. Disponível em :<http://ssrn.com/abstract=1326114>. Acesso em: 25 maio. 2013. 10 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11. ed. Brasília: UnB. 1998. p. 1187-1188. Raphael Ramos Monteiro de Souza 315 pelos tratados, acrescia como obstáculo a ausência de um espaço público europeu para fins de legitimação da nova ordem de maneira direta11. Fato é que, após o naufrágio do projeto constitucional de 2004 nos referendos realizados na França e da Holanda, foi aprovado o Tratado de Lisboa, em 2007, contendo diversas alterações que constavam da proposta derrotada. Tais como, o reforço das competências da União, o aumento das atribuições do Parlamento Europeu, a atribuição de personalidade jurídica própria para temas de defesa e comércio exterior, além do reconhecimento da validade da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia. Daí se afirmar que tais regras aproximaram a União de uma “Federação de Estados” ou a um “federalismo imperfeito” 12. Tanto sob a perspectiva favorável à carta comum, hoje prejudicada, como sob a tratadista, importa observar que, em consequência do compartilhamento da soberania, a própria noção de constitucionalismo - ela mesma vista como um conjunto de restrições e disciplina para o exercício do poder legítimo nos limites territoriais soberanos- recebe novas análises diante do processo de integração supranacional. Em matéria de proteção de direitos fundamentais, a título de exemplo, é bastante difundida a tese de Habërle, acerca do Estado Constitucional Cooperativo. No âmbito regional, o autor destaca a abertura dos textos constitucionais ao direito europeu como um indicativo do referido conceito, diretamente relacionado com o pluralismo; sobretudo, em sua face externa, voltada “para fora”13. Pernice, por sua vez, na linha habermasiana de compartilhamento da soberania, apresenta a proposta de um constitucionalismo multinível. De acordo com o jurista, o compartilhamento de poder entre as instituições locais e as regionais - sediadas em Bruxelas, Estrasburgo e Luxemburgo - fornece uma identidade única para o processo de integração supraestatal, ainda em marcha. Os tratados, ao lado dos precedentes do Tribunal de 11 GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Belo Horizonte: Del Rey. 2006. p. 224-230. 12 MANGIAMELI, Stelio. El diseño institucional de la Unión Europea después del Tratado de Lisboa. Trad. Valentina Faggiani. In: Revista de Derecho Constitucional Europeo. Año 8, n. 15. Enero-junio 2011. Disponível em: <http://www.ugr.es/~redce/REDCE15/articulos/10SMangiameli.htm>. Acesso em: 31mar.2013. 13 HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Trad. Hector Fix-Fierro. México, D.F: UNAM. 2003. p. 6675. Disponível em: <http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/libro.htm?l=14>. Acesso em: 28 abr. 2013. 316 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 316-332 jan./mar. 2014 Justiça da UE, formariam junto com as constituições e as decisões das Cortes nacionais a dupla base de uma espécie de sistema constitucional europeu14. Reconhece-se que o Estado permanece ocupando papel relevante na produção normativa15. Este é, no entanto, mitigado por amálgama derivado da conjunção entre as ordens constitucionais, internacionais e supraestatais, bem como da necessidade de se fazer frente aos desafios que ultrapassam os limites nacionais. Supera-se, em parte, a clássica noção do poder de mando de última instância. Ilustram essa ideia de atuação conjunta dispositivos de diálogo e cooperação presentes nas constituições alemã (art. 23.1)16, portuguesa (art. 7.6)17, italiana (art. 11)18, grega (art. 28.3)19, os quais expressamente autorizam pontual limitação da soberania, sob determinadas condições, para atendimento de fins comuns. Nessa ordem de idéias, conhecer as bases fundantes da experiência da União Europeia, que possuiu no projeto econômico e monetário um de seus principais pilares de sustentação, é essencial para se compreender 14 PERNICE, Ingolf E..El constitucionalismo multinivel en la Unión Europea. In: Revista de De recho Constitucional Europeo. Año 8, n. 17. Enero-junio 2012, p. 5-6. Disponível em: < http://www.ugr.es/~redce/ REDCE17/articulos/17_PERNICE.htm>. Acesso em: 03 ago.2013. Em linhas mais amplas, que exploram a rede de múltiplos condicionamentos normativos inter e supraestatais, confira-se: GISBERT, Rafael Bustos. La Constitucion Red: Un Estudio Sobre Supraestatalidad y Constitucion. Bilbao: IVAP. 2005. p. 189-195. 15 Conforme ressalta Marcelo Neves, da racionalidade transversal da sociedade moderna emergem novos atores, organizações, regimes e sistemas; sem desaparecer, contudo, a capacidade regulatória dos Estados. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 33-34. 16 Art. 23.1 With a view to establishing a united Europe, the Federal Republic of Germany shall participate in the development of the European Union that is committed to democratic, social and federal principles, to the rule of law, and to the principle of subsidiarity, and that guarantees a level of protection of basic rights essentially comparable to that afforded by this Basic Law. To this end the Federation may transfer sovereign powers by a law with the consent of the Bundesrat. 17 Art. 7. [...] 6. Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial, de um espaço de liberdade, segurança e justiça e a definição e execução de uma política externa, de segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da União Europeia. 18 Art. 11. L’Italia [...] consente, in condizioni di parità con gli altri Stati, alle limitazioni di sovranità necessarie ad un ordinamento che assicuri la pace e la giustizia fra Le Nazioni; promuove e favorisce le organizzazioni internazionali rivolte a tale scopo. 19 Art. 28. [...] 3. Greece shall accept restrictions on the exercise of national sovereignty by laws passed by the absolute majority of the total number of deputies, if this be dictated by important national interests, if human rights and the foundations of the democratic regime be not violated, and if this be effected on the basis of the principle of equality and on condition of reciprocity. Raphael Ramos Monteiro de Souza 317 os efeitos do quadro regulatório pós-crise financeira. Uma vez que este representa um novo estágio no exercício dessa soberania compartilhada. 2 TRATADO DE ESTABILIDADE FISCAL: INTEGRAÇÃO FINANCEIRA COMO RESPOSTA À CRISE A adoção da moeda única, formalizada no Tratado de Maastricht20 e consolidada uma década depois, intensificou o grau de influência recíproca entre as economias os membros da denominada zona do euro. Não por outra razão, o Tratado de Funcionamento da União Europeia - TFUE21 considera as respectivas políticas como “questões de interesse comum” sob “estreita coordenação” (arts. 119.2 e 121.1). Os Membros devem seguir as orientações gerais do Conselho Europeu, composto por todos os chefes de Estado, sob pena de advertência, em caso de comprovado “perigo para o correto funcionamento da união econômica e monetária” (art. 121.4). O mesmo diploma prevê, em atenção ao “espírito de solidariedade” entre tais países, a possibilidade de ajuda financeira da União no caso de situações excepcionais (art. 122.2), suporte normativo para os resgates ou empréstimos concedidos em períodos de graves dificuldades. Na sequência, resta estabelecido que “Os Estados Membros devem evitar déficits públicos excessivos” (art. 126.1) e que - aqui o ponto de destaque - deve ser reforçada a “coordenação e supervisão da disciplina orçamentária” (art. 136.1) Ainda em 1996, antevendo esse cenário de intensificação das relações do bloco, Habermas observava que a soberania financeira tendia ao esmaecimento: Hoje os Estados Europeus detêm-se no limiar de uma união monetária em favor dos quais os governos nacionais terão de abandonar sua soberania financeira. Uma desnacionalização do dinheiro e da política monetária tornaria necessária uma política social, econômica e financeira comum [...] Hoje como ontem, a política de cunho estatal-nacional ainda se limita a adequar a sociedade, da forma mais indulgente possível, aos imperativos sistêmicos e efeitos secundários de uma dinâmica econômica global [...]22 20 Assinado em 1992, já previa que os Estados-membros deviam “evitar déficits orçamentais excessivos”, sujeitando-se a relatórios de acompanhamento (art. 104c). Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/pt/ treaties/dat/11992M/htm/11992M.html>. Acesso em: 18 ago.2013 21 Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/new-2-47.htm>. Acesso em: 10 ago. 2013. 22 HABERMAS, Jürgen. O Estado Nacional tem um Futuro?. In: A inclusão do outro. 3. ed. São Paulo: Loyola. 2007. p. 147-148. 318 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 318-332 jan./mar. 2014 Transcorridos mais de quinze anos desde a advertência acima, o sociólogo constata que o mencionado processo afeta diretamente os parlamentos nacionais, agora reduzindo seu espectro de atuação nas funções orçamentárias. É dizer, a centralização decisória em matéria financeira termina por “transferir os imperativos do mercado para os orçamentos nacionais”, consoante afirma, com subordinação a pressões que minam o poder local23. Relembre-se que a condução dos acordos financeiros está concentrada, hoje, nos órgãos da denominada troika - Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e Comissão Européia, braço executivo da UE -, todos com baixa densidade de controle democrático direto. A proporção que a recente crise tomou no continente, alastrandose como efeito dominó para diversos membros, é invocada como causa suficiente para essa reconfiguração que, da união monetária, pretende conduzir o bloco a uma união também fiscal e orçamentária. Esse movimento foi precedido por outras iniciativas, como o Pacto de Estabilidade e Crescimento (1997, revisto em 2005) e o Tratado Constitutivo do Mecanismo Europeu de Estabilidade (2010), firmados com o “compromisso de garantir estabilidade à zona do euro” e disciplinar a assistência financeira aos membros. Em seguida, o ápice do processo ocorreu a partir de duas grandes inovações contidas no texto do acordo pós última crise - o Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governança na União Econômica e Monetária (2012). A primeira, ao versar sobre a incorporação do “pacto orçamental”, regras de equilíbrio nas Constituições ou legislações nacionais: Art. 3º [...] .2: As regras previstas no n.º 1 [índices de limitação e medidas de correção da dívida pública] produzem efeitos no direito nacional das Partes Contratantes o mais tardar um ano após a entrada em vigor do presente Tratado, através de disposições vinculativas e de caráter permanente, de preferência a nível constitucional, ou cujos respeito e cumprimento possam ser de outro modo plenamente assegurados ao longo dos processos orçamentais nacionais (grifo do autor) Vale destacar que, antes mesmo da adoção do pacto, a Alemanha já havia emendado a sua Lei Fundamental, em 2009, a fim de estabelecer um limite para o déficit público, agora estendido aos demais membros, 23 HABERMAS, Jürgen. The Crisis of the European Union. A Response. Trad. Ciarin Cronin. Cambridge: Polity Press. 2012. p. 51-52. Afterwords: Lessons of Financial Crisis. In: Europe: The Faltering Project. Trad. Ciarin Cronin. Cambridge: Polity Press. 2009. p. 186. Raphael Ramos Monteiro de Souza 319 e prever detalhadas regras de equilíbrio orçamentário (arts. 109, 115 e 143d). Ao seu lado, a Espanha foi uma das primeiras a adaptar as suas normas, nos moldes da nova redação do art. 135 da Constituição, acompanhada da edição da Lei Orgânica nº 2/2012: Artículo 135 - Deuda Pública 1. Todas las Administraciones Públicas adecuarán sus actuaciones al principio de estabilidad presupuestaria. 2. El Estado y las Comunidades Autónomas no podrán incurrir en un déficit estructural que supere los márgenes establecidos, en su caso, por la Unión Europea para sus Estados miembros. […] 3. Los créditos para satisfacer los intereses del capital de la deuda pública de las Administraciones se entenderán siempre incluidos en el estado de gastos de sus presupuestos y su pago gozará de prioridad absoluta. Estos créditos no podrán ser objeto de enmienda o modificación, mientras se ajusten a las condiciones de la ley de emisión. El volumen de deuda pública del conjunto de las Administraciones Públicas en relación con el producto interior bruto del Estado no podrá superar el valor de referencia establecido en el Tratado de Funcionamiento de la Unión Europea (grifo do autor). No mesmo rumo, a Constituição Italiana (arts. 97 e 119), com a nova redação de dispositivos a vigorar a partir do exercício financeiro de 2014, dispõe que todos os níveis de governo deverão observar o equilíbrio orçamentário, em consonância com o ordenamento da União Européia24. Outros países optaram por tratar o tema apenas no nível legal25. 24 Art. 97. Le pubbliche amministrazioni, in coerenza con l’ordinamento dell’Unione europea, assicurano l’equilibrio dei bilanci e la sostenibilità del debito pubblico. Art. 119. I Comuni, le Province, le Città metropolitane e le Regioni hanno autonomia finanziaria di entrata e di spesa, nel rispetto dell’equilibrio dei relativi bilanci, e concorrono ad assicurare l’osservanza dei vincoli economici e finanziari derivanti dall’ordinamento dell’Unione europea. 25 É o caso da França, adiante detalhado. Para a relação completa de ratificações e alterações efetivadas: NOVAC, Petr. Article 136 TFEU, ESM, Fiscal Stability Treaty Ratification requirements and present situation in the Member States. Brussels: European Parliament’s Committee on Constitutional Affairs. mai. 2013. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2009_2014/documents/afco/dv/2013-0527_pe462455-v15_/2013-05-27_pe462455-v15_en.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2013 320 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 320-332 jan./mar. 2014 A segunda novidade trata da previsão de sanções pecuniárias, impostas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, na hipótese de descumprimento dos ajustes e metas fiscais: Art. 8.º - 1. A Comissão Europeia é convidada a apresentar em tempo oportuno às Partes Contratantes um relatório sobre as disposições adotadas por cada uma delas, em aplicação do artigo 3.º, n.º 2. Se a Comissão concluir no seu relatório, após ter dado à Parte Contratante em causa oportunidade de apresentar as suas observações, que essa Parte Contratante não cumpriu o disposto no artigo 3.º, n.º 2, uma ou mais Partes Contratantes proporão uma ação no Tribunal de Justiça da União Europeia. Independentemente do relatório da Comissão, uma Parte Contratante, se considerar que outra Parte Contratante não cumpriu o disposto no artigo 3.º, n.º 2, pode igualmente propor uma ação no Tribunal de Justiça. Em ambos os casos, o acórdão do Tribunal de Justiça é vinculativo para as partes no processo, as quais tomam as medidas necessárias à execução do acórdão no prazo fixado pelo Tribunal de Justiça. 2. Com base na sua própria apreciação ou na da Comissão Europeia, uma Parte Contratante, se considerar que outra Parte Contratante não tomou as medidas necessárias à execução do acórdão do Tribunal de Justiça a que se refere o n.º 1, pode propor uma ação no Tribunal de Justiça e requerer a imposição de sanções pecuniárias, [...] Se declarar que a Parte Contratante em causa não executou o seu acórdão, o Tribunal de Justiça pode condená-la ao pagamento de uma quantia fixa ou de uma sanção pecuniária compulsória, adequada às circunstâncias, que não pode ser superior a 0,1 % do seu produto interno bruto [para efeitos de ilustração, em relação ao Brasil, o valor representaria R$ 4,14 bilhões]. Os montantes em que sejam condenadas as Partes Contratantes cuja moeda seja o euro são pagos ao Mecanismo Europeu de Estabilidade. Nos outros casos, os pagamentos são efetuados ao orçamento geral da União Europeia. 3. O presente artigo constitui um compromisso entre as Partes Contratantes na acessão do artigo 273.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia [TJUE é competente para dirimir qualquer assunto que lhe for atribuído]26. 26 Em pesquisa no sítio do TJUE :<http://curia.europa.eu>, até setembro de 2013, ainda não se tinha notícia de ação para utilização do mecanismo repressivo. Raphael Ramos Monteiro de Souza 321 Esse arcabouço normativo demonstra o curso de uma “nova governança econômica europeia”, na qual nenhum dos atuais dezessete países de moeda única pode adotar políticas isoladas, sob risco de a repercussão colocar em ruína a confiança do conjunto. Há um nítido esforço em se evitar a solução mais comum, que seria permitir a “quebra” de determinado Estado em crise, mediante moratória de pagamentos, com conseqüências incalculáveis para o conjunto27. Desse modo, novos auxílios ficam condicionados à adesão ao marco legal destinado a “promover a responsabilidade e solidariedade orçamentária na União Econômica e Monetéria”. Diante da competência exclusiva da União em política monetária, não tem incidência, no tema, o princípio da subsidiaridade. Este que funciona como uma importante cláusula de descentralização de competências da União Européia, segundo a qual se deve prestigiar o exercício do nível daquele ente que se encontre mais próximo possível dos cidadãos. Resta examinar, por fim, a repercussão desse arranjo supraestatal especificamente sob a ótica dos poderes e autodeterminação nacionais. 3 ORÇAMENTO, CONDICIONANTES EXTERNOS E DEMOCRACIA O ciclo orçamentário pressupõe a intervenção das mais altas instâncias de administração política nacional. Conjuga-se a vontade do Poder Executivo, mediante elaboração e envio da proposta, com a do Poder Legislativo, por intermédio do crivo jurídico-político de seus representantes populares. Somente aí reside a força para a sua regência plena. Nesse trajeto, há um mecanismo de controle interorgânico, expressão do instrumento de governo e de fiscalização da política econômica, a partir do exercício de competências irrenunciáveis28. Assim, a aprovação legislativa das despesas e receitas públicas é pedra de toque democrática das constituições em todo o mundo. A propósito, anote-se que a origem etimológica do orçamento na língua inglesa (budget) remete ao francês bougette, termo pelo qual era designada 27 WAGNER, Francisco Sosa; FUERTES, Mercedes. Bancarrota del Estado y Europa como contexto. Madrid: Marcial Pons. 2011. p. 132-137. 28 DROMI, Roberto. Presupuesto y cuenta de inversion. 2. ed. Buenos Aires: Ciudad Argentina. 1997. p. 8, 57 e 85. 322 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 322-332 jan./mar. 2014 a pequena bolsa de couro utilizada pelos ministros para levar os planos financeiros à submissão do parlamento29. De modo que o consentimento para o referido plano sempre foi visto como um imperativo “escudo de defesa para os contribuintes”. Tanto para instituição de tributos como no sentido de um anteparo face a gastos desmedidos ou dissonantes com os “fins que mais interessam ao povo representado”30. Por outro lado, dentro do contexto de mitigação da soberania no velho continente, nos moldes até aqui explorados, ocorre uma perda de autodeterminação nacional parlamentar, como observa Hesse. A seu ver, “a integração europeia progressiva conduz a remoções na ordem constitucional”, de forma que não somente a normatividade do texto, mas também a unidade estatal têm seu âmbito de atuação relativizado. A “Constituição aponta nesse aspecto - isso é o fundamentalmente novo - sobre si mesma”, conclui31. Esta é a perspectiva agora transplantada também para a realidade orçamentária, após as alterações promovidas pelos últimos tratados. Com efeito, há uma retração do espaço político decisório nacional no tema, agravada diante do cenário de crise econômica. Isto porque o “Estado não se submete somente aos imperativos resultantes da consolidação progressiva de uma ordem da qual ele é parte integrante”. Como consequência, é “obrigado a se compor com outras categorias de atores cuja lógica de ação desborda as fronteiras”32. O questionamento que emerge dessa configuração diz respeito às vulnerabilidades da vontade popular frente aos condicionantes externos. Sob um olhar crítico, Haberle adverte que os mercados devem se submeter à democracia, e não o contrário; tal qual se observaria na atualidade, mediante traços de uma “democracia conforme os mercados”, que estaria a merecer freios33. Dito de outra forma, bancos e instituições como o 29 WEHNER, Joachim. Legislatures and the budget process. Hampshire; New York: Palgrave Macmillan. 2010. p. 2 e 43. 30 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense. 1975. p. 404405, destacou-se. 31 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Fabris. 1998. p. 101-105. 32 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum. 2009. p. 47. 33 HÄBERLE, Peter. Algunas tesis sobre el presente y el futuro de Europa: una aportación al debate. Trad. Francisco Balaguer Callejón. In: Revista de Derecho Constitucional Europeo. Año 9, n. 18. Julio-diciembre Raphael Ramos Monteiro de Souza 323 Fundo Monetário Internacional terminariam por conseguir impor uma lógica econômica extrema aos Estados quando, em verdade, restariam deficientes as balizas sociais e políticas dos atores econômicos34. Para a realidade brasileira, a presente narrativa possui ares de déjà vu. Após a crise financeira pela qual o país atravessou, no final da década de 90, na esteira do colapso asiático e russo, produziram-se consequências similares, embora por vias diversas, para as finanças estatais. Dessa maneira, os acordos firmados com o FMI - à época, o país era um contumaz tomador de empréstimos - acarretaram um compromisso de rigorosa normatização em sede de responsabilidade fiscal, plasmada na Lei Complementar nº 101/2000 (LRF)35. Na linha do que agora ocorre em relação ao apelo por austeridade na Europa, a LRF visava ao equilíbrio das contas públicas, a partir da contenção de despesas, metas de superávit, limites de endividamento, além de salutares regras de transparência. A grande distinção, todavia, reside no fato de que a definição de metas permanece sob os auspícios dos poderes nacionais, ou seja, na equação composta pela iniciativa do Executivo e aprovação do Legislativo. Sem ingerência formal, portanto, de instituição ou organismo de natureza externa na ordem constitucional ou infraconstitucional; ou, ainda, da ameaça de medidas como a aplicação de sanções pecuniárias por tribunal supraestatal. Vale sublinhar que a Constituição Brasileira atribui ao Congresso Nacional a competência para dispor sobre o “montante da dívida mobiliária federal” (art. 48, XIV) e ao Senado Federal para fixar “por proposta do Presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (art. 52, VI). Voltando-se à situação europeia, offe36 articula que as medidas decorrentes da união financeira - intensificada pelas disposições do tratado de equilibro fiscal - implicam sérios danos à soberania democrática dos 2012. p. 4. Disponível em: <http://www.ugr.es/~redce/REDCE18/articulos/16_HABERLE.htm>. Acesso em: 20. jul. 2013 34 TOURAINE, Alain. Um nuevo paradigma para comprender el mundo de hoy. Buenos Aires: Paidós. 2006. p. 35-36. 35 MARTINS, Ives Gandra da Silva; NASCIMENTO, Carlos Vander (Org.). Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 227. 36 OFFE, Claus. Europe in the trap. Eurozine. 06 fev. 2013. Trad. Samuel Willcocks. p.1, 3 e 10. Disponível em: <http://www.eurozine.com/articles/2013-02-06-offe-en.html>. Acesso em: 01 maio 2013. 324 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 324-332 jan./mar. 2014 Estados, sobretudo dos membros mais frágeis. Isto tendo em conta que as demandas por investimentos daquelas populações seriam exatamente as opostas aos pacotes de austeridade. A rigor, os planos emergenciais para atendimento dos credores, via redução de déficit e cumprimento das metas regionais, seriam apresentados pelas autoridades sob uma lógica “TINA” (there is no alternative). Logo, aos verdadeiros titulares do poder soberano não restaria o que fazer, a não ser se conformarem. Não há dúvida da relevância de se manter a sustentabilidade das contas públicas. Assim, no plano da moeda comum, surge a necessidade de se transferir competências, dento da moldura do compartilhamento de soberania, com efeitos diretos no âmbito de atuação nacional, afirma Habermas: A conclusão de que a junção de um ‘governo econômico’ é necessária [...] significaria que as políticas europeias desenhadas para promover a competitividade de todas as economias da zona do euro se estenderiam para além da do setor financeiro e afetariam os orçamentos nacionais como um todo, avançando, assim, profundamente sobre as prerrogativas dos parlamentos nacionais” (tradução livre)37. O que a atual governança europeia evidencia, contudo, é uma assimetria entre a união econômico-financeira e as respectivas instituições políticas. Daí a proposta pela expansão dos mecanismos de participação, responsividade e controle dos órgãos supraestatais, de forma a garantir o protagonismo dos cidadãos também na dimensão européia e, então, minorar outro déficit - o democrático. Sobretudo mediante a supervisão parlamentar regional da política de disciplina orçamentária38. Interessante perceber, finalmente, o tratamento conferido à temática por algumas das Cortes Constitucionais que já enfrentaram os termos do recente tratado, direta ou indiretamente. Não raro, em virtude da própria natureza de suas funções, os juízes nacionais são demandados a verificar se o ato e seus consequentes violam os limites da soberania democrática local. Pode-se considerar que, apesar 37 The conclusion that a joint ‘economic government’ is necessary [...] would mean that the European policies designed to promote the competitiveness of all economies in the euro zone would extend far beyond the financial sector and affect national budgets as a whole, thus encroaching deeply on the privilege of national parliaments. HABERMAS, Jürgen. The Crisis of the European Union. A Response. Trad. Ciarin Cronin. Cambridge: Polity Press. 2012. p. 51-52, destacou-se. 38 HABERMAS, Jürgen. The Crisis of the European Union. A Response. Tradução de Ciarin Cronin. Cambridge: Polity Press. 2012. p. 121-122. Raphael Ramos Monteiro de Souza 325 de concordantes com os fundamentos do equilíbrio fiscal, o plano jurisprudencial repercute as normas anti-crise sob prismas de realidades diversas, uma de Estados “credores” e outra de “devedores”. Nesse viés, o Tribunal Constitucional Alemão teve a oportunidade de examinar os próprios termos do tratado de estabilidade objeto do estudo, por ocasião de impugnação na fase de aprovação legislativa, respaldando-o preliminarmente39. A decisão foi no sentido que o ato não afrontava nem a soberania, nem a democracia. Isto amparado em três fundamentos: a) restariam mantidas as prerrogativas dos parlamentos nacionais; b) as competências sancionadoras do Tribunal de Justiça Europeu não afetariam a liberdade orçamentária nacional em si e; c) a ratificação não seria um compromisso irreversível, pois não impediria a retirada unilateral do país em momento posterior. Em conclusão, aqueles julgadores - da economia mais forte e líder do bloco40 - enfatizaram que o Tratado de Estabilidade “modifica o presente desenho da União econômica e monetária de maneira tal que se afasta do princípio da independência dos orçamentos nacionais, o qual a caracterizou até aqui”41. Assim, seu discurso vai ao encontro da soberania pós-nacional ou compartilhada, a partir de uma realidade que, de fato, é singular da integração europeia. Na mesma linha, o Conselho Constitucional Francês entendeu que o tratado não contrariaria a Lei Maior daquele Estado, à luz da cláusula que autoriza o exercício de competências comuns visando à cooperação europeia (art. 88-1). Também considerou que a atuação do Tribunal de Justiça Europeu na matéria não afastaria a soberania nacional, tendo em vista seu exercício interno a ele não era dependente. Ressaltou, apenas, a desnecessidade de alteração da Constituição para incorporação das 39 ALEMANHA. Tribunal Constitucional Federal (BVerfG). 2 BvR 1390/12 e outros. Divulgado em 12 set 2012. Disponível em: <https://www.bundesverfassungsgericht.de/en/press/bvg12-067en.html>. Acesso em: 23 ago.2013. A audiência de mérito do caso ocorreu em 11 de junho de 2013, sendo que, até o fechamento desse trabalho, o resultado final encontrava-se pendente de anúncio. 40 Ao lado da França, a Alemanha foi a principal mentora e entusiasta das regras de incorporação de limites de déficit público. Sobre o papel de ambos nesse movimento, incluindo-se questionamento de sua real utilidade do ponto de vista econômico, confira-se: BARBER, Tony. Europe’s public finances still in the balance. Financial Times. Disponível em: <http://www.ft.com/intl/cms/s/0/c71bede0-36d0-11e1-9ca300144feabdc0.html>. Acesso em: 24 ago. 2013. 41 “[…] this changes the present design of the economic and monetary union in such a way that it moves away from the principle of the independence of the national budgets which has characterised the monetary union so far” (tradução livre). 326 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 326-332 jan./mar. 2014 medidas de equilíbrio orçamentária, haja vista a existência de leis de conteúdo semelhante e a margem conferida pelo pacto42. Em Portugal, por sua vez, os impactos das medidas de austeridade, destinadas a atender à redução do déficit orçamentário, seguindo compromisso assumido com o bloco europeu, foram bastante severos. No setor público, especialmente, houve redução remuneratória, suspensão do subsídio de férias, proibição de promoções funcionais e dispensas, além da majoração de impostos. Obviamente, o tema foi objeto de indagações no Tribunal Constitucional daquele país. De forma emblemática, a maioria reputou que o conteúdo do plano orçamentário para 2013 (Lei n.º 66-B/2012) prevendo o agravamento das referidas intervenções como decorrência da obtenção de auxílio financeiro externo - ofendia a carta portuguesa em diversos pontos, como o da vedação do excesso e o da proteção da confiança43. Em que pese o reconhecimento dos “objetivos orçamentais essenciais ao reequilíbrio das contas públicas, num contexto de particular excepcionalidade”, guiados por “interesse público real, percetível, claro e juridicamente enquadrável, coincidente com a preservação da capacidade de financiamento do Estado”, a lei foi considerada inconstitucional pela maioria do colegiado. Nos votos divergentes, entretanto, restava preponderante a preocupação da manutenção do equilíbrio orçamentário pactuado com a União Européia, a qual funcionaria como um fator limitador da liberdade de conformação do legislador nacional: É perante estes dados da realidade que, do ponto de vista jurídicoconstitucional, interessa relevar como fatores delimitadores da liberdade de conformação do legislador, tendo em conta o princípio da construção e aprofundamento da União Europeia [...]: (i) o princípio da cooperação leal com a União Europeia e os demais Estados-membros (artigo 4.º, n.º 3, do Tratado da União 42 FRANÇA. Conselho Constitucional. Décision n° 2012-653. 09 ago. 2012. Disponível em: <www.conseilconstitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/les-decisions/acces-par-date/decisions-depuis1959/2012/2012-653-dc/decision-n-2012-653-dc-du-09-aout-2012.115444.html>. Acesso em: 25 ago. 2013 43 PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Acórdão n.º 187/2013, Plenário, Rel. Cons. Carlos Fernandes Cadilha, Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130187.htm>. Acesso em: 18 ago. 2013. Destacou-se. Raphael Ramos Monteiro de Souza 327 Europeia), em especial no tocante ao objetivo da estabilidade da «Zona Euro»; [...] a medida em causa e as normas que a instituem inseremse num contexto de excepcionalidade económico-financeira e, em especial, na «Estratégia de consolidação orçamental» determinada pelas obrigações específicas assumidas pelo Estado português ao nível internacional (Fundo Monetário Internacional) e da União Europeia, na sequência do pedido de ajuda financeira externa. [...] [o agravamento da situação excepcional] poderia constituir uma séria ameaça para a estabilidade, unidade e integridade de toda a área do euro se não se lhe pusesse termo urgentemente. Os julgados acima servem para explicar a concretude e a atualidade da problemática em tela. Diante do cenário de intensificação da cooperação jurídica, econômica e política do bloco europeu, sobretudo em momentos de crise, há uma tensão com a vontade local afetada. Esta, por vezes, mostra-se impotente para inf luir no âmbito externo. No plano orçamentário, o apelo pela salvaguarda da união monetária e da estabilidade confirma que, no embate frente ao avanço das estruturas supraestatais, os poderes nacionais vem cedendo mais espaço em prol do compartilhamento de competências soberanas. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme examinado, para problemas além fronteiras, as soluções meramente dependentes do cenário nacional não são suficientes para oferecer respostas. Se isso é verdade, de uma forma geral, no contexto da globalização, na Europa, em particular, o desenvolvimento do processo de integração regional das últimas décadas torna essa realidade ainda mais aguda. No âmbito financeiro, enfoque do presente artigo e pilar marcado pela adoção da moeda única, a dinâmica de interdependência dos países do bloco ficou evidente durante o período de recente crise. Dessa maneira, pode-se afirmar que a lógica supranacional da União Europeia “modifica completamente a concepção tradicional da soberania”. Isto porque, a partir das especificidades de construção política original, terminam “esvaziando os Estados de uma parte de suas prerrogativas”44. Ao seguir esse caminho de rede, o tratado de estabilidade 44 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum. 2009. 328 Revista da AGU, Brasília-DF, ano XII, n. 39, p. 328-332 jan./mar. 2014 europeu dá continuidade a movimento anterior e insere-se, portanto, na referida ambiência pós-nacional, a qual demanda o compartilhamento da soberania constitucional em outros níveis institucionais diversos dos poderes estabelecidos horizontalmente. Tal fenômeno, caracterizado como de temperamento, mitigação ou limitação - taxonomias que aportam no mesmo diagnóstico passa a avançar de modo mais firme em um dos feudos até então com certa margem para apreciação nacional, qual fosse, a definição dos limites de gastos públicos e de endividamento dos Estados. A ponto de o tratado não apenas determinar a incorporação dos parâmetros de disciplina e supervisão regional como regras vinculantes, como ainda prever a possibilidade de aplicação de sanções pecuniárias pelo Tribunal de Justiça da UE, em caso de infundado desatendimento das metas. Em conseqüência, no processo orçamentário, expressão das escolhas alocativas nacionais, permeado por funções de controle interno, passa a figurar mais um condicionante, externo, que são os percentuais máximos de déficits e de dívida pública fixados pela União. Tudo isto em prol da preservação dos objetivos de integração, cooperação solidária e desenvolvimento comum, ainda que careçam de mecanismos de participação mais consistentes na esfera do bloco. As Cortes Constitucionais que tiveram a oportunidade de examinar o assunto, por sua vez, vêm chancelando que a nova modelagem não afetaria a estrutura nacional, conforme ilustram as decisões alemã e francesa; além da própria portuguesa, na qual o veto de inconstitucionalidade foi mais direcionado ao remédio utilizado do que ao conceito em si. Por fim, a complexidade da estrutura rumo à união fiscal remete, por fim, à lembrança do Federalista nº 58, no qual madison registrava que, no contexto da organização das funções estatais, o Legislativo era conhecido por deter a carteira ou o cofre, isto é, o poder de autorizar a despesa pública45. Fato é que, ante o fortalecimento do quadro supraestatal europeu, conclui-se que essa prerrogativa dos representantes do povo remanesce circunscrita, pois não mais se permite delinear o orçamento livremente, fora dos compromissos de estabilidade financeira fixados com atores externos. 45 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The Federalist Papers. New York: Simon & Schuster. 2004. p. 419. Raphael Ramos Monteiro de Souza 329 REFERÊNCIAS ALEMANHA. Tribunal Constitucional Federal. 2 BvR. 1390/12 e outros. Divulgado em 12 set 2012. Disponível em: <https://www. bundesverfassungsgericht.de/en/press/bvg12-067en.html>. Acesso em: 23 ago. 2013. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense. 1975. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. de Carmen Varriale et al. 11. ed. Brasília: UnB. 1998. CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. 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