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O CONCELHO
FICHA TÉCNICA
TÍTULO MONTEMURO E PAIVA, CENTRO DE INTERPRETAÇÃO E INFORMAÇÃO
EDIÇÃO CÂMARA MUNICIPAL DE CASTRO DAIRE
COORDENAÇÃO EON, INDÚSTRIAS CRIATIVAS, LDA ·
GLORYBOX, LDA
TEXTOS ANTÓNIO CRESPI · ANTÓNIO VIEIRA ·
HELDER VIANA · JOÃO INÊS VAZ · LÚCIO CUNHA ·
PAULO ALMEIDA · PEDRO RIBEIRO · PEDRO SOBRAL
DE CARVALHO · RAQUEL VILAÇA
DESIGN GRÁFICO CATARINA SOUSA
CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS DAVID GUIMARÃES · JOÃO
INÊS VAZ · JOÃO PEDRO PINTO · JOÃO PETRONILHO
· PAULO CELSO MONTEIRO · PEDRO SOBRAL DE
CARVALHO IMPRESSÃO TIPOGRAFIA BEIRA ALTA
TIRAGEM 500 EXEMPLARES
ISBN XXXXXXXXX
DEPÓSITO LEGAL XXXXXXXXX
ANO 2014
O CONCELHO
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ÍNDICE
O CONCELHO
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INTRODUÇÃO
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O MONTEMURO
3.1. A SERRA
3.2. HABITATS E VIDA
3.3. A FLORESTA
3.4. MONTES DE FLORA
3.5. MONTEMURO, REFÚGIO DE VIDA SELVAGEM
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O PAIVA
4.1. O RIO DA VIDA
4.2. BOSQUES HÚMIDOS
4.3. A FAUNA
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O PAIVA
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A HISTÓRIA E O HOMEM
5.1. A MONTANHA E O RIO: O COMEÇO DA JORNADA HUMANA
5.2. DA ESCRITA LUSITANA À ALVORADA DAS NAÇÕES
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79
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BIBLIOGRAFIA
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INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
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INTRODUÇÃO
PEDRO SOBRAL DE CARVALHO
“Cuando el museo municipal transmite la vida, transmite algo
interessante para qualquer ser humano; la vida nunca es aburrida e insulsa.
Los que somos aburridos, en todo o caso, somos los museólogos
o los professores que transformamos algo fundamental, dinâmico,
cambiante y sorprendente como la vida en una série de imágenes muertas,
carentes de interés!”
(Santacana I Mestre & Llonch Molina, 2008)
Não fomos capazes de resistir à tentação de iniciar este texto com a transcrição deste
pequeno trecho de Joan Santacana I Mestre e Nayra Llonch Molina sobre aquilo que
hoje deve nortear quem faz museologia, servindo igualmente de alerta para todos
aqueles que ainda pensam num museu como um espaço para unicamente mostrar e
guardar peças.
Os espaços expositivos, sejam eles museus, centros de interpretação ou outros,
devem ter como premissa fundamental que devem ser pensados e estruturados para
as pessoas. Devem ser espaços que transmitam informação capaz de chegar a todos
independente da sua idade ou formação. Só assim é que se justiica o investimento
nestes equipamentos. Os museus da nova geração são espaços confortáveis, esteticamente cuidados e que têm uma preocupação premente em transmitir conhecimento
de uma forma apelativa. Por isso, quando se pensa num espaço expositivo há que ter
em conta um enorme conjunto de pormenores que vão desde o tamanho do texto, à
forma do mobiliário, às cores, à iluminação, às soluções tecnológicas, etc. Os museus
têm que ser espaços de sensações e de emoções.
A identidade de uma região encontra-se disseminada por um imenso conjunto de
valores naturais e culturais que interagem e adquirem sentido quando interpretados em
uníssono. Assim, quando visitamos um dólmen ou uma igreja, não nos podemos abstrair
da sua envolvência natural e humana. Podemos e devemos olhar para o lado e ver uma
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capuchinha que passa por debaixo de um beiral de pedra de uma casa que já foi coberta
por colmo ou ver um sardão a usufruir dos raios quentes do sol. A ideia de território tem
que ser abrangente, deve compreender os aspetos culturais, o Homem, a sua história,
mas deve também ter em atenção o espaço natural, as formas, a biodiversidade.
Foi com esta orientação que foi pensado o Centro de Interpretação e Informação
do Montemuro e Paiva. Instalado no antigo Solar dos Mendonças, revela um pouco de
um vasto território delimitado pela Serra do Montemuro e o Rio Paiva. Pretende ser um
espaço de partida e de conquista do território. Divide-se em 5 áreas distribuídas por
dois pisos. No primeiro entramos numa sala que serve de receção, onde o visitante tem
o primeiro contacto com o território, através de textos e de uma aplicação interativa e
por onde pode aceder a uma sala em que se apresenta a rede de Percursos Pedestres
do concelho de Castro Daire.
O segundo piso tem início numa sala dedicada à História e ao Homem, onde se
exibem algumas peças arqueológicas e que conta a história dos principais momentos
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da ocupação humana. O ambiente é escuro e intimista, criando uma relação entre o
presente e o passado.
A segunda sala mostra o Rio Paiva, a sua força e vigor. O impacto é criado através
de um ilme projetado numa das paredes. Aqui o visitante pode aceder também a uma
aplicação interativa com conteúdos que compreendem não só aspetos da biodiversidade do Rio Paiva, mas também a relação do Homem com este importante curso de água.
A terceira e última sala é dedicada à Serra do Montemuro. Aqui, através de uma cenograia contemporânea associada à projeção de um ilme, o público pode aperceberse da inluência que esta serra tem na identidade deste território.
O que pretendemos com este centro é estimular os diversos públicos para quererem saber mais e partirem para a descoberta da Serra do Montemuro e do Rio Paiva, um
dos rios menos poluídos da Europa. Queremos criar curiosidade, apetite em conhecer,
em viajar, em percorrer, porque acima de tudo a vida nunca é aborrecida nem insossa.
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INTRODUÇÃO
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LÚCIO CUNHA E ANTÓNIO VIEIRA
Socalcos na Serra do Montemuro
[Foto: JPetronilho]
O concelho de Castro Daire localiza-se num território dominado pela presença da Serra
do Montemuro e do Rio Paiva.
Do ponto de vista administrativo, localiza-se na Região Centro (NUTS II), integrando-se na sub-região Dão-Lafões (NUTS III). É constituído atualmente por 16 freguesias,
sendo a vila de Castro Daire a sede do concelho com uma população de cerca de 4600
habitantes.
O concelho de Castro Daire ocupa uma área de cerca de 379 km2, confrontando a
norte com os municípios de Cinfães, Resende, Lamego e Tarouca, a oeste com os municípios de Arouca e São Pedro do Sul, a sul com Viseu e a este com Vila Nova de Paiva
e Moimenta da Beira.
Enquadramento regional
do concelho de Castro Daire
LAMEGO
CINFÃES
CASTELO
DE PAIVA
TAROUCA
CLASSES HIPSOMÉTRICAS
OROGRAFIA (COTA)
AROUCA
CASTRO
DAIRE
SÃO PEDRO
DO SUL
VILA NOVA
DE PAIVA
SÁTÃO
VISEU
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Densidade populacional nas
freguesias do concelho de
Castro Daire (2011)
GOSENDE
U. F. MEZIO
E MOURA MORTA
CABRIL
U. F. PARADA DE ESTER
E ESTER
ALMOFALA
MONTEIRAS
PINHEIRO
U. F. PICÃO
E ERMIDA
CUJÓ
SÃO
JOANINHO
CASTRO DAIRE
U. F. RERIZ E
GAFANHÃO
PEPIM
MÕES
U. F. MAMOUROS,
ALVA E RIBOLHOS
<30
30-60
60-90
MOLEDO
90-120
>120
Em termos populacionais, este território caracteriza-se por um baixo valor de população residente, à semelhança da generalidade dos territórios do interior montanhoso de Portugal, registando um valor total de apenas 15339 habitantes em 2011,
o que representa um decréscimo de cerca de 9% relativamente a 2001. Com efeito,
tem-se veriicado neste território uma progressiva perda de população, comportamento que se tem veriicado desde a década de 50 do século XX até aos nossos dias,
contrastando com o contínuo crescimento observado à escala nacional até ao início
do século XXI.
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A densidade populacional no concelho (40 hab/km2) vem também conirmar esta
realidade, com um valor bastante inferior (menos de metade) ao correspondente ao
território de Portugal Continental.
Se atentarmos à distribuição da densidade populacional nas diversas freguesias
do concelho, identiicamos um comportamento típico de municípios montanhosos de
interior, caraterizado pela concentração da população na freguesia sede de concelho,
neste caso em Castro Daire (143 hab/km2), e por um esvaziamento do restante território concelhio, registando-se os valores mais reduzidos nas freguesias localizadas nas
áreas mais montanhosas e afastadas da sede concelhia (Almofala, 12 hab/km2; Cabril,
18 hab/km2; Gosende, 20 hab/km2).
O concelho apresenta uma estrutura populacional em que predomina a população adulta, veriicando-se, no entanto, uma contínua redução da população jovem ao
mesmo tempo que aumenta o número de idosos, conduzindo a um acelerado envelhecimento da população.
Relativamente à população ativa, esta encontra-se essencialmente ligada aos setores terciário e secundário, observando-se um contínuo decréscimo da população
ativa ligada ao setor primário, ainda assim com um peso relativo signiicativo (9%).
A parte oriental do território concelhio é marcada, do ponto de vista morfológico,
por extensas áreas planálticas, rasgadas pela incisão dos cursos de água que o atravessam, nomeadamente o Rio Paiva e seus aluentes. O setor norte, no entanto, apresenta
uma morfologia bastante acidentada, onde se desenvolve a vertente sul da Serra do
Montemuro, que se eleva até aos 1381 metros de altitude.
A localização geográica do município posiciona-o fora dos principais eixos de desenvolvimento económico, constituindo as caraterísticas físicas, e especialmente o
relevo, um fator condicionante para o seu desenvolvimento. No entanto, as infraestruturas rodoviárias implementadas no inal do século passado e início deste século
(nomeadamente a A24) permitiram melhorar as acessibilidades, promovendo maiores
interações com os territórios envolventes. As potencialidades naturais presentes neste
território poderão, também, constituir fatores de desenvolvimento, pela atração turística e promoção da cultura e folclore locais.
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O MONTEMURO
3.1. A SERRA
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Serra do Montemuro
LÚCIO CUNHA E ANTÓNIO VIEIRA
[Foto: Pedro Sobral de Carvalho]
A Serra do Montemuro transmite, a priori, uma imagem de imponência, de vigor e de
grandiosidade de formas.
A diversidade geológica, morfológica e, mesmo, de ocupação antrópica, que encerra
em toda a sua extensão, permite-nos constatar a existência de paisagens diversiicadas, marcadas ora pela incisão dos cursos de água e por vertentes desnudadas e abruptas, ora por extensos retalhos aplanados, por pequenos lameiros em áreas levemente
deprimidas e por bosques onde ainda podemos encontrar relíquias do coberto vegetal
original, onde dominariam o carvalho-alvarinho e o carvalho-negral (este nas altitudes
mais elevadas e vertentes mais sombrias, frias e húmidas), bem como outras espécies
caducifólias, constituindo carvalhais caducifólios característicos das zonas temperadas.
A constituição geológica, predominantemente granítica, acentua estes contrastes
e enriquece as paisagens com uma profusão de formas peculiares, variadas na forma e
na dimensão, tão características das regiões graníticas do Centro e Norte de Portugal.
Local de inigualável beleza e riqueza morfológica e paisagística é, no entanto, uma
região “marginal” e muito pouco conhecida. A sua imponência, a par com as suas adversas condições morfológicas e climáticas, desde sempre condicionaram a ixação da
população e limitaram o seu desenvolvimento. Este facto é evidente num trabalho de
Amorim Girão, convenientemente intitulado “Montemuro. A mais desconhecida serra
de Portugal”, publicado no distante ano de 1940, bem como na escassa produção de
teor cientíico sobre a Geograia da região.
A Serra do Montemuro apresenta-se, do ponto de vista morfológico, como um imponente maciço granítico com vertentes abruptas, constituindo um relevo vigoroso
com altitude máxima de 1381 metros no v.g. Montemuro, com uma forma grosseiramente triangular e claramente dissimétrica.
A dissimetria morfológica que se observa entre as vertentes Norte e Sul, por um
lado, e entre as vertentes Oeste e Este, por outro, tem a sua génese num conjunto
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complexo de fatores, que se relacionam intimamente com a estrutura geológica e são
decorrentes da evolução do maciço, do magmatismo intrusivo que o criou, da sua posterior deformação e fraturação, mas também com a ação dos agentes da geodinâmica
externa e particularmente com a dos dois principais cursos de água, os Rios Douro e
Paiva.
As características morfológicas associadas às adversidades climáticas, desde sempre condicionaram a ixação da população e limitaram o seu desenvolvimento, pelo
que o fenómeno de despovoamento dos espaços rurais portugueses é aqui particularmente sensível.
A perda contínua da população, o seu envelhecimento, o isolamento das povoações, a par com um vasto conjunto de fatores económico-sociais, com destaque para a
reduzida diversiicação da estrutura económica regional, a resistência estrutural à mobilidade intra e intersetorial e a má qualiicação dos recursos humanos, são também,
neste território, estrangulamentos importantes para políticas de desenvolvimento.
No entanto, não há dúvida que este magníico espaço montanhoso encerra em si
um conjunto valioso e diversiicado de elementos naturais capazes de potenciar a sua
procura para diversas atividades, nomeadamente para o turismo de natureza, desportivo, cientíico e cultural.
Do ponto de vista da sua riqueza natural, destacamos a presença de importante
e diversiicado património geomorfológico. Os elementos geomorfológicos, formas e
depósitos, isolados, conjugados ou mesmo integrados em geossistemas mais amplos,
contribuem decisivamente para que a paisagem da Serra do Montemuro constitua,
além de palco natural de excecional beleza, área de signiicativa importância cientíica,
ecológica, económica e cultural em termos das riquezas que encerra (Vieira, 2008).
Além deste, outros valores merecem ser destacados, uma vez que também do
ponto de vista cultural, a Serra do Montemuro apresenta um rico e vastíssimo património. Esta riqueza está patente nos monumentos, nas diversas manifestações
religiosas (festas e romarias), nas feiras, nos diversos tipos de artesanato, na gastronomia típica da região e num sem número de outras práticas culturais (por exemplo,
a transumância).
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Pastoreio
[Foto: Pedro Sobral de Carvalho]
As inluências das várias culturas que já passaram por este território, anteriormente referidas, traduziram-se num conjunto de vestígios que permanecem, ainda hoje,
enraizados na cultura montemurana. Além dos topónimos ou das lendas relacionados
com a presença árabe, muitas outras marcas do passado se podem observar, nomeadamente aquelas com carácter monumental.
Apenas como exemplos, poderemos referir o castelo e a Sé de Lamego, as muralhas das Portas do Montemuro, bem como igrejas, solares e outros monumentos
classiicados.
As manifestações religiosas traduzem a presença de uma cultura apoiada numa
importante e enraizada crença religiosa, que atinge especial expressão nas áreas mais
isoladas, como é o caso das aldeias da Serra do Montemuro, em virtude das diiculdades inerentes à localização geográica afastada dos principais núcleos populacionais
(cidades), de vias de comunicação importantes e afastadas de polos de dinamismo
económico, político, social e cultural.
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O MONTEMURO
escala e cabeção, os trabalhos de esteiraria e as tamancas em cabedal e madeira, entre
outras.
Uma das características de qualquer região portuguesa é a variedade e riqueza gastronómica, intimamente relacionada com a própria economia e cultura locais.
Também na área do Montemuro se pode observar tal característica, da qual apenas
destacaremos alguns dos inúmeros pitéus: torresmada à Montemuro, trutas de Escabeche, pão de milho caseiro, bolo podre, ilhós de natal, entre muitas outras especialidades culinárias.
Luta de bois
(Faifa, Castro Daire)
[Foto: Pedro Sobral de Carvalho]
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Casa térrea com telhado de
colmo (Gosende, Castro Daire)
Foto: Pedro Sobral de Carvalho
Desta forma, as festas e romarias traduzem-se numa forma de expressão de uma
cultura muito própria, muito pouco alterada, que se manteve mais ou menos constante ao longo de décadas (talvez séculos). Constituem também uma importante forma de reunião e de confraternização social. Acontecem um pouco por toda a serra,
principalmente durante os meses de Verão, e são dedicadas a diversos santos, como,
por exemplo, S. Pedro (Castro Daire), Sra. da Ouvida (Castro Daire), N. Sra. do Refúgio
(Gosende, Castro Daire), entre muitos outros.
Também as feiras podem ser consideradas como uma forma de património cultural
local. Além de permitirem a dinamização do comércio em áreas caracterizadas pela
estagnação económica, permitem ainda a divulgação de formas de produção tradicionais, relacionadas com o artesanato, tendo, nalguns casos, uma origem bastante
remota. Das inúmeras feiras que se realizam na Serra do Montemuro, de carácter quinzenal, mensal ou anual, são de referir a Feira da Ouvida, que se desenrola junto da Capela da Sra. da Ouvida, ou a Feira das Portas do Montemuro, ambas de carácter anual.
Quanto ao artesanato, várias são as formas típicas desta região: a tecelagem de
linho e lã (colchas e mantas), as croças de palha, a cestaria, a latoaria, as correias de
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3. 2. HABITATS E VIDA
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Mata do Bugalhão
(Picão, Castro Daire)
ANTÓNIO CRESPI E PAULO ALMEIDA
[Foto: DGuimarães]
A vida consiste numa complexa conjugação entre imaginação, vontade, respostas e
variabilidade ambiental. Uma mistura tão intrincada como esta nunca pode ser boa,
mas ninguém disse alguma vez que a vida fosse fácil. E é aqui, nesse destino fracassado, que reside a evolução. A capacidade asixiante de proporcionar alternativas, de
modo a poder responder a um ambiente que está em constante mudança. A metade norte de Portugal é um exemplo fantástico de como essa sentença a viver é uma
fonte quase inesgotável de ilusão e esperança, que inevitavelmente fracassa e deve
ser continuamente transformada. A diversidade geológica, morfológica e, mesmo, de
ocupação antrópica, que encerra em toda a sua extensão, permite-nos constatar a
existência de paisagens diversiicadas, marcadas ora pela incisão dos cursos de água
e por vertentes desnudadas e abruptas, ora por extensos retalhos aplanados, por pequenos lameiros em áreas levemente deprimidas e por bosques onde ainda podemos
encontrar relíquias do coberto vegetal original, onde dominam o carvalho-alvarinho e
o carvalho-negral (este nas altitudes mais elevadas e vertentes mais sombrias, frias e
húmidas), bem como outras espécies caducifólias, constituindo carvalhais caducifólios
característicos das zonas temperadas.
As beiras portuguesas que hoje conhecemos formam parte de um sistema montanhoso dinâmico, em transformação contínua. Até nós chegou uma monumental e formidável paisagem erosiva, de irregulares planaltos sulcados por profundos e abruptos
vales. Uma verdadeira montanha russa de microclimas e variações ambientais, em que a
vida transcorre violenta e desaiante. Este difícil quadro geomorfológico, continuamente
humedecido pela proximidade ao Oceano Atlântico, resulta de um processo morfogénico
com mais de duzentos milhões de anos de história. Sobre fundações Câmbricas foi criada uma das cadeias montanhosas mais elevadas da história do planeta Terra, a cadeia
Hercínica. Esta cordilheira Pérmica foi determinante para criar uma das mais intensas e
prolongadas crises biológicas do planeta Terra. O que obrigou a uma verdadeira reinicia-
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O MONTEMURO
ção de todo o sistema que, como todas as reiniciações, fazem com que seja preciso pôr
mais atenção naquilo que vai ser feito de novo, ao mesmo tempo que obriga a analisar
as razões desse “apagão” forçado. Várias outras crises tiveram lugar depois desta, sendo
duas delas de intensidade muito semelhante àquela. Por esta razão, as plantas vasculares desenvolveram respostas cada vez mais diversiicadas e competitivas, explorando
especialmente a plasticidade das formas e as vantagens da propagação por sementes e
as potencialidades que os frutos proporcionam. As crises ambientais são desaios para
a vida, e as plantas vasculares são exemplos de um esforço por procurar cada vez mais
respostas, aprofundando nas possibilidades que essas respostas podem vir a criar. Mas
para estimular respostas é preciso fazer perguntas, e a Serra do Montemuro e o concelho
de Castro Daire são um palco natural e antrópico excecional para que isso aconteça.
A Serra do Montemuro posiciona-se no Sudoeste do complexo montanhoso ocidental presente no quadrante noroeste da Península Ibérica. Este subsistema montanhoso
é um excelente exemplo da malha serrana que tão bem caracteriza a paisagem beirã. A
combinação ambiental que acompanha esta área é comum entre as outras subformações: um substrato silicícola em depressão geomorfológica desgarrado por indomáveis
e violentos cursos de água permanentes, neste caso protagonizados pelo irreverente
Rio Paiva. Um cenário ambiental como este acaba por desenvolver uma cobertura vegetal muito diversa e variada. Pastagens naturais cobrindo as cumeadas, em que estratos
herbáceos sempre vivos convivem em perfeita harmonia com um, também persistente
e contínuo, coberto de pequenos arbustos. Restos muito bem conservados dos bosques
arcaicos húmidos de Salgueiros, Amieiros, Sanguinhos, Loureiros e Freixos, agora protegidos ao longo das margens dos cursos de água, ou nos embalsamentos e depressões
sedimentares serranas. Formidáveis matagais de Giestas, Urzes, Torgas e Carquejas que
envolvem carvalhais mistos de Carvalhos-negrais, Carvalhos-alvarinhos e Sobreirais.
Circundando o irrequieto e ziguezagueante curso luvial, escarpadas encostas de rochas
magmáticas lentamente arrefecidas, erodidas e por vezes intensamente metamorizadas proporcionam um excelente espaço para uma rica e diversiicada vegetação rupícola, onde numerosas espécies casmofíticas procuram abrigo e espaço vital.
Em deinitivo, um orgulhoso e exuberante recobrimento vegetal herbáceo, arbustivo e arbóreo sempre expectante e revigorante neste muro vivo dos montes.
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Giesta branca
(Cytisus multiflorus)
[Foto: DGuimarães]
Urze
(Erica spp.)
[Foto: DGuimarães]
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3. 3. A FLORESTA
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Floresta primaveril
(Montemuro)
HELDER VIANA
[Foto: JPetronilho]
As lorestas são um património vivo que albergam cerca de 80% da biodiversidade
terrestre. Elas são fundamentais para renovar o oxigénio que respiramos, ixar o carbono atmosférico, proteger os lençóis freáticos, regularizar o regime hídrico do solo,
preservar os cursos de água, controlar a erosão, acolher a fauna selvagem, e valorizar
a paisagem. Como recurso natural renovável oferece inúmeros proveitos e serviços,
como a lenha para aquecimento, madeira para construção, utensílios para a agricultura, produtos para alimentação humana e animal, entre outras múltiplas funções, sendo
uma inesgotável fonte de vida, de riqueza e bem estar.
A diversidade vegetal existente no Montemuro é o resultado da evolução milenar
das condições paleoclimáticas, associada às atividades que o Homem imprimiu neste
Carvalho-alvarinho
(Quercus robur)
[Foto: DGuimarães]
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Sobreiro
(Quercus suber)
[Foto: JPetronilho]
território, a partir do Neolítico. O corte de árvores para a produção de madeira, lenhas
e carvão, a implantação da agricultura e a prática da pastorícia, intimamente ligadas ao
uso do fogo, e a introdução de espécies em arborizações moldaram a paisagem lorestal
que, atualmente, aqui prevalece. Em Castro Daire, perduram espécies nativas, nas encostas, a menores altitudes, como o carvalho-alvarinho (Quercus robur), o carvalho-negral (Quercus pyrenaica) e o castanheiro (Castanea sativa), dominadas por plantações extensivas de pinheiro-bravo (Pinus pinaster), e alguns povoamentos exóticos de
eucalipto (Eucalyptus globulus) que, gradualmente, substituíram a lora primitiva. Frequentemente aparece o sobreiro (Quercus suber) e alguns azevinhos (Ilex aquifolium),
que têm estatuto de proteção, mas também signiicativas manchas, em expansão, das
invasoras mimosas (Acacia dealbata). Ao subir para as zonas de cumeada, onde a vegetação arbórea escasseia, medram os vidoeiros (Betula alba) e o carvalho-negral. Nas
margens dos cursos de água abundam os amieiros (Alnus glutinosa), os salgueiros (Salix alba, Salix atrocinerea, Salix salviifolia) e os freixos (Fraxinus angustifolia).
Pinheiro-bravo
(Pinus pinaster)
[Foto: JPetronilho]
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3.4. MONTES DE FLORA
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Cravo do monte
(Armeria beirana)
ANTÓNIO CRESPI E PAULO ALMEIDA
[Foto: JPetronilho]
Montemuro, tal como as Meadas, Arouca ou Caramulo integram o complexo montanhoso que gradualmente vai formando uma barreira climática entre o Oceano Atlântico
e o interior Peninsular. Os vales que vão surgindo intercalados ao longo desta barreira montanhosa proporcionam uma variabilidade ambiental inesperada, excelente
para estimular respostas entre as plantas vasculares. Esta barreira natural, que trava a
inluência atlântica, contribui para que os intervalos térmicos e pluviométricos sejam
gradualmente maiores à medida que avançamos para o interior. Desse modo é criada
uma zona natural de transição intermédia, entre a parte mais húmida – mais próxima
da costa Atlântica – e a mais seca – mais próxima da raia fronteiriça. Esta faixa intermédia não só permite uma combinação lorística única, como também provoca uma
diversidade muito variada de microclimas e de autênticos refúgios naturais. Pela sua
vez, nestes refúgios é desenvolvida também uma evolução climática própria, o que
facilita processos de transformação genuínos e distintivos. Tais processos são os que
fazem das serras ocidentais Peninsulares berços de diversidade lorística endémica,
genuínas arcas de riqueza lorística.
A dinâmica física já referida estimula a resposta dos seres vivos, neste caso das
plantas vasculares. Neste sentido, as respostas que os indivíduos proporcionam às
contínuas e constantes alterações ambientais, que fazem com que cada dia seja um
novo desaio, são expressas em formas de vida e morfologias diferentes. A maior ou
menor diversidade de estratégias e formas que encontramos entre as árvores, arbustos
e ervas são sinais dessas respostas que as plantas vasculares desenvolvem perante
cenários em contínua mudança. Obviamente, entre todo esse conjunto de respostas
há algumas que conseguem ser mais eicientes do que outras, tendo assim uma maior
presença. Contudo, o facto das condições ambientais estarem sempre a mudar (comparemos, por exemplo, a climatologia de um ano com a do ano anterior ou a do ano seguinte) impede que se imponha o protagonismo entre algumas dessas respostas. Este
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fenómeno obriga, deste modo, a que perante cenários ambientalmente muito diversos
seja necessário ter o maior número de respostas. Por esta razão, os ecossistemas expostos a estas situações ambientais tão variáveis acabam por criar muitas estratégias
próprias e genuínas, que facilitem essa tarefa funcional. Surgem assim o que tecnicamente designamos por comportamentos endémicos ou endemicidades.
Para compreendermos melhor esta dinâmica evolutiva imaginemos um determinado conjunto de um mesmo tipo de plantas, por exemplo, o caso das Estevas. A
metade oeste da Península possui uma diversidade certamente destacável de Estevas
e Estevinhas, mas centremo-nos num dos seus géneros, neste caso no género Halimium. Sobre este género surgem diferentes respostas ao longo do país, umas mais
eicientes em altitude (o exemplo da Estevinha-das-serras, ou Halimium umbellatum
subsp. umbellatum, presente na Serra do Montemuro) e outras mais eicientes em cotas mais baixas. O maior ou menor número dessas respostas, às que classiicamos
como “diferentes” ou endémicas, depende diretamente da variabilidade ambiental que
Portugal encerra. Ao mesmo tempo, esse número dependerá sempre da utilidade que
esse conjunto de plantas possa ter para o ecossistema ou ecossistemas em causa.
No caso da Península Ibérica, e mais especiicamente da sua metade oeste, a cadeia
montanhosa Galaico-Portuguesa formou um complexo conjunto de ecossistemas associado a uma igualmente complexa dinâmica ambiental. Esta combinação acabou
não só por desenvolver um monumental esforço criador, no sentido de estimular respostas próprias e, deste modo, mais endemismos. Ao mesmo tempo, e em consonância com a dinâmica climática inerente a este processo, houve também uma contínua
migração de indivíduos ao longo desta cadeia montanhosa. Essa corrente migratória
transformou essas serras em verdadeiros “corredores biológicos”, pelos quais transitam espécies à procura de condições ambientais em que consigam ser funcionalmente
eicientes (e, portanto, consigam sobreviver). Neste sentido, e voltando ao exemplo da
Estevinha-das-serras, o facto de responder a um conjunto de condições ambientais
típica e exclusivamente serranas obriga esta planta a que, perante alterações climáticas, tenha que procurar sempre espaços vitais ao longo deste complexo montanhoso.
Uma circunstância como esta faz com que a distribuição atual desta Estevinha esteja
basicamente restringida à cadeia montanhosa Galaico-Portuguesa, sendo que ao lon-
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Esteva
(Cistus ladanifer)
[Foto: DGuimarães]
Roselha
(Cistus crispus)
[Foto: JPetronilho]
39
O MONTEMURO
go deste espaço consegue encontrar o meio de se deslocar para norte ou para o sul,
consoante as condições ambientais sejam mais quentes ou mais frias.
Montemuro e Castro Daire estão situados numa zona privilegiada desse sistema
montanhoso ocidental, pois a sua orientação e posição mais meridional não afastou
as inluências da frente polar nos períodos de avanço glaciar. Esta área também possui
a heterogeneidade ambiental suiciente para acolher e criar um vasto conjunto de diversidade lorística. Por este motivo, aqui chegou uma importante quantidade de lora
vinda especialmente das formações Alpino-Pirenaico-Cantábricas, que encontraram
em Montemuro e nas serras adjacentes um excecional refúgio natural, enquanto foram empurradas pelo avanço da frente polar nos períodos mais frios. Esta lora que até
aqui chegou acabou por desenvolver comportamentos próprios, através de processos
evolutivos de especiação, criando esse germoplasma genuíno ou endémico. Armeria
beirana, Arenaria querioides, Halimium umbellatum subp. umbellatum, Knautia nevadensis, Ornithogalum concinum, Dianthus pungens subps. langeanus, Tuberaria guttata, Dactylorrhiza caramulensis, Scilla verna subsp. ramburei, Centaurea herminii,
Paradisea lusitanica, Rubus lainzii, Pterospartum tridentatum subp. cantabricum são
alguns dos exemplos que ajudam a diferenciar.
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Carqueja
(Pterospartum tridentatum)
[Foto: DGuimarães]
Centáurea
(Centaurea herminii)
[Foto: DGuimarães]
O MONTEMURO
40
41
O MONTEMURO
3. 5. MONTEMURO, REFÚGIO DE VIDA SELVAGEM
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Lagarto-d’água
(Lacerta schreiberii)
PEDRO RIBEIRO
[Foto: DGuimarães]
A elevada precipitação e a diversidade das formações vegetais e das características do
terreno na Serra do Montemuro criam uma heterogeneidade de habitats que, por sua
vez, permite a existência de uma grande variedade de fauna.
Foram observadas, nesta serra, cerca de 33 espécies de mamíferos, 100 de aves,
18 de répteis, 11 de anfíbios, 14 de peixes e numerosas espécies de invertebrados. Em
termos geográicos, muitas existem unicamente na Península Ibérica (endemismos
ibéricos), como é o caso da borboleta nêspera-dos-lameiros (Coenonympha iphioides), da boga, do barbo, do bordalo, da rã-ibérica, da rã-de-focinho-pontiagudo, do
tritão-de-ventre-laranja, da salamandra-lusitânica, do lagarto-de-água, da cobra-de-pernas-pentadáctila, da lagartixa-de-Carbonell, da cobra-cega, do musaranho-de-dentes-vermelhos e da toupeira-de-água.
O grupo dos insetos constitui a maior parte da fauna da Serra do Montemuro. Alguns alimentam-se de plantas e de materiais em decomposição, outros capturam ou
parasitam animais.
Nesta área loristicamente colorida, as borboletas são numerosas a partir da primavera. Em declínio na Europa, a fritilária-dos-lameiros (Euphydryas aurinia) tem estatuto de proteção legal, bem como Callimorpha quadripunctaria.
A extraordinária relação de parasitismo social entre a rara borboleta-azul-das-turfeiras (Phengaris alcon) e as formigas do género Myrmica pode ser constatada em
terrenos húmidos da serra (por exemplo, próximo de Campo Benfeito). Os urzais-tojais
e os cervunais do Montemuro, do Alvão e do Marão constituem o limite sul de distribuição da borboleta na Europa e são os únicos habitats onde esta se encontra. Após
efetuar a postura, em julho e agosto, nas lores da genciana-das-turfeiras (Gentiana
pneumonanthe), dá-se a eclosão e as suas larvas alimentam-se dentro dos ovários da
planta. Posteriormente, são “adotadas” e nutridas pelas formigas, que pensam tratar-se de larvas da sua espécie, e desenvolvem-se no formigueiro até ao início do ve-
O MONTEMURO
42
43
O MONTEMURO
rão do ano seguinte. Transformam-se em pupa e o adulto surge algum tempo depois,
abandonando rapidamente o formigueiro por perder a capacidade de “camulagem” e
passar a ser considerado inimigo (homas, 1995).
Nos belos carvalhais da serra encontramos o maior escaravelho da Europa, a vaca-loura (Lucanus cervus), importante para os ecossistemas pelo contributo no processo
de decomposição de cepos de folhosas.
Um dos grupos de insetos mais primitivos, as libélulas, existe aqui com alguma
abundância e diversidade. Chamam-lhes “tira-olhos” apesar de serem completamente inofensivas para o Homem.
As onze espécies de anfíbios identiicadas na Serra do Montemuro correspondem a
65% do total de anfíbios que ocorrem em Portugal.
Nos troços bem conservados da bacia do Paiva, encontramos a, cada vez mais rara,
salamandra-lusitânica (Chioglossa lusitanica) que, para desviar a atenção dos predadores, pode libertar a cauda quando se sente ameaçada, mecanismo comum nos lagartos mas muito invulgar nos anfíbios. Esta, e a rã-castanha ou ibérica (Rana iberica)
são típicas de ribeiros de água corrente de zonas montanhosas e só se encontram na
Península Ibérica. Outro endemismo ibérico, a rã-de-focinho-pontiagudo (Discoglossus galganoi), apesar de mais semelhante a uma rã (tem pele lisa como as rãs) é, na
realidade, um sapo de hábitos extremamente discretos e, por isso, de difícil observação. Requer maior atenção e cuidado devido à diminuição da área de ocupação e à
fragmentação das populações (Cabral et al., 2006).
Ainda entre os anfíbios, há a destacar: a abundante rã-verde (Rana perezi); o endemismo ibérico tritão-de-ventre-laranja (Triturus boscai); o tritão-marmorado (Triturus marmoratus); a bem conhecida salamandra do fogo ou salamandra-de-pintas-amarelas (Salamandra salamandra); o ágil sapo-corredor (Bufo calamita); a trepadora rela-comum (Hyla arborea); o pequeno e robusto sapo-parteiro-comum (Alytes
obstetricans); e o maior anuro (grupo de anfíbios sem cauda, em adulto) português, o
sapo-comum (Bufo bufo), frequente vítima de atropelamento.
Os adultos de muitas espécies apresentam hábitos quase exclusivamente terrestres,
todavia, como dependem do meio aquático para deposição dos ovos, os locais mais propícios à observação de anfíbios são charcos, cursos de água, tanques, grutas e minas.
O MONTEMURO
44
Rã-de-focinho-pontiagudo
(Discoglossus galganoi)
[Foto: JPetronilho]
Salamandra-de-pintas-amarelas
(Salamandra salamandra)
[Foto: JPetronilho]
45
O MONTEMURO
Nas migrações para estes habitats de reprodução, a mortalidade por atropelamento é
elevada. A reduzida mobilidade e a capacidade de dispersão limitada torna-os muito
sensíveis a alterações no habitat e, portanto, bioindicadores da qualidade do meio.
Relativamente aos répteis, estão assinaladas, na Serra do Montemuro, dezoito espécies, ou seja, 67% do total de répteis que ocorrem em Portugal Continental. Contrariamente aos anfíbios, a maioria prefere áreas secas e expostas.
Os ditados populares tornam o licranço (Anguis fragilis) um dos animais mais temidos da nossa fauna. Na verdade, este lagarto é inofensivo e, por não ter membros,
é confundido com uma cobra e conhecido por cobra-de-vidro. Outros lagartos com
nome de cobra são a cobra-de-pernas-tridáctila (Chalcides striatus), observada em
áreas húmidas com abundante vegetação herbácea, e a cobra-de-pernas-pentadáctila (Chalcides bedriagai), em maior risco de extinção e necessitando de um habitat
menos húmido e mais pedregoso, sendo um endemismo ibérico.
O sardão (Lacerta lepida) é o maior lagarto do Montemuro, podendo alcançar 80
cm. Tem a capacidade de soltar a cauda se se sentir ameaçado por cobras, algumas
aves e mamíferos. O lagarto-de-água (Lacerta schreiberi), endemismo do noroeste
peninsular, vive, como o próprio nome indica, junto a cursos de água.
De menor tamanho que os lagartos, três espécies de lagartixas estão assinaladas
no Montemuro: a lagartixa-do-mato (Psammodromus algirus), que prefere áreas arbustivas; a sardanisca ou lagartixa ibérica (Podarcis hispanica), que prefere áreas rochosas, inclusive urbanizadas, e a rara e ameaçada lagartixa-de-Carbonell (Podarcis
carbonelli).
Perfeitamente adaptada à vida subterrânea, a cobra-cega (Blanus cinereus) escava
galerias e localiza as suas presas mais pela audição do que pelo olfato. Os olhos são
bastante reduzidos.
Das oito espécies de serpentes que se podem encontrar no Montemuro, apenas
a víbora-cornuda (Vipera lalastei) é potencialmente perigosa para o Homem mas a
probabilidade de mordida é muito baixa e só ocorre em caso de defesa. As restantes
sete espécies são: a rara cobra-lisa-europeia (Coronella austriaca); a pequena cobra-lisa-meridional (Coronella girondica); a cobra-de-água-de-colar (Natrix natrix) que,
apesar do nome, se pode encontrar em diversas áreas, muitas vezes afastadas dos
Cobra-de-pernas-tridáctila
(Chalcides striatus)
[Foto: JPetronilho]
Cobra-de-água-de-colar
(Natrix natrix)
[Foto: JPetronilho]
O MONTEMURO
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O MONTEMURO
pontos de água; a cobra-de-água-viperina (Natrix maura), associada a habitats aquáticos onde estão presentes as suas presas (peixes e anfíbios); a ágil cobra-de-escada
(Elaphe scalaris); a cobra-de-ferradura (Coluber hippocrepis), espécie que mais facilmente pode aparecer nas zonas habitadas; e a maior serpente da Península Ibérica, a
cobra-rateira (Malpolon monspessulanum), frequente vítima de atropelamento.
Na serra, há relatos de capturas de víbora-cornuda para o uso em medicamentos
tradicionais, amuletos e poções, prática que, a par da aversão e dos medos relativamente à maioria dos répteis, constituem sérias ameaças à sua sobrevivência.
É infundada a crença na grande perigosidade dos répteis. Na verdade, desempenham um papel importante na agricultura por controlarem populações de insetos e
roedores. Por outro lado, fazem parte da dieta de muitos mamíferos e aves de rapina
de elevada importância conservacionista.
Entre migratórias e residentes, ocorrem na serra, cerca de cem espécies de aves. A
diversidade de habitats é vital para a sobrevivência e permanência de uma abundante avifauna na região. A petinha-dos-campos pode ser frequentemente avistada em
áreas de vegetação aberta e o chasco-cinzento e o melro-das-rochas nos ambientes
rochosos das partes mais elevadas da serra. O mosaico de matos, prados e cultivos,
permite a existência da sombria. Quanto às aves de rapina, pode ver-se a voar, nas
zonas altas, o tartaranhão-caçador, espécie considerada em perigo de extinção em
Portugal. A coruja do mato (Strix aluco) e o pica-pau-malhado-grande (Dendrocopos
major) percorrem os vestígios de carvalhal que orlam os campos agrícolas. Nos rios, o
guarda-rios (Alcedo athis) alimenta-se de pequenos peixes e o melro-de-água (Cinclus cinclus) mergulha a alguma profundidade, capturando larvas de insetos, das quais
se alimenta.
A riqueza ornitológica desta área é, também, valorizada pelo estatuto de proteção ou pela distribuição localizada de algumas espécies. Assim, importa referir: o açor
(Accipiter gentilis), o tartaranhão-cinzento (Circus cyaneus), o tartaranhão-caçador
(Circus pygargus), o bufo-real (Bubo bubo), a ógea (Falco subbuteo), o bútio-vespeiro
(Pernis apivorus), o noitibó-da-europa (Caprimulgus europaeus), a sombria (Emberiza hortulana), a petinha-dos-campos (Anthus campestris), a toutinegra-carrasqueira
(Sylvia cantillans), a alvéola-amarela (Motacilla flava), a cotovia-pequena (Lullula ar-
O MONTEMURO
48
Melro-das-rochas
(Monticola saxatilis)
[Foto: DGuimarães]
Petinha-dos-campos
(Anthus campestris)
[Foto: DGuimarães]
49
O MONTEMURO
borea), o melro-das-rochas (Monticola saxatilis), o chasco-cinzento (Oenanthe oenanthe), a felosa-do-mato (Sylvia undata), o papa-amoras-comum (Sylvia communis) e a felosa-de-Bonelli (Phylloscopus bonelli).
Na Serra do Montemuro ocorre uma importante comunidade de mamíferos selvagens (pelo menos, 33 espécies). Das vinte e cinco espécies de morcegos conhecidas em
Portugal, foram identiicadas treze na serra, destacando-se o morcego-rato-pequeno
(Myotis blythii), classiicado como “criticamente em perigo” pelo declínio acentuado e
fragmentação das suas populações, e também o morcego-rato-grande (Myotis myotis) e o morcego-de-peluche (Miniopterus schreibersii), estes com estatuto de “vulnerável” devido à reduzida área de distribuição (Cabral et al., 2006). Utilizando ecos de
ultrassons como sistema de localização, as espécies portuguesas chegam a capturar e
ingerir, por dia, mais de metade do seu peso em insetos, desempenhando um importantíssimo papel nos ecossistemas.
No grupo dos mamíferos ribeirinhos salienta-se a lontra (Lutra lutra) e a toupeira-de-água (Galemys pyrenaicus), esta endémica da Península Ibérica e com estatuto de
conservação desfavorável devido à diminuição do seu efetivo populacional. Apesar de
ser parente da toupeira-comum, não escava túneis no solo, dependendo de águas límpidas e da vegetação das margens. A lontra, ainda que tenha uma grande versatilidade
alimentar, prefere capturar as trutas e carpas do Paiva. As suas populações têm-se
mantido estáveis em Portugal mas em declínio em vários países europeus (Cabral et
al., 2006). O ouriço-cacheiro (Erinaceus europaeus) obtém alimento, frequentemente, junto aos rios. Os seus 6000 espinhos aguçados permitem a defesa contra os predadores mas não contra os atropelamentos de que é, frequentemente, vítima.
A serra é refúgio de muitos outros mamíferos. Alguns pertencem ao grupo dos mais
pequenos do mundo, porém com um apetite insaciável. É o caso do musaranho-de-água (Neomys anomalus) e do musaranho-de-dentes-vermelhos (Sorex granarius).
Infatigável corredor de longas distâncias, o lobo-ibérico (Canis lupus), perseguido
pelo Homem nos últimos séculos, parece ter aqui uma parte relevante da população
da espécie a sul do Douro. Espera-se que a implementação adequada das medidas de
conservação a esta espécie, estritamente protegida, possibilite a viabilidade da pequena, isolada e fragmentada subpopulação a sul do Douro.
O MONTEMURO
50
A relevância ecológica da Serra do Montemuro para a sobrevivência de várias espécies
e para a conservação de diversos habitats, alguns dos quais associados a formas e práticas agrícolas tradicionais, conduziu à sua classiicação como Sítio de Importância Comunitária (PTCON0025), no âmbito da rede de áreas protegidas da União Europeia (Natura
2000). Em termos faunísticos, o Sítio Serra do Montemuro é considerado muito importante para a conservação do lobo, da lontra, da toupeira-de-água, da salamandra-lusitânica, do lagarto-de-água, da boga, do bordalo e de diversos invertebrados (ICN, 2006).
51
Ouriço-cacheiro
(Erinaceus europaeus)
[Foto: JPetronilho]
O MONTEMURO
4
O PAIVA
52
O PAIVA
53
O PAIVA
4.1. O RIO DA VIDA
[PÁGINA ANTERIOR]
Rio Paiva
LÚCIO CUNHA E ANTÓNIO VIEIRA
[Foto: JPetronilho]
Com as suas cabeceiras na serra de Leomil (no concelho de Moimenta da Beira), a cerca
de 1000 metros de altitude, o Rio Paiva trilha o seu percurso de cerca de 110 km de extensão até atingir a sua foz, na margem esquerda do rio Douro, a 20 metros de altitude.
Este seu percurso é realizado sobre diferentes substratos rochosos, desde granitos de diferentes composições, a rochas xistentas de idades diversas, adaptando-se a
eles de forma diferenciada, tal como se adapta aos diversos acidentes tectónicos que
afetam o seu trajeto, alterando o seu comportamento ao sabor das adversidades ou
facilidades estruturais que enfrenta.
De facto, o Rio Paiva pode considerar-se um rio multifacetado. Na primeira parte do
seu percurso, o chamado alto Paiva, apresenta-se como um rio de planalto, circulando
em vales abertos, com um leito pouco sinuoso. É assim o seu percurso nos granitos,
até passar Vila Nova de Paiva. A transição para um substrato composto por rochas xistentas obriga-o a alterar o seu comportamento, evidenciando grandes meandros, com
vales encaixados, que se tornam mais imponentes quando se confronta com os volumes montanhosos da Arada e de Montemuro.
É essencialmente a partir de Castro Daire que o Paiva parece ganhar um novo fulgor, atiçado pelas ruturas de declive que promovem o aparecimento de rápidos e o
tornam um autêntico rio de montanha. De facto, é a alternância entre rochas graníticas
e xistentas a principal responsável pelo comportamento tumultuoso do Paiva no seu
setor médio.
Ainda assim, encontramos neste vale fortemente encaixado entre montanhas pequenos trechos onde ele se alarga, por inluência de zonas de fragilidade tectónica,
como o setor entre Ermida e Reriz, onde a facilitada deposição de sedimentos permite
o desenvolvimento da prática agrícola nos terraços que por aí se formaram.
Também a vegetação parece acompanhar as mudanças de “caráter” do Paiva: enquanto no planalto observamos uma menor presença da vegetação do estrato arbóreo,
O PAIVA
54
55
O PAIVA
400
RIO DOURO
CASTELO
DE PAIVA
ERMIDA
CASTRO DAIRE
Percurso do Rio Paiva, desde as
cabeceiras, na serra de Leomil,
até ao rio Douro.
300
200
AROUCA
100
0
SERRA DA
FREITA E ARADA
CINFÃES
RIO ARDEN
RIO FRADES
A
RIO
DO
UR
O
SERRA DO
MONTEMURO
S. MACÁRIO
S. PEDRO DO SUL
RIO
O
OEIR
VID
CASTRO
DAIRE
AU
RIO M
OVO
RIO C
VILA NOVA
DE PAIVA
SERRA
DE LEOMIL
MOIMENTA
DA BEIRA
SÁTÃO
O PAIVA
56
RIO PAIVA
5.000
10.000
15.000
20.000
25.000
30.000
35.000
40.000
COMPLEXO XISTO-GRAUVÁQUICO
GRANITO ALVARENGA
GRANITO DE CASTRO DAIRE
PALEOZÓICO
GRANITO DE PEPIM/MÕES (CALDE)
GRANITO DE CASTELO DE PAIVA
45.000
50.000
55.000
60.000
65.000
RUTURA DE DECLIVE
já as vertentes íngremes do Montemuro e Arada a jusante de Castro Daire presenteiam-nos com uma luxuriante vegetação, atualmente dominada pelo pinheiro e pelo
eucalipto. De facto, as vertentes voltadas a Sul e Sudoeste e praticamente todo o setor
Noroeste da Serra do Montemuro apresentam um grande desenvolvimento do estrato
arbóreo. Observam-se aqui extensas manchas plantadas de Pinheiro bravo (Pinus pinaster Aiton), em povoamentos puros ou misturados com eucaliptos (Eucalyptus globulus), ocorrendo ainda alguns redutos, por vezes de extensões consideráveis, de vegetação autóctone (bosques característicos da vegetação clímax) composta por matas
de Carvalho alvarinho (Quercus robur L.) e Carvalho negral (Quercus pyrenaica Willd),
além do Castanheiro (Castanea sativa) que forma também importantes manchas.
O Pinheiro bravo não vai muito acima dos 900 metros de altitude na Serra do Montemuro. Aliás, ele ocupa preferencialmente as áreas de altitude inferior ao longo do
vale do Paiva, no concelho de Castro Daire, onde encontramos importantes manchas.
Também o eucalipto apresenta na Serra do Montemuro um desenvolvimento signiicativo, ainda que extremamente localizado. As manchas de povoamento estreme
estendem-se de forma quase contínua ao longo do vale do Paiva, com alguma importância no concelho de Castro Daire.
De facto, o concelho de Castro Daire carateriza-se por um predomínio da ocupação lorestal do solo. Tendo em consideração a Carta de Ocupação do Solo de 2007
(Instituto Geográico Português) a classe correspondente a “Florestas e Meios Naturais
57
Peril longitudinal do Rio Paiva, de
Castro Daire ao rio Douro.
O PAIVA
e Semi-naturais” representa mais de 80% da área do concelho. Com efeito, os condicionalismos físicos limitam o uso do solo para outras atividades, nomeadamente para
a agricultura, embora o despovoamento progressivo que este território tem sofrido ao
longo dos tempos seja também um fator determinante. Não é de estranhar, portanto,
que a ocupação agrícola do solo seja reduzida, ainda assim representando cerca de
16% da área total do concelho.
A presença de uma fauna e lora bastante ricas e a existência de habitats de preservação prioritária conduziu ao estabelecimento, nesta região, de iguras de proteção
legal, de âmbito nacional ou internacional, por forma a tentar preservar um património
natural rico e potencialmente ameaçado.
No âmbito da Rede Natura 2000, foi delimitado o Sítio Rio Paiva, com o objetivo de
promover um desenvolvimento sustentável, ponderando a forma adequada de desenvolvimento das atividades humanas, por forma a reduzir os impactos provocados no
ambiente.
Este Sítio, caracterizado pela sua forma linear, é constituído por uma vegetação ripícola relativamente bem conservada, onde pontuam bosques de amieiros (Alnus glutinosa)
formando galeria, aos quais se sucedem os carvalhais de Quercus robur. A qualidade reconhecida da sua água constitui um aspeto fundamental para a conservação da fauna aquática e ribeirinha, da qual se destacam a toupeira-de-água (Galemys pyrenaicus), a lontra
(Lutra lutra) e o lagarto-de-água (Lacerta schreiberi). É, também, um elemento fundamental no que ao lobo diz respeito, uma vez que constitui uma importante zona de passagem e ligação entre as serras do Montemuro, Freita/Arada e Lapa/Leomil (ICN, 2006).
Para além dos elementos naturais da fauna e da lora, também os elementos geomorfológicos e hidrológicos se revelam de elevado valor. Com efeito, para além de se
constituírem como elementos estruturantes da paisagem e serem o suporte para o
desenvolvimento da vida, permitem o desenvolvimento de um sem número de atividades antrópicas, nomeadamente algumas de lazer e desporto. A presença de vertentes
com acentuado declive são, com efeito, indispensáveis para a prática da escalada ou
do rappel, tal como as atividades aquáticas como o rafting ou o canyonnig necessitam
de cursos de água com características especíicas. O vale do Rio Paiva apresenta, neste sentido, elementos morfológicos e hidro-morfológicos com condições excelentes,
O PAIVA
58
indispensáveis para a prática de diversas atividades desportivas enquadráveis dentro
do designado desporto de natureza. Com efeito, realizam-se diversas iniciativas, de
caráter pontual ou mesmo regular, que exploram estas potencialidades do Rio Paiva,
que no setor a jusante de Castro Daire nos presenteia com uma série de rápidos e interessantes ruturas de declive, reunindo condições excecionais para a prática de, por
exemplo, canoagem e rafting. Efetivamente, este troço do Paiva é não só procurado
por empresas de desportos náuticos luviais direcionadas para o turismo/lazer, mas
também para a realização de eventos desportivos.
Na verdade, para além da sua utilização em desportos de elevada energia e adrenalina, os chamados desportos “radicais”, as suas águas, essas ainda límpidas e cristalinas, tumultuosas no inverno, mais calmas no período estival, presenteia-nos ainda
com alguma abundância de fauna piscícola (maioritariamente truta), fazendo jus à designação do “mais despoluído rio da Europa”.
Rápidos do Rio Paiva
[Foto: Paulo Celso Monteiro]
59
O PAIVA
4.2. BOSQUES HÚMIDOS
[PÁGINA ANTERIOR]
Bosque húmido no Rio Paiva
ANTÓNIO CRESPI E PAULO ALMEIDA
[Foto: JPetronilho]
A formação da bacia Mediterrânica tem vindo a ser um processo complexo e difícil, pois
não só implicava a gestação de um mar interior (o mar Mediterrâneo), como também
a gestação de uma diversidade climática diversa, complexa e extremamente dinâmica.
Por esta razão, falarmos hoje de “mediterraneidade” é fazer referência a um intrincado
e muito instável conjunto de comportamentos ambientais, que passam desde situações hiperhúmidas até ambientes quase desérticos. Para que um regime climático
Mediterrânico tenha lugar é preciso conjugar duas circunstâncias num mesmo espaço
e tempo: a presença de invernos e a concentração das precipitações ao longo do ano. A
existência de invernos insere-se no âmbito dos processos glaciares, pelo que gradualmente este fenómeno climático vai sofrendo um amortecimento que suaviza cada vez
mais as temperaturas mínimas. Os fenómenos glaciares, e os períodos invernais que
os acompanham, resultam de uma combinação entre a inclinação planetária, a órbita
terrestre e a posição das placas continentais. Já a concentração das precipitações forma parte do comportamento paleotropical monçónico, que foi o que combinado com
os processos glaciares e a formação da bacia Mediterrânica acabaria por formar aquilo
ao que designamos por regimes climáticos Mediterrânicos. Esta última circunstância
faz com que regimes paleotropicais, caracterizados pela concentração da precipitação
sob dinâmicas climáticas monçónicas, sejam os que mais facilmente consigam desenvolver fenómenos de mediterraneidade. De facto os climas com este regime de monção não só concentram as chuvas num determinado período do ano, como também
permitem a presença de invernos mais ou menos rigorosos.
Nas atuais circunstâncias, grande parte da Península Ibérica vive sob o efeito de
um fenómeno de mediterraneidade, em que as precipitações estão geralmente concentradas nas estações primaverais e outonais, permitindo a existência de invernos
e verões secos. Contudo, e na sequência do que já foi dito, esse regime acaba por ser
muito variável, como podemos veriicar quando comparamos os registos termoplu-
O PAIVA
60
61
O PAIVA
viométricos do norte com o sul de Portugal, por exemplo. Ao mesmo tempo, um outro
aspeto climático introduz ainda mais complexidade a este processo: a presença do
Oceano Atlântico, juntamente com a orientação dos cursos luviais e das cadeias montanhosas do oeste da Península. A conjunção destes três últimos fenómenos físicos
faz com que Portugal possua um sistema de amortecimento climático ainda maior,
proporcionado pela humidade que fornece a costa Atlântica e pelo modo como esta
humidade consegue adentrar-se para o interior do oeste da Península. Deste modo,
não só as temperaturas médias do oeste Peninsular são bem mais suaves que as do
este. Também esta circunstância permite um alargamento dos regimes pluviométricos
ao longo do inverno neste lado da Península Ibérica. No entanto, ao longo dos últimos
dez mil anos tem vindo a veriicar-se uma diminuição gradual da humidade relativa,
provocada especialmente pela diminuição das precipitações médias anuais, resultante
de um predomínio cada vez mais acentuado de regimes anticiclónicos que vão empurrando e concentrando as precipitações para o norte.
Toda esta amálgama de condicionantes ambientais fez com que Portugal desenvolvesse um tipo de vegetação melhor adaptada a regimes hiperhúmidos, especialmente
antes das crises glaciares Pleistocénicas. Nestas formações vegetais conseguiram desenvolver-se diversidades lorísticas intensas, pois devido à variabilidade geomorfológica associada à cadeia montanhosa Galaico-Portuguesa foi possível despoletar um conjunto muito variado de comportamentos térmicos, desde quentes até bem frescos. O Rio
Paiva e o concelho de Castro Daire conservam muito bem restos desta paleovegetação
húmida. As galerias de vegetação ripícola (nas margens do Paiva e dos ribeiros adjacentes), as formações arbustivas e lorestais que naturalmente aparecem em embalsamentos sedimentares na serra, ou nas encostas frescas e húmidas permitem que sejamos
testemunhas de uma das belezas naturais mais imponentes. Um verdadeiro retorno a
um passado, que vai reaparecendo periodicamente ao longo dos últimos trinta milhões
de anos, embora de modo mais intenso no período Holo-Pleistocénico. A descida brusca
e intensa da temperatura média no período Pleistocénico (dez milhões de anos) alterou
bruscamente os comportamentos da lora e da vegetação. A exuberante e densa loresta
húmida e hiperhúmida restringiu abruptamente a sua presença, e os vales encaixados
do centro e norte do país começaram a jogar um papel decisivo como refúgios naturais.
O PAIVA
62
Os bosques húmidos são hoje um expoente vivo deste mecanismo natural de preservação de um passado necessário para compreender o presente, ao mesmo tempo que determinante para garantir eiciência e competitividade na funcionalidade dos
ecossistemas. Possuir estes tesouros naturais não é só uma dádiva, como também
uma responsabilidade acrescida para todos os que temos a sorte de desfrutar da sua
presença.
63
Musgo
(Bryophyta sensu stricto)
[Foto: JPetronilho]
O PAIVA
4.3. A FAUNA
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Guarda-rios
(Alcedo atthis)
PEDRO RIBEIRO
[Foto: JPetronilho]
O Rio Paiva e os seus aluentes, as lagoas de altitude, as turfeiras e os charcos temporários são ecossistemas dinâmicos que suportam uma elevada diversidade de espécies.
Algumas destas só existem na Península Ibérica (borboleta nêspera-dos-lameiros, boga,
barbo, bordalo, ruivaco, panjorca, verdemã, toupeira-de-água, salamandra-lusitânica,
lagarto-de-água …) e muitas estão ameaçadas, tornando esta uma área de elevada importância para a conservação, conirmada pela classiicação do Rio Paiva como Sítio de
Importância Comunitária da rede de áreas protegidas da União Europeia (Natura 2000).
A vegetação ripícola que acompanha o curso de água está bem conservada e é composta por bosques de amieiros e salgueiros, formando galeria bordejada por carvalhais
Salamandra-lusitânica
(Chioglossa lusitanica)
[Foto: JPetronilho]
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(ICN, 2006). Os macroinvertebrados aquáticos e algumas borboletas e libélulas constituem grupos de organismos sensíveis à perturbação da qualidade da água e ao estado da
vegetação ripícola sendo, por isso, considerados indicadores da qualidade do ecossistema.
As folhas de salgueiro, sanguinho, amieiro e de violetas, nas margens do Paiva,
servem de alimento às lagartas de diversas espécies de borboletas, como é o caso da
fritilária-dos-lameiros (Euphydrias aurinia), protegida pela legislação europeia. Já as
libélulas são excelentes indicadores da qualidade das águas, pois passam a maior parte
das suas vidas submersas, na forma de larva, predando vorazmente invertebrados e
girinos. É o caso da libélula-anelada (Cordulegaster boltonii) e da libélula-esmeralda
(Oxygastra curtisii) observadas, em adulto, a partir de maio, a patrulhar as águas.
O mexilhão-de-rio (Margaritifera margaritifera), invertebrado ameaçado a nível
nacional e mundial, encontra-se em alguns rios da bacia do Douro, nomeadamente
no Paiva. O seu ciclo de vida depende de outra espécie, a truta, pois as suas larvas são
parasitas e ixam-se nas brânquias do peixe, onde sofrem metamorfose.
Relativamente à fauna vertebrada, o Rio Paiva e seus aluentes possibilitam a existência de répteis, como o lagarto-de-água (Lacerta schreiberi), e de anfíbios, como a
rã-ibérica (Rana iberica) e a singular salamandra-lusitânica (Chioglossa lusitanica).
Tipicamente ribeirinhas, aves como o guarda-rios (Alcedo athis), a alvéola-cinzenta
(Motacilla cinerea) e o melro-d’água (Cinclus cinclus) necessitam do rio para se alimentarem e reproduzirem. Dois impressionantes mamíferos, a lontra (Lutra lutra), um
ex-libris deste curso de água, e a toupeira-de-água (Galemys pyrenaicus), uma espécie relíquia, são aqui avistados. Algumas espécies de morcegos, únicos mamíferos com
voo ativo, escolhem como locais de abrigo os moinhos abandonados da bacia do Paiva.
Para os vertebrados mais intimamente associados aos rios, o “truteiro” Paiva é habitat de cerca de catorze espécies de peixes. Nele e nos seus aluentes ainda abundam
a boga (Chondrostoma polylepis), o barbo (Barbus bocagei), o escalo (Squalius carolitertii) e a truta (Salmo truta fario), esta muito apreciada na gastronomia regional.
Numa situação mais preocupante por diminuição do efetivo populacional destaca-se
a panjorca (Chondrostoma arcasii) e o bordalo (Squalius alburnoides). Apesar de encontrarmos espécies originárias de outras áreas do planeta e introduzidas em Portugal
(espécies exóticas), tais como o achigã (Micropterus salmoides), a perca-sol (Lepomis
Libelinha
(Calopterix virgo)
[Foto: DGuimarães]
Rã-ibérica
(Rana iberica)
[Foto: JPetronilho]
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Truta
(Salmo truta)
[Foto: DGuimarães]
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Lontra
(Lutra lutra)
[Foto: JPetronilho]
gibbosus) e o pimpão (Carassius auratus), há diversas espécies autóctones e uma, pelo
menos, só presente no nosso país (endemismo lusitânico), o ruivaco (Chondrostoma
oligolepis). Outras espécies que povoam o rio são a carpa (Cyprinus carpio), a enguia
(Anguilla anguilla) e o verdemã (Cobitis paludica).
Verdadeiro corredor ecológico, o Sítio Rio Paiva (PTCON0059) é fundamental para
a manutenção da integridade de populações de lontra, toupeira-de-água, salamandra-lusitânica e lagarto-de-água. Constitui, ainda, um relevante habitat para espécies
piscícolas com interesse conservacionista como o ruivaco e a boga e para diversos
invertebrados, entre os quais, o raro mexilhão-de-rio, dado anteriormente como extinto em Portugal. Adicionalmente, permite o livre luxo da pequena e fragmentada
subpopulação do lobo (Canis lupus) a sul do Douro, evitando um maior isolamento dos
indivíduos e as consequentes perdas a nível demográico e genético (ICN, 2006).
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A HISTÓRIA
E O HOMEM
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A HISTÓRIA E O HOMEM
5.1. A MONTANHA E O RIO:
O COMEÇO DA JORNADA HUMANA
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Castro da Maga (Castro Daire)
[Foto: Pedro Sobral de Carvalho]
RAQUEL VILAÇA E PEDRO SOBRAL DE CARVALHO
É na montanha que encontramos os mais antigos vestígios do Homem. Há cerca de
6000 anos, em pleno Neolítico, este aproveitou os recursos do território para a prática
da agricultura e da pastorícia. Com o termo “neo” (novo) surgem novas técnicas e
instrumentos, como o machado e a enxó de pedra polida, a cerâmica ou os moinhos,
mas não se abandonam as restantes atividades complementares como a caça e a recoleção, heranças de outros tempos.
Porém, os únicos vestígios deste período resumem-se, neste momento, às suas sepulturas: os dólmens ou antas, verdadeiros templos erigidos em honra dos antepassados. Só no concelho de Castro Daire estão referenciados 66 monumentos megalíticos.
Os estudos arqueológicos sobre esta época neste território estão ainda no início. No
entanto, se olharmos para as regiões vizinhas, bem estudadas como o Alto Paiva (Cruz,
2001), a oeste, e a zona de Arouca a este (Silva, A. M., 2004; Silva, F. P. ), poderemos,
mesmo arriscando o transporte de modelos que podem não ser os mais corretos, airmar que, por certo, o que melhor caracteriza o megalitismo da região é o polimorismo
das suas arquiteturas. Neste sentido, podemos observar na paisagem montemurana
necrópoles pré-históricas com monumentos de grandes dimensões que convivem
com pequenos monumentos. É certo que haverá diferenças cronológicas entre alguns
deles, mas terá havido períodos em que coexistiram alguns monumentos muito diferentes entre si. Se, como já referimos anteriormente, tivermos como referência sobretudo o Alto Paiva, podemos adiantar como hipótese que os mais antigos monumentos
funerários poderão ter sido ediicados, no Neolítico Médio/Final.
Uma das realidades que parece ser comum na Beira Alta é que por volta de 4000 e
3700 a. C. terão sido ediicados os grandes dólmens com corredor com complexos sistemas de acesso (corredores intratumulares, átrios, etc.). Foi neste período que o interior
de muitos destes monumentos foi decorado com motivos pintados e gravados, como é o
exemplo do Dólmen 1 do Lameiro dos Pastores, concelho de Cinfães (Cruz & Santos, sd).
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Montemuro) com formas impossíveis de adquirir com as matérias-primas tradicionalmente utilizadas (pedra, madeira, argila, osso, etc.) e esteticamente revolucionários
porque, além de revelarem novas formas e novas cores, também brilham.
Levantamento das pinturas do
Dólmen 1 do Lameiro dos
Pastores, seg. Cruz & Santos, s.d..
Em contraste com esta complexidade tecnológica, a organização dos espaços habitados parece ter sido pouco estruturada. Destacam-se os lugares de altura, como
o Outeiro da Maga, com ampla visibilidade em redor, por vezes rodeados de muralhas, indicando crescente concentração das comunidades e manifesta preocupação
de controlo territorial.
Este modelo de habitat, que resiste em época romana, deverá ter coexistido com
outras formas de ocupação mais dispersa, talvez protagonizadas pelos grupos construtores de pequenos monumentos funerários e rituais que, quando nuclearizados,
chegam a deinir verdadeiros campos sagrados, conforme expressa o conjunto da Senhora da Ouvida.
Molde de remate de torques,
seg. Silva, 2007, p. 639.
A Pré-história neste território é assim marcada pelas imensas necrópoles que se
estendem pelos planaltos da Serra do Montemuro. Territórios sagrados, estes amplos
cemitérios agregam sepulturas de várias épocas e de várias tipologias. Dos grandes
dólmens neolíticos, às pequenas mamoas dos inais da Idade do Bronze e eventualmente da Idade do Ferro, estas necrópoles são as mais importantes manifestações
rituais do Montemuro.
Dando continuidade a um modo de vida ancestral baseado em atividades agro-pastoris que determinariam, ciclicamente, a forma de perceber o tempo, as comunidades da Idade do Bronze e da Idade do Ferro da região vão reestruturar-se lentamente
incorporando novos conhecimentos.
Entre eles, o trabalho dos metais – primeiro do cobre e do ouro, depois do bronze
(liga de cobre e de estanho) e mais tarde do ferro – foi responsável por profundas alterações. Artesãos especializados, testemunhando uma organização social e económica
complexa, criam novos objetos (como os obtidos dos moldes de Vila Boa e da Póvoa de
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A HISTÓRIA E O HOMEM
tado por comunidades que lhe imprimiram aura sagrada, aí enterrando seus mortos,
ou o que deles restava, ao mesmo tempo que expressariam dor pelos que partiam
e receio pelo mundo desconhecido. Essas estruturas, ou pelo menos algumas delas,
deverão ter servido para acolher resíduos de corpos incinerados, ritual que, à época,
se praticava. Outras ações ritualizadas, como oferendas, preces, cânticos, danças e até
mesmo o insepultamento dos mortos, que seriam expostos, são admissíveis embora a
Arqueologia já não os possa recuperar.
O carácter sagrado do lugar não se esfumou no tempo. A capelinha construída há
mais de dois séculos aí está para lembrar.
Excecionalmente, esses marcadores simbólicos podem incorporar graias, caso do
monumento 1 da Travessa Lameira de Lobos, (Cruz; Vilaça; Santos, 2014) e tal como se
observam na arte rupestre, por exemplo na Pedra dos Pratos.
Uns e outros moldaram as paisagens das comunidades dos II e I milénios a.C. destas
terras planálticas e serranas, resistindo à tirania do tempo e à distração dos homens.
Planta do monumento 7 da
Necrópole da Senhora da Ouvida,
seg. Cruz e Vilaça, 1999.
Levantamento da Pedra dos
Pratos, seg. Santos, 2000.
Tutelada pela imponência do Montemuro que lhe ica a NNW, a ampla plataforma em redor da capela da Senhora da Ouvida distingue-se de outras da região pela
presença de quase quatro dezenas de pequenos montículos subcirculares de pedras
(cairns), a maioria quase impercetível. Por isso mesmo, é recente a sua identiicação
admitindo-se que possam existir outros (Cruz & Vilaça, 1999). Por isso, também alguns
sofreram involuntário arrasamento, enquanto outros o foram já após identiicação.
Certo é também que aquele espaço foi sendo ao longo dos tempos, concretamente
e sobretudo na segunda metade do II milénio a. C. (há cerca de 3.500 anos), frequen-
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5. 2. DA ESCRITA LUSITANA
À ALVORADA DAS NAÇÕES
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Pedra escrita de Lamas de
Moledo (Castro Daire)
JOÃO INÊS VAZ
[Foto: João Pedro Pinto]
No século VI a. C., no centro do Mediterrâneo, uma nova civilização estava prestes
a nascer. Uma pequena aldeia de pastores, localizada no centro da Península Itálica,
entrava em guerra com outras aldeias vizinhas e rapidamente as conquistou. Iniciou-se um processo de expansão que só terminaria sete séculos depois, quando o Império formado tinha fronteiras tão longínquas como o oceano Atlântico a ocidente e
o rio Danúbio a oriente. Essa aldeia, fundada lendariamente por dois irmãos, Rómulo
e Remo, ambos abandonados e amamentados por uma loba e que lutaram entre si
de tal forma que só Rómulo sobreviveu, chamava-se Roma e o Império que veio a ser
construído icou conhecido por Império Romano, que ocupou todo o mundo conhecido de então, desde as Ilhas Britânicas às portas do deserto do Saara e desde a Síria à
Península Ibérica.
Muitos e desvairados povos foram conquistados, muitas economias de sobrevivência arrasadas, muitos sistemas construtivos adaptados, muitas línguas esquecidas,
tudo em favor dos hábitos e costumes transportados pelos povos invasores, portadores
de uma nova civilização que fez esquecer quase tudo aquilo que os povos anteriores
tinham feito. Com os exércitos romanos chegava uma nova língua, o latim que havia de
tornar uma língua europeia que inluenciou fortemente todas as línguas posteriores,
mesmo as germânicas e anglo-saxónicas. Com os soldados viajava uma nova forma
de planeamento, com o famoso urbanismo hipodâmico romano a impor-se ao caos
das aldeias indígenas que eles encontravam em todo o lado. As casas, de redondas ou
de cantos arredondados, passaram a retangulares, com ângulos retos e as relações de
vizinhança e proximidade passam a processar-se com ruas e avenidas que se intrometem nas casas anteriormente agarradas umas às outras. As suas coberturas, com
colmo e outros materiais perecíveis foram substituídas por inconfundíveis materiais
cerâmicos inventados pelos Romanos, as tégulas e ímbrices que ainda hoje constituem
a primeira e maior prova de romanização de um lugar. As telhas que hoje usamos para
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cobrir as nossas construções não passam de uma evolução dessas invenções romanas. A economia de sobrevivência e de troca que os povos indígenas usavam no seu
dia-a-dia, é substituída por uma economia de mercado em que a produção intensiva
é fundamental. Por isso, os povos são obrigados a descer das alturas para a planície e
se formam novos povoados que vão albergar os Romanos mas também os indígenas
que apenas transportam, dos antigos tempos e dos antigos assentamentos, a sua religião. Uma economia de mercado exige bons contactos e boas ligações e por isso os
Romanos encheram todos os recantos do Império com uma malha viária de tal ordem
que, de qualquer ponto se podia chegar a Roma, pois “todos os caminhos vão dar a
Roma” e só se perdia quem fosse bárbaro e não falasse latim, pois “quem tem boca vai
a Roma”. Através dos caminhos transportam-se produtos (ouro, prata, azeite, esparto
e outros), mas também as novidades, o correio e a religião. Para gerir um Império tão
vasto era fundamental uma organização que levasse as ordens imperiais ou dos procuradores a qualquer ponto de qualquer província e por isso os Romanos organizaram um
serviço de correio, chamado posta, com um nível ainda hoje não atingido em muitas
zonas do globo. Pelas vias, construídas para ser eternas, circulava também a língua e
a única usada, em todos os cantos do Império, era a latina pois as línguas nacionais/
locais foram esquecidas, só se recordando em raríssimas inscrições feitas no tempo
dos Romanos.
A religião podia dividir-se em dois grandes tipos, a religião romana propriamente
dita e a religião indígena. Esta última categoria ainda podia subdividir-se em muitas
outras, pois cada povo conquistado tinha uma religião própria que os Romanos não
só mantiveram como, na maioria dos casos, absorveram. A religião romana tinha os
deuses que eram os originais de Roma, como Júpiter, Apolo ou Mercúrio, mas os povos
conquistados tinham, cada um, as suas próprias divindades que tanto podiam ser adoradas no espaço geográico ocupado por povos diferentes como apenas num, sendo
por isso mais nacionais, regionais ou simplesmente locais.
O culto dos mortos também foi algo que os Romanos alteraram em muitos dos
sítios conquistados. Tal como a maioria das civilizações antigas, os Romanos também
procediam à cremação dos seus mortos e as cinzas eram guardadas em urnas cinerárias. Mas as necrópoles romanas estavam sempre fora das cidades, ao longo das
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estradas. O culto dos antepassados, sobretudo os antepassados ilustres tinha uma
importância muito grande entre eles. Assim, as cinzas em vez de enterradas em necrópoles megalíticas ou em pequenas cistas, passam a ser guardadas em columbários,
espécie de caixotões como os que hoje existem nos nossos cemitérios ou depositadas
em mausoléus familiares com os vivos a visitar os mortos, levando-lhes oferendas,
lores por exemplo. Outra grande diferença é que agora os mortos passam a ter nome
e, por isso, surgem as inscrições funerárias romanas onde se recordam os defuntos. É
que um morto só desaparece quando a sua memória se perder e o romano não queria
que se perdesse, por isso colocou lápides em materiais duros que vieram até aos nossos dias, conseguindo assim eternizar a sua memória.
Foi assim que os Romanos em 218 a. C. desembarcaram na Península Ibérica, no
âmbito das chamadas Guerras Púnicas. Os Púnios ou Cartagineses, descendentes dos
Fenícios, estavam localizados em Cartago, no Golfo de Túnis, na Tunísia e num ponto
muito próximo da Sicília. Ambos disputavam o domínio do Mar Mediterrâneo e por isso
os seus exércitos vão-se confrontar e a primeira batalha vai acontecer na Península
Ibérica, em Ampúrias, na atual costa leste espanhola. Derrotados os Cartagineses em
três duras guerras travadas entre os dois povos, os Romanos icaram senhores do Mediterrâneo e de todas as suas margens.
Na Península Ibérica, pequenas bolsas de resistência continuavam a desaiar os
exércitos romanos e a maior resistência vinha de um povo a que os escritores romanos dão o nome de Lusitanos, localizados geograicamente no espaço entre o rio
Tejo, a sul e o rio Douro a norte. Por conseguinte, o território do concelho de Castro
Daire era território lusitano. Os Lusitanos, cujo chefe mais famoso foi Viriato, seriam
um conjunto de tribos pré-romanas que se guerreavam frequentemente entre si e
que habitavam em castros, já tratados no capítulo anterior. Do seu linguarejar nada
sabemos e quase o mesmo da sua língua. No entanto, uma das inscrições mais importantes que icaram dos tempos romanos, refere termos que seriam de uma língua
a que se tem chamado “Língua Lusitana”. É a inscrição gravada no “Penedo Escrito”
de Lamas de Moledo: RVFINVS ET / TIRO SCRIP/SERVNT / VEAMINICORI / DOENTI / ANC.
OM / LAMATIC.OM / CROVGEAIMAGA/REAICOI·PETRANIOI R / ADOM·PORC.OM IOVEA /
CAIELOBRIGOI. Tradução: Rufino e Tiro determinaram: os Veaminicori oferecem uma
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A HISTÓRIA E O HOMEM
Pedra escrita de Lamas de
Moledo (Castro Daire)
[Foto: João Pedro Pinto]
ovelha lamaticom a Crouga dos Magareaicoi e os Petranioi um porco radom a Iovea
dos Caielobricoi.
Trata-se, provavelmente de uma inscrição comemorativa, e votiva, com certeza,
em que dois romanos ou indígenas romanizados e revestidos de autoridade, Rufinus e
Tiro, mencionados logo no início da inscrição, decidiram e talvez tenham presidido a
uma importante cerimónia que icou gravada para sempre na pedra.
Ficando alheios às polémicas académicas que esta inscrição tem levantado, diremos que se trata de uma inscrição dedicada a duas divindades, Crouga e Iovea, protetoras de duas etnias, os Magareaicoi e os Caielobrigoi, a quem os Veaminicori e os
Petranioi oferecem um ancom lamaticom e um Porcom radom. A divindade Crouga só
é conhecida aqui e na Freixiosa, no concelho de Mangualde e Iovea deve ser a forma
local de designar o Júpiter romano. As ofertas feitas à divindade devem ser um porco,
com alguma característica especial, e uma ovelha.
A HISTÓRIA E O HOMEM
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Os povos citados, os Caielobrigoi e os Magareaicoi deveriam ser povos que viviam
nas imediações do penedo, talvez no sítio ainda hoje designado como Cabeço da Maga
onde existem os vestígios de um castro e noutro lugar que desconhecemos.
No concelho conhece-se ainda uma outra inscrição votiva dedicada a uma divindade chamada Arus. Apareceu na Ponte Pedrinha e pode ter sido arrastada do próprio
castro localizado no sítio onde está a vila. Esta inscrição é curiosa porque tem apenas
o nome da divindade e a representação de um animal, provavelmente o porco, na face
principal. É interessante que o porco aparece também em Lamas de Moledo, o que
mostra a importância que o porco tinhas para as pessoas desta região. De um dos
lados tem uma igura de pé com uma lança e do outro a palavra patera, gravada em
redondo. Ora, a patera era uma espécie prato usado nas cerimónias religiosas e que
tinha a forma redonda. Assim, o escultor em vez de gravar a forma, gravou a palavra
com a forma arredondada.
Há notícia de uma ara aparecida em Mamouros mas que desapareceu. As poucas letras que nos icaram não permitem qualquer interpretação (Barroca e Marques,
1993).
Conhecem-se outras inscrições romanas no concelho de Castro Daire, todas funerárias e provenientes das povoações de Lamas de Moledo e Vila Boa.
Manuel Botelho Ribeiro Pereira (Pereira, 1955), um autor viseense do século XVII,
regista o aparecimento de duas inscrições que desapareceram, uma em Lamas de
Moledo e outra em Vila Boa. Diz ele que “O Lugar de Lamas certo he que foi povoação dos Romanos, como se vê das sepulturas, que ali deixarão, e tinha muro, e seu
nome ainda hoje se conserva num letreiro, que está em hum curral de gado achado
no mesmo lugar de Lamas, que diz assim: GAAIA PISIRIF AN XXV HSE STTL. Quer dizer:
Gaia fez este sepulcro a Pisires, que morreo no anno 25 de sua idade, seja-te a terra
leve”.
Botelho Pereira apenas terá errado na leitura do primeiro nome que, presumivelmente, será Camala. Sendo assim, trata-se de uma pessoa chamada Camala, que
morreu com 25 anos de idade, que era ilha de Pisiro e foi ali sepultada.
Ele diz que a inscrição estava num curral, deslocada, portanto, da necrópole primitiva que não se sabe onde icaria localizada.
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Ara romana da Ponte Pedrinha
(Castro Daire), seg. Leite
Vasconcelos, 1913.
A HISTÓRIA E O HOMEM
Estela romana de Lamas
de Moledo, retirada de
Curado, 1989.
A HISTÓRIA E O HOMEM
Botelho Pereira dá ainda notícia de outra inscrição achada também em Lamas e
que, como a anterior, desapareceu: CMAI AINO GINMIE ANN III LONG EIAC MALI MATER
E.C., cuja leitura e transcrição está claramente errada. Deverá interpretar-se do seguinte modo: CAMALIANO / … GINMIAE [...] F(ilio) ANN(orum) III(trium) TONGETA (vel
Longeia) CAMALI(filia) MATER F(aciendum) C(uravit), ou seja, em português: A Camaliano, filho de ..., morto com 3 anos de idade, a mãe Tongeta (ou Longeia) tratou de fazer
(este monumento) (Vaz, 1997, p. 231-232).
É a lápide sepulcral de uma criança morta com três anos apenas e que sua mãe,
extremosa e dedicada ao seu ilho, quis recordar para sempre levantando-lhe uma
memória.
Em Lamas de Moledo existe ainda uma estela funerária, no patim de uma escada
particular que exibe a seguinte inscrição: CABV / REINA / E•CELI(i filiae) / AN(norum)
IIX(octo)• / TONG / ETA•PETOBI• /… , que traduzindo para português dará: Tongeta, (filha
de) Petóbio, (mandou fazer esta memória) a Cabureina, (filha) de Célio, de oito anos de
idade (Vaz, 1997, p. 229-230).
Ainda em Lamas de Moledo apareceu outra estela funerária, hoje desaparecida
que continha a seguinte inscrição: APIN/NAE•BOVTI(i) F(iliae)•ANN(orum)•V(quinque)•
/ AMOENA•MA / [TER]•F(aciendum)•C(uravit), que traduzida diz assim: A mãe Amena
tratou de fazer a Apina, filha de Búcio, de cinco anos de idade (Vaz, 1997, p. 228).
Vemos, nestas duas inscrições, duas crianças mortas com apenas oito e cinco anos
de idade e em ambos os casos são as mães que mandam erigir a memória com o nome
dos ilhos.
No lugar de Vila Boa, freguesia de Mões achou-se também uma inscrição funerária, desaparecida, que foi conservada pela leitura que dela fez Manuel Botelho Ribeiro
Pereira: D. M. S. TROFIMEN AAN XVI VRSVS ET SIBI EX VXSORI. F. C., que traduzida para
português será, aproximadamente: Consagrado aos deuses Manes. A Trofimen, de 16
anos (aqui sepultada); Ursus mandou construir para si e para sua mulher (Vaz, 1997,
p. 268-269).
Trata-se de uma pessoa cujo nome era qualquer coisa como Trofimen, morta com
a idade de 16 anos, e a quem o marido mandou fazer a sepultura, reservando também
para si o mesmo sepulcro.
84
A inscrição revela uma certa romanização, pois começa com a dedicatória aos
deuses Manes, os deuses das regiões inferiores.
Como se vê também aqui os deuses e as pessoas tiveram nomes, umas vezes indígenas, outras vezes indígenas romanizados e outras ainda nomes latinos.
A economia da área do atual concelho de Castro Daire também deve ter mudado
profundamente em favor de uma economia de mercado e de exploração dos recursos
agrícolas e minerais. Os terrenos do concelho não são os melhores para uma agricultura intensiva e por isso vamos encontrar vestígios romanos nas zonas ribeirinhas do
Rio Paiva, como na Portela de Mões e Alva.
Outra atividade fundamental nesta área seria a exploração mineira. Os moldes de
fundição proto-históricos de Cêtos e da Vila Boa provam que a prata, o estanho e o
cobre seriam explorados e fundidos no Montemuro e na zona de Mões, respetivamente.
Com o estanho e o cobre fazia-se o bronze, liga de que é feito o molde de Vila Boa. Não
existe nenhuma prova de que, na época romana, a exploração dos metais se tenha
efectuado, mas a tradição continua a existir, nomeadamente em Farejinhas onde ainda
existe um lugar chamado Covas.
Ao lado dos castros que continuaram a ser habitados, Castro Daire, Cabril e S. Lourenço, onde os vestígios da romanização são evidentes, apareceram novas explorações
agrícolas, as villae ou casais de que se conhecem vestígios em Missa (Portela de Mões)
e Fundo de Vila (Lamas de Moledo).
Não existem muitos elementos que permitam determinar a distribuição espacial
do povoamento romano. O lugar mais central deveria ser o povoado localizado na atual
vila de Castro Daire onde poderiam viver os Veaminicori citados na inscrição do Penedo
de Lamas de Moledo que, por sua vez, deveriam estar integrados numa unidade maior
chamada Magareaicoi que poderia estar localizada na serra de S. Macário. Em S. Lourenço poderiam viver os Caielobricenses da mesma inscrição e os Petranioi, também
citados na mesma inscrição, poderiam localizar-se no Outeiro da Maga que foi abandonado, talvez em favor do sítio da Fonte da Vila.
Para uma melhor organização do território, os Romanos dividiram a região em
grandes áreas administrativas chamadas civitates (civitas, no singular). O aro do atual
concelho dividia-se entre três civitates, os Interannienses e os Coilarni e os Paesuri. Os
85
Moeda romana do sítio
“Missa” (Portela, Mões).
[Foto: João Inês Vaz]
A HISTÓRIA E O HOMEM
Capitel romano
de Portela de Mões
[Foto: Pedro Sobral de Carvalho]
primeiros tinham a capital em Viseu (Viseum, provavelmente) e ocupavam a metade
a sul do Montemuro, enquanto a encosta virada a norte estava integrada nos Coilarni
cuja sede era em Lamego. A zona de Cabril, onde está o castro do Cabeço dos Mouros,
integrava-se numa outra civitas que era designada como Paesuri, cuja sede deveria
ser em Cárquere, no concelho de Resende ou, mais provavelmente, S. Cristóvão de
Nogueira, no concelho de Cinfães.
No século IV e V, já com o Cristianismo provavelmente implantado na zona, a paz foi
quebrada pela chegada de novos povos e novas línguas que se vieram misturar com o
latim falado por todos, dando origem a um nova época que se vai ser designada pelos
historiadores como Idade Média. Os descendentes dos Romanos misturam-se com as
novas raças, a antiga divisão administrativa das civitates vai sobreviver na nova divisão
religiosa, que foi incluída nas novas nações que resultam dos escombros do Império,
com muitas leis antigas reaproveitadas e adaptadas, assim se forjando uma nova civilização e uma nova sociedade cuja base é a religião cristã.
A HISTÓRIA E O HOMEM
86
Não se conhece qualquer impacto das invasões bárbaras no território do concelho
de Castro Daire, como nada se sabe também sobre a chegada do Cristianismo, a nova
religião que se espalhou por todo o Império romano. Que tenham aproveitado a antiga
divisão das civitates romanas parece certo, integrando-se a metade sul do concelho,
abaixo da linha do Rio Paiva, na nova diocese de Viseu e a metade norte na diocese de
Lamego, ou seja, em termos de civitates anteriores a área que pertencia à civitas dos
Interannienses foi para a diocese de Viseu e a dos Coilarni respetivamente icou anexada a Lamego. Estas dioceses estavam já formadas em 572, data do II concílio de Braga
em que aparecem os bispos Petrus, e Sardinarius, a assinar como Vesensis Episcopus e
Episcopus Lamecensis, respetivamente.
A presença dos povos germânicos na área do concelho está conirmada pelo achado de uma moeda de ouro visigótica (triente) do tempo do rei Vitiza, em Alva. Segundo o Doutor Mário Barroca (Barroca, 2004) que publicou esta moeda, trata-se de
um triente cunhado entre 702 e 710, nas oicinas de Toledo. A raridade desta moeda e
sobretudo o conhecimento do local do seu achado, nas imediações da igreja, faz dela
um caso raro da Península Ibérica. O rei Vitiza foi o penúltimo rei visigodo, pois faleceu
em 710 e em 711 deu-se a invasão da Península pelos Árabes.
Não se conseguindo localizar esta moeda em Alva, seguimos a descrição feita por
Mário Barroca. Anverso: IN DINE WITIZA P+, ou seja In Dei NominE VITIZA Pius. Apresenta-se o busto do rei, estilizado, como sempre acontece com este tipo de moedas, com
cabelos compridos e a face ladeada por duas palmetas. Reverso: +TOLETO PIUS e duas
pequenas palmetas. Ao centro, tem uma cruz latina enquadrada por um motivo em
forma de coroa com motivo entrelaçado como uma corrente (Barroca, 2004).
A moeda teria sido encontrada à superfície e sem qualquer contexto. O seu achado,
no entanto, revela-nos a antiguidade de Alva e uma boa prospeção arqueológica, que
nunca foi feita, tornaria visíveis outros achados que se desconhecem nas Terras de
Alva.
Recentemente, localizámos ali duas estelas funerárias circulares decoradas apenas
com uma simples cruz. Estavam no adro da igreja de Alva e foram transportadas para
o Centro de Interpretação. Será que o triente visigótico estava em contexto funerário e
poderá revelar o hábito pagão do pagamento do óbulo a Caronte? Pensando nas estelas
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A HISTÓRIA E O HOMEM
Caixa-relicário de Mamouros
Sepultura antropomórica
da Aveleira (Mões)
[Foto: João Pedro Pinto]
[Foto: Pedro Sobral de Carvalho]
funerárias e na moeda, que devem ter sido encontradas próximas, é bem provável que
assim acontecesse.
Um pouco mais tardio, do século X, provavelmente é uma caixa-relicário que foi
atribuída a Mamouros, mas não existe qualquer prova objectiva de que assim fosse.
Trata-se de uma pequena caixa de madeira está na paróquia da Queiriga do vizinho
concelho de Vila Nova de Paiva e que foi encontrada com relíquias e um pergaminho
onde se liam os mandamentos e o início dos quatro evangelhos (Barroca e Marques,
1993). Em dois outros pergaminhos mais pequenos aparecem os nomes de dois santos,
Santa Cecília e S. Sebastião. Não se sabendo a proveniência exata desta caixa-relicário
e sendo a igreja de Mamouros dedicada a S. Miguel apenas se pode especular que esta
caixa poderá ser proveniente deste lugar.
Um outro elemento arqueológico importante que se espalha por vários lugares do
concelho são as sepulturas escavadas na rocha que, no imaginário popular, andam
a maioria das vezes associadas aos mouros. Conhecem-se sepulturas escavadas na
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rocha nos seguintes lugares: Cruz do Pinheirinho (Mões), no sítio do Ralo, em Soutelo,
nos lugares de Sobreira, Rebolada e Lajedo em Vila Boa, no lugar de Regada, todos da
freguesia de Mões; em Mosteiro, freguesia de Pepim; no Outeiro do Chamissal (“Cama
da Moira”), freguesia de Moura Morta; no sítio da Cruz do Rossão e Carvalhosa, ambos
na freguesia de Picão; no sítio da Corredoura e Savariz, freguesia de Reriz (Correia et
alii, 1995, p. 125-127).
A abertura deste tipo de túmulos na rocha viva, só se pode explicar pela importância que se dava à conservação do corpo que havia de ressuscitar no último dia, dia do
Juízo Final.
Consideradas como elementos medievais, estas sepulturas podem aparecer isoladas ou agrupadas em necrópoles. No concelho de Castro Daire apenas se conhecem
em sítios isolados e sem vestígios anteriores à sua volta pelo que pensamos que isto
terá a ver com o tipo de povoamento muito disperso que aqui deve ter ocorrido. Sendo
um território muito montanhoso, houve que aproveitar as veigas dos rios e cursos de
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água para as pessoas se estabelecerem e, por isso, o povoamento deve ter sido sempre
mais em pequenos núcleos que em grandes povoações. Este é o tipo de povoamento,
muito disperso mas concentrado em pequenas povoações, que ainda hoje continua a
predominar neste vasto território. Isso mesmo também se poderá deduzir da leitura
das Inquirições que Afonso III mandou fazer no território concelhio.
Nos princípios da nacionalidade, o território do concelho de Castro Daire estava dividido entre as Terras de Lafões, a Terra de Moção e as honras de Egas Moniz. As honras
de Mezio, Vale Abrigoso, Mões, Moledo e Gosende, quer dizer, a parte norte e oriental do
atual concelho pertenciam a Egas Moniz e depois aos seus herdeiros, nomeadamente
os seus ilhos D. Moço Viegas e D. Urraca Viegas. Esta acabou por doar a sua parte (pelo
menos Mezio e Vale Abrigoso) a D. Mafalda, ilha de D. Sancho I e fundadora do Mosteiro
de Arouca que, com estas doações, passou a ser proprietário de grandes extensões no
concelho. Mões e Moledo eram de D. Moço Viegas e no tempo de D. Dinis eram do ilho
D. Pedro, o famoso conde de Barcelos, que está sepultado no monumental túmulo
existente no mosteiro de S. João de Tarouca. Mões acabou por ser elevada a concelho
por D. Manuel I, com foral dado em 7 de maio de 1514.
Mões, que ainda hoje é uma das principais povoações do concelho, não teve foral
antigo, talvez porque era pertença de Egas Moniz. Mas teve foral de D. Manuel concedido em 7 de Maio de 1514.
Na margem direita do Rio Paiva havia o julgado de Moção, sede de um concelho
muito extenso que englobava o Mezio, Moura Morta, Picão, Pinheiro, Ester e muitas
outras aldeias, algumas que desapareceram, como Bugalion (correspondente ao topónimo Bogalhão existente na Carvalhosa) e Gundivao (totalmente desconhecido).
Neste concelho fundou-se nos inais do século XII – inícios do XIII, o Mosteiro de Santa Maria e S. Miguel da Ermida, da Ordem Premonstratense que é uma variante da Ordem
dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. A sua fundação terá certamente a ver com
a tentativa de povoamento e arroteamento das terras da encosta sul do Montemuro.
D. Manuel I, em 15 de Maio de 1514, concedeu novo foral a Moção, mantendo o concelho com a habitual atualização de impostos mas, dois meses depois, em 13 de julho
de 1514, concedeu foral também a Pinheiro, que assim icou desanexada do anterior
concelho e Terra de Moção e elevada à categoria de cabeça municipal.
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Igreja da Ermida
[Foto: JPetrinilho]
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A coninar com o Julgado de Moção, pelo lado ocidental, estava a Terra de Parada
que, no século XIII, incluía várias povoações como Nodar, Meã, Mós, Sobrado Eiriz e
Vila. Parada teve carta de foro dada por Ermígio Moniz e Sancha Peres em data que se
desconhece e depois por D. Afonso II; Mós e Sobrado também foram pequenos concelhos rurais com cartas de foro doadas por D. Sancho II em 1241. O foral de Mós tinha
uma disposição curiosa porque ali se dizia que quem entrasse no concelho para fazer
alguma malfeitoria, poderia ser espancado à paulada da melhor forma possível e os
autores do acto pagariam à câmara somente um copo de água (Correia et alii, 1ª ed., p.
73). Sobrado pertence hoje à União de Freguesias de Parada de Ester e Ester.
No tempo dos primeiros reis de Portugal, a Terra de Parada foi alvo de acesa disputa
entre vários idalgos e o rei, com os idalgos a não respeitarem a doação de D. Sancho II
a D. João de Portocarreiro, idalgo da sua coniança.
Com o foral dado por D. Manuel I nos inícios do século XVI, acabaram todos estes
forais e os antigos concelhos foram anexados ao de Parada Meã, assim designada agora
pelo rei, icando a cabeça do concelho em ambas as povoações.
A margem esquerda do Rio Paiva, com Gafanhão, Reriz e Alva estava integrada na
Terra de Lafões. Nos inícios do Condado Portucalense, era grande senhor desta região
João de Gondesendes que, provavelmente, estava relacionado com a família do mesmo nome que no século X pontiicava na região de Sever do Vouga e cujos domínios
se estendiam entre Reriz e Gafanhão. O seu paço senhorial estaria em Gafanhão onde
fundou a igreja de Santa Maria (ver desenvolvimento desta questão em Ventura, 1985,
p. 31-69).
Reriz e Solgos eram duas vilas reguengas. Reriz, pelo que se pode deduzir das Inquirições de D. Afonso III e do texto do foral manuelino, deve ter tido um foral antigo
passado não se sabe por quem. Era vila quase totalmente reguenga, havendo apenas
dois casais que eram pertença do Mosteiro da Ermida que possuía ainda dois moinhos
no Rio Paiva.
Alva teve foral antigo doado por D. Henrique, conirmado depois por D. Afonso III,
antes de 1258, pois nessa data, nas Inquirições mandadas fazer por este rei, o foral
aparece já citado.
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Desconhece-se o texto do foral antigo de Alva, mas pelas determinações que são
citadas no foral manuelino, calcula-se que seriam muito gravosos os impostos que os
moradores eram obrigados a pagar. Comparando com os pequenos concelhos da margem direita do Rio Paiva, parece haver uma clara distinção entre estes concelhos mais
pobres e os da margem esquerda, terras mais ricas e mais agricultadas.
O mesmo sucedia com o foral de Cabril, concelho formado por D. Manuel, já que
não se faz referência a qualquer foral antigo. Ainda no foral de D. Manuel se diz que o
rei não tem ali qualquer reguengo ou direito e, por isso, o rei limita-se a conirmar os
direitos que já existiam sem se dizer a quem pertenciam (Foral de Cabril, 1996).
Aquilo que dissemos de Alva, aplica-se ao foral da vila de Castro Daire que teve
o primeiro foral concedido por D. Afonso Henriques (Correia et alii, p. 64) que assim
elevou a povoação à categoria de concelho, privilégio que manteve até aos nossos dias.
Os gravosos direitos que os povos tinham que pagar nesse primeiro foral foram substituídos pelo rei D. Dinis por um pagamento único de quinhentas libras, quantia avultada
para a época. Por sua vez, estas 500 libras vão ser transformadas, em 1514, por D.
Manuel, em 108.000 reais, quantia que o rei determina seja paga em três prestações
para não sobrecarregar demasiado as populações. Um das determinações que aparece
em quase todos os forais manuelinos diz respeito aos tabeliães do concelho, ou seja o
equivalente aos nossos notários de hoje, que são obrigados a pagar um imposto ao rei e
como este imposto era muito elevado, muitas vezes os tabeliães fugiam dos concelhos
porque não auferiam rendimentos suicientes. No caso de Castro Daire isso nunca deve
ter sucedido porque os tabeliães desta vila serviam também os concelhos vizinhos a
que já nos referimos e que não tinham tabeliães próprios, tal era o seu tamanho diminuto. Isto mostra como a vila de Castro Daire era já, em inais da Idade Média e inícios
da Idade Moderna, um polo de atração para os povoados vizinhos e talvez por isso
nunca perdeu a sua qualiicação de vila e sede de concelho.
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Mitra proveniente do Mosteiro da
Ermida do Paiva (séc. XIII-XIV).
Museu Nacional de Arte Antiga.
[Foto: José Pessoa - DGPC/ADF]
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Crossa de Báculo proveniente do
Mosteiro da Ermida do Paiva (séc.
XIII-XIV ?). Museu Nacional de
Arte Antiga.
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[Foto: José Pessoa - DGPC/ADF]
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