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OS AVANÇOS DO MERCOSUL NO TRATO DA SEGURANÇA PÚBLICA ENTRE 1991 E 1999

2023, Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS

O Mercado Comum do Sul (Mercosul) foi criado por meio do Tratado de Assunção, assinado em 26 demarço de 1991,entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Fruto de uma agenda econômica, esse agrupamento regional cujas origens mais recentes e diretas remontam à Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), surgida pelo Tratado de Montevidéu, de 1980, e pelo Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, assinado entre Brasil e Argentina em 29 de novembro de 1988, teve suas bases bem afincadas em claros objetivos econômicos, norte da sua carta fundacional; entretanto, já na década de 1990, essas metas foram ampliadas para outros setores, de direitos humanos, educação, cultura, meio ambiente, mas, principalmente, segurança pública. Essa ênfase fica clara ao analisarmos as decisões emitidas pelo principal órgão do bloco, o Conselho do Mercado Comum, integrado pelos ministros de relações exteriores e ministros de economia dos Estados Partes. De 1991, ano inaugural do Mercosul, a 1999, neste trabalho buscou-se colecionar as principais decisões que demonstraram a inclinação para o assunto de segurança, com forte viés para tratativas com vistas a uniformizar procedimentos padrões para atuar frente ao contrabando, ao descaminho, ao furto e roubo de veículos, ao tráfico ilegal de armas, munições e explosivos, ao comércio ilegal internacional de armas de fogo e ao terrorismo. Além disso, essas decisões ajudaram a criar mecanismos integrados de cooperação no intercâmbio de informações relacionadas a crimes, bem como de coordenação de ações ostensivas e de inteligência, envolvendo forças policiais dos países fronteiriços mercosulinos.

www.journal.idesf.org.br OS AVANÇOS DO MERCOSUL NO TRATO DA SEGURANÇA PÚBLICA ENTRE 1991 E 1999 Rildo Fausto Kops Neto1 Polícia Militar do Paraná E-mail: [email protected]. Resumo O Mercado Comum do Sul (Mercosul) foi criado por meio do Tratado de Assunção, assinado em 26 de março de 1991, entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Fruto de uma agenda econômica, esse agrupamento regional cujas origens mais recentes e diretas remontam à Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), surgida pelo Tratado de Montevidéu, de 1980, e pelo Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, assinado entre Brasil e Argentina em 29 de novembro de 1988, teve suas bases bem afincadas em claros objetivos econômicos, norte da sua carta fundacional; entretanto, já na década de 1990, essas metas foram ampliadas para outros setores, de direitos humanos, educação, cultura, meio ambiente, mas, principalmente, segurança pública. Essa ênfase fica clara ao analisarmos as decisões emitidas pelo principal órgão do bloco, o Conselho do Mercado Comum, integrado pelos ministros de relações exteriores e ministros de economia dos Estados Partes. De 1991, ano inaugural do Mercosul, a 1999, neste trabalho buscou-se colecionar as principais decisões que demonstraram a inclinação para o assunto de segurança, com forte viés para tratativas com vistas a uniformizar procedimentos padrões para atuar frente ao contrabando, ao descaminho, ao furto e roubo de veículos, ao tráfico ilegal de armas, munições e explosivos, ao comércio ilegal internacional de armas de fogo e ao terrorismo. Além disso, essas decisões ajudaram a criar mecanismos integrados de cooperação no intercâmbio de informações relacionadas a crimes, bem como de coordenação de ações ostensivas e de inteligência, envolvendo forças policiais dos países fronteiriços mercosulinos. Palavras-chave: Tratado de Assunção; Mercado Comum do Sul; Conselho do Mercado Comum; segurança pública. INTRODUÇÃO A integração nunca foi uma faculdade para os países da América do Sul. Tratou-se, antes disso, de uma necessidade imperiosa, haja vista a questão mais elementar possível: o encontro dos territórios. A relação entre nações vizinhas é, em certa medida, tão inevitável quanto seus conflitos. Consertar, portanto, é essencial, pois a negligência não evitará os desencontros, apenas os intensificará. Nesse 1 Polícia Militar do Paraná. Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 25 www.journal.idesf.org.br sentido, na América do Sul, o regionalismo surge como uma demanda inalienável de todas as nações responsáveis. Nos seios da colonização, da independência e dos dois reinados, os intrincados relacionamentos já afloravam. Inicialmente, seus interlocutores europeus buscavam marcar território, não apenas por mais terras, mas principalmente pelo que ela poderia trazer em seu bojo: da madeira nobre à cana, do açúcar ao ouro. Ao mesmo tempo, era interessante ao Reino Britânico que o Brasil mantivesse o status de monarquia, ilhado em meio às repúblicas recém-constituídas de procedência hispânica. O Brasil diferenciava-se dos demais países sul-americanos não apenas na língua, decorrência do processo colonizatório, mas tal cisão já se enxergava no meio social e cultural, de forma ampla. Havia, no entanto, um ponto bastante comum: o viés econômico, em especial no Cone Sul2, pois o grande fluxo de comércio de seus países não escapava de passar pela Bacia do Prata 3, causa, inclusive, da maior guerra que o sul desse continente já enfrentou. Por isso, desde cedo foi necessário integrar, evitando pelo diálogo outros conflitos. Com o tempo, a “Questão do Prata”, embora continuasse relevante, perdeu espaço para outras relações ainda mais complexas. Durante o século XX, com o avanço das integrações diplomáticas no mundo e da formação de grandes blocos, principalmente econômicos, percebeu-se cedo que juntar forças poderia aumentar o poder de barganha para uma região que, recortada, não chamava a atenção do restante do mundo. O chanceler brasileiro de 1902 a 1912, José Maria da Silva Paranhos Júnior4, o Barão do Rio Branco, norteou a política externa brasileira pelos seguintes 50 anos, até que surgisse, em 1961, a “Política Externa Independente”5 (PEI). Esse estadista Cone Sul é uma região composta pelas zonas meridionais da América do Sul, ao sul do Trópico de Capricórnio. 3 A Bacia do Prata, Bacia Platina ou Bacia do Rio da Prata estende-se pelo Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina e é a segunda maior bacia hidrográfica do Brasil. 4 José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, filho do Visconde do Rio Branco, foi um importante diplomata brasileiro, chanceler entre 1902 e 1912, faleceu neste mesmo ano, aos 10 de fevereiro, no exercício da função que exercia no Palácio do Itamaraty. Sua morte causou tamanha comoção nacional que o carnaval daquele ano foi adiado, por luto e reverência àquela personalidade que ajudou a terminar de desenhar o Brasil no formato pelo qual hoje é conhecido. 5 A Política Externa Independente correspondeu ao período entre 1961 a 1964, no qual o Brasil buscou assumir uma visão de política externa menos presa à bipolaridade da Guerra Fria (EUA x URSS), permitindo-se, como nação soberana, interagir e negociar com o mundo que havia além 2 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 26 www.journal.idesf.org.br vocacionou-se ao americanismo. Não se tratava, porém, de submissão, como erroneamente pode se supor hoje; na realidade, era uma forma de se tornar independente das grandes potências europeias, em especial da Inglaterra, que ainda possuía inspirações imperialistas sobre o Brasil. Tratou-se, portanto, de uma estratégica que realmente funcionou, como se pode, hoje, constatar. Tal estratégica, todavia, não fez com que o Brasil deixasse de lado a América do Sul. O próprio Barão atuou com heroísmo em diferentes contenciosos, envolvendo a porção meridional desse grande continente. Foram decisivas suas atuações na questão de Palmas (1895), na questão do Amapá (1900) e na questão do Acre (1903). Rio Branco foi o responsável pelo último recorte do território brasileiro tal como hoje é conhecido, motivo pelo qual foi honrado com o título de Patrono da Diplomacia Brasileira. Ainda, ao longo da primeira metade do século XX e início dos anos 50, negociações tencionaram aprovar o Acordo ABC, entre Argentina, Brasil e Chile (cujas iniciais formariam o nome do grupo), porém fatores políticos impediram sua concretização. Essa ideia, contudo, permaneceu acesa nesses países, principalmente nos seus corpos diplomáticos. Em 1986, os presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney idealizaram um mercado comum, o que, para muitos, é considerado o reavivamento daquele ABC de quase 40 anos antes. Dessa maneira, assinaram, em 29 de novembro de 1988, o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, que objetivava a criação de um espaço econômico comum entre Argentina e Brasil, no prazo de 10 anos. Apesar disso, os presidentes Carlos Menen e Fernando Collor de Melo resolveram por antecipar para 5 anos, tendo sua consumação aos trinta e um dias de dezembro de 1994. Antes disso, todavia, aos 26 de março de 1991, foi criado aquele que é o maior projeto de integração já feito em termos de América do Sul: o Mercado Comum do Sul (Mercosul) – nascido do Tratado de Assunção. Sua origem, além da contextualizada acima, remonta ainda à Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), fundada em 1980, em decorrência do Tratado de Montevidéu. A influência dessa disputa. Iniciou com o governo de Jânio Quadros, cujo chanceler foi Afonso Arinos de Melo Franco, e terminou no governo seguinte, do Presidente João Goulart, que teve vários chanceleres, inclusive Afonso Arinos, todavia, o de maior expressão e grande defensor da PEI foi San Tiago Dantas. Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 27 www.journal.idesf.org.br da ALADI é tamanha no Mercosul que o Tratado de Assunção aponta como requisito para se alcançar a condição de membro pleno ser também membro da ALADI. Dentre tantas heranças, a ALADI legou ao Mercosul sua finalidade precípua: o comércio. A força motriz desse agrupamento estaria, desde seu embrião, ligada à ampliação, facilitação e viabilização do comércio, intra e extrarregionalmente. O Tratado de Assunção reitera isso, e a própria história do Mercosul revela isso, inclusive até os presentes dias. Aos poucos, no entanto, ainda na década de 1990, outros foros de debate começam a surgir. Em nenhum momento se pretende afirmar que outras áreas suplantam a comercial. Isso não poderia ser mais inverídico; contudo, há uma expansão do debate do bloco, e, consequentemente, de suas decisões. O Mercosul não deixa de ser econômico, mas passa a assumir outras responsabilidades, em especial no que tange à segurança. Há que se prevenir que não se está a falar de Defesa Nacional, pois, de fato, esse não é um tema que tem angariado relevante preocupação por parte do bloco, até mesmo porque, para isso, outro bloco condensaria essa responsabilidade: criado em 1986, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul6 (ZOPACAS) garantiria os mecanismos de atuação conjunta, para garantir a defesa das soberanias das nações ao sul do Atlântico. No início da década de 1990, logo após a assinatura do Tratado de Assunção, esse debate acerca da segurança, adotado por seus Estados membros, é bastante incipiente e genérico; porém, aos poucos, torna-se mais sólido, constante e detalhista, ao ponto de, mais próximo ao final da década, inaugurar decisões obrigatórias aos membros acerca de medidas a serem tomadas com relação ao crime organizado, ao terrorismo, aos crimes comuns, como posse de armas de fogo e munições, aos processos de extradição, à integração dos sistemas de inteligência e de investigação, às capacitações dos gestores e operadores responsáveis pela segurança nas fronteiras, às ações a serem coordenadas pelos países fronteiriços, em especial em áreas mais afetadas pelo crime etc. A Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul foi fundada em 27 de outubro de 1986, por iniciativa brasileira junto à Organização das Nações Unidas (ONU). Hoje é composta por 24 países-membros, entre sul-americanos e africanos. 6 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 28 www.journal.idesf.org.br Já em 1998, culminando o auge da expansão do Mercosul para uma realidade de discussões acerca de questões, rigorosamente, mais amplas do que o comércio, é assinado o Protocolo de Ushuaia, que introduz a famigerada Cláusula Democrática, que vai, inclusive, suspender o Paraguai, em 20127, e a Venezuela, em 2017 (suspensa duplamente, pois já estava suspensa por não cumprimento dos requisitos de adesão dentro do calendário previsto). Este trabalho, portanto, estuda, com mais detalhes, esse processo que se deu durante a década de 1990, em que o Mercosul é criado, com um foco unicamente econômico, e como ele, aos poucos, evolui dentro do campo das discussões afeitas à segurança pública, ao ponto de impor medidas dessa área aos países membros. Para isso, utilizar-se-á de uma pesquisa descritiva, por meio de uma abordagem qualitativa, aplicando-se o método indutivo, com procedimental bibliográfico e documental. O MERCOSUL O Mercado Comum do Sul “é a mais abrangente iniciativa de integração regional da América Latina, surgida no contexto da redemocratização e reaproximação dos países da região ao final da década 80” (MERCOSUL, 2021). Fundado pelos 4 signatários do Tratado de Assunção (1991), sua carta inaugural formulou modelo de integração com claros objetivos de conformação de um mercado comum, com livre circulação interna de bens e serviços, além de uma Tarifa Externa Comum8 (TEC) com países externos e de uma política comercial comum. Hoje, todos os países da América do Sul são associados ao grupamento, com a exceção da Venezuela, suspensa por duas vezes (2016 e 2017) e da Bolívia, que ainda aguarda finalização de seu processo de adesão. O Mercosul é pela doutrina considerado, dentro da classificação padrão dos acordos internacionais, um tipo de acordo de integração profunda chamado União Aduaneira, porém imperfeita, pois “o Mercosul logrou aprovar uma TEC, mas ela se O Paraguai foi suspenso do Mercosul após o impeachment do Presidente Fernando Lugo. À época, o senado paraguaio obstaculizava o ingresso da Venezuela no Mercosul. Com a suspensão, a Venezuela tornou-se membro aos 31 dias de julho de 2012. 8 TEC: Tarifa Externa Comum é uma taxa comercial padronizada para um grupo de países. 7 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 29 www.journal.idesf.org.br aplica apenas parcialmente, sem que os países-membros tenham jamais conseguido colocar de pé uma autoridade aduaneira comum” (ALMEIDA, 2013, p. 47): No futuro, o Mercosul pode pretender estabelecer padrões comuns e ampla liberalização e facilidades de acesso aos demais países da América do Sul (pertencentes ou não a outras ZLCs9 ou UAs10), formando, portanto, um espaço econômico integrado [previsivelmente ao abrigo da União de Nações Sul-Americanas (Unasul11), mas necessariamente registrado ao abrigo de outros esquemas previamente existentes, como o da Aladi e da própria OMC12]. Esses “espaços econômicos comuns” não possuem regras que os disciplinem, nem disposições multilaterais a respeito, sendo antes arranjos ad hoc, essencialmente dependentes da vontade das partes (ALMEIDA, 2013, p. 48). O TRATADO DE ASSUNÇÃO E SEU CERNE ECONÔMICO O Tratado de Assunção foi promulgado, em solo brasileiro, pelo Decreto nº 350, de 21 de novembro de 1991, assinado pelo então Presidente da República Fernando Collor e seu chanceler, Francisco Rezek. Possui seis capítulos e vinte e quatro artigos, além de cinco anexos. No Capítulo I, que define os “Propósitos, Princípios e Instrumentos”, o artigo primeiro, assim, estabelece: Os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum, estabelecido a 31 de dezembro de 1994, e que se denominará "Mercado Comum do Sul" (Mercosul). Este Mercado Comum implica: A livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários e restrições ZLC: Zona de Livre-Comércio é uma modalidade de Acordo Regional de Comércio (ARC) que “favorece a especialização e as economias de escala ao liberalizar o comércio entre as partes do acordo pelo desmantelamento de barreiras tarifárias e não tarifárias. Cada parte conserva sua própria política comercial, e por isso pode entrar em tantas ZLCs quanto forem operacionalmente possíveis e compatíveis com o sistema multilateral de comércio, o que já não é possível para as uniões aduaneiras. Existem provavelmente, tantas ZLCs quanto áreas preferenciais de comércio, com um predomínio destas últimas entre países em desenvolvimento e das ZLCs entre países mais avançados” (ALMEIDA, 2013, p. 168). 10 UA: União Aduaneira compreende uma Zona de Livre Comércio completa, com tarifa externa comum e política comercial comum. Não envolve, obrigatoriamente, instituições comunitárias, mas pode coexistir com uma realidade intergovernamental (ALMEIDA, 2013, p. 167). 11 A Unasul foi criada em 2008, porém hoje está paralisada, tendo a maioria dos seus membros, inclusive o Brasil, formalizado suas saídas. Foi, na prática, substituída pelo Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (PROSUL). 12 A Organização Mundial do Comércio (OMC) surgiu em 1º de janeiro de 1995, pelo Acordo de Marraquexe, substituindo o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), com a finalidade de promover a liberalização do comércio mundial, eliminando ou reduzindo as barreiras comerciais e alfandegárias entre as nações. 9 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 30 www.journal.idesf.org.br não tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente; O estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados ou agrupamentos de Estados e a coordenação de posições em foros econômico-comerciais regionais e internacionais; A coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados Partes de comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial e de capitais, de serviços, alfandegárias, de transporte e comunicações e outras que se acordem, a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados Partes, e O compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração (BRASIL, 1991). É próprio afirmar que o nome do bloco já remete à sua ideia fundacional primeira, ao utilizar-se da expressão “mercado”. Ora, fosse a intenção dos seus criadores percorrer por outros campos, haveria de chamar-se de modo mais genérico, a exemplo de outros grupamentos, como a União Europeia13 (UE) ou a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa14 (OSCE). Essa não é, contudo, uma visão dissociada da realidade da maioria dos casos. Bem pelo contrário, pois a tendente multilateralização decorre, primordialmente, da busca de expansão das capacidades econômicas, vontade que, mais facilmente, se encontra expressa nos grandes tratados mundiais recentes. Nesse caso, portanto, ainda mais fácil torna encontrar-se exemplos: North American Free Trade Agreement15 (NAFTA), Cooperação Econômica Ásia-Pacífico16 (APEC), Associação das Nações do Sudeste Asiático17 (ASEAN). O artigo quarto reforça a orientação, ao dispor que “nas relações com terceiros países, os Estados Partes assegurarão condições equitativas de comércio”. O segundo capítulo vem tratar da estrutura do grupo (que sofreria mudanças, principalmente, com o Protocolo de Ouro Preto, de 1994); o terceiro, da vigência; o A União Europeia (UE) foi fundada em 1º de novembro de 1993 pelo Tratado de Maastricht e é composta por 27 Estados-membros. 14 A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) foi criada em julho de 1973, é composta por 57 países e visa à proteção da Democracia, Direitos Humanos e Liberdade de Imprensa na Europa. 15 O NAFTA foi criado em 1994, é composto por Canadá, Estados Unidos da América e México, e visa a reduzir as barreiras econômicas e alfandegárias entre esses países signatários. 16 A APEC foi criada em 1989, é composta por 21 países e objetiva a promover livre comércio e cooperação econômicas entre seus membros. 17 A ASEAN foi criada em 1967, é composta por 10 países e visa à integração nos campos econômico, político, de segurança, militar, educacional e sociocultural. 13 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 31 www.journal.idesf.org.br quarto, de aspectos relacionados à adesão de membros plenos e associados (o Mercosul apresenta uma linha de complementaridade à ALADI, inclusive proporcionando em seu artigo 20 a participação dos membros desta na condição de plenos, o que é, inclusive, mantido até os presentes dias, não se permitindo que países da América do Sul não associados à ALADI se tornem mais do que meramente associados); o quinto, das ferramentas de denúncia e, finalmente, o sexto capítulo traz as disposições gerais. Sobre essa assimilação de conformidade com os gérmenes da ALADI, pontua Vidigal (2014): O Tratado incorporava os instrumentos que vinham sendo firmados junto à Aladi, que concentravam seus dispositivos na liberalização comercial. Como primeiro resultado, em um período de apenas seis anos, o comércio intrabloco conheceu um crescimento de cerca de 300% (VIDIGAL, 2014, p. 115). Há que se pontuar, desde já, que esse ferramental não é estanque. Bem pelo contrário, pois, na órbita das relações internacionais, há um movimento contínuo, e mesmo tratados, podem ser alterados se assim convier. Essa restrição à plena legislatura a não-membros da ALADI ainda vige, mas não se pode prever que continuará irremediavelmente dessa maneira. Observe-se, acerca de uma possível ampliação de membros, o que diz o diplomata Rubens Ricupero, em seu livro “O Brasil e o Dilema da Globalização” (RICUPERO, 2001): A consolidação do Mercosul e sua eventual ampliação, até abarcar todo o conjunto da América do Sul (o México, a América Central, o Caribe encontram-se já estruturalmente integrados dentro da área ampliada do mercado norte-americano), fornecem base ideal para a inserção gradual do Brasil e de seus parceiros na economia em via de globalização. É natural que assim seja, uma vez que o aprendizado da competição, a árdua e progressiva afirmação das vantagens a adquirir no jogo da concorrência, são desafios mais abordáveis entre vizinhos, favorecidos pela contiguidade territorial, pelas afinidades culturais, por relativa paridade e simetria de condições. A presença de maior porcentagem de manufaturados no comércio intra-Mercosul é indício encorajador de que esse processo de intensificação e aprimoramento qualitativo do intercâmbio está em curso no interior da zona, como preparação para uma abertura prudente, passo a passo, à concorrência ampliada, hemisférica ou global (RICUPERO, 2001, p. 118 - 119). Já os anexos se incumbiram das seguintes tarefas: o primeiro trouxe um programa de liberação comercial, uma espécie de passo a passo, para orientar o processo de abertura econômica; o segundo, o Regime Geral de Origem; o terceiro Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 32 www.journal.idesf.org.br tratou de controvérsias, mas de maneira genérica (no Mercosul só passou a existir, de fato, um Sistema de Solução de Controvérsias18 com o Protocolo de Ouro Preto de 1994); o anexo quarto tratou da possibilidade das cláusulas de salvaguarda, as quais, inclusive, garantiram os protecionismos, até hoje debatidos, do açúcar e dos automóveis; o último anexo, o quinto, criou subgrupos de trabalho, os quais são de importante registro para este trabalho, na ordem estabelecida (o que permite inferir certa hierarquia): assuntos comerciais; assuntos aduaneiros; normas técnicas; política fiscal e monetária relacionadas com o comércio; transporte terrestre; política industrial e tecnológica; política agrícola; política energética e, por fim, coordenação de políticas macroeconômicas. Perceba-se que, hoje, temas tão discutidos no âmbito do Mercosul, como democracia, meio ambiente, cultura e segurança sequer eram minimamente pincelados, e não se trata somente do rol de anexos, mas sim de uma realidade de todo o corpo do Tratado: Já o Tratado de Assunção de 1991, que criou o Mercosul, imbuiu-se da filosofia política do Estado normal que impregnou os governos de Fernando Collor de Mello e Carlos Saúl Menem. A integração industrial e o desenvolvimento cederam em favor da desgravação linear do intercâmbio e do regionalismo aberto. Desde então, interna e externamente, nenhuma estratégia foi concebida para além do comércio (CERVO, 1992, p. 517). Há que se destacar, também, que, de início, o Mercosul não possuía personalidade jurídica internacional19, conforme ensina o professor, ex-Juiz da Corte Internacional de Justiça20 (CIJ), ex-Ministro das Relações Exteriores e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) José Francisco Rezek (2018): Sistema de Solução de Controvérsias é um mecanismo com frequência utilizado por organizações internacionais, geralmente por adoção de procedimentos específicos constantes às suas cartas fundacionais ou inseridas por meio de algum protocolo ulterior (como é o caso do Mercosul), com a finalidade de garantir maior segurança e previsibilidade às tratativas entre os membros, ao introduzir um modelo claro e transparente para a resolução dos conflitos que possam surgir. 19 Personalidade jurídica internacional é definida pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), como a “capacidade de ser titular de direitos e obrigações internacionais, dependendo esses direitos e obrigações dos objetivos e funções atribuídos à organização, sejam eles enunciados ou implicados por seu ato constitutivo ou desenvolvidos na prática” (ICJ, 2021). 20 A Corte Internacional de Justiça foi criada pelo Artigo 92 da Carta das Nações Unidas, e trata-se de seu principal órgão judiciário, sediado em Haia, Países Baixos. Possui a finalidade maior de resolver conflitos jurídicos a ela submetidos, desde que seja por Estados, além de emitir pareceres para questões jurídicas apresentadas pela Assembleia-Geral ou pelo Conselho de Segurança. 18 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 33 www.journal.idesf.org.br O Mercosul não foi desde logo dotado de personalidade jurídica própria, isto em função de uma política exemplarmente sóbria com que seus quatro fundadores quiseram evitar todo aparato precoce e todo dispêndio de discutível necessidade. O Protocolo de Brasília21, de dezembro de 1991, disciplinou a solução de controvérsias, sem criar qualquer órgão judiciário para o Mercosul: quando as discórdias não se resolvessem por entendimento direto, ou no âmbito deliberativo do próprio grupo, recorrer-seia à arbitragem22 (REZEK, 2018, p. 334). Essa qualidade foi alcançar o grupamento apenas três anos depois, com a adoção do Protocolo de Ouro Preto, como se verá no próximo capítulo: O Protocolo de Ouro Preto já havia dado ao Mercosul personalidade jurídica e determinado em definitivo sua estrutura institucional: um conselho, um grupo executivo, algumas comissões especiais, uma secretaria. Nos órgãos colegiados a presença de todos os Estados-membros, e um sistema deliberativo fundado na unanimidade por via de consenso23 (REZEK, 2018, p. 335). UM MERCOSUL MAIS ABRANGENTE Não tardou para que o Mercosul ampliasse sua atuação. Isso partiu, em boa dose, do interesse brasileiro, como se vê neste excerto do livro “A Diplomacia na Construção do Brasil”, do diplomata Rubens Ricupero: Para Fernando Henrique, a prioridade número 1 seria, conforme declarou em numerosos discursos, consolidar e aprofundar o Mercosul como etapa inicial de sua eventual ampliação na perspectiva da integração sulamericana. Desse ponto de vista, a Alca obviamente aparecia mais como ameaça de desestruturação, do que oportunidade de alargamento de mercado. O desígnio de ampliar o Mercosul até abranger toda a América do Sul contrapunha-se a dois obstáculos: a atração que até a Argentina ou o Uruguai sentiam pelo mercado dos Estados Unidos, para não falar do Chile, Colômbia e Peru, bem como a resistência dos andinos, que, mutatis mutandi, nutriam em relação à superioridade produtiva brasileira atitude similar à que o Brasil sentia em relação aos norte-americanos. Ademais, convém não esquecer as próprias deficiências, nossas e de nossos vizinhos imediatos, em efetivamente “consolidar e aprofundar” o Mercosul, condição prévia de todo o resto (RICUPERO, 2017, p. 632). O Protocolo de Brasília foi assinado em 17 de dezembro de 1991, no âmbito do Mercosul, com a finalidade de criar procedimentos de solução a fim de sanar as controvérsias entre os Estados-Partes a respeito da interpretação, aplicação ou descumprimento das disposições contidas no Tratado de Assunção. 22 Arbitragem é um mecanismo de resolução de conflitos pelo qual as partes decidem por um intermediário, uma pessoa, entidade privada ou, no direito internacional, um Estado, que avaliará o caso e apresentará uma solução para o entrave, sem haver a participação do Poder Judiciário. 23 Consenso é um mecanismo de tomada de decisões que depende do não-veto de qualquer dos membros. Difere do mecanismo de unanimidade, que depende do voto positivo de todos os membros. Ou seja, no consenso basta que ninguém se oponha para que uma medida seja aprovada; para os sistemas em que se exige unanimidade, a mera abstenção ao voto já caracteriza um veto. 21 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 34 www.journal.idesf.org.br Um importante passo para essa ampliação foi o Protocolo de Ouro Preto, assinado em 1994, no âmbito do Mercosul, que permitiu que esse grupo se tornasse “sujeito de direito internacional (...) podendo negociar sobre a arena internacional” (CERVO, p. 518). Sobre isso, aponta Antônio Carlos Lessa: O Protocolo de Ouro Preto concedeu, alegadamente, “personalidade de direito internacional” ao Mercosul, o que o teria habilitado a negociar conjuntamente acordos comerciais com parceiros individuais, na região ou fora dela, ou com outros blocos (LESSA, 2006, p. 276-277). O Diplomata brasileiro Ricupero mostra como essa possibilidade de negociar contribuiu para ampliar a relevância do bloco e suas intenções de expansão: O Brasil passara a ver o Mercosul como projeto de alcance bem superior ao de um mero acordo de comércio. Uma vez consolidado e aprofundado, o esquema estaria destinado a expandir-se a todo o território sul-americano unificado num mercado comum (RICUPERO, 2017, p. 629). Lessa retratou bem como o Mercosul expandiu para outras frentes: Ao longo dessas duas décadas, mas bem mais enfaticamente no curso da última década, o Mercosul parece ter se afastado de seus objetivos comercialistas e econômicos iniciais, aliás consagrados no tratado constitutivo, para converter-se num agrupamento político dotado de interesses muito diversificados (LESSA, 2006, p. 276- 277). MERCOSUL E SEGURANÇA PÚBLICA: DE 1991 A 1999 a. de 1991 a 1994 A Decisão 9, de 1991, do Conselho do Mercado Comum, afirma que “a Constituição do Mercado Comum do Sul irá requerer o tratamento de temas não incluídos nos Subgrupos de Trabalho, estabelecidos no Anexo V do Tratado de Assunção” (MERCOSUR, 2020), motivo pelo qual se decide pela criação de Reuniões Especializadas. Essa Decisão, lançada pouco depois do próprio Tratado que inaugurou o Mercosul, lança, ainda de forma bastante incipiente, as bases para que as discussões, a nível de bloco, se estendam para além do campo meramente econômico. Em 1992, o Mercosul, por meio do CMC, pela Decisão 6, de 27 de junho de 1992, recomenda a todos os Estados Partes que ratifiquem a Convenção Interamericana sobre Restituição Internacional de Menores, sob o argumento de que Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 35 www.journal.idesf.org.br “é necessário dar a proteção adequada ao menor (...), de modo a garantir seu desenvolvimento apropriado” (MERCOSUR, 2020). À época, tratou-se de uma novidade em âmbito mercosulino, reforçando a tentativa de o bloco perpassar sua atuação ideada. Nesse mesmo dia, o CMC, também, emitiu a Decisão 9, que, considerando a necessidade de instrumentar a integração fronteiriça no menor prazo possível e a dificuldade de coordenar, interna e externamente, a participação de diversos organismos de diferentes jurisdições, instruía “os organismos competentes nas fronteiras dos Estados Partes para que adotem as medidas necessárias para a coordenação interna, a fim de alcançar o objetivo de instrumentar os controles integrados nos prazos previstos” (MERCOSUR, 2020). Perceba-se que se deixou de se utilizar de expressões restritivas no campo comercial, em clara chancela a distintas áreas a serem descortinadas. Nessa toada, em 1º de julho de 1993, em Assunção, o Conselho do Mercado Comum decidiu pela aprovação do “Acordo para a Aplicação dos Controles Integrados em Fronteira entre os Países do Mercosul” (MERCOSUR, 2020), conhecido como “Acordo de Recife”, anexado àquela decisão. Nesse acordo, alguns de seus dispositivos merecem especial atenção. O artigo 3º, a, aponta que “a jurisdição e a competência dos órgãos e dos funcionários de País Limítrofe considerar-se-ão estendidas até a Área de Controle Integrado” (MERCOSUR, 2020); o artigo 5º dispõe: Os órgãos nacionais competentes celebrarão acordos operacionais e adotarão sistemas que complementem e facilitem o funcionamento dos controles aduaneiros, migratórios, sanitários e de transporte, editando, para isto, os pertinentes atos, para aplicação (MERCOSUR, 2020). Uma vez mais, ainda no início da década de 1990, o Mercosul avança para tratar da integração para além da exploração comercial, haja vista que, em se tratando de “controle avançado de fronteira”, não haveria de se imaginar que o tema segurança, embora não estivesse expressamente citado, deixaria de ser um dos corolários de tais disposições. Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 36 www.journal.idesf.org.br b. de 1996 a 1998 Em 25 de junho de 1996, em São Luís, decide o CMC, por meio da Decisão 2, acerca do Protocolo de Assistência Jurídica Mútua, em Assuntos Penais. Seu considerando arremata a finalidade: “é necessário intensificar a cooperação jurídica em matéria penal” (MERCOSUR, 2020). Do Protocolo, que é anexado a Decisão, merecem especial atenção alguns dispositivos. Antes, porém, consta do exordial que “reconhecendo que muitas atividades delituosas representam uma grave ameaça e se manifestam através de modalidades criminais transnacionais nas quais frequentemente as provas se situam em diferentes Estados” (MERCOSUR, 2020). Embora o caminho houvesse sido preparado até então, como se viu nas decisões anteriores, embora um tanto esparsas temporalmente, agora sim a questão de Segurança múltipla dos Estados, enfim, é atacada diretamente: o Mercosul passa a sua atenção para as modalidades criminais transnacionais. O Artigo 1º, assinala que “os Estados Partes prestarão assistência mútua, de conformidade com as disposições do presente Protocolo, para a investigação de delitos, assim como para a cooperação nos procedimentos judiciais relacionados com assuntos penais” (MERCOSUR, 2020). Notar-se-á que, na prática, tal integração é um processo bastante lento, mesmo hoje ainda incipiente; contudo, recentes normatizações do Mercosul que chamaram bastante atenção da mídia, caso, por exemplo, do acordo para continuidade de perseguições policiais em Estados vizinhos, na verdade não advieram de geração espontânea, mas são frutos de um trabalho de longo prazo, como se vê. O Artigo 2º aponta o alcance da assistência a ser prestada ou solicitada pelo Estado: notificação de autos processuais; recepção e produção de provas, perícias; localização ou identificação de pessoas; notificação de testemunhas ou peritos; traslado de pessoas sujeitas a um processo penal para comparecimento como testemunhas; medidas acautelatórias sobre bens; apreensão e transferência de bens confiscados etc. Um rol que finda com um item que deixa margem para outros interesses, desde que respeitadas as leis do Estado requerido. O Artigo 5º é, de certa forma, revelador de como tal protocolo é taxativo e imperativo. Trata ele das possibilidades de negativa do Estado requerido. Apresenta Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 37 www.journal.idesf.org.br alguns casos em que este poderá recusar a cumprir a solicitação, deixando cristalino, por meio do item 2, que a denega de assistência haverá, obrigatoriamente, de ser justificada, devendo o Estado apresentar, por meio da Autoridade Central, a razão dentro do rol das possibilidades que traz o item anterior. Ainda em 1996, aos dezessete dias de dezembro, em Fortaleza, o CMC decide criar a “Reunião de Ministros do Interior e da Segurança (RMIS) ou funcionários de hierarquia equivalente, a fim de avançar na elaboração de mecanismos comuns, para aprofundar a cooperação nas áreas de sua competência” (MERCOSUR, 2020). Apresenta como mote de sua criação a necessidade de “tratar determinados assuntos a nível ministerial ou funcionários de hierarquia equivalente” (MERCOSUR, 2020), ou seja, reflete uma preocupação com o assunto segurança, de maneira que se deseja que seja discutido, a nível representativo de maior alcance e poder de decisão. Em 1997, mais especificamente em 18 de junho, o CMC decide criar, através da Decisão 1, o “Convênio de Cooperação e Assistência Recíproca entre as administrações de alfândegas do Mercosul relativo à Prevenção e Luta contra as ilegalidades Aduaneiras” (MERCOSUR, 2020). Essa normatização não deixa de visar ao comércio, pois se entende por legislação aduaneira aquela disposição adotada, a fim de regulamentar a importação, exportação, trânsito e inclusão de qualquer regime aduaneiro, bem como a proibição, restrição e controle; portanto, é tema que intercruza as áreas afetas ao comércio e à segurança. Nesse caso, não seria ousado afirmar que cuidar da segurança é também cuidar do comércio, preservando a concorrência legal e saudável para os mercados nacionais envolvidos. Em 1998, a Decisão 5, de 23 de julho de 1998, em Buenos Aires, explora, no âmbito do Mercosul, novos conceitos. Em seu preâmbulo consta que “a importância da cooperação e assistência recíproca entre as forças de segurança dos Estados Partes do Mercosul para as tarefas de prevenção, controle e repressão das atividades delituosas” (MERCOSUR, 2020) e, logo abaixo, continua: “que a luta contra todas as formas de delinquência organizada impõe uma ação conjunta, coordenada e acordada no Mercosul” (MERCOSUR, 2020). O bloco debuta dois Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 38 www.journal.idesf.org.br conceitos relevantes para o propósito deste trabalho: forças de segurança e delinquência organizada. As forças de segurança não se restringem mais à questão penal aduaneira, mas “atividades delituosas” são tratadas de forma panorâmica, envolvendo qualquer tipo de crime; além disso, antes era mais frequente que se falasse do Estado ou de uma “Autoridade Central”, agora, no entanto, se faz referência, inequívoca, às organizações policiais de cada parte, o que remete à ideia de uma maior clareza e profundidade na discussão e nas decisões que envolvem o tema. O segundo conceito “delinquência organizada” versa sobre uma problemática crescente na década de 1990: as organizações criminosas. Cada vez mais, chegavam aos noticiários as horrendas ações de grupos, como Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC), os quais, inclusive, se irradiavam para os países vizinhos, em especial para Paraguai e Argentina. Ao mesmo tempo, embora a Colômbia fosse aderir ao Mercosul na condição de Estado Associado apenas em 2004, esse importante Estado vizinho sofria com as ações terroristas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Por isso, no contexto da segurança integrada entre os países do Mercosul, não haveria como deixar de lado esse assunto, até porque, como se destacou acima, complexas organizações do crime encontravam espaço em territórios vizinhos, gerando um receio de que, duas décadas depois, encontraria guarida histórica, pois o cenário da segurança pública atual permite constatar a inequívoca expansão dessas empresas do crime, entre as nações da América do Sul, voltadas, principalmente, a garantir os meios de transporte e a venda de drogas e armas. Essa decisão traz como anexo o “Plano de Cooperação e Assistência Recíproca para a Segurança Regional no Mercosul” (MERCOSUR, 2020). Tal plano se divide em três capítulos: respostas a ameaças e condicionantes da segurança, otimização dos meios dos órgãos vinculados à segurança na região e áreas prioritárias de cooperação. O primeiro capítulo destaca como ameaças à segurança o narcotráfico, o terrorismo, as associações ilícitas e a delinquência comum. Traz um conceito novo, ao impor seus objetivos, o da “inteligência”. Antes houvera normas tratando de Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 39 www.journal.idesf.org.br investigação, mas, agora, aparece o conceito do serviço de inteligência como meta a ser alcançada, algo mais amplo do que o anterior, também mais relacionado ao uso de novas tecnologias, algo que, certamente, rondava os bastidores das discussões. Nesse capítulo, ainda, se fala sobre comercialização ilegal de substâncias químicas, que podem ser utilizadas para a fabricação de drogas ilícitas, bem como sobre a necessidade de operações que visem a coibir a lavagem de dinheiro oriunda do narcotráfico. Na sua subseção que trata das ações a serem desenvolvidas, tornase dificultoso elencar as mais relevantes, pois todas são, inerentemente, conectadas à finalidade desse escrito, porém, urge que se analise o item 1.1.3., que assinala que se deve “coordenar, nas zonas de fronteira, as tarefas e os métodos de investigação e de inteligência em matéria de tráfico ilícito de drogas e de precursores químicos, propiciando o intercâmbio em nível horizontal entre os responsáveis pelos órgãos competentes” (MERCOSUR, 2020). Seu item seguinte dispõe acerca de “executar, simultânea e coordenadamente, por intermédio dos órgãos responsáveis e nas zonas de fronteira especialmente afetadas, operações de surpresa para detectar o tráfico ilícito de drogas e de precursores químicos” (MERCOSUR, 2020). O primeiro item citado, o 1.1.3., além de reforçar a noção de “inteligência”, revela um preceito que vem nortear todas as ações concretas, o da horizontalidade, ou seja, o da inexistência de hierarquia, pois as ações devem mesmo ser coordenadas, e não comandadas por quem quer que seja. Isso vai bastante ao encontro dos princípios mais basilares do próprio Mercosul, podendo-se citar, a exemplo, o rito de consensualidade para tomada de decisões, vigente até os dias presentes. O segundo item citado, o 1.1.4., diz respeito às ações simultâneas e coordenadas em regiões fronteiriças mais afetadas. Tal disposição, nesse momento, se restringe ao âmbito do combate ao narcotráfico, mas se repetirá ao se tratar de terrorismo, de associações ilícitas e até mesmo da delinquência comum. Dessa maneira, à frente, no item 3.1, em que se discorre sobre as ações para combater esta última das ameaças dispostas no Plano, diz-se que se deve: Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 40 www.journal.idesf.org.br Impulsionar operações conjuntas de segurança e/ou controle por parte dos órgãos com competência na matéria, nas zonas de fronteira de cada país signatário, com a finalidade de detectar posse irregular de armas de fogo, imigrantes clandestinos, migração de indivíduos com pedido de captura e todo ilícito de interesse, conforme a legislação vigente em casa país (MERCOSUR, 2020). Esse excerto aponta para um novo aprofundamento de nível de discussão, uma vez que traz específicos típicos penais comuns às soberanias democráticas integrantes do bloco, relacionando, desde a posse ilegal à migração (em especial ao migrante foragido da justiça do país de saída). Em seguida, os capítulos II e III tratam, respectivamente, da necessidade de capacitação dos quadros dos órgãos competentes e da implantação de políticas de segurança adequadas, com foco em áreas prioritárias de cooperação, campo dentro do qual se destaca o disposto no item 1.4: Executar periódica, coordenada e simultaneamente, nas zonas de fronteira, patrulhas terrestres, fluviais e/ou lacustres (inclusive nas margens), para prevenir ou reprimir todo tipo de ato ilícito. Dita tarefa deverá ser devidamente coordenada e acordada entre os países limítrofes, a fim de obter um procedimento operacional adequado (MERCOSUR, 2020). Aos vinte e três dias de julho de 1998, o CMC aprova o “Entendimento relativo à Cooperação e Assistência Recíproca para a Segurança Regional no Mercosul, na República da Bolívia e na República do Chile”. Bolívia e Chile ingressaram no Mercosul como Estados Associados, respectivamente, em 17 de dezembro e 25 de junho de 1996. Desde então, foram aderindo às condições de participação do bloco. O Chile continua, até a presente data, como membro associado, porém a Bolívia está em processo de adesão, para tornar-se Estado Parte: Os Estados Partes do Mercosul, a República da Bolívia e a República do Chile asseguram a cooperação e a assistência recíproca entre todas as forças de segurança, policiais e organismos competentes dos países da região, a fim de tornar cada dia mais eficientes as tarefas de prevenção, controle e repressão das atividades delituosas, em especial, daquelas ligadas ao narcotráfico, ao terrorismo, ao tráfico de armas, munições e explosivos, ao roubo ou furto de veículos, à lavagem de ativos, ao contrabando e ao tráfico de pessoas (MERCOSUR, 2020). Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 41 www.journal.idesf.org.br Ressalte-se, nesse excerto, a menção ao “roubo ou furto24 de veículos”. Tal colocação deriva da realidade bastante ímpar de regiões fronteiriças, no que diz respeito à prática desses crimes. Ainda hoje, com o amparo de protocolos e de decisões concretas, por meio de ações coordenadas e do avanço na criação de sistemas integrados, é prática comum que um carro furtado ou roubado seja, imediatamente, levado ao país vizinho, ou seja, esse ainda é um problema patente e corrente que desafia as autoridades de segurança que atuam nas fronteiras mercosulinas. Futuramente, outros países iriam aderir ao Mercosul, todos compelidos a aderir às normas do bloco, inclusive às pertinentes ao quadro da segurança pública. Em 2003, será a vez do Peru, e, em 2004, Colômbia, Equador e Venezuela firmaram parceria, por meio do Acordo de Complementação Econômica Mercosul-ColômbiaEquador-Venezuela (Decisão 59, 2004, CMC). Em 2006, a Venezuela aderiu como membro pleno. Em 2015, Guiana e Suriname, também, se associaram, aliás, estes dois países não podem se tornar membros plenos, pois não são membros da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI, criada em 12 de agosto de 1980, por meio do Tratado de Montevidéu), consoante Artigo 20 do Tratado de Assunção. Pela Decisão 7, de 23 de julho de 1998, em Buenos Aires, o CMC aprovou o “Mecanismo Conjunto de Registro de Compradores e Vendedores de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros materiais correlatos para o Mercosul” (MERCOSUR, 2020). Tal Decisão derivou de uma Declaração dos Presidentes dos Estados Partes e Associados, dada em 18 de abril de 1998, em Santiago do Chile, pela qual se requisitou à Reunião de Ministros do Interior a elaboração de um projeto que viabilizasse mecanismos conjuntos de registro de compradores e vendedores de arma de fogo, munições, explosivos e análogos. Esse mecanismo visa a uniformizar os sistemas de informação acerca desses materiais bélicos, para que, então, haja a possibilidade de intercâmbio de informações. Observe-se que o item 6 buscou firmar e obrigar os signatários acerca A diferença entre roubo e furto consiste, na legislação brasileira, no uso da violência: enquanto o cometimento do primeiro pressupõe violência, o segundo se dá sem ela, às vezes por descuido da vítima, outras pela destreza e senso de oportunidade do criminoso. 24 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 42 www.journal.idesf.org.br do mais elementar, de modo que o Mecanismo tenha eficiência: “os Estados signatários adotarão, caso não exista, e conforme a legislação, um registro de possuidores de armas de fogo, munições, explosivos, suas partes, componentes e materiais correlatos” (MERCOSUR, 2020). Ainda em 1998, no Rio de Janeiro, aos dez de dezembro de 1998, o Conselho do Mercado Comum decidiu pela aprovação do “Acordo sobre Extradição entre os Estados Partes do Mercosul” (MERCOSUR, 2020). Em seu primeiro artigo, a disposição é, claramente, taxativa ao se utilizar do termo “obrigação”: “os Estados Partes obrigam-se a entregar (...) as pessoas que se encontrem em seus respectivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Parte” (MERCOSUR, 2020). Tal obrigação se dá em três situações: para serem processadas pela prática presumida de um delito, para responderem a um processo já em curso, ou para a execução de uma pena privativa de liberdade. Em seu Artigo 2, caracteriza-se o delito que pode dar causa à extradição25. De forma ampla, é requisito que a conduta do possível extraditado seja tipo penal nos dois Estados, requerente e requerido, e punível com privação de liberdade, com duração máxima não inferior a dois anos. O Artigo 5 dispõe sobre relevante nuance inescapável das discussões acerca de extradição: o crime político. Ele deixa claro que não haverá extradição por delitos em que o Estado requerido considere político; no entanto, “a mera alegação de um fim ou motivo político não implicará que o delito deva necessariamente ser qualificado como tal” (MERCOSUR, 2020). Esse artigo, ainda, define crimes que, sob qualquer circunstância, não serão considerados políticos, nem em sua forma tentada. O Artigo 10 aponta que não se endossará extradição, quando, da data do fato, o autor tiver menos do que 18 anos. Seu Artigo 13 dispõe que o Estado requerente, sob nenhuma hipótese, aplicará ao extraditado sentença de morte ou de perpétua privação de liberdade. Extradição é o processo pelo qual um Estado solicita de outro a entrega de uma pessoa condenada ou suspeita da prática de um crime. 25 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 43 www.journal.idesf.org.br c. Protocolo de Ushuaia (1998) Aos 24 dias de abril de 2002, o Presidente da República Federativa do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, assinou o Decreto n.º 4.210, promulgando o Protocolo de Ushuaia sobre “Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile”. Tratouse de um acordo assinado, em 24 de julho de 1998, na cidade argentina, que emprestou seu nome ao protocolo, estabelecido entre os Estados Partes, com vistas a reiterar uma declaração da presidência mercosulina de 1992 que dispunha que a vigência das instituições democráticas era questão essencial para o Mercosul. Por possuir um corpo bastante sintético, é possível reproduzir abaixo todos seus artigos, ou seja, o Protocolo de Ushuaia, na íntegra: Artigo 1 A plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes do presente Protocolo. Artigo 2 O presente Protocolo se aplicará às relações que decorram dos respectivos Acordos de Integração vigentes entre os Estados Partes do presente Protocolo, no caso de ruptura da ordem democrática em algum deles. Artigo 3 Toda ruptura da ordem democrática em um dos Estados Partes do presente Protocolo implicará a aplicação dos procedimentos previstos nos artigos seguintes. Artigo 4 No caso de ruptura da ordem democrática em um Estado Parte do presente Protocolo, os demais Estados Partes promoverão as consultas pertinentes entre si e com o Estado afetado. Artigo 5 Quando as consultas mencionadas no artigo anterior resultarem infrutíferas, os demais Estados Partes do presente Protocolo, no âmbito específico dos Acordos de Integração vigentes entre eles, considerarão a natureza e o alcance das medidas a serem aplicadas, levando em conta a gravidade da situação existente. Tais medidas compreenderão desde a suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos dos respectivos processos de integração até a suspensão dos direitos e obrigações resultantes destes processos. Artigo 6 As medidas previstas no artigo 5 precedentes serão adotadas por consenso pelos Estados Partes do presente Protocolo, conforme o caso e em conformidade com os Acordos de Integração vigentes entre eles, e comunicadas ao Estado afetado, que não participará do processo decisório pertinente. Tais medidas entrarão em vigor na data em que se faça a comunicação respectiva. Artigo 7 As medidas a que se refere o artigo 5 aplicadas ao Estado Parte afetado cessarão a partir da data da comunicação a tal Estado da concordância dos Estados que adotaram tais medidas de que se verificou o pleno restabelecimento da ordem democrática, o que deverá ocorrer tão logo o restabelecimento seja efetivo. Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 44 www.journal.idesf.org.br Artigo 8 O presente Protocolo é parte integrante do Tratado de Assunção e dos respectivos Acordos de Integração celebrados entre o Mercosul e a República da Bolívia e entre o Mercosul e a República do Chile. Artigo 9 O presente Protocolo se aplicará aos Acordos de Integração que venham a ser no futuro celebrados entre o Mercosul e a Bolívia, o Mercosul e o Chile e entre os seis Estados Partes deste Protocolo, do que se deverá fazer menção expressa em tais instrumentos. Artigo 10 O presente Protocolo entrará em vigor para os Estados Partes do Mercosul trinta dias depois da data do depósito do quarto instrumento de ratificação junto ao Governo da República do Paraguai. O presente Protocolo entrará em vigor para os Estados Partes do Mercosul e a República da Bolívia ou a República do Chile, conforme o caso, trinta dias depois que a Secretaria-Geral da ALADI tenha informado às cinco Partes Signatárias correspondentes que nelas se cumpriram os procedimentos internos para sua incorporação aos respectivos ordenamentos jurídicos nacionais. Feito na Cidade de Ushuaia, República Argentina, no dia vinte e quatro do mês de julho do ano de mil novecentos e noventa e oito, em três originais nos idiomas Espanhol e Português, sendo ambos os textos igualmente autênticos (BRASIL, 2002). Rubens Ricupero (2017) explica a importância desse Protocolo: Em domínio vizinho ao da pacificação, o da consolidação da democracia, Fernando Henrique interveio de modo influente, ao lado de outros chefes de estado, para defender o processo democrático ameaçado de forma recorrente no Paraguai em diversos incidentes nos fins dos anos 1990. Em boa parte, devido a tais ameaças, os membros do Mercosul decidiram adotar o Protocolo de Ushuaia, denominado frequentemente de “cláusula democrática”, no qual se estabeleceu que a “plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os estados partes” (1998). Foi também no período de Fernando Henrique que o Brasil finalmente aceitou a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (RICUPERO, 2017, p. 634). Essa chamada, e conhecida, Cláusula Democrática será, como se verá, principalmente, na década seguinte, a força motriz para que, finalmente, o Mercosul abandone o viés, unicamente, econômico e passe a ser visto, interna e externamente, como uma associação de países com pretensões de união, cada vez mais amplas e assertivas, voltadas a todos os segmentos de importância social, política, educacional, preservacionista etc., com especial enfoque, como já dito anteriormente, na área da segurança dos Estados Partes, em especial nas suas fronteiras. O Protocolo de Ushuaia, portanto, é da maior relevância para que os fóruns que vão se seguir a 1998 se permitam, cada vez mais, explorar novos horizontes dentro do Mercosul, o que antes ainda possuía uma feição pouco Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 45 www.journal.idesf.org.br conhecida ou mesmo envolta em incerteza e desconfiança. Não é improvável afirmar, portanto, que todo esse trabalho de 1991 a 1998, de abertura dos alcances do bloco, obteve como corolário esse importante protocolo. d. 1999 Em 1999, na reunião de 7 de dezembro, o Conselho do Mercado Comum apresentou relevantes decisões pertinentes à estratégia de conformação de um sistema de segurança pública para seus países-membros. A Decisão nº 16/99 aprovou o “Acordo de Assunção sobre Restituição de Veículos Automotores Terrestres e/ou Embarcações que transpõem ilegalmente as fronteiras entre os Estados Partes do Mercosul” (MERCOSUR, 2020). Seu Artigo primeiro aponta: Será interditado, desapossado ou sequestrado e posto à disposição da autoridade judicial ou aduaneira local, segundo corresponder, o veículo automotor terrestre e/ou embarcação, doravante os veículos, originários ou procedentes de um dos Estados Partes que tenha ingressado ou que procure ingressar no território de qualquer um dos Estados Partes em algumas das seguintes condições: a) Quando não tiver a documentação que demonstre a propriedade e origem do mesmo, ou não demonstre, quem o dirigir, a devida autorização para fazê-lo e/ou transladá-lo fora da jurisdição originária. b) Quando a documentação exibida apresentar características que leve a presumir falsidade; c) Quando o veículo tenha sido motivo de denúncia anterior por roubo, furto ou infração aduaneira, ou tenha sido reclamado por resolução judicial (MERCOSUR, 2020). Segue com uma complementação relevante o quarto artigo: Os organismos competentes dos Estados Partes procederão ao intercâmbio de informação, através do Sistema de Intercâmbio de Informação de Segurança do Mercosul, Bolívia e Chile, dos registros de furtos ou roubos de veículos factíveis de serem transladados de um Estado Parte para outro, com o objetivo de procurar seu sequestro, desapossamento ou interdição e neutralizar a modalidade delitiva em toda a extensão do território do Mercosul (MERCOSUR, 2020). O restante do Acordo é, meramente, procedimental; contudo, o conteúdo final do artigo anterior é merecedor de novo enfoque: “com o objetivo de (...) neutralizar a modalidade delitiva em toda a extensão do território do Mercosul” (MERCOSUR, 2020). Dois pontos chamam a atenção. O primeiro é do ideário quase utópico, mas Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 46 www.journal.idesf.org.br emblemático, de buscar eliminar o crime aos seus; ou seja, não deixa de ser também um elemento propagandístico, de valorização do bloco e, mais importante, daqueles que fazem parte dele – se determinado país estiver inserido nesse grupo, terá mais segurança (ao menos essa é a ideia). O segundo tem a ver com a expressão “território do Mercosul”. É comum falar-se dos territórios nacionais, mas é inovador dizer que um bloco possa ter um território para chamar de seu. O mais comum é dizer sobre os membros, Estados Partes, nações, ou mesmo áreas e regiões abrangidas pelo bloco; todavia, a redação aponta que esse bloco possui um território, ou seja, trata-se de uma clara intenção do legislador, de mais uma vez, incorporar ideias e valores ao bloco, buscando criar um sentimento de pertencimento e de unidade para os Estados Partes. Na Decisão nº 21/99, o CMC aprovou o Acordo para “Contratação do Vínculo de Comunicações para o Sistema de Intercâmbio de Informações de Segurança do Mercosul” (MERCOSUR, 2020). Nessa decisão, foram, tão somente, acordados prazos para contratações. A Decisão nº 22/99 aprovou o “Plano Geral de Cooperação e Coordenação Recíproca para a Segurança Regional” (MERCOSUR, 2020), fruto da VI Reunião de Ministros do Interior do Mercosul. Seu capítulo primeiro traz um estudo de situação que em muito revela o novo papel do bloco: O fenômeno da globalização e o processo de integração regional conferiram características novas e desafiantes à ação criminal, que adquiriu uma crescente dimensão transnacional. Nesse quadro se inscreve, entre outras, a problemática suscitada pelos grupos delitivos organizados relacionados com o narcotráfico, o terrorismo, a lavagem de ativos, o contrabando, o tráfico de menores, o roubo/furto de veículos, o tráfico ilícito de material nuclear e/ou radioativo, as migrações clandestinas e a depredação do meio ambiente. O combate a essas novas e desafiantes características provocou, num primeiro momento, a necessária renovação da atuação das forças de segurança e/ou policiais e dos demais órgãos de controle de cada EstadoParte ou Associado do Mercosul como meio idôneo para obter maior eficiência e reduzir a um mínimo o impacto negativo daqueles delitos sobre as pessoas. Num segundo momento, impõe-se a necessidade de levar avante uma ação de conjunto, coordenada e concordada em toda a região, com o objetivo comum de tornar cada dia mais eficiente a luta contra todas as formas de Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 47 www.journal.idesf.org.br crime organizado, nacional ou transnacional. Por isso, conscientes de que a situação atual vulnera a segurança comunitária sub-regional, especialmente com respeito àqueles fenômenos que, por sua natureza e características, não podem ser eficazmente abordados de forma individual, os EstadosParte com base no respeito à soberania de cada um deles, a suas legislações internas, à plena vigência do Estado de Direito e ao exercício dos direitos e liberdades individuais (MERCOSUR, 2020). Em seguida, na seção de objetivos, aponta-se que o foco maior é “alcançar o desenvolvimento sustentável da região” (MERCOSUR, 2020), sustentando-se na assistência recíproca entre os órgãos de controle e forças policiais, pela troca de informações; na “cooperação e na coordenação para o desenvolvimento de atividades simultâneas operacionais e de controle” (MERCOSUR, 2020); no estabelecimento de meios para as atividades policiais, além da utilização racional do capital humano disponível. Essas tratativas, para tratar do “Sistema de Intercâmbio de Informações e Segurança do Mercosul, Bolívia e Chile, o SISME”, ainda recebeu outras regulamentações, nessa mesma reunião, aos sete dias de dezembro de 1999, inclusive, a que constou da Decisão nº 25/99, do CMC, em que figurou aprovado o Acordo nº 11/99, que estabeleceu o “Regulamento de Organização e Funcionamento” do SISME (MERCOSUR, 2020). CONCLUSÃO Por intermédio desse projeto, foi possível concluir que o Mercado Comum do Sul fez jus a seu nome, antes e logo que foi criado, pois, de fato, suas motivações primeiras circundavam, via de regra, um tronco econômico bastante perceptível; no entanto, não precisou de muito tempo para que seu foco central começasse a dividir a atenção com outros temas, os quais, aos poucos, foram se avolumando e tomando corpo, passando de coadjuvantes a protagonistas, lado a lado com a economia. Entre esses temas, um grande destaque é a segurança pública. Os Estados Partes questionavam-se sobre como solucionar os problemas gerados pela fragmentação entre as fronteiras, quando ocorriam crimes que as perpassavam. A grande solução encontrada não poderia ser outra, senão, exatamente, uniformizar procedimentos e operações, por meio de sistemas interligados, com amplo acesso às informações criminais de cada país. Um contexto de parcial padronização das Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 1, p. 25-50, abril 2023 48 www.journal.idesf.org.br seguranças públicas dos Estados Partes já permitiu ampliar o alcance das medidas de segurança, o que, por sua vez, garantiu maior eficácia aos trabalhos das polícias de fronteira, e, finalmente, diminuiu a impunidade transfronteiriça e os índices de criminalidade. Em vista do que já foi alcançado até o presente momento, a projeção é que a tendente integração contribua para se encontrar cada vez melhores soluções para os desafios enfrentados. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Paulo Roberto de; LESSA, Antônio Carlos; OLIVEIRA, Henrique Altemani de. Integração Regional: uma introdução. São Paulo: Saraiva, 2013. BRASIL. Decreto nº 350, de 21 de novembro de 1991. Promulga o Tratado para a Constituição de um Mercado Comum entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai (TRATADO MERCOSUL). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 2644326448, 22 nov. 1991. BRASIL. Decreto nº 4.210, de 24 de abril de 2002. Promulga o Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 24, 24 abr. 2002. CERVO, A. L.; BUENO, C. (Orgs.) História da Política Exterior do Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1992. ICJ. International Court of Justice: Summaries of Advisory Opinions and Orders – Summary 1949/2. Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/caserelated/4/1837.pdf. Acesso em: 5 fev. 2021. MERCOSUR. Tratados, Protocolos y Acuerdos Depositados en Paraguay. Disponível em: https://www.mre.gov.py/tratados/public_web/ConsultaMercosur.aspx. 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