O fazer da “entrega voluntária”: moralidades,
acusações e biopolítica sobre corpos que gestam1
The making of the safe surrender of babies: moralities,
accusations and biopolitics on gestating bodies
Alessandra de Andrade Rinaldi
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil
Giulia Escuri
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil
André Luiz Coutinho Vicente
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Juliana Nunes da Rocha
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil
RESUMO
Nesta pesquisa exploramos uma série de processos de “entrega voluntária” - Lei nº
13.509/17- que tramitaram na comarca do Rio de Janeiro entre 2020 e 2022. Analisamos
ações de destituição e extinção do poder familiar visando apreender como são construídas
moralidades sobre reprodução, maternidades e feminilidades nas práticas de justiça
voltadas à Infância e à Juventude. Apesar de termos encontrado documentos que dizem
respeito às mulheres e seus parceiros, demos relevo às narrativas elaboradas sobre o
universo feminino e suas marcações sociais. Nossa intenção foi compreender a gestão
estatal desse tema que, apesar de amparado por uma neutralidade jurídica, se concretiza
com base em distintas diferenciações das pessoas, de seus corpos e territórios.
Palavras-chave: Entrega voluntária, Práticas de justiça, Moralidades, Biopolítica.
1 Pesquisa realizada com Bolsa de Produtividade do CNPq PQ-2021 Processo nº 306790/2021-1.
Recebido em 09 de setembro de 2022.
Avaliador A: 12 de dezembro de 2022.
Avaliador B: 19 de janeiro de 2023.
Aceito em 31 de maio de 2023.
Revista Antropolítica, v. 55, n. 2, Niterói, e56464, 2. quadri., mai./ago., 2023
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ABSTRACT
In this research we explore a series of “safe surrender” processes, established by Law
No. 13.509/17, which were processed in the judicial district of Rio de Janeiro between
2020 and 2022. We analyze actions of dismissal and extinction of family power to
apprehend how moralities on reproduction, maternities and femininities are built
on the practices of justice in the scope of childhood and youth. Although we found
documents that concern women and their partners, we highlighted the narratives about
the feminine universe and its social markers. Our intention was to understand the state
management of this subject, which, despite being supported by a legal neutrality, is
materialized based on distinct differentiations of people, their bodies and territories.
Keywords: Safely Surrendered Baby, Practices of justice, Moralities, Biopolitics.
INTRODUÇÃO
Instituída legalmente em 2017 pela Lei nº 13.509/17 (BRASIL, 2017), a “entrega
voluntária” nos possibilita refletir sobre os efeitos da recusa da maternidade na vida de algumas
mulheres2 que optam por encaminhar à adoção os bebês por elas gestados. A fim de refletir
sobre o assunto, buscamos compreender como são conduzidas as ações de destituição de poder
familiar (DPF) e/ou extinção de poder familiar que envolvem esse dispositivo legal e tramitaram
na comarca do Rio de Janeiro entre 2020 e 20223.
De acordo com Rinaldi (2020), a propositura de uma ação de destituição do poder familiar
é de competência do Ministério Público, mas pode ser movida por um parente do infante ou
do jovem quando se entender, segundo o artigo 1.637 do Código Civil de 2002, que um pai
ou uma mãe “abusou de sua autoridade ou faltou com os deveres a eles inerentes” (BRASIL,
2002). Nesse caso, competirá ao juiz da Infância e da Juventude decidir, em caráter “liminar ou
incidentalmente”, o destino da criança ou do jovem envolvido, que ficará sob a tutela do Estado
2 Utilizamos o termo “mulher” neste texto, pois todos os documentos analisados se referem dessa maneira às
pessoas cisgênero identificadas documentalmente. Dessa forma, optamos por manter o uso da categoria “mulher”,
cientes de possíveis deslizes nos quais tal categoria pode incorrer. De todo modo, é importante enfatizar a não
reificação dessa categoria e o esforço de não produzir a invisibilização de pessoas que podem engravidar e dar à
luz, fazendo – ou não – parte do circuito que analisamos.
3 O corte temporal será mais detalhado no item sobre metodologia.
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ou sob a guarda de “pessoa idônea” até a decisão final do magistrado4.
Já a extinção do poder familiar visa a evitar a propositura de uma ação de destituição
de poder familiar, atendendo aos princípios da economia processual e do melhor interesse da
criança. Tal dispositivo foi formulado objetivando a celeridade dos procedimentos legais de
desligamento dos recém-nascidos de suas famílias de nascimento, almejando que os bebês
“entregues” fossem rapidamente adotados. Por essa razão, diante da previsão do artigo 19A, parágrafo 4º da Lei nº 13.509/17, poderá ser decretada a extinção do poder familiar e a
consequente determinação de colocação da criança em família substituta. Isso ocorrerá após
a realização da audiência prevista no artigo 166, parágrafo 1ºdo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA)5, na qual serão escutados os “genitores”, na presença de um juiz ou uma
juíza da Infância e da Juventude, de um representante do Ministério Público e de um defensor
público e/ou advogado.
Para os fins deste artigo, pretendemos analisar os documentos supracitados para apreender
as gramáticas morais elaboradas nas práticas de justiça (SCHUCH, 2009; VIANNA, 2002) da
infância e da juventude sobre essas mulheres que recusam a maternidade. Por meio desses
autos processuais, almejamos entender os valores e saberes produzidos pela equipe técnica
(psicólogos, assistentes sociais) e magistrados das varas da Infância, da Juventude e do Idoso
em seus pareceres técnicos e sentenças, respectivamente. Não nos detivemos, entretanto, nesses
atores. Optamos por analisar também as vozes das promotorias da Infância e da Juventude, das
defensorias públicas, dos conselhos tutelares e das instituições de acolhimento, construtoras
dos autos analisados. Essa opção metodológica resultou da compreensão de que o material
analisado não é construído (MUZZOPAPPA; VILLALTA, 2011)6 apenas na esfera judiciária,
resultando, também, de um “trabalho em rede”.
De acordo com Faraj, Siqueira e Arpini (2016, p. 731) o “trabalho em rede” prevê
negociações, acordos, interações e adesões. Especificamente na área da Infância e da Juventude,
trata-se de ações propostas com a intenção de discutir um acolhimento institucional, sua
reversibilidade ou seus desdobramentos em uma destituição de poder familiar e/ou adoção.
4 No Brasil, no entanto, é comum que uma decisão sobre a DPF, ação requerida no geral pelo Ministério Público,
seja feita por meio da suspensão “liminar” do poder familiar até que a decisão sobre a destituição seja proferida.
Nessas situações, a criança pode ser separada do grupo de nascimento, por meio da suspensão, até que a decisão
final seja dada. Isso não impede que ela seja conduzida a outra família, que deverá mover, em concomitância, um
processo de adoção para filiá-la.
5 Redação dada pela Lei nº 13.509/17.
6 Há que ser levado em conta que analisar práticas estatais é considerá-las resultados das ações dos atores que as
constroem (MUZZOPAPPA; VILLALTA, 2011).
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Nesse contexto, são envolvidos os profissionais dos conselhos tutelares, dos serviços de
assistência social, de atenção à saúde e educação, bem como as pessoas ligadas às casas de
acolhimento e ao sistema de Justiça (a Vara da Infância e Juventude, o Ministério Público e
a Defensoria Pública). Essa forma de atuação representa a consolidação de troca de saberes e
experiências entre profissionais de entidades distintas, visando à proteção integral da criança e
do adolescente.
Desse modo, olhamos para as ações de destituição e extinção do poder familiar
de modo apreender como são construídas moralidades sobre reprodução, maternidades e
feminilidades nas práticas de justiça no âmbito da Infância e da Juventude. Apesar de termos
encontrado documentos que dizem respeito às mulheres e seus parceiros, demos relevo às
narrativas elaboradas sobre o universo feminino. Abordamos em menor proporção os temas
da conjugalidade, da família e do parentesco, também emergentes nesses documentos. No
entanto, não deixamos de nos atentar, ao refletir sobre o material pesquisado, a respeito das
interconexões de marcadores sociais como raça, classe e gênero e das gramáticas morais sobre
família, gênero e cuidado.
À luz de ideias organizadas segundo um modelo de comportamento social (DURKHEIM;
MAUSS, 1981, p. 419) e de uma moralidade sobre o desempenho da função materna em nossa
sociedade, consideramos que algumas dessas mulheres podem ser vistas como portadoras de
comportamentos intoleráveis. Parafraseando Camila Fernandes (2017), podem ser tidas como
“figuras da causação”7. Consideramos, no entanto, que as pessoas que optam pela “entrega”
podem também ter sua escolha avaliada de forma distinta. Com base em Rinaldi (2015),
ponderamos que os atores do direito e os integrantes da “rede” envolvidos nesses processos
não agem pautados apenas em valores e direitos universais/dominantes. Nesses documentos,
contornos morais criados no âmbito dos autos concorrem com noções sobre corpos, pessoas e
direitos.
7 As “figuras da causação” (FERNANDES, 2017) são mulheres enquadradas como “perturbadoras” no cotidiano
das favelas analisadas por Fernandes, acusadas de onerar o Estado por “fazerem filhos demais”.
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A ENTRADA NO CAMPO, AS ESCOLHAS METODOLÓGICAS E A
DESCRIÇÃO DOS PROCESSOS
Com o intuito de chegar aos objetivos apresentados, escolhemos o Rio de Janeiro como
lócus privilegiado. O caminho metodológico foi a análise documental de ações de destituição
e de extinção de poder familiar que tramitaram na comarca do Rio de Janeiro, a partir da
promulgação da Lei nº 13.509/17 (BRASIL, 2017). Para tanto, buscamos esses documentos
nas varas da Infância e da Juventude da referida comarca8. Como esses processos tramitam em
segredo de justiça, mantemos em sigilo as varas onde se desenrolam, assim como nomes e datas
que caracterizariam os envolvidos.
Uma vez que o marco temporal era a promulgação do dispositivo legal, tínhamos a
possibilidade de trabalhar com documentos produzidos a partir de 2018. Ao entrarmos no
campo, contudo, encontramos tabelas de processos elaboradas pelas equipes técnicas das varas
pesquisadas referentes ao corte temporal do período pandêmico, após 2020, quando os processos
começaram a ser digitalizados e produzidos em suportes virtuais9. Sendo assim, apesar de o
demarcador ser a promulgação da Lei nº 13.509/17, demos atenção especial ao período entre
2020 e 2022.
Levando em conta que os processos coletados tramitaram em diferentes contextos da
Covid-19, trabalhamos com trechos dos autos produzidos em um cenário de teletrabalho e com
excertos confeccionados em regime híbrido e presencial10. Refletimos sobre esses documentos
à luz de Muzzopappa e Villalta (2011), compreendendo-os como peças resultantes do fluxo das
práticas da Justiça da Infância e da Juventude, produzidas por diversos atores. De acordo com
Rinaldi (2020), nas ações de destituição de poder familiar, assim como nas extinções de poder
familiar, múltiplas vozes concorrem na produção de um discurso de verdade (FOUCAULT,
2001) sobre os motivos que ensejaram a “entrega”. São mulheres, casais, membros do conselho
tutelar, promotores de Justiça, defensores públicos, juízes da Infância e da Juventude, psicólogos
8 Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, Plataforma Brasil (CAAE: 58380022.5.0000.5582
- Parecer n. 5.485.159/23 de junho de 2022). Obtivemos a anuência de duas varas da Comarca do Rio de Janeiro.
9 Resoluções CNJ nº 314 e nº 318 de 2020 (BRASIL, 2020; 2020a).
10 Resoluções CNJ nº 314 e nº 318 de 2020. As resoluções nº 314 e 318 (BRASIL, 2020a; 2020b) são prorrogações
da resolução nº 313, que “estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, regime de Plantão Extraordinário, para
uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio pelo novo Coronavírus
– Covid-19, e garantir o acesso à justiça neste período emergencial” (BRASIL, 2020b).
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e assistentes sociais que atuam nas varas da Infância e da Juventude e/ou em instituições de
acolhimento e/ou em maternidades, produzindo “apreciações” sobre os “motivos” da entrega.
A presente análise abrange um universo de 17 autos processuais que tratam de “entregas
voluntárias”. Dentre esses, 15 versam sobre decisões manifestadas por mulheres nos hospitais
maternidades imediatamente após o nascimento do bebê. Um auto trata de uma adolescente que
registrou sua decisão na recepção do hospital, antes do parto. E outro relata uma “entrega direta”
feita por uma gestante a um casal que conheceu através de redes sociais. Desses 17 processos,
três foram transformados processualmente em “abandono”, originando ações de destituição
do poder familiar. Isso porque, em dois casos, após informar a renúncia do recém-nascido, as
puérperas deixaram o hospital. De acordo com a Justiça da Infância e da Juventude, como elas
“se evadiram” do hospital, apesar de terem manifestado sua vontade à equipe técnica, não o
fizeram em “juízo” (na presença da magistratura, da Promotoria da Infância e da Defensoria
Pública); é por isso que tal ato é considerado “abandono”. Em outro processo, a mulher disse
que gostaria de ficar com a criança e a visitou algumas vezes na casa de acolhimento, mas
depois de algum tempo “deixou de aparecer”.
Dos 17 processos, 15 se referem a mulheres sem parceiras ou parceiros, algumas delas
vítimas de violência sexual e “abandono conjugal”. Hegemonicamente são pobres11 que não
fizeram acompanhamento pré-natal, moradoras de regiões periféricas, e algumas são usuárias
de drogas. Grande parte delas possui filhos de relações anteriores, não possui rede de apoio
e vive em uma situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica, agravada pelo contexto
pandêmico. Dois autos envolvem casais com o mesmo perfil socioeconômico das mulheres,
quando tomadas individualmente. Um deles optou pela entrega conjuntamente. O outro se
voltava à decisão pós-parto de uma mulher “abandonada” pelo parceiro no período gestacional.
Após o nascimento e o acolhimento da criança, o casal reatou. Uma vez que, na maternidade,
essa mulher havia informado ao setor de psicologia e ao serviço social que não permaneceria
com o recém-nascido, o bebê fora encaminhado a uma instituição de acolhimento. Já fora
iniciada, portanto, uma ação de suspensão de poder familiar. Em razão desses trâmites, o casal
precisou requerer a reintegração de poder familiar por meio da Defensoria Pública.
Quanto à identidade étnico-racial, não há informações sobre os que decidem encaminhar
crianças à adoção. Há dados sobre os bebês, a maioria declarados “pardos”. Supomos que a
escolha de registrar informações étnico-raciais dos infantes se deve ao interesse que esses dados
têm para a gestão da Infância e da Juventude, que se ocupa da alimentação de informações
11 Temos como horizonte a noção de Carneiro (2000), a qual registra que a pobreza no Brasil tem cor.
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pertinentes aos bebês disponíveis à adoção no Sistema Nacional de Adoção12.
UM BREVE PANORAMA CONTEXTUAL SOBRE A ENTREGA
VOLUNTÁRIA
A entrega voluntária refere-se a situações em que a grávida, a puérpera e/ou o seu
companheiro decidem, durante a gravidez e/ou após o parto, não ficar com a criança e
entregá-
la diretamente ao Poder Judiciário. De acordo com o artigo 19-A da Lei nº 13.509/17 (BRASIL,
2017), é um dispositivo destinado a apoiar as mulheres e/ou as famílias de origem da criança na
reflexão sobre o ato e na tomada de decisão relativa a essa separação.
Trata-se de uma lei pensada para oferecer suporte para que a gestante/e ou parturiente e/
ou a família de origem reflita sobre a decisão de não permanecer com sua criança, amadurecendo
a ideia. Tudo isso apostando que esse instituto evitaria o “aborto em situações não previstas pela
lei”, assim com o “infanticídio”, o “abandono de bebês” e as “adoções irregulares”13.
O termo “mãe abandonante” vem sendo pesquisado pela antropóloga Claudia Fonseca
(2009; 2012). Segundo a autora, trata-se de uma categoria de acusação presente no contexto
nacional em face da decisão da mulher de não se tornar mãe. Isso acarreta o agrupamento tanto
das que deixam os recém-nascidos nas ruas, em lixões, quanto das que entregam os bebês
legalmente nos órgãos institucionais especializados dentro deste termo.
Do modo analisado por Fonseca, na linguagem do dia a dia, o termo “abandono” se
aplica a qualquer situação de separação entre mãe e filho. Diante do perigo da perpetuação
do “abandono”, leis são criadas para “salvar” essa criança do risco. Sendo assim, podemos
compreender, à luz de Fonseca (2009), a raiz da criação da lei da “entrega voluntária” abordada
neste artigo. É importante considerar que, além da temática abordada, a atual política da
“entrega voluntária”, garantida pela Lei nº 13.509/17 no Brasil – assim como o accouchement
12 Segundo o artigo 1º da Resolução nº 289 de 14 de agosto de 2019 do CNJ, trata-se de um instrumento cuja
“finalidade é consolidar dados fornecidos pelos Tribunais de Justiça referentes ao acolhimento institucional e
familiar, à adoção, incluindo as intuitu personae, e a outras modalidades de colocação em família substituta, bem
como sobre pretendentes nacionais e estrangeiros habilitados à adoção” (CNJ, 2019).
13 Algumas dessas reflexões compõem o relatório CNJ 2022, do qual Rinaldi participou como consultora de
pesquisa qualitativa, juntamente com Olívia Pessoa (CNJ; PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O
DESENVOLVIMENTO, 2022).
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sous-x14 na França –, busca, através do conservadorismo, uma forma de “evitar” o “abandono”
e o infanticídio.
Conforme o texto da cartilha Entregar de forma legal é proteger, produzida pela
Coordenadoria Judiciária de Articulação das Varas da Infância, da Juventude e do Idoso com
o Poder Judiciário do Rio de Janeiro (CEVIJ, 2017), a justificativa para a “entrega voluntária”
é evitar o “abandono” de recém-nascidos e impedir as mulheres de colocar esses bebês em
risco de vida. A fundamentação francesa também conta com a participação de conservadores
pró-vida, de acordo com Lefaucheur (2004). Segundo a autora, a política do parto anônimo na
França busca evitar o “abandono” de recém-nascidos e o aborto, atualmente legalizado até a 14ª
semana de gestação no país.
Retornando aos sentidos do texto da Lei nº 13.509/17, é possível constatar que esta
foi formulada com vistas a agilizar os procedimentos de supressão do poder familiar, além de
assegurar a rápida adoção de bebês, mediante a extinção do poder familiar e a consequente
colocação dos recém-nascidos em uma família substituta. Tal dispositivo visa a evitar a
propositura de uma ação de destituição familiar, atendendo aos princípios da “economia
processual e do melhor interesse da criança” (BRASIL, 2017).
De acordo com esse instituto legal, a gestante que manifestar interesse em entregar o
bebê para adoção antes ou logo após o nascimento será encaminhada à Justiça da Infância
e da Juventude. Nesse contexto, será ouvida pela equipe interprofissional, que apresentará
um relatório à autoridade judiciária, também considerando os eventuais efeitos do estado
gestacional e puerperal (incluído pela Lei nº 13.509/17). Produzido o relatório, competirá à
autoridade judicial encaminhá-la, com sua anuência, à rede pública de saúde e assistência social
para atendimento especializado. No caso de decisão imediata, durante o pós-parto, compete
aos hospitais maternidades informar às varas da Infância e Juventude e ao Ministério Público a
“ocorrência”. A Lei nº 13.509/17 estabeleceu também no Estatuto da Criança e do Adolescente
(BRASIL, 1990) que o parto, assim como o ato da “entrega”, deve ser sigiloso, caso assim
deseje a gestante. Vale mencionar, porém, que uma adolescente não poderá tomar essa decisão
sem a autorização dos pais ou de um responsável, como um tutor, um parente ou um curador
14 A Lei nº 93-22, instituída na França em 1993, garante que mulheres realizem o parto de modo anônimo e
entreguem os bebês para adoção sem preencher qualquer registro sobre sua própria identidade. O accouchement
sous-x foi institucionalizado por essa lei, mas já era praticado há muitos anos. A partir de 1939, a política prónatalista da Terceira República aprovou a lei “Código de Família”, que aumentou a punição para o aborto, criou
um tipo de adoção que incluiu totalmente o adotado na família adotiva e ainda estipulou que todo departamento
deveria ter uma maison maternelle, um lar materno, em tradução livre, onde grávidas pudessem ser admitidas
secretamente, contando com a confidencialidade dos profissionais. A partir de 1941, todo hospital público passou
a admitir gestantes que demandassem sigilo. Para maior aprofundamento sobre o cenário de entrega anônima na
França, ver Lefaucheur (2004).
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nomeado pelo juiz.
Ainda no mesmo dispositivo legal fica determinada a possibilidade de busca pela família
extensa, desde que a mulher permita, posto que ela possui o direito ao sigilo. Caso esta seja a
decisão, a procura por parentes que possam filiar o bebê nascido se dará no prazo de 90 dias,
que pode ser prorrogado. A gestante ou parturiente tem o direito de não revelar a paternidade da
criança, mas, caso escolha o contrário, o “genitor” deverá ser ouvido pela equipe multidisciplinar
e manifestará se concorda ou não com a entrega. Caso se oponha, a pessoa declarada como pai
pode requerer a guarda da criança.
Em situações de inexistência de paternidade declarada e/ou ausência de membros da
família extensa que queiram ser guardiões legais do bebê, o poder familiar será extinto pelo
Judiciário. Tal rito ocorrerá após a realização da audiência prevista no parágrafo 1º do artigo
166 lei em questão. Com base nesse artigo, a “genitora” será escutada na presença de um juiz
ou uma juíza da Infância e da Juventude, um representante do Ministério Público, um defensor
público e/ou um advogado. Após esse ato, poderá ser decretada a extinção do poder familiar e a
consequente colocação em família substituta. Depois da audiência, a gestante tem um prazo de
dez dias para arrependimento da decisão. Em tese, o processo não pode questionar a decisão da
mulher nem insistir para que ela desista da sua escolha.
No entanto, nem sempre a condução da “entrega voluntária” ocorre sem constrangimentos.
No fim de 2022, o tema foi amplamente discutido midiaticamente, principalmente nas redes
sociais. Naquela ocasião, o jornalista Leo Dias comentou no programa de TV The Noite,
conduzido por Danilo Gentili e transmitido pelo canal SBT, que tivera acesso “a uma trama
extraordinária”. O entrevistador afirmou que o rumor se referia a uma estrela global que todo
mundo achava que era “santinha”. Dias depois, a apresentadora de televisão Antonia Fontenelle
sugeriu em uma transmissão televisiva que uma criança havia sido “jogada fora”.
A atriz a quem ambos se referiam era Klara Castanho, que desde a infância atuou em
novelas da TV Globo, após estrear aos 6 anos na trama de horário nobre Viver a vida, de 2009.
Após a fala de Fontenelle, Klara Castanho fez um pronunciamento por uma carta aberta no
Instagram. Ela conta que foi estuprada e, meses depois, em uma consulta para verificar uma
possível gastrite, uma hérnia ou um mioma, descobriu a gravidez. O diagnóstico ocorreu no fim
da gestação. Castanho decidiu entregar o bebê para adoção. O sigilo foi quebrado desde a sala
de parto, quando foi abordada por uma enfermeira que ameaçou contar o que ocorrera a um
colunista (que seria Leo Dias)15. O caso veio a público e a atriz passou por diversas acusações
15 A íntegra da carta está disponível no Instagram pessoal da atriz. Disponível em: https://www.instagram.com/p/
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morais.
Trazer o caso de Klara Castanho, que vive em uma realidade de classe e de raça tão
diferente da que vivenciam as mulheres que encontramos nos processos, abre caminhos para
pensarmos as conexões entre “entrega voluntária” e práticas de justiça. Recorremos ao relato,
apesar da clareza dos contrastes entre a vida da atriz e das mulheres empobrecidas que compõem
as malhas do Poder Judiciário. A despeito disso, apostamos nas aproximações morais de gênero.
DA ENTREGA AO ABANDONO: ENTRE DIREITOS E AS
MORALIDADES
À luz dos trabalhos de Vianna (2013) e Vianna e Lowenkron (2017), devemos entender
os direitos como categorias associadas à comunicação entre esferas sociais. Desse modo,
emoções, sentimentos e afetos dialogam com o Estado e o produzem. O “fazer e desfazer”
desses “direitos” (VIANNA, 2013) está relacionado tanto às normativas legais e tradições
administrativas como ao posicionamento de sujeitos morais e políticos.
É importante salientar a atuação cotidiana dos agentes estatais nesse jogo que mescla
direitos, moralidades, legalidades e burocracias. Compreendemos o Estado, com base em Das
e Poole (2008), não como um ente antropomorfo, mas uma entidade formada por pessoas que
fazem valer valores, normas e leis. Parafraseando Fassin et al. (2013), não se trata de uma
entidade neutra nem abstrata; ao contrário, trata-se de agentes, práticas, discursos e relações
que conformam uma realidade concreta, historicamente situada, na qual circulam emoções, leis
e afetos.
No que tange ao tema deste artigo, é possível afirmar que os profissionais que recebem
mulheres e/ou casais que optam por entregar os bebês – seja nos hospitais, seja nos conselhos
tutelares, seja nas varas da Infância e Juventude, seja nas instituições de acolhimento – não
exercem suas funções pautados exclusivamente por uma neutralidade jurídica. Agem como
pessoas que realizam densos cálculos burocráticos e morais, materializando percepções sobre
gênero, raça, classe e instrumentos de Estado. A fim de concretizar essa discussão, refletiremos
sobre alguns documentos de “entrega voluntária” relativos a mulheres pobres sem parceiros,
em situação de rua ou usuárias de drogas que no ambiente hospitalar declaram “não desejar o
CfPvGDkuii1/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em: 28 mar. 2023.
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bebê”.
Nos autos que envolvem mulheres que “evadiram” das maternidades após darem à luz,
os motivos que as levam a abdicar dos bebês são formulados pelos profissionais dos hospitais,
das casas de acolhimento e das varas da Infância e da Juventude, sem a presença de suas “vozes”
nas peças processuais. Tanto nestes quanto noutros casos, as razões do ato são construídas,
em grande parte, em relatórios psicossociais repetidos e ressignificados em diferentes fluxos
processuais. Como ponderamos, apesar de serem peças processuais baseadas em uma linguagem
de suposta neutralidade dos direitos e no apreço às garantias processuais, estão calcadas em
moralidades voltadas a corpos, pessoas e suas marcações de gênero, território, raça e classe.
Trata-se de autos com poucas informações sobre essas mulheres. No que tange à forma
como são narradas, apesar de terem afirmado que não queriam se tornar mães, as equipes
técnicas, tanto dos hospitais quanto das instituições de acolhimento, as grafam como tais. Isso
surge em menor proporção nos pareceres das varas da Infância e da Juventude. Levantamos a
hipótese de que essas escolhas narrativas são frutos de visões que tendem a associar o corpo que
gesta à ideia de mãe e a maternidade à ideia de uma suposta natureza.
Levando em conta as ponderações elencadas, trazemos de exemplo os trechos dos autos
que envolvem Ana16, uma mulher das camadas populares que escolheu não se tornar mãe. Após
dar à luz em um hospital da rede pública, registrou que gostaria de entregar a criança para
adoção. Segundo disse, sua “decisão já estava tomada desde a descoberta da gravidez”. Nos
documentos do hospital, consta que o neném tinha sífilis e uma deficiência auditiva resultante
da doença17, por isso permaneceu internado na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI).
Logo após o parto, Ana afirmou que não amamentaria para não criar vínculos afetivos
com a criança. Ainda que “chorosa” (como mostra o texto produzido pela equipe do hospital),
manifestou de modo categórico que não ficaria com a criança, pois não teria condições
financeiras nem emocionais para cuidar do recém-nascido. Desse modo, após sua alta, não
voltou mais a ver o bebê, mas ficou disponível para a entrevista com a assistente social e os
trâmites que se seguiram. Ainda assim, quase um mês após a permanência do recém-nascido
na casa de acolhimento, o relatório social produzido pela equipe classifica Ana como uma
16 Para garantir o sigilo dos processos, todos os nomes dos envolvidos são fictícios e as datas foram omitidas.
Além disso, partes de uma mesma história podem ser usadas em contextos diferentes do nosso texto, utilizando
nomes distintos para a mesma interlocutora.
17 Conforme Magdalena et al. (2017, p.1), a perda auditiva em recém-nascidos pode ser adquirida através,
por exemplo, de infecções maternas durante a gestação. “Estes tipos de infecções, conhecidas como complexo
TORSCH (toxoplasmasmose, rubéola, sífilis, citomegalovírus e herpes), são importantes causas de alterações
congênitas no recém-nascido, incluindo a deficiência auditiva”.
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“abandonante”18.
Desde o acolhimento até a data atual, a criança encontra-se em situação de abandono
familiar, não recebendo nenhum tipo de visita ou contato telefônico, por parte da
genitora ou algum outro familiar. (grifo nosso)
É possível perceber no trecho acima uma associação de sentidos entre as noções de
“abandono” e “entrega”. Aproximando-nos dos trabalhos de Vianna (2013), Vianna e Farias
(2011) e Vianna e Lowenkron (2017), pontuamos que essa sinonímia construída nos fluxos
de alguns processos resulta de gramáticas morais de gênero que visam a estabelecer a ideia de
que competem ao universo feminino a sujeição ao corpo, a suposta natureza e o imperativo da
maternidade. Sendo assim, uma mulher grávida que opta por algo distinto, além do “destino”
selado por seu corpo, contraria essa lógica. Mesmo que sua ação seja organizada em torno de
cuidados e garantias ao recém-nascido, seu ato será compreendido como um “abandono”.
Por volta dos 30 anos, Clarissa19 teve sua primeira filha em parceria com Manoel, seu
marido naquele momento. Ainda bebê, a menina foi diagnosticada com transtorno do espectro
autista (TEA). Passados alguns anos, o casal se separou. Após a ruptura, a mulher teve um
romance passageiro com outro rapaz e acabou engravidando. Única responsável pelos cuidados
com a primogênita, Clarissa estava grávida, sem renda fixa nem apoio familiar. Aos nove meses
de gestação, deu entrada em um hospital da rede pública. Durante o parto, declarou que não
desejaria contato com o recém-nascido, “pois tinha vontade de entregá-lo à adoção”.
Após o nascimento do bebê, a mulher foi convocada a dar explicações sobre o motivo da
entrega daquela criança. Clarissa declarou que não tinha condições financeiras nem psicológicas,
pois cuidava de sua filha de apenas 3 anos. Ademais, não tinha nenhuma fonte de renda fixa. No
mesmo dia, deixou o bebê no hospital, sem mais explicações. O documento feito pela equipe
técnica daquela instituição não esconde o modo de tratamento destinado às muitas mulheres que
optam pela “entrega voluntária”. De acordo com o relatório do serviço social da maternidade,
contido nos autos processuais pesquisados, “a puérpera evadiu à noite da unidade, deixando o
seu recém-nascido”. Apesar de ter expressado a vontade de não se tornar mãe daquele bebê,
Clarissa se tornou, no fluxo de produção dos documentos da gestão da Infância e da Juventude,
uma “mãe que deixa o seu recém-nascido”, “que evade do hospital, abandonando o seu filho”
(grifo nosso).
18 A categoria “mães abandonantes” de Claudia Fonseca será mais bem trabalhada a seguir.
19 Todas as pessoas envolvidas nos processos de entrega voluntária receberam nomes fictícios, na intenção de,
mesmo em uma construção etnográfica, manter o sigilo dos casos.
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A fim de adensar a reflexão, trazemos trechos da ação de destituição de poder familiar,
ainda em andamento, proposta pelo Ministério Público em face de Maria. Ela é moradora de
rua e usuária de drogas. Ao dar à luz um bebê em um hospital maternidade, logo após o parto
manifestou interesse em “entregar a criança em adoção”. Segundo os autos, Maria “evadiu,
abandonando a criança”. Por ter deixado a unidade de saúde sem declarar a anuência da “entrega
voluntária”, seu ato foi considerado um “abandono”. Em consequência, o Ministério Público
ajuizou ação de destituição de poder familiar. Segundo a peça processual:
A Requerida é genitora da recém-nascida em epígrafe, não registrada pelo pai,
institucionalizada desde a data no local. Conforme indicam os documentos acostados
a esta, a Ré manifestou a vontade de não ficar com a filha e abandonou a [RN]
ainda na maternidade, motivo pelo qual, após receber alta hospitalar, a criança foi
encaminhada para o referido abrigo, onde se encontra até o momento em estado de
total abandono. (grifos nossos)
Também trazemos outro documento exemplar, relativo a uma ação de destituição de
poder familiar ajuizada contra Joice. Após dar à luz em um hospital na região metropolitana
carioca, optou por “entregar” a criança ao Poder Judiciário. De acordo com relatório social e
psicológico produzido pela equipe da maternidade,
Trata-se de recém-nascido XXX, cuja genitora informou o desejo de realizar a entrega
voluntária. Realizamos abordagem à genitora que nos relatou o desejo de entregar
RN para adoção; mas preferiu manter RN junto a ela durante toda a internação.
Amamentou e o chamou de “meu filho”. [...]
Após ter alta do hospital, o bebê foi encaminhado a uma instituição de acolhimento,
sob os cuidados do conselho tutelar. Posteriormente, Joice requereu a guarda da criança,
ressaltando a impossibilidade financeira de cuidar de mais uma criança. No mês consecutivo
ao acolhimento, compareceu à casa de acolhimento, informando que não havia “definido sua
situação financeira”. Agendou uma nova visita, mas não compareceu.
Dias depois da última visita ao bebê, ela deixa de ir ao local e passa a evitar as ligações
dos agentes. Mãe de mais três filhos, sem rede de apoio familiar nem emprego formal,
desempregada e em extrema dificuldade financeira, Joice, pelos dados e relatos que acessamos,
percebeu que não teria condições de exercer a maternidade e manteve sua escolha inicial pela
entrega voluntária. Consta na decisão da equipe:
A requerente vem descumprindo os deveres inerentes ao poder familiar, uma vez que
manifestou o desejo em reaver a guarda do filho(a) e o(a) abandonou na entidade de
acolhimento, deixando de visitar a criança, bem como que não retornando os contatos
das equipes técnicas da entidade de acolhimento e do Juízo. Dessa forma, o que se vê
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é que {xx} encontra-se em evidente situação de violação de direitos, completamente
abandonado(a) na instituição de acolhimento, o que justifica a adoção de medidas
que visem a garantir seus direitos fundamentais. (grifos nossos)
Após quatro meses de acolhimento, em um trabalho conjunto, as equipes técnicas da casa
de acolhimento e da vara da Infância e da Juventude informaram que “a genitora não cumpriu as
metas previstas durante o período que solicitou e se afastou da criança”. Foi sugerido ao juízo
que o caso prosseguisse, e o bebê foi encaminhado à adoção.
A IMPOSSIBILIDADE DE CUIDADO E A PRECARIZAÇÃO DA VIDA
Os registros elencados acima nos possibilitam refletir a partir de ponderações feitas por
Cláudia Fonseca (2012) sobre a noção de “mães abandonantes”. A antropóloga nos convoca
a pensar sobre os limites da noção de “abandono” e sua utilização em diferentes contextos.
Segundo a autora, nem sempre que uma mulher decide “dar o filho em [sic] adoção” sua escolha
reflete um ato de vontade, envolvendo, em vez disso, cálculos e ponderações afetivas e racionais
sobre as condições de vida.
É possível pensar que, no contexto analisado, optar pela “entrega voluntária” pode
ser um exercício de direito também resultante de um cotidiano de vulnerabilidade de gênero,
social ou econômico ao qual essas mulheres estão submetidas. Inspirados em Fonseca (2012),
é importante lembrar que, no cenário nacional, a moralidade sexual repressiva e a instabilidade
financeira, geográfica e conjugal podem ser motivos que levam à entrega legal de uma criança.
De acordo com Márcia Leite (2020, p. 3), as políticas e os agenciamentos governamentais
no Brasil, no contexto atual, vêm aprofundando precariedades históricas nas quais estão
submersas as camadas populares de nossa sociedade. Segundo a autora, somos governados por
uma “biopolítica da precariedade”20, suportada por hierarquias e valores diferenciais da vida,
capazes de multiplicar vulnerabilidades sociais.
Tal estado de coisas foi acentuado no Brasil durante a pandemia de covid-19 e no
governo do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), quando vivemos sob uma gestão que
expôs algumas vidas à morte mais do que outras. Fomos assujeitados a políticas de saúde que
20 A “biopolítica da precariedade atuaria”, conforme Leite (2020), de duas formas: a) “fazendo viver precariamente,
expondo as pessoas ao risco de vida por meio da ausência do Estado”; e b) “fazendo morrer por meio da presença
ativa do Estado”.
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desconsideraram as singularidades sociais e a gravidade da pandemia. Estivemos sob a égide de
políticas de Estado negacionistas, que desdenharam das pesquisas científicas sobre a covid-19,
desencorajando o uso de máscaras, assim como as medidas de distanciamento social.
No contexto da pandemia, a população brasileira viveu experiências e efeitos associados
à covid-19 muito diferenciados por pertencimentos de gênero, raça, território e classe social.
Os danos ocasionados afetaram não apenas a saúde coletiva, mas a possibilidade de trabalho,
de constituição de família e de exercício de parentalidade. Pontuamos que a impossibilidade
de cuidar de um filho, ensejando uma “entrega voluntária”, pode ter sido consequência da
pandemia em solo nacional, que acirrou vulnerabilidades econômicas e sociais.
A fim de discutir os nexos entre a impossibilidade de cuidado e a precarização da vida
e pandemia de covid-19, analisamos trechos de autos que envolvem tanto mulheres sozinhas
quanto casais. Nesses documentos, as peças de destaque são as narrativas sobre as razões
causaram a “entrega”, construídas em voz ativa. Através destas, pudemos encontrar motivos
construídos em torno da impossibilidade financeira de cuidar de uma criança ou de mais um
filho, das dificuldades impostas pela escassez de emprego no país, assim como das consequências
econômicas e dos efeitos da pandemia em suas vidas.
Encontramos algumas ações que tratam da renúncia do exercício parental como resultado
da ausência de creches e de escolas, da falta de suporte ou de redes de apoio às mulheres,
acentuada na pandemia de covid-19. Alguns desses documentos ressaltam desigualdades sociais
e mazelas vividas cotidianamente por pessoas pobres, negras e de regiões periféricas e/ou rurais.
É importante levar em conta que, num único auto processual, uma “entrega voluntária” comporta
distintas razões concorrentes. Sendo assim, questões de ordem econômica podem concorrer
com a simples recusa da maternidade. É possível ilustrar esse ponto por meio do excerto abaixo,
extraído de um auto produzido pela equipe técnica do hospital, mas referenciando uma fala
direta de Ana.
Paciente lúcida e orientada, porém bem chorosa no momento da abordagem. Relata
que deseja entregar RN para a adoção, que reside com outras 5 pessoas, considerando
seus filhos. Que quando Alison nasceu ficou emocionalmente mexida, mas que
refletiu e se decidiu pela entrega legal para adoção, vislumbrando que Alison estará
numa família que poderá lhe ofertar estabilidade emocional e material. Alegou que
não foram apenas os aspectos financeiros que influenciaram na decisão, mas também
aspectos emocionais e psicológicos para cuidar de mais um filho.
Com o intuito de adensar a reflexão sobre os nexos entre precarização da vida e
abdicação da parentalidade, trazemos trechos de outro auto processual. Trata-se do documento
que envolve o casal Elizabeth e Januário. Os dois são pais de uma menina. Ao tomarem ciência
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de uma nova gestação, amadurecem juntos a decisão de encaminhar a criança à Justiça da
Infância e da Juventude.
O casal mora em uma favela. Ela é diarista, mas se encontra desempregada; ele faz
“bicos” (não tem vínculo empregatício). Ambos souberam da gravidez já em um estágio
avançado, de acordo com o relatório psicossocial produzido pelos técnicos da vara da Infância
e Juventude, pois
[Elizabeth] não teria apresentado indícios que caracterizassem a gravidez, mantendo
sangramentos menstruais mensalmente e não desenvolvendo expressivo aumento
abdominal, enjoos ou quaisquer outros sintomas típicos da gestação. Ela sentiu fortes
dores na barriga e foi ao hospital, quando então descobriu que estava grávida. Diante
da surpresa com a gravidez, referem não ter realizado acompanhamento pré-natal
durante o processo gestacional [...].
Após o nascimento dessa nova criança, ainda na maternidade, optaram pela “entrega
voluntária”. Segundo um relatório da equipe técnica do hospital, peça contida no processo, é
possível “escutar a voz dos envolvidos”, mesmo que de forma indireta:
A equipe médica informou que a genitora expressou o desejo de entregar o bebê
para adoção. Em abordagem, a genitora relatou ao Serviço Social que não deseja
ter contato com o bebê, e que gostaria que sua vontade fosse respeitada. Explicamos
todo o trâmite que envolve a notificação à Vara da Infância e Juventude, e mediante a
resistência em externar as suas emoções, sugerimos o atendimento da Saúde Mental
deste Hospital para a genitora. [...] Genitora demonstrou muita tristeza e resistência
em dialogar sobre os motivos que a levaram a decidir por não ficar com o bebê. E,
após sensibilização em atendimento social, aceitou conversar com um profissional da
Saúde Mental.
É possível apreender no trecho citado que a equipe técnica da maternidade tem a expectativa
de que Elizabeth se arrependa, “expresse sua dor” e/ou queira “ter contato com o bebê”. Assim como
Elizabeth, Januário também narra no fluxo processual os motivos que os levaram à renúncia. Em
respostas às perguntas diretas e às questões formuladas por uma equipe técnica, supostamente imbuída
das intenções de demovê-los sobre a decisão, Januário
[...]compareceu ao Serviço Social e confirmou ser o pai biológico. Disse que
juntamente com sua esposa decidiram não assumir o bebê neste momento por questões
financeiras. [...] Disse que estava preocupado com os trâmites legais, porque não
queria ser penalizado por assumir que não tem condições de criar seu próprio filho.
(grifo nosso)
Apesar de expressar a certeza sobre a impossibilidade de cuidado, Januário manifesta,
perante os representantes do Estado, o medo de sofrer sanções legais por não ter condições
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de “criar o próprio filho”. Talvez porque compartilhe da ideia de que, nas práticas da Justiça
da Infância e Juventude, é comum que populações vulneráveis sejam responsabilizadas pela
situação a que foram expostas.
Há outro processo envolvendo a entrega voluntária e a precarização da vida no contexto
da pandemia de covid-19. Trata-se dos autos que versam sobre a escolha de Jurema, uma mulher
pobre e moradora de região periférica que dá à luz um bebê no chuveiro de sua casa. O bebê foi
fruto de um relacionamento fortuito que teve com um rapaz de quem não tem informações. Em
paralelo a esse relacionamento, sua mãe faleceu, e Jurema entrou em depressão. De acordo com
o relatório da casa de acolhimento aonde o bebê foi encaminhado pela comissária da Infância
e da Juventude
Durante sua gestação ela [...] iniciou um quadro depressivo e[,] lidando com o
isolamento social, e sem autocuidado, desprovida de rede familiar, rede de apoio e
meios de subsistência precária, motivo pelo qual [sic] expressa o desejo de entrega
voluntária de seu bebê.
Levando em conta que os efeitos da pandemia são não só biomédicos, mas sociais,
culturais, econômicos e psíquicos, é possível aventar a hipótese de que o ato de Jurema tenha
sido entendido como o resultado desse estado de coisas. No âmbito processual, seu estado
emocional foi pontuado como algo capaz de ensejar a decisão de entregar o bebê. Isso se soma
ao fato de que não possuía rede de apoio, além de ter perdido a mãe e o benefício social a
que tinha direito, além de “não querer mais um filho, pois já possui outros”. À luz de sua
decisão, a equipe técnica da vara da Infância e Juventude produziu uma peça dirigida ao juízo,
indicando que a criança fosse encaminhada à família substituta. Dessa forma, foi proposta ação
de destituição de poder familiar.
OS FEMININOS IMPENSÁVEIS: A RECUSA PELA MATERNIDADE E
AS VIOLAÇÕES DE GÊNEROS
As relações entre os gêneros no âmbito do parentesco e da família vêm se transformando
no contexto contemporâneo, processo iniciado nos anos 1950 (CHARTON; LEMIEUX;
OUELLETTE, 2017). Nesse momento, ocorre a secularização de valores, a individualização e
autonomização dos sujeitos e de seus direitos e a alteração dos projetos parentais e do imperativo
de reprodução. Ter um filho deixa de ser uma prescrição moral cujo maior peso incide sobre o
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universo feminino e torna-se uma escolha pessoal.
Ademais, de acordo com Fonseca (2004), a popularização da pílula anticoncepcional
na década de 1960 e sua consequente promoção de ruptura entre sexualidade e reprodução
contribuíram para a alteração das relações entre os gêneros, bem como dos sentidos de famílias e
arranjos de parentesco. É importante considerar, entretanto, que, apesar de essas transformações
terem ocorrido, não são vividas em contextos diferentes da mesma maneira. Sendo assim,
experiências sociais localizadas de raça, classe e território, por exemplo, podem organizar
sentidos distintos do que é desejar e/ou ser mãe ou da possibilidade ou impossibilidade de
recusar a maternidade.
Retornando ao contexto pesquisado, como expresso no início do artigo, seguindo as
trilhas abertas pelas reflexões de Fernandes (2017), nosso cenário de pesquisa abarca sobretudo
mulheres periféricas, moradoras de subúrbios e favelas que engravidam fortuitamente por falta
de acesso aos serviços de saúde e às políticas de contracepção. A maioria não possui parceiro e
conduz a gestação sem rede de apoio.
Sendo assim, a ideia de maternidade como resultado de uma escolha e/ou de um projeto
parental torna-se uma realidade distante. Importa considerar que, apesar de ser distante, há entre
os documentos pesquisados mulheres que optam por não serem mães. Trata-se de decisões
tomadas não só porque estejam sem parceiros ou em dificuldades financeiras, mas porque não
querem maternar, rompendo, portanto, com a ideia de que existe um vínculo inextricável entre
mulher e maternidade.
A título de exemplo, podemos citar o processo de extinção do poder familiar ajuizado
em fevereiro em face de Jundiara, “genitora de um recém-nascido”. A criança por ela gerada
nasceu e, ainda no hospital, Jundiara manifestou o interesse pela “entrega”. Um dia após o
nascimento, a criança foi encaminhada à instituição de acolhimento. De acordo com o relatório
social da casa de acolhimento:
Segundo informações presentes na decisão judicial, a genitora da criança, a Sra.
Jundiara, havia manifestado o desejo de entregar o filho em adoção, sendo assim
necessária a aplicação da medida de acolhimento institucional. Além disso, é
importante dizer que, segundo relato da Maternidade, a avó materna da criança
estaria ciente de sua decisão e sem desejo de interferir na decisão da filha. Segundo o
mesmo relatório, a Sra. Jundiara não deu informações sobre o genitor do bebê. Desde
o momento do Acolhimento Institucional da criança, não houve nenhum contato da
genitora, nem da família extensa. (grifos nossos)
O acolhimento foi mantido por uma decisão judicial, e Jundiara foi intimada a depor em
juízo para confirmar sua decisão. Após ser citada por e-mail, ela responde que não compreende
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a razão da intimação, assim como “o motivo da audiência”, pois já ter manifestara que não
desejava ficar com a criança. Sem compreender que seu desejo só pode ser selado “sob os
constrangimentos de Estado” (EFREM FILHO; MELLO, 2021, p. 332), essa mulher é obrigada
novamente a informar o que já havia dito: não quer ser mãe!
Os autos que envolvem Camila, uma adolescente que engravidou do ex-namorado,
também se referem à recusa da maternidade. Apoiada pela família e diante da impossibilidade
de recorrer ao aborto, tomou a decisão de realizar a entrega voluntária. Assim que entrou no
hospital bradou seu desejo: “entregar a criança em adoção”.
Além dos autos acima, encontramos documentos que trazem narrativas de mulheres que
recusam a maternidade em razão de terem engravidado como resultado de um estupro. Por
esse motivo, encaminham os recém-nascidos à adoção. Trazemos trechos da peça que envolve
Marcelina, mulher que teve seu corpo inscrito pela gramática da violência de gênero, tendo sido
estuprada duas vezes pelo mesmo homem. Ela engravidou, mas não ficou com a criança.
Marcelina, moradora de uma favela carioca, deu entrada em um hospital da rede pública,
informando à equipe do serviço social que entregaria o bebê para adoção. De acordo com o
relatório de assistência social,
[...] Ao falar sobre a presente ação, foi bastante objetiva, revelando que a gestação
foi fruto de violência sexual [...] [e] reiterou que não desejava ser mãe e que [o bebê]
ficará bem em uma família adotiva [...] durante a entrevista Marcelina se emocionou,
chegando a chorar, quando se referiu aos dois estupros sofridos. Mas, não nos pareceu
haver sofrimento pelo fato de não assumir a maternidade [...] Ela não fez Boletim de
Ocorrência sobre os dois estupros sofridos. Disse que não quer mexer com isso agora.
Talvez no futuro. (grifos nossos)
Diferentemente de alguns autos anteriormente abordados, é possível perceber uma
narrativa em “voz ativa”, certamente o resultado de uma “realidade construída” no âmbito da
esfera administrativa (VIANNA, 2002). Mesmo levando isso em conta, é possível apreender
que Marcelina “vocifera” a recusa dessa maternidade.
Sua escolha pode ser compreendida, entretanto, não apenas como uma recusa, mas como
um ato de resistência, como uma definição dos contornos de sua experiência de vida. Diante
do imponderável, Marcelina se recusou a conduzir sua vida se lembrando cotidianamente de
sua violação. Uma vez que não teve acesso ao aborto legal – e já que não é possível saber, a
partir dos autos, por que razão isso ocorreu –, cuidou de garantir os direitos da criança nascida,
fazendo com que a Justiça da Infância e Juventude tratasse da adoção, garantindo o anonimato
e sua vontade.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa exploramos uma série de processos de entrega voluntária. Com base no
material analisado, pontuamos que os fluxos de alguns destes documentos resultam de gramáticas
morais de gênero que visam estabelecer a ideia de que compete ao universo feminino a sujeição
ao corpo, a suposta natureza e o imperativo da maternidade. Sendo assim, uma mulher grávida
que opta por um “destino” diferente daquele selado por seu corpo contraria essa lógica. Mesmo
que sua ação seja organizada em torno de cuidados e garantias ao recém-nascido, até do ponto
de vista do ordenamento legal, seu ato poderá ser compreendido como um “abandono”.
No âmbito processual, no entanto, foi possível notar que esses valores morais são
negociados. Em outros termos, na construção dos autos, uma avaliação formalizada dos
envolvidos não se faz somente através de categorizações, representações sociais e avaliações
morais cristalizadas, mas também por meio de negociações que se dão na própria esfera do
processo. O que as mulheres, seus parceiros e demais implicados têm a dizer sobre suas escolhas
pode ser transformado em valor, e é por meio dele que serão avaliados pelos representantes da
Justiça e pelos agentes do Estado.
A partir dessas ponderações, notamos que mulheres optam – a partir de uma série
de cálculos racionais – por encaminhar infantes à adoção, rompendo convenções de gênero
baseadas na associação entre feminilidade, instituto materno e cuidado. Decidem pela “entrega
voluntária” porque não desejam ser mães – pelo menos não do infante em questão. Mas não só
por isso. Abdicam do exercício parental, sozinhas ou com seus parceiros, por impossibilidade
financeira, pela dificuldade de cuidar de mais um filho, pela escassez de emprego ou de uma
rede de apoio.
A impossibilidade de cuidar de um filho, ensejando no encaminhamento do infante
a adoção via entrega voluntária, pode decorrer do contexto pandêmico que acirrou as
vulnerabilidades econômicas e sociais no país. Como dito, nesse cenário a população brasileira
viveu e vive diferencialmente experiências e efeitos associados à covid-19 em razão de
pertencimentos de gênero, raça, território e classe social. O fenômeno afetou não apenas a
saúde, mas a possibilidade do exercício parental.
As mulheres renunciam ao exercício materno por diversos motivos, em decorrência
da ausência de creches e de escolas e da falta de suporte ou de redes de apoio às mulheres,
acentuadas em contexto de pandemia. Sendo assim, a “recusa” parental decorre de violências
institucionalizadas nas práticas do Estado (DAS; POOLE, 2008). Além das violações de gênero,
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inscritas na gestão estatal, encaminhar à Justiça da Infância e da Juventude um bebê nascido
do próprio ventre pode ser uma resposta, um ato de resistência às violências sexuais a que são
expostas. Por fim, “dar o filho em [sic] adoção” pode não ser um ato de vontade, mas a única
saída possível, em razão de ter “sido abandonada” e/ou exposta à vulnerabilidade de gênero,
social ou econômica, acentuada na pandemia de covid-19.
REFERÊNCIAS
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e do Adolescente e dá outras providências. Brasília (DF): Congresso Nacional, 1990.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm. Acesso em: 19
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2. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário
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leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 02 jun. 2023.
3. BRASIL. Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera a Lei
nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943,
e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Brasília (DF): Congresso
Nacional, 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2017/lei/l13509.htm. Acesso em: 17 out. 2022.
4. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3.220, de 2008. Regula o
direito ao parto anônimo e dá outras providências. Brasília (DF): Câmara dos
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5. BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança. Resolução Nº 289 de 14 agosto
de 2019. Brasília, 2019.
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Alessandra de Andrade Rinaldi
Professora Associada III no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro. Doutora em Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3805-0578. E-mail:
[email protected]
Giulia Escuri
Doutoranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9768321X. E-mail:
[email protected]
André Luiz Coutinho Vicente
Mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ID ORCID: https://orcid.
org/0000-0001-8428-5688. E-mail:
[email protected]
Juliana Nunes da Rocha
Mestranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-95632569. E-mail:
[email protected]
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