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Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade

Revista Eletrônica de Educação

Este artigo é resultante de uma pesquisa que analisou as práticas formativas das mulheres em privação de liberdade e das em situação de egressas do sistema prisional de Minas Gerais. No entanto, serão abordadas aqui especificamente as práticas das mulheres em cumprimento de pena. A pesquisa de campo foi realizada em duas unidades prisionais femininas, uma de gestão pública, o Complexo Penitenciário Feminino e outra administrada pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC). Nessas unidades foram aplicados 37 questionários e realizadas 10 entrevistas com as mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade. Observou-se que as participantes da pesquisa atribuíram, de forma geral, efeitos que consideram positivos às suas práticas formativas. Elas se referiram à remição de parte do tempo de execução da pena, à ocupação, remuneração pelo trabalho, socialização, bem como às oportunidades e expectativas de futuro. Foi possível perceber ainda que os efeitos dessas prá...

ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 1 Artigo Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade The effects of formative practices of women in deprivation of liberty Los efectos de las prácticas formativas de mujeres privadas de libertad Yara Elizabeth Alves1, Fernando Selmar Rocha Fidalgo2 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte-MG, Brasil Resumo Este artigo é resultante de uma pesquisa que analisou as práticas formativas das mulheres em privação de liberdade e das em situação de egressas do sistema prisional de Minas Gerais. No entanto, serão abordadas aqui especificamente as práticas das mulheres em cumprimento de pena. A pesquisa de campo foi realizada em duas unidades prisionais femininas, uma de gestão pública, o Complexo Penitenciário Feminino e outra administrada pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC). Nessas unidades foram aplicados 37 questionários e realizadas 10 entrevistas com as mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade. Observou-se que as participantes da pesquisa atribuíram, de forma geral, efeitos que consideram positivos às suas práticas formativas. Elas se referiram à remição de parte do tempo de execução da pena, à ocupação, remuneração pelo trabalho, socialização, bem como às oportunidades e expectativas de futuro. Foi possível perceber ainda que os efeitos dessas práticas estão relacionados aos próprios efeitos da prisionização, sendo que os primeiros são mobilizados para, em alguma medida, minimizar os últimos. Evidencia-se a importância que as práticas formativas têm para as mulheres em privação de liberdade e indica-se que a oferta dessas deve ser ampliada e aprimorada num processo necessariamente simultâneo. Abstract This article is the result of research that analyzed the training practices of women in deprivation of liberty and those in egress from the prison system of Minas Gerais. However, the practices of women in serving time will be specifically addressed here. The field research was carried out in two female prison units, one for public administration, the Complexo Penitenciário Feminino and the other for the Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC). In these units, 37 questionnaires were applied and 10 interviews were carried out with women serving a prison 1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação: Conhecimento e Inclusão Social (FaE/UFMG). Pesquisadora do Observatório Nacional do Sistema Prisional (ONASP). ORCID id: https://orcid.org/0000-0003-4304-0275 E-mail: [email protected] 2 Professor Titular do Departamento de Administração Escolar (DAE/FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). ORCID id: https://orcid.org/0000-0001-9412-612X E-mail: [email protected] ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 2 sentence. It was observed that the research participants attributed, in general, effects that they consider positive to their training practices. They referred to the redemption of part of the time of execution of the sentence, occupation, remuneration for work, socialization, as well as opportunities and expectations for the future. It was also possible to see that the effects of these practices are related to the effects of imprisonment, with the former being mobilized to some extent to minimize the latter. It highlights the importance that training practices have for women in deprivation of liberty and indicates that their offer must be expanded and improved in a necessarily simultaneous process. Resumen Este artículo es el resultado de una investigación que analizó las prácticas de formación de mujeres privadas de libertad y egresadas del sistema penitenciario de Minas Gerais. Sin embargo, aquí se abordarán específicamente las prácticas de las mujeres privadas de libertad. La investigación de campo se llevó a cabo en dos unidades penitenciarias femeninas, una para la administración pública, el Complexo Penitenciário Feminino y la otra para la Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC). En estas unidades se aplicaron 37 cuestionarios y se realizaron 10 entrevistas a mujeres que cumplían condena de prisión. Se observó que los participantes de la investigación atribuyeron, en general, efectos que consideran positivos a sus prácticas formativas. Se refirieron a la redención de parte del tiempo de ejecución de la pena, ocupación, remuneración del trabajo, socialización, así como oportunidades y expectativas de futuro. También se pudo constatar que los efectos de estas prácticas se relacionan con los efectos de la prisionización, movilizándose en cierta medida los primeros para minimizar los segundos. Destaca la importancia que tienen las prácticas de formación para las mujeres privadas de libertad e indica que su oferta debe ampliarse y mejorarse en un proceso necesariamente simultáneo. Palavras-chave: Práticas formativas, Mulheres em privação de liberdade. Prisionização. Keywords: Formative practices, Women in deprivation of liberty, Imprisonment. Palabras claves: Prácticas formativas, Mujeres privadas de libertad, Prisionización. Introdução Este artigo é resultante de uma pesquisa que analisou as práticas formativas das mulheres em privação de liberdade e das em situação de egressas do sistema prisional de Minas Gerais. No entanto, serão abordadas aqui especificamente as práticas das mulheres em cumprimento de pena, devido à delimitação necessária a um texto desta natureza. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade são permeados por contradições, não porque eles se constituem assim de forma isolada, mas porque a própria prisão-pena3 é essencialmente contraditória e produto da contradição central capital-trabalho. Com o advento do capitalismo industrial a prisão se consolida como local de cumprimento da pena privativa de liberdade, na segunda metade do século XVIII e início do século XIX. De acordo com Melossi e Pavarini (2006), num 3 A Lei de Execução Penal (LEP), n.º 7.210 de 11 de julho de 1984, expressa em seu Art. 1º o objetivo da execução penal: “efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (BRASIL, 1984, Art. 1º). Acredita-se que através da execução penal, ao mesmo tempo em que se pune uma pessoa pelo crime cometido, pode-se “reabilitá-la” para voltar ao convívio social. ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 3 sistema de produção pré-capitalista o cárcere como pena não existe. A afirmação é historicamente verificável, advertindo-se que a realidade feudal não desconhece propriamente a prisão como instituição, mas sim a pena do internato como privação de liberdade (p. 21). A privação de um quantum de liberdade, como forma de punição, só se realiza de fato no modo de produção capitalista, “em que todas as formas da riqueza social são devolvidas à forma mais simples e abstrata do trabalho humano medido pelo tempo” (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 262). Cada modo de produção descobre o sistema de punição que corresponde às suas relações produtivas, como bem demonstraram Rusche e Kirchheimer (2004, p. 20) e o capitalismo “descobriu” a prisão-pena, como produto e (re)produtora de suas contradições. Ribeiro (2003) empreendeu uma análise da política penitenciária do estado de Minas Gerais, tomando como caso o Complexo Penitenciário Feminino. A pesquisa indicou que o trabalho era considerado pelas mulheres como de suma importância por possibilitar a remição da pena e a remuneração (RIBEIRO, 2003, p. 118). Massaro (2014) ao analisar o trabalho das mulheres em privação de liberdade nos Centros de Ressocialização do estado de São Paulo, demonstrou que para elas o trabalho representa, de um lado, enfado, cansaço e desgaste físico, aproximando-o de uma de suas origens etimológicas “tripalium”, de outro, espaço de liberdade, de fugir da rotina institucional, a ponto de muitas vezes fazê-las “esquecer” que estão presas (MASSARO, 2014, p. 288). Segundo as mulheres entrevistadas, tais atividades contribuem para que adquiram novos hábitos, principalmente voltados para o mundo do trabalho, além de serem úteis na ocupação do tempo e na diminuição da pena pela remição (Ibidem, p. 289). No mesmo sentido, nesta pesquisa foram identificados os fatores supracitados. As mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade atribuem, de forma geral, efeitos que consideram positivos às suas práticas formativas. Foi possível perceber ainda que os efeitos dessas práticas estão relacionados aos próprios efeitos da prisionização (THOMPSON, 2002; SILVA, 2016), sendo que os primeiros são mobilizados para, em alguma medida, minimizar os últimos. A seguir esses efeitos serão analisados detalhadamente. Metodologia O projeto da pesquisa que dá origem a este artigo foi devidamente submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) e aprovado sob o código CAAE 90292918.9.0000.5149. Todos os compromissos acordados quando da submissão do projeto foram efetivados durante a pesquisa de campo. Estabelecemos uma relação de respeito à dignidade e autonomia das interlocutoras. No contato inicial, ao convidá-las para participar do estudo, de forma esclarecida e voluntária, nos disponibilizamos a elucidar quaisquer dúvidas. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi lido antes de iniciar o preenchimento do questionário e a realização da entrevista. Esse documento serviu para esclarecer as respondentes sobre todos os seus direitos, bem como de sua liberdade em deixar de colaborar com a pesquisa a qualquer momento. ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 4 Com o objetivo de preservar a identidade das interlocutoras foi utilizado o nome fictício “Maria” em substituição aos nomes verdadeiros. Além disso, as informações fornecidas por elas foram tratadas confidencialmente. A pesquisa de campo foi realizada em duas unidades prisionais femininas do estado de Minas Gerais, uma de gestão pública convencional, o Complexo Penitenciário Feminino e outra administrada pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados4 (APAC). Nessas unidades foram aplicados 37 questionários e realizadas 10 entrevistas semiestruturadas com as mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade. O questionário foi constituído por 53 questões (abertas, de múltipla escolha e dicotômicas), sendo que neste texto discutiremos, particularmente, as respostas às perguntas abertas sobre as práticas formativas. A entrevista é definida por Haguette (1997) como um “processo de interação social entre duas pessoas na qual uma delas, o[a] entrevistador[a], tem por objetivo a obtenção de informações por parte do[a] outro[a], o[a] entrevistado[a]” (HAGUETTE, 1997, p. 86). A entrevista semiestruturada, o tipo de entrevista realizada, caracterizase pela utilização de um roteiro previamente elaborado, que serve de eixo orientador, mas que pode ser adaptado à medida que o diálogo se desenvolve (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 188). Ao realizá-la o(a) pesquisador(a) permite-se explicitar algumas questões no curso da entrevista e/ou reformulá-las. Algumas vezes a ordem das perguntas foi alterada em função das respostas obtidas ter se adiantado à uma questão ou ter relação com um tópico que só seria tratado posteriormente. Chegou-se ainda a acrescentar perguntas para precisar uma resposta ou fazer um aprofundamento, tais como: Por quê? Você pode me dar um exemplo? Entre outras subperguntas. Segundo Boni e Quaresma (2005), as entrevistas semiestruturadas têm como vantagem a sua elasticidade quanto à duração, permitindo uma cobertura mais profunda sobre determinados assuntos. As autoras consideram também que a interação entre o(a) entrevistador(a) e o(a) entrevistado(a) favorece as respostas espontâneas, o que permite ao(a) entrevistador(a) tocar em assuntos complexos e delicados e possibilita uma troca mais afetiva entre as duas partes (BONI, QUARESMA, 2005, p. 75). Características de suma importância ao tema da pesquisa. No Complexo Penitenciário Feminino, os questionários foram aplicados às mulheres que estavam em diferentes locais: na área de cumprimento de pena em regime semiaberto, nas oficinas de trabalho e no espaço das celas de proteção. Já as entrevistas foram feitas na oficina de costura, onde no período 4 A Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) é uma entidade civil de direito privado sem fins lucrativos, que auxilia o poder público na execução das penas privativas de liberdade, por meio da administração de Centros de Reintegração Social (CRSs), unidades onde se aplica o Método APAC. A primeira APAC surgiu em 1972 na cidade de São José dos Campos em São Paulo, a partir do trabalho de um grupo da Pastoral Carcerária da Igreja Católica. Inicialmente a sigla significava “Amando ao Próximo Amarás a Cristo”. O idealizador do método e fundador da APAC foi o jornalista e advogado Mário Ottoboni que, diante das péssimas condições verificadas no Presídio de Humaitá, em São José dos Campos, reuniu em 1972 quinze cursilhistas com o intuito de atuar em prol da humanização do tratamento dispensado às pessoas em situação de prisão (OTTOBONI, 2012, p. 32). ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 5 da manhã havia a produção da confecção instalada na unidade e no período da tarde era ofertado um curso de formação profissional. Na APAC, tanto o questionário como a entrevista foram respondidos pelas mulheres que cumpriam pena em regime fechado e em regime semiaberto. Na unidade, os locais destinados a esses dois regimes têm entradas e instalações separadas, embora façam parte da mesma estrutura. As entrevistas com as interlocutoras de ambos os regimes foram realizadas em ambientes bem próximos às oficinas de laborterapia. Análise dos dados A partir da sistematização dos dados dos questionários e da transcrição das entrevistas, procedeu-se à análise. Foi feita uma leitura exaustiva de todo o conteúdo transcrito, com vistas à categorização dos dados. Conforme afirma Minayo (2002), as categorias são empregadas para se estabelecer classificações. Assim, “trabalhar com elas significa agrupar elementos, ideias ou expressões em torno de um conceito capaz de abranger tudo isso” (MINAYO, 2002, p. 70). Para a inclusão e agrupamento das falas considerou-se a recorrência, a expressividade, bem como a relevância dessas, seja por sua generalidade ou particularidade, para a discussão proposta pela pesquisa. Foi a partir desses critérios que se definiu os temas dos tópicos abordados a seguir, quais sejam: “remição da pena”, “ocupação”, “remuneração”, “socialização” e “oportunidades e expectativas”. Após essa definição, buscou-se realizar uma análise que estabelecesse articulações entre os dados empíricos e os referenciais teóricos da pesquisa, assim como indica Minayo (2002) ao abordar sobre a proposta dialética para a análise dos dados (p. 78-79). Remição da pena A remição de parte do tempo da execução da pena, por trabalho ou por estudo, passou a ser prevista pela Lei n.º 12.433, de 29 de junho de 2011, que alterou os Arts. 126, 127, 128 e 129 da Lei de Execução Penal (LEP), n.º 7.210, de 11 de julho de 1984. A contagem do tempo a ser remido é feita à razão de um dia de pena a cada doze horas de frequência escolar divididas, no mínimo, em três dias. E de um dia de pena a cada três dias de trabalho (BRASIL, 1984, Art. 126, § 1º). Para fins de remição pelo estudo é considerada a frequência escolar no ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda em cursos de requalificação profissional. Essas atividades poderão ser desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão ser certificadas pelos órgãos educacionais competentes (BRASIL, 1984, Art. 126, § 2º). Aos dias remidos será acrescido um terço no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena (BRASIL, 1984, Art. 126, § 5º). A Lei determina ainda que a pessoa em cumprimento de pena impossibilitada, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a beneficiar-se com a remição (BRASIL, 1984, Art. 126, § 4º). É ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 6 assegurado também à pessoa em privação de liberdade o direito de acumular os casos de remição, desde que as horas diárias de trabalho e de estudo sejam definidas de forma a se compatibilizarem (Ibidem, § 3º). Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Recomendação n.º 44, de 26 de novembro, tratou das atividades educacionais complementares para fins de remição da pena pelo estudo e estabeleceu critérios para a admissão pela leitura. Aos Tribunais foi recomendado que, para fins de remição pelo estudo (Lei n.º 12.433, de 29 de junho de 2011), sejam valoradas e consideradas “as atividades de caráter complementar, assim entendidas aquelas que ampliam as possibilidades de educação nas prisões, tais como as de natureza cultural, esportiva, de capacitação profissional, de saúde, entre outras” (CNJ, 2013, Art. 1º). Como a remição da pena pela leitura foi instituída com práticas e orientações diversas nos estados o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) elaborou em março de 2020 a Nota Técnica n.º 1/2020/GABDEPEN/DEPEN/MJ, cujo objetivo era “apresentar orientação nacional para fins da institucionalização e padronização das atividades de remição de pena pela leitura e resenhas de livros no sistema prisional brasileiro” (DEPEN, 2020, p. 310). As participantes da pesquisa tanto do Complexo Penitenciário quanto da APAC, com frequência, se referiam à remição de parte do tempo da pena pelo trabalho ou pelo estudo. Maria Luiza (32 anos), por exemplo, afirmou: […] eu acho que os cursos só tem a beneficiar a gente, tanto como remição, como aprendizado, como sair um pouco de lá de dentro também. Eu só vejo benefícios nos cursos (Maria Luiza, 32 anos, Complexo Penitenciário). A entrevistada que cumpria pena no Complexo Penitenciário estava finalizando o curso de costura, cujas aulas aconteciam no período da tarde, ela trabalhava pela manhã na biblioteca da unidade, mas não era remunerada, tinha apenas a remição da pena, além disso, participava também do projeto de remição pela leitura. Ao relatar sobre tais práticas ela destacava o fato de, através delas, poder remir a pena. Entre as mulheres que trabalham na oficina de costura a remição de parte do tempo da pena também foi mencionada e por vezes, do mesmo modo que na fala abaixo, citada como um motivador. Mas aí, esse trabalho, por exemplo, toda vez que eu acordo indisposta, ou nervosa, sabe? Ou… Qualquer coisa que me faça não querer vir, aí eu penso nisso e me dá vontade de vir, porque é isso que vai me ajudar a remir. Aí tudo se resolve (Maria José, 31 anos, Complexo Penitenciário). Aquelas que falaram sobre a remição da pena pelo trabalho ou pelo estudo, seja ao responder o questionário ou à entrevista, definiram o tempo de prisão da seguinte forma: Muito sofrimento, dor, tristeza e saudades da família (Maria, 22 anos, Questionário 2, Complexo Penitenciário). ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 7 É um tempo muito grande que foi perdido, mas tempo de preparação não é tempo perdido, foi tempo para refletir (Maria, 33 anos, Questionário 18, Complexo Penitenciário). Aprendizado. O tempo que eu estou aqui é um tempo de aprendizado… Nada valeu a pena, se eu pudesse voltar atrás no tempo eu faria diferente, passar por isso aqui eu não queria (Maria Luiza, 32 anos, Complexo Penitenciário). É um tempo de sofrimento. Sinto muito a falta da minha família. É para nunca mais voltar (Maria, 32 anos, Questionário 31, APAC). É um tempo de tristeza, de angústia (Maria, 54 anos, Questionário 37, APAC). Observamos que, comumente, o tempo de prisão é definido pelas mulheres em cumprimento de pena como um tempo de sofrimento, marcado por sentimentos como tristeza, saudade e angústia. Mesmo quando elas citam a reflexão e o aprendizado, esses termos são relacionados ao arrependimento e a definição de que não querem “voltar a passar por isso”. Para essas mulheres então, o tempo de prisão é um tempo a ser “reduzido”, “abreviado” e uma das estratégias para tal é a remição da pena, como possibilidade de diminuir o tempo de permanência na unidade prisional. De acordo com Chies (2006), o tempo no cárcere tem uma dimensão objetiva, de mensuração física e cronométrica e uma dimensão social e histórica. O tempo cronométrico é “a medida quantitativa da pena privativa de liberdade, o balizador de sua duração jurídico-legal”. Já o tempo subjetivo e o tempo social são os balizadores qualitativos das dores do encarceramento, “da temporalização como sensação do tempo e do seu peso, de sua abundância no cárcere e de sua correlata inutilidade, dos paradoxos que o envolvem enquanto elemento da punição prisional” (CHIES, 2006, p. 241-242). O caráter ambivalente do tempo o faz objeto de desejo e de conquista, em paralelo a sua utilização como medida do castigo. Chies (2006) demonstrou que a remição da pena permite a conquista do tempo por parte da pessoa em privação de liberdade, “um tempo que se pode entender capitalizado no contexto sócio prisional, uma vez que resulta em abatimento de tempo físico e social” (CHIES, 2006, p. 23). A pesquisa realizada pelo autor desnudou o acesso à liberdade como um desejo e a remição como um meio para acelerálo. Segundo Onofre (2011), para a pessoa em situação de prisão, a liberdade é a “grande expectativa de vida, objetivo, sonho e motivação maior para sua existência” (ONOFRE, 2011, p. 283). Gadotti (1993) afirma que “a liberdade é a única força” que move a pessoa em cumprimento de pena (p. 134). No mesmo sentido dos autores supracitados, observamos que na busca pela liberdade, as mulheres participantes da pesquisa veem a remição de parte da pena como uma alternativa para alcançarem o que tanto almejam. ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 8 Ocupação Muitas das mulheres em privação de liberdade falaram do trabalho como uma forma de se manterem ocupadas. Isso foi recorrente tanto entre as que cumprem pena no Complexo Penitenciário quanto na APAC, como pode ser observado nas falas a seguir. Entretanto, aquelas que estavam no Complexo Penitenciário citaram com maior frequência a ocupação do tempo e a sensação de se sentirem “menos presas” durante o trabalho. Já as que cumpriam pena no CRS da APAC mencionaram principalmente a ocupação da mente. É uma ocupação, um tempo que não fico na cela (Maria, 44 anos, Questionário 22, Complexo Penitenciário). Gosto de trabalhar, pois ocupo a mente e também me sinto mais livre (Maria, 24 anos, Questionário 8, Complexo Penitenciário). Me ajuda a passar o tempo, sem me sentir tão presa (Maria, 24 anos, Questionário 6, Complexo Penitenciário). Acho que é uma forma de trabalhar aqui dentro, porque eles falam que “mente vazia é oficina do diabo” n/é? Então, você trabalhando a sua mente, você não tem tempo para ficar pensando em nada, principalmente em raiva. Não tem tempo para ficar pensando nisso (Maria Paula, 27 anos, APAC). Além da remição, é bom para ocupar a mente (Maria, 54 anos, Questionário 37, APAC). De acordo com Goifman (1998), condenam-se as pessoas em privação de liberdade a uma condição que é condenada pela sociedade, qual seja: a ociosidade (GOIFMAN, 1998, p. 103). Enquanto o tempo livre passa a ser valorizado pela sociedade no sentido de melhoria da qualidade de vida, essa valorização só aparece para pessoas que trabalham sistematicamente, na qual o descanso é necessário. Essa valorização positiva do tempo livre não encontra seu espaço quando esses mesmos atores sociais olham para a prisão. O tempo livre não é visto como merecido, e nem como desejado, para uma grande parte da população carcerária (GOIFMAN, 1998, p. 103). Nesse sentido, segundo o autor, ao menos como discurso, a ociosidade é vista de forma negativa pela sociedade extramuros, pelos administradores e funcionários das unidades prisionais, bem como pelas pessoas em privação de liberdade. “Existe um consenso na crítica à ociosidade” (GOIFMAN, 1998, p. 114). A sociedade “em geral” relaciona a ociosidade à vagabundagem, ou mesmo a não-punição. As pessoas em privação de liberdade costumam dizer que no ócio “o tempo passa mais devagar”. Os administradores vêm aí a perda de dinheiro com o “desperdício” de força de trabalho. Já os agentes ficam ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 9 incomodados e afirmam que “só quem trabalha na unidade são eles próprios e demais funcionários” (GOIFMAN, 1998, p. 114). Para Goifman (1998), a expressão “matar o tempo” revela sua riqueza quando aplicada ao contexto de uma unidade prisional. Diante dos meses e anos, referência temporal quantitativa da pena, cresce a revolta da pessoa em situação de prisão com o tempo, como o “inimigo” que deve ser “morto”, “vencido”. Por conta do longo tempo vivido no ócio muitas pessoas em privação de liberdade justificam seu engajamento em algum tipo de ocupação “como uma forma de arma na luta contra o tempo” (GOIFMAN, 1998, p. 113-114). Essas pessoas defrontam-se no cárcere com o tempo em “excesso”, o que cria uma “interessante dualidade verbal, simultaneamente o ‘tempo perdido’ e o ‘tempo excessivo’” (GOIFMAN, 1998, p. 116). Ao depararem-se com esse “excesso”, as expectativas recorrentes são “ocupar o tempo”, “matar o tempo”. Ao mesmo tempo, como indica Onofre (2011), há entre as pessoas em situação de prisão o sentimento de “tempo perdido”, “tirado” de suas vidas e que pode se constituir como motivo que os leva a participarem das atividades (ONOFRE, 2011, p. 279). De acordo com Silva (2016), o tempo adquire inegável importância para a atuação da prisionização, pois perante a estrutura da unidade prisional o tempo perde seu dinamismo e revela-se quase “estático” (p. 58). Para esse autor, o tempo por si só é um importante vetor de prisionização. Quando se trata de tempo ocioso, cresce em intensidade os efeitos da assimilação prisional (SILVA, 2016, p. 163). Frente a isso, para as mulheres em privação de liberdade, “ocupar o tempo” no “excesso do tempo” é um modo de minimizar os efeitos da prisionização. Observamos ainda que ao falarem sobre a ocupação da mente, também se trata de uma forma de resistir às pressões que o sistema prisional exerce sobre elas. Destaca-se que a ocupação do tempo foi citada pelas mulheres participantes da pesquisa apenas ao significarem o trabalho. Ao, por exemplo, falarem do estudo esse aspecto não foi mencionado, diferentemente de pesquisas anteriores, como a de Onofre (2011). Remuneração Nas duas unidades em que realizamos a pesquisa foi recorrente a menção das mulheres à remuneração pelo trabalho. Entre as mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade o interesse por uma vaga de trabalho, da mesma forma que entre a maioria das trabalhadoras no extramuros, está relacionado principalmente à necessidade de subsistência própria e de sua família. Não bastasse as privações e sofrimentos que o encarceramento lhes impõem, as mulheres se preocupam com o sustento e bem-estar de seus familiares, sobretudo dos(as) filhos(as), e destinam parte do que recebem a eles(as). Observa-se que essa preocupação está relacionada com a destinação das mulheres, pela divisão sexual do trabalho, à esfera reprodutiva, às tarefas domésticas e de cuidado. Com relação à própria subsistência, por conta da situação de vulnerabilidade socioeconômica das famílias, o que dificulta o envio de itens e as visitas, ou mesmo por causa do abandono, a remuneração obtida pelo ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 10 trabalho é para muitas mulheres uma, se não a única, forma de obter produtos que não são oferecidos pela unidade, ou o são em quantidade insuficiente, como os de higiene pessoal e íntima e alguns itens de alimentação. Segundo Thompson (2002), quando em situação de prisão, a pessoa se sente dolorosamente empobrecida. Na sociedade capitalista, como afirma o autor, a posse de bens materiais faz parte, de maneira fundamental, da concepção de uma pessoa sobre si mesma (THOMPSON, 2002, p. 64). Assim, o empobrecimento material a que está submetida durante o cumprimento de pena tem influência sobre a sua autoestima e em sua noção de pertencimento à sociedade. Observamos que a remuneração pelo trabalho pode reduzir esse efeito da prisionização. Massaro (2014) já havia demonstrado que era pelo trabalho que as mulheres em privação de liberdade conseguiam suprir algumas de suas necessidades, além de continuarem responsáveis financeiramente pelos filhos, enviando àqueles que ficaram com as crianças e/ou adolescentes uma quantia para a compra de alimentos, material escolar e roupas (MASSARO, 2014, p. 288-289). Dentre as falas das entrevistadas sobre o assunto, destacamos a que segue: […] quando você trabalha o dinheiro cai na sua conta. […] Quando fala assim: “olha, o dinheiro caiu”, aí você já manda a listinha, sem pesar, sabe? O trabalho não fez eu ter mais, só fez eu pedir com menos peso na consciência de eu estar dando mais despesa para eles (Maria José, 31 anos, Complexo Penitenciário, grifos nossos). A entrevistada, que trabalha na oficina de costura, ao falar sobre o uso do seu salário para a compra de alguns itens, revela algo que é muito comum nas falas das mulheres em cumprimento de pena, o sentimento de culpa. Com a quantia que recebe por seu trabalho, Maria José (31 anos) diz poder fazer a lista dos produtos a serem comprados, sem se sentir culpada por sua prisão gerar despesas para a família. Existe ainda, como explicitado na fala abaixo, um entendimento por parte das mulheres em privação de liberdade de que o dinheiro recebido pelo trabalho é um “dinheiro honesto”, que se diferencia daquele proveniente de uma prática considerada criminosa. Assim, apesar de admitirem que o salário é baixo, as entrevistadas têm a expectativa de que por estarem trabalhando, a percepção das pessoas sobre elas, tal como a percepção que têm de si mesmas, seja alterada, acreditando numa mudança de vida. E o dia que eu recebi trezentos e noventa e cinco reais da Empresa, lá em cima quando ela me pagou, me deu aquele envelope, que eu peguei e contei trezentos e noventa e cinco […] Eu abracei as meninas lá em cima, eu desci cantando, eu desci abraçando todo mundo, porque era um dinheiro honesto, para mim era como se eu tivesse pegando trezentos mil reais na mão, parecia que era um dinheiro que eu nunca tinha visto na vida, sabe? E foi um dinheiro que eu trabalhei honesto, trezentos e noventa e cinco reais, para mim era um dinheirão ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 11 porque foi ganho com trabalho, com tudo. Então muda muito a vida da gente, eu acho (Maria Cláudia, 48 anos, APAC). O Art. 29 da LEP determina que o trabalho da pessoa em cumprimento de pena privativa de liberdade será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a 3/4 (três quartos) do salário mínimo (BRASIL, 1984, Art. 29). No estado de Minas Gerais o Decreto n.º 46.220, de 16 de abril de 2013 prevê o mesmo que a LEP e autoriza a remuneração por produção, desde que respeitado o piso de 3/4 do salário mínimo (MINAS GERAIS, 2013, Art. 5º). A LEP foi aprovada em 1984, antes da Constituição Federal de 1988. No Brasil as normas legais estão sujeitas ao controle de constitucionalidade, um sistema que verifica se o ato normativo está de acordo com a Constituição. O ordenamento jurídico do país não permite que um ato normativo infraconstitucional confronte os princípios e as normas constitucionais. Uma vez que a Constituição estabelece o salário mínimo como o menor valor que pode ser pago a um trabalhador no país e a LEP, que é infraconstitucional, prevê um valor menor do que o salário mínimo o Procurador-Geral da República, na época, Rodrigo Janot ajuizou em 13 de março de 2015 uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 336) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o Art. 29 da LEP. Rodrigo Janot na petição inicial afirmou que o estabelecimento de contrapartida monetária pelo trabalho realizado por pessoa em situação de prisão inferior ao salário mínimo viola os princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana, além do disposto no Art. 7º, IV, da Constituição Federal, que garante a todos os trabalhadores urbanos e rurais o direito ao salário mínimo (BRASIL, 2015, p. 3). Segundo Rodrigo Janot, não prospera o argumento de que o salário da pessoa em privação de liberdade deve ser inferior ao mínimo estabelecido por lei no território nacional, como instrumento econômico para incentivar a contratação. O Estado não pode violar direitos fundamentais sob a justificativa de trazer vantagens à contratação de presos, pois a instituição do salário mínimo visou justamente a assegurar à parte vulnerável da relação de emprego patamar mínimo de remuneração como forma de proteção à dignidade da pessoa humana (BRASIL, 2015, p. 10). Rodrigo Janot questiona a diferença entre o trabalho realizado por uma pessoa fora da prisão e aquele realizado pela pessoa em cumprimento de pena privativa de liberdade. Ele afirma que os valores que decorrem do princípio da isonomia “não autorizam a existência de norma que imponha tratamento desigual sem que a situação corrobore a necessidade da diferenciação” (BRASIL, 2015, p. 16). A força de trabalho da pessoa em privação de liberdade não diverge, em razão do encarceramento, da força de trabalho da pessoa livre, sendo assim, a remuneração inferior constitui-se como “injustificável e inconstitucional penalidade que extrapola as funções e objetivos da pena” (BRASIL, 2015, p. 16). Com base nesses argumentos, Rodrigo Janot pediu a não-recepção pela Constituição Federal de 1988, do Art. 29, caput, da LEP. Em sessão virtual ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 12 realizada entre 27 de março e 02 de abril de 2020 o Plenário do STF iniciou o julgamento da ADPF 336, após o voto do relator, Ministro Luiz Fux, que julgou improcedente a ação, acompanhado pelo Ministro Alexandre de Moraes e do voto divergente do Ministro Edson Fachin, o Ministro Gilmar Mendes pediu vistas dos autos5. Espera-se que, quando o julgamento for retomado, o pedido da Procuradoria Geral da República seja acolhido. A garantia do direito da pessoa em privação de liberdade de ser remunerada pelo seu trabalho com ao menos um salário mínimo mensal além de respeitar o que prevê a Constituição Federal, cumpriria melhor os próprios fins da remuneração estabelecidos pela LEP: indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e não reparados por outros meios; assistência à família; pequenas despesas pessoais e ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção da pessoa em cumprimento de pena, em proporção a ser fixada e sem prejuízo da destinação prevista anteriormente (BRASIL, 1984, Art. 29, §1º). Ademais, possibilitaria que uma quantia mais significativa fosse depositada, em caderneta de poupança, para constituição do pecúlio a ser entregue à pessoa quando posta em liberdade, tal como estabelece o Art. 29 § 2º da LEP (BRASIL, 1984). O que poderia assegurar a ela alguma condição de sustento no pós-cárcere, haja vista que a vulnerabilidade social que muitas vivenciavam antes mesmo do cumprimento de pena, pode ter sido aprofundada pelo encarceramento e após esse será somada às inúmeras dificuldades que as pessoas em situação de egressas do sistema prisional experimentam. Abordar a importância da remuneração pelo trabalho para as mulheres em cumprimento de pena, não significa estar de acordo com os valores inferiores ao salário mínimo que são pagos a elas, como demonstrado isso viola o Art. 7º, IV, da Constituição Federal, além de contrariar os preceitos fundamentais descritos nos Arts. 1º, III (dignidade da pessoa humana) e 5º (princípio da isonomia). O fato de precisarem da quantia para suprir necessidades básicas confirma a relevância e a urgência da defesa de que a pessoa em privação de liberdade receba por seu trabalho ao menos o salário mínimo fixado por lei e unificado nacionalmente, cuja finalidade é assegurar condições mínimas de existência. As mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade, assim como as demais pessoas em situação de prisão ou não, devem estar em condições de viver para “fazer história”. Mas, para viver precisam produzir seus meios de subsistência, uma condição fundamental de toda a história, que tem de ser cumprida diariamente (MARX; ENGELS, 2007, p. 32-33). Socialização A partir da pesquisa observamos ainda que, para as mulheres em privação de liberdade as práticas formativas promovem processos de socialização, para além das celas e alojamentos. 5 Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440824&ori=1. Acesso em: 13 jul. 2020. ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 13 No Complexo Penitenciário a oficina de costura é um espaço onde as mulheres trabalham na confecção de roupas, realizam cursos de formação profissional e, ao mesmo tempo, interagem entre si. No local há aquelas que cumprem pena em regime fechado e, portanto, ficam no alojamento destinado a esse regime, e as que cumprem pena nas celas de proteção, em área separada das demais instalações de alojamento, contato que dificilmente ocorreria em outros ambientes e rotinas institucionais. Além dessa interação, elas têm contato com a instrutora da oficina e com a professora do curso. Durante a realização da pesquisa observamos que esse é um tempoespaço em que as mulheres em privação de liberdade conversam sobre diversos assuntos, o que parece lhes distanciar, ainda que em pensamento e só momentaneamente, das tensões decorrentes da situação de prisão, elas também constroem relações de afeto e, como descrito na fala abaixo, aprendem com/nas relações que estabelecem. Em todos os aspectos, primeiro a gente tem que conviver com pessoas que a gente nunca viu “n/é?” E é todos os dias. Por mais que lá fora a gente tem que lidar com pessoas que a gente nunca viu… As pessoas que estão aqui, a gente fica junto todos os dias, todos os dias… A gente aprende a conhecer mais o ser humano, a entender mais o ser humano. Não é só estar por estar “n/é?” É a compreender, a entender o que passa na mente do ser humano, na verdade aqui a gente aprende a estudar um pouco o ser humano, porque cada uma aqui tem um modo de pensar, um modo de ser, um modo de agir, então eu aprendo muito, a gente cresce muito, a gente amadurece muito (Maria Alice, 30 anos, Complexo Penitenciário). No mesmo sentido, o espaço-tempo de laborterapia na APAC possibilita a interação entre as mulheres enquanto produzem artesanatos. Como todas que estão em cumprimento de pena trabalham nessa unidade, a maioria delas6 passa o dia na oficina, onde aprendem o ofício umas com as outras, segundo relataram. Obviamente que os processos descritos, nas duas unidades pesquisadas, são permeados por conflitos, inerentes ao convívio humano em quaisquer situações e que não seria diferente na prisão. Ainda quanto ao Complexo Penitenciário, na oficina de costura entrevistamos mulheres que cumpriam pena em celas de proteção e a situação delas nos chamou atenção. Conforme afirma Lemgruber (1999), a ideia da prisão dentro da própria prisão é um castigo adicional que marca a mulher e sua revolta por encontrarse privada de liberdade. Além de estar isolada dentro da instituição, ela passará por mais privações do que aquelas normalmente impostas (LEMGRUBER, 1999, p. 34). O relato a seguir demonstra como essa condição impacta, por exemplo, na possibilidade de Maria José (31 anos) acessar o ensino superior. Quando perguntada se gostaria de estudar, ela explica: 6 As exceções são apenas aquelas que trabalham na cozinha e nas portarias. ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 14 Sim, só que é o seguinte, eu pertenço à medida de segurança que fica nas celas externas. Hoje eu só estou aqui, porque se eu quiser trabalhar fora eu tenho que ir para o albergue. Então eu acho um pouco contraditório isso, porque no regime fechado e no regime semiaberto a gente fica só no setor, a gente não tem contato com outras presas. Eu tenho contato com essas presas aqui do fechado porque elas passaram por uma certa seleção, então elas não têm risco nenhum. Elas não são agressivas, violentas, e não surta, como muitas, então se eu quiser hoje, eu posso. Não é só um querer, eu posso. Eu sempre fiz ENEM, esse último ano eu não fiz. Para quê que eu vou fazer ENEM? Eu vou ter que ir para o albergue… Minha última redação foi 850, eu gostei, porque quando eu fiz na rua eu não tinha tanto tempo para focar assim, então foram notas menores e aí eu pego e perco essa oportunidade por conta da unidade. Eu perco essa oportunidade por conta da unidade. Pesquisadora: Como assim? Entrevistada: Porque se eu for para o albergue a integridade física minha, ou de qualquer outra pessoa que pertence à medida de segurança, está em risco (Maria José, 31 anos, Complexo Penitenciário). A entrevistada que, com razão, acha contraditório o fato de ficarem isoladas na área das celas de proteção, sem contato com as demais mulheres que cumprem pena, ao mesmo tempo se recusa a ir para o albergue, por considerar que lá poderia ter a sua integridade física ameaçada. A fala dela expressa a crítica a essa separação, mas também o receio de uma situação diferente, que pode colocá-la em risco. Notamos, portanto, que o cerne da questão é a própria lógica de exclusão das mulheres que foram condenadas por crimes de grande repercussão social e/ou cuja natureza não seja aceita pelas demais apenadas. Thompson (2002) ao abordar os fatores que levam à quebra de solidariedade entre as pessoas em cumprimento de pena, cita o sentimento de cada uma delas de que pouco tem em comum com as “outras”. A maioria acredita que as “outras” são piores do que elas próprias (THOMPSON, 2002, p. 67). Além do impacto no acesso à educação, a condição de cumprimento de pena dessas mulheres tem influência também em suas perspectivas de trabalho. […] Mas aí quando a gente tem oportunidade de trabalhar fora e de estudar, igual eu tenho agora. Eu já tenho a autorização do juiz, mas eu não fui ainda, eu já recusei a oportunidade da casa duas vezes. Ela me perguntou se eu queria, eu falei: “não, vou ter que ir para o albergue”. Quem é que vai? […]. Qualquer coisa que aconteça comigo vai ser prejudicial não só a mim, mas a muitas pessoas que me amam, que se preocupam comigo, aí eu prefiro deixar. Eu poderia está… Um exemplo, hoje aqui dois quartos do salário que vem para gente. Se eu tivesse ganhando um salário mínimo hoje na rua, eu já teria conseguido juntar dinheiro. Sabe? E isso para mim é muito importante, porque a minha família é pobre, todo mundo ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 15 trabalhador, tudo o que a gente tem, nada é ganhado, tudo conquistado com o nosso suor (Maria José, 31 anos, Complexo Penitenciário). As entrevistadas que cumprem pena em celas de proteção valorizam muito o trabalho na oficina de costura, pois, segundo elas, essa foi a única “oportunidade” que tiveram. E justamente por a gente não ter oportunidade de trabalho, quando essa oportunidade surgiu a gente agarrou e até hoje a maioria está aqui com ela, às vezes a gente passa por momentos difíceis aqui, como qualquer trabalho, mas a gente mesmo assim ainda dá muito valor porque foi só ela que deu a cara para bater por nós, porque ela também foi muito criticada (Maria José, 31 anos, Complexo Penitenciário, grifos nossos). Esse tempo-espaço para elas é um tempo de convívio com as outras mulheres em cumprimento de pena, de se sentirem pertencentes a um grupo que não apenas aquele do “seguro”, de estabelecerem relações diferentes das que habitualmente têm nas celas. As mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade são duplamente estigmatizadas, por terem transgredido a ordem social e por romperem com o papel materno e familiar. No caso das que cumprem pena em celas de proteção, na “prisão dentro da prisão”, o estigma é triplo. Somadas às outras duas transgressões, existe a não aceitação por parte daquelas que assim como elas cumprem pena. De acordo com Onofre e Julião (2013), na prisão encontram-se duas lógicas: a da segurança e a da educação, numa situação paradoxal como a relatada, elas devem ser compatibilizadas em um foco de convergência (ONOFRE; JULIÃO, 2013, p. 53). No que diz respeito à condição das mulheres em cumprimento de pena nas celas de proteção, o ponto de convergência está entre a garantia de seus direitos à educação, ao trabalho, às atividades culturais, esportivas e religiosas e o direito à integridade física. Oportunidades e expectativas As mulheres em privação de liberdade participantes da pesquisa se referiam às práticas formativas como uma oportunidade. O que pode estar relacionado ao fato de que antes da prisão muitas não puderam estudar, nem trabalhar em empregos formais e durante o cumprimento da pena, segundo elas, passaram a “ter a oportunidade” de estudo e trabalho. A fala de Maria Paula (27 anos) indica isso. Olha, se eu tivesse lá na rua talvez eu estaria tão preocupada com o trabalho que eu não queria nem saber do estudo e aqui eu tenho “n/é?” Eu estou nessa condição, com a oportunidade de acrescentar alguma coisa na minha vida, que eu vou usar lá fora (Maria Paula, 27 anos, APAC). As entrevistadas também falaram em “oportunidade” de mudança. Maria Luiza (32 anos), por exemplo, definiu o trabalho da seguinte forma: ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 16 Para mim significa assim uma oportunidade que a pessoa está tendo de recomeço “n/é?” Para ela ver que têm outras habilidades, que ela pode fazer outras coisas e não só se envolver em coisas erradas. Eu vejo como crescimento, como mudança, como… A pessoa está se preparando para poder voltar para a sociedade (Maria Luiza, 32 anos, Complexo Penitenciário). Ademais, elas citam as práticas formativas como “oportunidade” de negarem a vinculação ao “mundo do crime”, esse foi o modo como Maria Alice (30 anos) falou sobre o que a participação em cursos de formação profissional representa para ela. É uma oportunidade “n/é?” Infelizmente, foi uma fatalidade o que aconteceu comigo. Eu não sou do mundo do crime, eu não sou desse meio. Então para mim isso aqui é uma realização, eu sinto que estou sendo mais capacitada hoje para quando eu estiver lá fora (Maria Alice, 30 anos, Complexo Penitenciário). As mulheres em privação de liberdade falam de suas expectativas, a partir das “oportunidades” que tiveram, como Maria Alice (30 anos), que antes do cárcere não havia concluído o ensino fundamental, o fez numa unidade onde cumpriu os primeiros anos de sua pena e depois já no Complexo Penitenciário cursou o ensino médio. Para mim, o estudo é o melhor “n/é?”. Porque quando eu engravidei da minha filha mais velha eu parei de estudar e aí eu fui me dedicar exclusivamente a ela. Aí depois que eu tive a segunda filha, já não voltei mais para o estudo. Quando a gente teve a oportunidade de estudo eu agarrei isso, porque eu queria muito concluir os meus estudos. Então para mim, a conclusão do meu ensino médio foi uma alegria, foi uma festa… Eu agradeci muito a Deus, porque era algo que eu queria muito, que eu desejava muito. Mesmo porque eu quero fazer outras coisas “n/é?”. Eu quero estudar inglês, eu quero fazer várias outras coisas e eu precisava do ensino médio para isso (Maria Alice, 30 anos, Complexo Penitenciário, grifos nossos). Maria Cláudia (48 anos) acha que após sair da prisão terá dificuldades para conseguir um emprego, por isso concluir o ensino médio faz parte de sua estratégia para tentar superar essa dificuldade. […] por isso é que eu preciso formar, para pôr no meu currículo, em muito lugar que eu vou chegar, vou deixar o currículo, ninguém me conhece, ninguém nunca me viu, vai ver que no meu currículo está tudo beleza, está tudo normal, posso ter uma oportunidade de trabalho, mas com quem eu já conheci eu não quero nenhum convívio mais, com nenhum deles (Maria Cláudia, 48 anos, APAC). ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 17 Observamos que as participantes da pesquisa relacionaram principalmente o estudo às suas perspectivas de futuro. Enquanto o trabalho foi relacionado, com maior frequência, aos efeitos mais imediatos, como a remição de parte do tempo da pena, o sustento próprio e da família e a ocupação do tempo. O que vai ao encontro do que já havia sido verificado por Julião (2010) em uma pesquisa com homens que cumpriam pena no Complexo Penitenciário, localizado na cidade do Rio de Janeiro (p. 538). O fato dessas atividades produzirem efeitos distintos não deve servir para que elas sejam hierarquizadas, como se uma fosse “mais importante” do que a outra. Pelo contrário, isso revela a importância de serem conciliadas. Considerações finais Neste artigo foram analisadas as práticas formativas de mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade. Foi possível observar que elas fazem uma avaliação positiva das atividades de que participam. Com a remição de parte do tempo da pena, seja pelo trabalho, estudo ou leitura, as mulheres esperam reduzir o tempo de privação de liberdade. Elas também buscam “ocupar o tempo” como forma de “vencê-lo”, uma vez que na prisão o tempo se revela em “excesso”. As oficinas de trabalho que foram observadas constituem-se como um tempo-espaço no qual as mulheres em privação de liberdade têm a possibilidade de interação, de cooperação e de aprenderem umas com as outras. Para aquelas que no Complexo Penitenciário cumprem pena em celas de proteção, essa interação ganha ainda mais importância, como demonstrado. Além disso, as atividades dessas oficinas permitem que as mulheres tenham contato com pessoas externas à unidade prisional, como as instrutoras e professoras. As mulheres em cumprimento de pena associaram principalmente o estudo às suas perspectivas de futuro, elas fizeram referência ao acesso aos conhecimentos e as possíveis melhorias nas condições de vida, no póscárcere. A partir do exposto, evidencia-se a importância que as práticas formativas têm para as mulheres em privação de liberdade, isso indica que a oferta dessas deve ser ampliada e aprimorada num processo necessariamente simultâneo. A oferta de vagas para estudo deve ser ampliada de modo a possibilitar que todas as mulheres que ainda não concluíram a educação básica possam fazê-lo, caso assim o desejem. E que aquelas que já concluíram tenham acesso ao ensino superior. A oferta de cursos de formação profissional também deve ser ampliada, tanto no número de cursistas quanto na diversidade dos cursos. Os postos de trabalho também podem ser expandidos, mas ao mesmo tempo as condições de contratação precisam ser melhoradas. A remuneração pelo trabalho de ao menos um salário mínimo, além de estar de acordo com a Constituição Federal de 1988, é fundamental para garantir às mulheres e suas famílias condições mínimas de existência. No mesmo sentido, as condições de trabalho devem ser adequadas, assegurando a saúde e a segurança das trabalhadoras. ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021. ALVES, Y. E.; FIDALGO, F. S. R. Os efeitos das práticas formativas das mulheres em privação de liberdade. Dossiê: Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos. 18 Essas, entre outras ações, podem fazer com que as práticas formativas tenham efeitos ainda mais positivos para mulheres em privação de liberdade, indo além da minimização dos efeitos da prisionização. Ao defender o direito das mulheres em cumprimento de pena de terem acesso a tais atividades, espera-se contribuir para o processo de emancipação dessas mulheres, cujo primeiro passo é o reconhecimento, por si e pela sociedade, como sujeitas de direitos. Destaca-se ainda a importância do acesso da pessoa em privação de liberdade às atividades laborais, às atividades educacionais e também às culturais, esportivas e religiosas. Elas contribuem para que “esse espaço seja humanizado e que se efetivem no seu interior, práticas sociais que tornem a prisão uma instituição educativa, na qual todos os seus atores se coloquem como educadores” (ONOFRE, 2011, p. 284). Referências BONI, Valdete; QUARESMA, Silvia Jurema Leone. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais. Em Tese, Florianópolis, v. 3, p. 68-80, 2005. BRASIL. Presidência da República. Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF, 13 jul. 1984. 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Enviado em: 13/agosto/2020 | Aprovado em: 07/fevereiro/2021 ISSN 1982-7199|DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271994726|Revista Eletrônica de Educação, v.15, 1-20, e4726027, jan./dez. 2021.