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BREVES REFLEXÕES SOBRE OS
DEVERES FUNDAMENTAIS
SOCIOAMBIENTAIS
BRIEF REFLECTIONS ON FUNDAMENTAL SOCIOENVIRONMENTAL DUTIES
BREVES REFLEXIONES SOBRE LOS DEBERES FUNDAMENTALES SOCIOAMBIENTALES
Carlos Alberto Molinaro1
Nicht nur die Menschheit, sondern auch jeder einzelne findet beim
Erwachen zu vollen Bewußtsein eine fertige Weltansicht in sich vor, zu
deren Bildung er nichts absichtlich beigetragen hat. Diese nimmt er als
ein Geschenk der Natur und Kultur hin.2 Ernst Mach
1
2
Doutor em Direito (com registro de Doctor Europeo pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha- ES),
revalidado pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestre e Especialista em Direito Público pela PUCRS. Professor na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS), na Graduação e no Programa de Mestrado e Doutorado em Direito. (E-mail: carlos.
[email protected]. URL: http://www.camolinaro.net).
Não só a humanidade como todo o indivíduo, ao despertar em plena consciência, já encontra pronta
a visão do mundo para a qual intencionalmente não contribuiu. Toma-a, como uma dádiva da natureza e da cultura (Tradução livre). Ernst Mach, Erkenntnis und Irrtum: Skizzen zur Psychologie der
Forschung. �����������������������������������������������������������
Leipzig, 1920, n. 5, p. 5. Ernst Mach (1838/1916), um dos filósofos
�������������������������������
da ciência mais originais do seu tempo, atribuiu um papel central para a imaginação na teorização científica, pois afirmava
que, antes de compreender a natureza, é preciso apreendê-la em nossa imaginação, para dar um
conteúdo vivo conceitos intuitivos. A intuição pode dar sentido a um cientista para um problema fundamental, ou fornecer-lhe uma sensação para a maneira correta de resolver o enigma. A preocupação
de Mach sempre foi compreender “a relação entre o pensamento cotidiano e o raciocínio científico” (p.
XI). Erkenntnis und Irrtum é considerado um texto fundamental na psicologia da percepção e da física
fisiológica para o período. No entanto, atente-se que Mach também esboçou uma psicologia conceitual
diferente daquela dos seus contemporâneos, como Sigmund Freud, Hermann von Helmholtz e Gustav
Fechner: a psicologia do conhecimento científico com base na capacidade da mente de conceituar. Um
exame de exposições de Mach sobre a construção de teoria e análise heurística revela sua identificação inovadora do pensamento como um artefato cultural e de processos de pensamento que se correlaciona com a experiência vivida. Confira o texto on-line: www.zeno.org/Philosophie/M/Mach,+Ernst/
Erkenntnis+und+Irrtum, e obtenha gratuitamente em arquivo PDF: http://www.borders.com.au/ebook/
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Resumo: Os deveres fundamentais são posições subjetivas ex lege.
Como posições subjetivas ex lege, ora se apresentam com caráter
material, como, e.g., os direitos e os deveres contidos no mandamento “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais”,
ora instrumentais, como aqueles que objetivam a execução de direitos e obrigações materiais, e.g., estudo prévio de impacto ambiental, ou com vínculos tipicamente processuais, e.g., ação popular,
inquérito civil, termos de ajustamento, etc. Na dimensão objetiva,
ou prestacional, sempre que não correspondam a qualquer direito
subjetivo, os deveres fundamentais socioambientais, seja o destinatário o Estado, ou os particulares, revelam-se como fronteiras no
exercício dos direitos. Direitos e deveres fundamentais socioambientais são importantes balizadores do poder político, notadamente
o Poder do Estado, pois estes têm de respeitar os limites que lhe
são impostos, isto é, a sujeição ao espaço de autonomia da cidadania, ou ativamente na intervenção mediante prestações específicas
na conformação dos direitos e dos deveres atribuídos a essa mesma cidadania. O exposto neste ensaio, no textual e no contexto da
narrativa, implicou a utillização de metódica de pesquisa no ambiro
das descritivas e exploratórias, metódica essa que possibilitou uma
visão ampla do tema objeto da interrogação do pesquisador.
Palavras-chave: Ambiente. Deveres. Socioambientalidade. Proteção.
Abstract: The fundamental duties are subjective positions ex lege.
As such, they sometimes take on a material nature, as in, for example, the rights and duties contained in the commandment to
“preserve and restore essential ecological processes”; at other
times, they are instrumental in nature, as in those that focus on
the execution of rights and material obligations, e.g. the prior environmental impact study, or with typically procedural links, e.g.,
class action, civil investigation, terms of adjustment, etc. In the
objective dimension, whenever they do not correspond to any
subjective rights, the socio-environmental fundamental duties,
whether the addressee is the state or individuals, are revealed as
borders in the exercise of rights. Social-environmental fundamental duties are important benchmarks of political power, especially
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state power, as they have to respect the limits imposed on them,
i.e. the subjection of the space of autonomy of citizenship, or actively in the intervention through specific benefits in the conformation of the rights and duties assigned to that same citizenship.
This essay, through its textual and narrative context, involves the
use of methodical research within the framework of descriptive
and exploratory, which enabled a broad view of the subject, the
researcher’s object of investigation.
Keywords: Environment. Duties. Socio-environmental. Protection.
Resumen: Los deberes fundamentales son posiciones subjetivas
ex lege. Como posiciones subjetivas ex lege, a veces se presentan
con carácter material, como, e.g., los derechos y los deberes contenidos en el mandamiento “preservar y restaurar los procesos
ecológicos esenciales”, otras veces instrumentales, como aquellos
que tienen por objetivo la ejecución de derechos y obligaciones
materiales, e.g., estudio previo de impacto ambiental, o con vínculos típicamente procesales, e.g., acción popular, averiguación civil,
términos de ajuste, etc. En la dimensión objetiva o prestacional,
siempre y cuando no correspondan a cualquier derecho subjetivo,
los deberes fundamentales socioambientales, ya sea su destinatario el Estado o los particulares, se revelan como fronteras en el
ejercicio de los derechos. Los derechos y deberes fundamentales
socioambientales son importantes balizadores del poder político,
particularmente el Poder del Estado, pues estos tienen que respetar los límites que le son impuestos, es decir, la sujeción al
espacio de autonomía de la ciudadanía, o activamente en la intervención mediante prestaciones específicas en la conformación de
los derechos y de los deberes atribuidos a esa misma ciudadanía.
Lo expuesto en este ensayo, en lo textual y en el contexto de la
narración, implicó la utilización de metodología de investigación
descriptiva y exploratoria, metodología que posibilitó una visión
amplia del tema objeto de la interrogación del investigador.
Palabras clave: Ambiente. Deberes. Socioambientalismo.
Protección.
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Introdução
N
o contemporâneo de nossos dias, os problemas éticos e jurídicos
atrelados aos deveres positivos gerais – principalmente no que
respeita a sua fundamentação, conteúdo e perspectiva moral –
adquiriram uma manifesta relevância não só teórica, mas prática, em conexão,
sobretudo, com os direitos e a sua implantação em vista de questões tão graves
como a luta contra as desigualdades. Deveres positivos gerais são aqueles cujo
conteúdo revela-se em uma ação de prestar que requer uma renúncia prosaica e cuja
essência não depende da identidade do(s) obrigado(s) nem a do(s) destinatário(s)
e, tampouco, é resultado de algum tipo de relação contratual prévia.
Encontra-se num mundo cuja gravidade dos problemas planetários, entre
outros, os políticos, sociais, econômicos, ambientais, morais e jurídicos – exige
respostas rápidas e adequadas. Para os cultores das ciências, especialmente
aqueles dedicados às ciências jurídicas e sociais, impende a tarefa de construir
uma perspectiva de conformação do direito ajustado a esses novos tempos,
necessita-se da intuição e do sentimento na interrogação da ciência.
Não basta, apenas, pensá-lo como instrumento de pacificação dos conflitos
sociais, como sistema ou ordenamento de normas jurídicas que objetivam assegurar
direitos e exigir o cumprimento dos deveres, ou constituir garantias de qualquer
tipo, ainda, atribuir e repartir competências e formatar o Estado; necessita-se
de algo mais, é preciso refletir e pensá-lo como um processo sociocultural de
regulação e garantia das conquistas obtidas mediante os indispensáveis processos
de emancipação dos seres humanos, gestados no ambiente sociopolítico em
que se processam relações inter-humanas que possibilitam a coexistência no
presente e para as futuras gerações.
O exposto neste ensaio, no textual e no contexto da narrativa, implicou a utilização
de metódica de pesquisa no âmbito das descritivas e exploratórias, metódica essa
erkenntnis-und-irrtum-skizzen-zur-psychologie-der-forschung/10093717/. Há, ainda, uma reedição, em
2012, do seu Erkenntnis und Irrtum (Erweiterte Ausgabe), pela editora Jazzybee (Altenmünster, 2012)
em formato de e-Book. A assertiva de Ernst Mach muito pode auxiliar-nos na construção de uma consciência plasmada nos deveres socioambientais, passar a entendê-los e concretizá-los.
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que possibilitou uma visão ampla do tema objeto da interrogação do pesquisador.
Neste cenário, desenhada a narrativa, pensou-se a socioambientalidade como ponto
de partida para a construção de uma reflexão sobre os deveres fundamentais de
um modelo de Estado que acolhe o socioambientalismo, para proclamar-se como
um Estado Socioambiental e Democrático de Direito, e que faça as necessárias
conformações entre direitos e deveres, poderes e garantias, proporcionalmente
distribuídos entre o Estado e a Sociedade. Para tanto, como ponto de partida, no
intuito de já se delimitar nosso universo de sentido, necessária uma breve explicação
sobre a utilização do adjetivo socioambiental, aliás, já incorporado na sistemática
jurídico-ambiental brasileira3.
Socioambientalidade e Estado socioambiental
O adjetivo é resultante do substantivo socioambientalismo (aqui um neologismo
de matriz positiva, pois enriquece a língua partindo de sua própria estrutura), ou
a reunião da perspectiva social e ambiental com o fundamento e objetivo da
proteção dos mundos biótico e abiótico para as atuais e, especialmente, para as
futuras gerações, com a integridade dos ecossistemas, o crescimento econômico
e a equidade social.
A matriz socioambiental intenta construir um diálogo permanente entre
necessidades sociais, exigências ambientais, crescimento ou desenvolvimento
econômico possivelmente sustentável com a atribuição de um reparto dos
ônus e bônus decorrentes da exploração, da apropriação e da distribuição
dos bens e dos recursos naturais, desde um bem definido como conceito de
Justiça Socioambiental (ou Ecológica). Contudo, uma investigação genérica
sobre a temática do Estado Socioambiental é muito ampla, o que inviabilizaria
a execução deste artigo, motivo pelo qual se delimitou o presente à formulação
3
No mesmo sentido cf., MOLINARO, Carlos Alberto. Pensando a Intervenção Regulatória do Sistema
Jurídico nas Fases Iniciais dos Sistemas Tecnológicos em um Estado Socioambiental e Democrático de
Direito. In: SILVA, Vasco Pereira da SARLET, Ingo W. (Org.) Direito Público Sem Fronteiras, Lisboa:
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2011. Ainda, Interdição da retrogradação ambiental – Reflexões
sobre um princípio. In: O Princípio da Proibição do Retrocesso Ambiental, Coletânea da Comissão
de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle do Senado Federal. Brasília: Senado Federal, 2012.
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de bases para a construção de uma reflexão sobre os deveres fundamentais
socioambientais, concretizando esta investigação por meio da aplicação, entre
outros, dos princípios da precaução, da prevenção e da proibição de retrocesso
socioambiental na análise da vinculação do Estado e dos particulares aos deveres
fundamentais socioambientais.
A gênese do Estado Socioambiental e Democrático de Direito que formata o
Estado brasileiro pode ser localizada – na perspectiva legal – na Lei nº 6.938 de 31 de
agosto de 1971, que construiu a Política Nacional do Meio Ambiente. Este estatuto,
ademais, é considerado como o marco jurídico da normatização de interesses difusos
e coletivos no Brasil e, ainda, indutor da inclusão de novos instrumentos processuais,
em especial a legitimidade do MP para proposição de ação de responsabilidade civil
e criminal por danos causados ao meio ambiente (art. 14, §1º da redação original),
indução esta afinal consolidada pela Lei nº 7.347/85, que cria a ação civil pública,
importante instrumento processual de proteção ambiental.
No âmbito internacional, revelaram-se de grande importância as conclusões
do denominado Relatório Brundtland, desenhando e defendendo o conceito de
desenvolvimento sustentável (possível) desde a constatação da grave devastação
ambiental, com elevado comprometimento para os recursos naturais do
planeta4, questão que, vinte anos decorridos, apresenta-se como de extremada
atualidade. No cenário nacional, a partir dos anos 80, especialmente com o fim
do regime militar em 1984, os movimentos sociais e ambientalistas lograram –
com a promulgação da Constituição de 1988 – alcançar o reconhecimento de
um direito fundamental ambiental que inaugura um novo modelo de Estado: o
Estado Socioambiental e Democrático de Direito.
A partir da década seguinte, notadamente com a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro
em 1992 (ECO/92), os conceitos socioambientais passam a iluminar o cenário
legislativo na produção de normas ambientais. A edição da Lei nº 8.028 de 12
de abril de 1990, entre outras providências, acolhe e, também, modifica a Lei
4
994
Cf., Gro Harlem Brundtland, texto original do Report of the World Commission on Environment and
Development: Our Common Future. In: http://www.un-documents.net/our-common-future.pdf. (Acesso
em: 17/07/2015; 18h09m).
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nº 6.938 de 31 de agosto de 1971, estabelecendo o Sistema Nacional do Meio
Ambiente (SISNAMA) e instituiu o Cadastro de Defesa Ambiental. Finalmente, a
Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, regulamentou o Artigo 225, 1.º, incisos I, II,
III, e VII da Constituição Federal, instituindo o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza e outras providências.
A produção normativa subsequente foi ampla e, por vezes, confusa, o que
resultou em um acentuado deficit normativo por preencher. Todavia, independente
dos marcos legais, especialmente daquele estabelecido pela Carta de 1988,
quando se pensa no modelo do Estado Socioambiental e Democrático de Direito,
centra-se no seu princípio nuclear: o direito fundamental à vida, das presentes e
futuras gerações; e a manutenção das bases que a sustentam, imperativo que só
se concretiza num ambiente equilibrado e saudável, realizando o núcleo duro da
relação de alteridade que está implicada no conceito de dignidade humana: não
se está só, somos com o outro numa relação permanente de reconhecimento,
respeito, reciprocidade e responsabilidade que se desenvolve num espaço e
tempo de encontro: o ambiente.
O ambiente como direito e a dimensão horizontal do
dever de proteção e preservação
Em matéria de direito ambiental, a correlação entre direitos e deveres
fundamentais é, ainda, pouco divulgada, acrescente-se, também, o fato de que
a matéria relativa aos deveres fundamentais (e também aos deveres humanos
fundamentais) ainda não foi objeto de consideração mais aprofundado pelos
tribunais, e pela doutrina nacional e mesmo estrangeira, sendo poucos os trabalhos
monográficos a eles dedicados, especialmente o tocante aos identificados como
deveres fundamentais autônomos5.
Na perspectiva dos deveres fundamentais socioambientais, e já tomando como
referência o significado do conceito de Estado Socioambiental, cita-se o art. 225 da
Carta de 1988, que ocupa topo central no espaço jurídico ambiental ao dispor:
5
Sobre deveres autônomos, consulte o excelente trabalho de CASALTA NABAIS, Jose, O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Lisboa: Almedina, 2009.
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Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Do texto constitucional fica bem esclarecido que o ambiente é um direito
atribuído a um sujeito plural sobre bem de uso comum. Como res communes
omnium é um bem público com um qualificado predicado: atemporalidade. De
outro modo, perspectivado como totalidade atributiva6, caracteriza-se como
um macrobem que não se confunde com os bens que o incorporam7. Ademais,
é insusceptível de apropriação, também indisponível, indivisível, imaterial e de
titularidade difusa.
O ambiente, como um bem, salienta Herman Benjamin, revela-se como um
bem público em sentido objetivo e não subjetivo8, fundado em um interesse
difuso, o que oportuniza a dimensão horizontal e vertical do dever de proteção e
preservação: Estado e Sociedade, ademais dos sujeitos de direito entre si mesmos.
Nesse sentido, para assegurar este direito são, entre outros, deveres do Estado:
a) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o
manejo ecológico das espécies e ecossistemas (Art. 225, §1o, I da CF/88
c/c a Lei nº 9985/2000 e MP no 366 de 26/04/2007);
b) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do
País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de
6
7
8
996
As totalidades atributivas são aquelas cujas partes estão referidas umas com as outras, seja simultaneamente, seja sucessivamente e, mais, suas conexões atributivas não implicam inseparabilidade.
Cf. BENJAMIM, Antônio Herman V. Função ambiental. In: Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 66-69. Cf., ainda, SOUZA FILHO, Carlos F. Marés.
O dano socioambiental e sua reparação. In: FIGUEIREDO, Guilherme J. Purvin de (Coord.). Direito
Ambiental em debate. Rio de Janeiro: Esplanada, 2004, p.67-75. Cf., também, LEITE, José R. Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Novas Tendências e Possibilidades do Direito Ambiental no Brasil,
em WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Os Novos Direitos no Brasil:
Natureza e Perspectivas. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v., p. 181-292: “[...] Com efeito, desta forma,
visualiza-se o meio ambiente como um macrobem, que além de bem incorpóreo e imaterial se configura
como bem de uso comum do povo. Isso significa que o proprietário, seja ele público ou particular, não
poderá dispor da qualidade do meio ambiente ecologicamente equilibrado, devido à previsão constitucional, considerando-o macrobem de todos. Adita-se, no que se refere à atividade privada, a qualidade
do meio ambiente deve ser considerada, pois o constituinte diz que a atividade econômica deverá observar, entre outros, o princípio da proteção ambiental, conforme estatui o art. 170, VI, da Constituição
da República Federativa do Brasil. [...]” (p. 216).
BENJAMIM, Antônio Herman V. Função ambiental. In: Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 66.
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material genético (Art. 225, §1o, II da CF/88 c/c a Lei nº 9985/2000, a Lei
nº 11105/2005, e a Lei nº 11460/2007);
c) definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração
e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer
utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem
sua proteção (Art. 225, §1o, III da CF/88 c/c a Lei nº 9985/2000);
d) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade (Art. 225, §1o, IV da CF/88 c/c a Lei nº 9985/2000);
e) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade
de vida e o meio ambiente (Art. 225, §1o, V da CF/88 c/c a Lei nº
9985/2000);
f) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente (Art.
225, §1o, VI da CF/88 c/c a Lei nº 9795/1999 e o Decreto nº 4281 de
25/06/2002);
g) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submetam os animais a crueldade (Art. 225, §1o, VII da
CF/88 c/c a Lei nº 9985/2000, com o Decreto nº 4340 de 22/08/2002).
A ação verbal de restaurar, preservar, definir, exigir, controlar, promover e
proteger implica transitividade, isto é, não permanece indefinidamente, necessita
de permanente complemento, ou recriação e revigoramento, o que se alcança
com o permanente cumprimento dos deveres inerentes.
A Constituição brasileira, desta forma, privilegia uma estrita modalidade de
posições jurídicas, pois ou são direitos-deveres (ou deveres-direitos pendentes
à posição do sujeito) de proteção, articulando os direitos subjetivos de sujeitos
singulares e plurais e, na esfera pública, tarefas, objetivos, sujeições e deveres de
proteção do Estado. É neste sentido que os direitos-deveres socioambientais são
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direitos e deveres fundamentais e, como tais, gozam de tratamento privilegiado na
ordem constitucional e nos tratados internacionais, albergados pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
No espaço constitucional pode-se encontrá-los de modo implícito ou
explícito. Explicitamente são aqueles referidos expressamente no art. 225 da
Constituição de 1988; ao contrário, os implícitos são irradiações ou decorrências
da proteção ambiental, pois incorporam, além de os assegurarem, os atos de
valoração ambiental, como o direito à vida, à saúde, à propriedade, à informação,
à cultura, à educação e ao exercício das ações constitucionais, entre outros. Logo
se pode falar de deveres socioambientais na dimensão objetiva e subjetiva, pois
ora exigem a inação, ora a efetiva prestação dos seus destinatários.
Os deveres fundamentais no marco do Estado
Socioambiental e os princípios de direito ambiental
Os deveres fundamentais são posições subjetivas ex lege, pois ao contrário
dos direitos e dos deveres humanos quando compreendidos como processos
culturais emancipatórios de contendas para a concretização da dignidade
humana, sempre derivam do direito objetivo.
Como posições subjetivas ex lege, ora se apresentam com caráter material,
como, e.g., os direitos e os deveres contidos no mandamento “preservar e
restaurar os processos ecológicos essenciais”, ora instrumentais, como aqueles
que objetivam a execução de direitos e as obrigações materiais, e.g., estudo
prévio de impacto ambiental, ou com vínculos tipicamente processuais, e.g.,
ação popular, inquérito civil, termos de ajustamento, etc.9 Na dimensão objetiva,
ou prestacional, sempre que não correspondam a qualquer direito subjetivo,
os deveres fundamentais socioambientais, seja o destinatário o Estado, ou os
particulares, revelam-se como fronteiras no exercício dos direitos.
Direitos e deveres fundamentais socioambientais são importantes balizadores
do poder político, notadamente o Poder do Estado, pois estes têm de respeitar
9
998
Cf. BENJAMIN, Antônio Herman V. Crimes contra o meio ambiente: uma visão geral. In: Ministério Público e Democracia – Livro de teses. Fortaleza: CONAMP, 1998. T. 2, p. 28-29.
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os limites que lhe são impostos, isto é, a sujeição ao espaço de autonomia dos
cidadãos e das cidadãs, ou a ativamente na intervenção mediante prestações
específicas na conformação dos direitos e dos deveres atribuídos a esses mesmos
cidadãos e cidadãs. É neste locus discursivo que se revela o tema da eficácia
dos direitos e dos deveres fundamentais sociais e ambientais, que podem ser
perspectivados desde diferentes notações, segundo a intensidade normativa
de cada um desses direitos e deveres. Aí se insere a dissensão entre normas
constitucionais preceptivas e normas constitucionais programáticas, com as
consequentes resultantes que operam em ambas as espécies normativas, isto é,
uma intervenção reguladora; e uma intervenção restritiva.
Sabidamente, e aí há consenso doutrinário, a força diretiva dos direitos, das
liberdades e das garantias é mais robusta que aquela atribuída aos direitos
econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA), e isto vai se refletir,
especialmente, na perspectiva material e na organizatória desses direitos, pois
a intensidade de restrição nos primeiros é bastante limitada, e na perspectiva
organizatória sempre haverá submissão à reserva parlamentar, contrariamente
ao que ocorre com os últimos, que possuem menor força diretiva, o que tem
reflexos imediatos no tema dos deveres.
Relativamente aos deveres socioambientais fundamentais está para ser
construída uma deontologia socioambiental. Aí, ingressa-se no fértil terreno das
obrigações diretamente implantadas pelo legislador, com destinatários específicos,
sejam sujeitos singulares ou plurais, seja a coletividade como identidade, seja o
Estado ou seus agentes políticos.
Neste espaço deontológico toma lugar de destaque um dever geral de não
degradar, de não contaminar, com toda a irradiação das obrigações pertinente,
como explicitado no art. 225, parágrafo 1o da Carta de 1988. Aliás, este dever
central talvez tenha sido inspirado pelo que já estava bem definido no art. 29 da
Declaração Universal de 194810. Agora, um renovado dever-direito, cuja dimensão
da obrigação avulta na proteção socioambiental justamente para tornar possíveis
as atribuições de direitos e torná-los concretos.
10
Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo XXIX. 1. Todo ser humano tem deveres para com a
comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
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O direito-dever fundamental ambiental está informado por muitos princípios
que a doutrina vem afirmando com grande insistência, cuja revelação a ciência
jurídica e os pretórios vêm aperfeiçoando. São princípios decorrentes, na sua
maioria, da amplitude do tipo contido no artigo 225, incisos e parágrafos da
Constituição de 1988, combinados com outras normas constituídas na mesma
Carta, e em Tratados e Convenções por ela recepcionados, ademais do conjunto
normativo infraconstitucional pertinente11.
Sabe-se que o direito de cada sujeito, singular ou plural, a um ambiente
ecologicamente equilibrado não constitui per se um direito subjetivo susceptível de
apropriação. A atribuição que aí está é de permissão que exige um dever fundamental
consubstanciado na utilização racional desde uma perspectiva de fraternidade ou
solidariedade, seja na atualidade, seja com as gerações vindouras.
Este dever é de todos e de cada um individualmente, inclusive, por
constitucionalmente expresso, do Estado12.
11
12
O conjunto normativo ambiental está construído através de proposições empíricas especialíssimas.
No percurso de seu desvelamento e submetidas a racionalidade prática essas proposições se incorporaram em uma série de princípios, ditos princípios ambientais que se positivaram e, de modo não
exaustivo, podem assim ordenar-se: Princípio constitucional de proteção ambiental (CF/88, Art. 225).
Princípio da legalidade (CF/88, Art. 5, II). Princípio da supremacia do interesse público primário e princípio da indisponibilidade do interesse público (CF/88, art. 225), temperado pela observância dos direitos
fundamentais e das normas programáticas a eles referidas. Princípio da obrigatoriedade da proteção
ambiental (idem). Princípio da prevenção e princípio da precaução (CF/88, 225, § 1, IV; Dec. Rio/1992,
princípio (15). Princípio da obrigatoriedade de avaliação prévia de obras potencialmente gravosas
(CF/88, 225; EIA, RIMA). Princípio da publicidade (CF/88, 225; Res. 9 do CONAMA). Princípio da reparabilidade do dano ambiental (CF/88, 225, § 3; L. 6938, art. 4, VII). Princípio da participação (Declaração Rio/92, princípio 10; CF/88, 225). Princípio da informação (CF/88, 225; 216, § 2; L. 6938/81; Dec.
98161/89; L. 8078/90 [CDC]; Agenda 21, cap. 40; e as convenções sobre Diversidade Biológica e Combate a Desertificação). Princípio da função socioambiental da propriedade (CF/88, art. 5, XXIII, 170, III
e 186, II). Princípio do poluidor-pagador (CF/88, art. 225, § 3; Rio/92, princípio 16; L. 6938/81, art. 4; L.
9433/97). Princípio da compensação (art. 8, L. 6938/81, atrib. CONAMA). Princípio da responsabilidade
(L. 9605/98, crimes ambientais; L. 6938/81 art. 14, responsabilidade objetiva do degradador). Princípio
do desenvolvimento sustentável (Declaração Rio/92, princípio 13, e Agenda 21). Princípio da educação
ambiental (CF/88, art. 1; e, Agenda 21). Princípio da cooperação internacional (Declaração Rio/92, princípio 2). Princípio da soberania dos Estados na política ambiental (Agenda 21). Princípio da Prevenção
de danos, aqui cabe uma distinção: princípio da prevenção e princípio da precaução. A distinção está na
natureza do risco, v.g., CF/88, art. 7.o XII prevê: “a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio
de normas de saúde, higiene e segurança”. Aplica-se o preceito constitucional ao cuidado da prevenção
ou precaução. Tudo está na natureza do risco. Sendo o núcleo duro na prevenção, o perigo concreto;
na precaução, o perigo abstrato. Em ambos os casos, o meio ambiente do trabalho deverá contar com
as condições necessárias para minimizá-lo, e contar o trabalhador com a proteção adequada, mesmo a
compensação argentária.
Atente-se que Robert ALEXY entende o ambiente numa perspectiva de holodimensão, de “direito fundamental como um todo” (Teoría de los derechos fundamentales. Trad. de Ernesto Garzón Valdés.
Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 3.a reimp. 2002, p. 240-245), vale dizer, um
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Veja-se que o tipo constitucional do art. 225 encerra um objetivo composto:
ambiente equilibrado e bem de uso comum, essencial para a qualidade de vida,
e deveres recíprocos do Estado e da coletividade. Nada aí configura um direito
subjetivo, mas confirma um dever de preservação para a atualidade e para o
porvir. Revelando-se, então, um dever-direito fundamental acrônico, cujo núcleo
duro está na vedação da degradação ambiental, objeto do princípio, sob pena de
defraudar-se o conceito.
No entanto, é certo que grande parte da doutrina já se inclinou pela atribuição
de um direito subjetivo negativo. Com todo o respeito, não se pensa assim. Devese entender que o ambiente é um bem da coletividade13, aí reside seu núcleo
duro, portanto não pode servir a uma perspectiva individualista, sua própria
matriz ancorada na solidariedade o informa como dever-direito ao ambiente
ecologicamente equilibrado, bem como defendê-lo e preservá-lo.
A mais de ser um dever, ele é diretamente derivado do princípio do Estado Social
e Democrático de Direito, que se insere no sistema jurídico objetivado. Nestes
aspectos que se fundamenta a importância de um estudo mais aprofundado
sobre os deveres fundamentais, notadamente no tocante ao desenvolvimento
de novas ideias sobre deveres objetivos e subjetivos, relacionado à teoria dos
deveres de proteção.
Entretanto, para que nosso empreendimento seja ainda mais específico,
propõe-se dar um foco ainda mais objetivo, tomando como norte de orientação
dessas reflexões os princípios da precaução e da prevenção, como se explicitará
13
objeto complexo e de estrutura definida: “as distintas posições do cidadão e do Estado, e entre estas
posições existem relações claramente determináveis, as relações de precisão, de meio/fim e de ponderação” (p. 245). Mais adiante, afirma ALEXY: “Está constituído por um feixe de posições de tipos muito
diferentes. Assim, quem propõe o estabelecimento de um direito fundamental ambiental ou sua adiscrição interpretativa às disposições iusfundamentais existentes pode, por exemplo, incluir neste feixe um
direito a que o Estado se omita de determinadas intervenções no meio ambiente (direito de defesa),
um direito a que o Estado proteja o titular de direito fundamental frente a intervenções de terceiros que
danifiquem o ambiente (direito de proteção), um direito a que o Estado permita participar o titular de direito em procedimentos relevantes para o meio ambiente (direito ao procedimento) e um direito a que o
próprio Estado realize medidas fáticas tendentes a melhorar o ambiente (direito a uma prestação fática)”
(p. 429); concluindo o ilustre jurista que essas posições tratam-se como direitos prima facie ou como
direitos definitivos.
José Rubens MORATO LEITE o denomina de um macrobem (Cf. LEITE, J. R. M., Dano Ambiental:
do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. rev., atual., ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003, p. 81-85), uma concepção que conduz o nosso olhar para uma dimensão holística, um
ver estético que apreenda toda sua totalidade.
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a seguir, pois é importante para o intento a análise do princípio de proteção do
mínimo existencial ecológico e o da proibição de retrocesso ambiental, pois são,
entre outros, princípios de justificação de um Estado Socioambiental e Democrático
de Direito e estão subjacente na tríade principial14 (Prinzipientrias): o princípio da
precaução (Vorsorgeprinzip); o princípio da responsabilidade pela causa, isto é, o
princípio do poluidor pagador (Verursacherprinzip)15; e o princípio de cooperação
(Kooperationsprinzip)16. Mais recentemente, Kloepfer associa o princípio de
integração (Integrationsprinzip)17, podendo-se inferir, então, a existência de treta
princípios de justificação.
Nesta linha, o princípio da precaução acolhe a máxima in dubio pro
ambiente18, sendo um dos mais importantes princípios de proteção ambiental.
Aproxima-se e inclui o princípio da cautela, ou prudência (Vorsichtsprinzip19)
como atuação preventiva (Verhütungsmassnahme) frente a potenciais riscos de
contaminação do meio ambiente20. Sua origem está no direito alemão dos anos
setenta; amadureceu no encontro das Nações Unidas em Estocolmo em 1972 e
obteve consagração na Conferência Rio/92 que propôs a seguinte definição:
O Princípio da Precaução é a garantia contra os riscos potenciais que,
de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda
identificados. Este Princípio afirma que a ausência da certeza científica
formal, a existência de um risco de um dano sério ou irreversível requer
a implementação de medidas que possam prever este dano.
No Brasil foi introduzido pela Lei nº 6.938/81; tendo sido acolhido na
Constituição de 1988 no inciso IV do artigo 225; sendo objeto de tipificação
penal pela Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9605/98) no seu artigo 54, § 3o.
14
15
16
17
18
19
20
Neologismo, adjetivação do substantivo “princípio” com o sufixo “-al”, indicando um coletivo de princípios.
Subsistema de responsabilidade de suportar um dever ambiental.
Cf. KLOEPFER, M. Umweltrecht. 3. ed. ��������������������������������������������������������������
Munique: Beck Juristischer Verlag, 2004, p. 168 e ss., principalmente pp. 173, 185, 189 e ss., especialmente p. 193 (Umweltpolitiche Funktion); p, 198.
Cf. KLOEPFER, M. Umweltrecht. 3a ed. Munique: Beck Juristischer Verlag, 2004 p. 204.
Cf. CANOTILHO, J. J. G. Direito Público do Ambiente. Coimbra: Faculdade de Direito de Coimbra,
1995, p. 40.
Vorsichtsprinzip, princípio da cautela, ou princípio da prudência, tomado de empréstimo das ciências
das finanças e do direito comercial alemão (cf. § 252, do Handelsgesetzbuch - HGB), em direito ambiental pode-se entendê-lo como princípio da prevenção.
Cf. KLOEPFER, M. Umweltrecht. 3. ed. Munique: Beck Juristischer Verlag, 2004, p. 179.
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Como norma de sobredireito, diz o Princípio 15 da Declaração do Rio/92:
Princípio 15: De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da
precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo
com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou
irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser
utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente
viáveis para prevenir a degradação ambiental.
Cumpre notar que toda a abordagem com assento no princípio da precaução
(Vorsorgeprinzip) deve ter em conta o princípio da prevenção (Vorsichtsprinzip21),
ou prudência frente ao perigo de determinados eventos que podem gerar danos
consideráveis ou mesmo irreversíveis ao ambiente (in dubio pro securitate),
especialmente frente às incertezas científicas.
Aqui uma distinção se impõe: (a) princípio da precaução e (b) princípio da
prevenção que o direito alemão distingue da precaução22 quanto a sua finalidade
e utilização como prevenção (vigilância) ou providência; em (a) o núcleo duro está
num risco potencial, já em (b) o que se objetiva é obstaculizar um risco conhecido
por meio de uma medida preventiva (Verhütungsmassnahme). Ambos os princípios,
precaução e prevenção, a toda evidência, são corolários dos princípios de proteção
do mínimo existencial ecológico e da vedação da degradação, pois eles representam
uma garantia na manutenção do status quo socioambiental.
21
22
Vorsichtsprinzip, princípio da cautela, ou princípio da prudência, tomado de empréstimo das ciências
das finanças e do direito comercial alemão (cf. § 252, do Handelsgesetzbuch - HGB), em direito ambiental podemos entendê-lo como princípio da prevenção.
Ao se estudar o direito ambiental alemão, deve-se ler com atenção o emprego do substantivo Vorsorge
(precaução), distinguindo-o dos substantivos Vorbeugung (prevenção propriamente dita, ou no sentido
profilaxia, ou de ação preventiva), ou Vorbeugunsgrundsatz (aqui como equivalente ao Vorsorgeprinzip)
e Vermeidung (prevenção no sentido de evitar um dano, ou em português: evitação, isto é, ato de evitar
algo especialmente desagradável. [Cf. CREIFELDS et all. Rechtswörterbuch. München: Beck, 2007]).
A legislação utiliza os termos nas mais diversas circunstâncias, e.g., Lissabon-Vertrag, (Dritter Teil - Die
internen Politiken und Maßnahmen der Union (Art. 26 - 197), Titel XX - Umwelt (Art. 191 - 193): art. 191
[...] Die Umweltpolitik der Union zielt unter Berücksichtigung der unterschiedlichen Gegebenheiten in den
einzelnen Regionen der Union auf ein hohes Schutzniveau ab. Sie beruht auf den Grundsätzen der Vorsorge und Vorbeugung, auf dem Grundsatz, Umweltbeeinträchtigungen mit Vorrang an ihrem Ursprung
zu bekämpfen, sowie auf dem Verursacherprinzip. (A política da União no domínio do ambiente terá por
objetivo atingir um nível de proteção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes
nas diferentes regiões da União. Basear-se-á nos princípios da precaução e da ação preventiva, da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do princípio do poluidor-pagador.
Tradução livre), in: http://dejure.org/gesetze/AEUV/191.html. Cfr. ainda, Bundes-Immissionsschutzgesetz - BImSchG, em vários artigos, especialmente sobre o dever de precaução (Vorsorgepflicht) no § 5
(1), 4; in: http://www.gesetze-im-internet.de/bimschg/BJNR007210974.html.
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O princípio do poluidor-pagador (Verursacherprinzip), encadeamento dedutivo
da responsabilidade causal, objetiva a absorção dos custos externos da degradação
ambiental, por isso tem uma racionalidade econômica embutida muito importante
em política ambiental, pois persegue a internalização das externalidades negativas
provocadas pelos processos de poluição ambiental. A propósito, objetivando a
correção dessas externalidades, surgiram teorias de economia ambiental23, sendo
muito relevante o denominado “teorema de Coase”24.
23
24
Cf. KLOEPFER, M., Umweltrech. 3. ed. Munique: Beck Juristischer Verlag, 2004 p. 191 e s.
Em 1960, Ronald COASE (The problem of social cost, Journal of law and economics, I-44, outubro
de 1960, Univ. of Chicago Press) apresenta uma proposta analítica ao tratar do postulado keynesiano
no sentido que as externalidades deveriam ser internalizadas pela intervenção do Estado, por meio da
imposição tributária-fiscal aos agentes causantes, e beneficiários de dita externalidade; COASE acreditava que a solução das externalidades não devia se dar pela intervenção do Estado no mercado, ao
contrário, deveria provir da radicalização de soluções exclusivamente mercantis. Sua proposta acabou
cunhada por STIGLER – de TEOREMA DE COASE, que pode ser formulado do seguinte modo: “em um
mercado equilibrado, onde existam condições de competência perfeita, e na ausência de custos de transações, as partes encontrarão uma solução eficiente”. A dedução consequente no Direito está centrada
em garantir que funcione um modelo de competência perfeita, isto é, deve reduzir a existência de falhas
no mercado, como as externalidades (COASE não fala em “externalidades”, ele denomina “efeitos externos”. O conceito de externalidade ou efeito externo revela-se como o benefício ou prejuízo atribuído
a um agente econômico (seja consumidor ou empresa) como consequência do ato de produção ou consumo de outro. Assim o atingido da externalidade pode ser um consumidor ou um produtor e o causador
da mesma. Esses efeitos externos podem ser benéficos, externalidades positivas, ou danosos caso
em que se denominam de externalidades negativas, as mais habituais neste âmbito, os monopólios,
e garantir as condições de liberdade e segurança; vale dizer: reduzir os custos de transação. Quando
não é possível reduzir os custos de transação, e esses se tornam tão altos que dificultam uma solução
de mercado, cabe ao Direito prover uma solução, contudo, esta deve estar fundada numa lógica que
reproduza, o mais aproximadamente possível, o que fariam dois sujeitos negociando livremente. Atentese que, como qualquer teorema, algumas premissas devem ser observadas, são elas: (a) ausência de
custos de transação; (b) direitos de propriedade bem definidos (muitos autores criticam a necessidade
de individualizar um direito); (c) pequeno número de sujeitos. Atendidas essas, o resultado indicará que
sempre se alcança o ótimo (paretiano) independentemente de qual sujeito seja o titular dos direitos de
propriedade. Coase, de um lado, postulava que se devia entender, externalidades (efeitos externos)
como um problema de responsabilidade unidirecional – já que relativos a uma recíproca questão entre
os atores – dos impactos e custos relacionados; de outro, propugnava que a eliminação dos custos de
transação – própria da intervenção estatal – se desse entre os sujeitos envolvidos mediante um acordo
negociado entre eles, objetivando a máxima rentabilidade possível. Ocorre que Coase pensava que um
acordo negociado no mercado pelas partes envolvidas, em igualdade de condições e sem custos institucionais, vale dizer, tributos de qualquer espécie, tem como consequência um incremento da eficiência,
resultando em maior rentabilidade total. Para tanto, acreditava ser necessário que o sistema legal atribuísse claramente os direitos de propriedade (atente-se que se deve traduzir o inglês property rights em
um contexto amplo, com o significado mais abrangente, que simplesmente direitos de propriedade, isto
é, direitos de apropriação, no sentido da “pertença” que se atribui; o exemplo clássico, de que falam os
autores, está no sentido que, quando uma empresa está autorizada a pôr seus dejetos em determinado
lugar, e.g., um rio, não é a mesma proprietária do rio, contudo, tem um “direito de apropriação”, sobre
aquele espaço para dispor seus dejetos) de forma tal que, todo o titular que possa afetar ou ser afetado
pelas atividades econômicas, seja efetivamente um proprietário claramente definido. Só deste modo, o
sistema de preços do mercado tem condições de indicar com precisão e eficientemente quem são os
agentes e quais são os interesses (custos e benefícios) que devem ser estimados.
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Contudo, o que Coase propunha é que todos os efeitos externos podem ser
internalizados eficientemente e otimamente para o produto líquido total, por
meio do estabelecimento de direitos de propriedade (direitos de apropriação) e
a negociação dos atores, neste cenário do mercado – via um sistema de preços
– em competência equilibrada, perfeita e sem custos de transação.
O mais importante é se saber que Coase estava consciente de que toda
a atribuição de direitos é essencial para a eficiência dos sistemas econômicos
sempre que os custos de transação são elevados, e por isso mesmo não titubeava
em afirmar e apoiar as reordenações judiciais desses, de modo a permitir uma
melhora no valor global da produção.
Uma crítica simplificada que se pode fazer está em que se deve entender que
a simples substituição de um modelo de causalidade por um de reciprocidade, per
se, revela-se insubsistente, pois quando dita substituição é realizada, na verdade
o que se faz é alterar a causa eficiente para uma teleológica.
Note-se, que não se encontra nos direitos e nas liberdades a causa determinante
da natureza da responsabilidade, mas nos resultados finais de um objetivo
teleológico, último, no dizer de Coase, “a maximização da produção”.
O que se vê, então, é a comutação da responsabilidade pela finalidade, ou
por outra, a causalidade pela teleologia produtivista. O valor “maximização da
produção” é um valor heterônomo ao valor ético e se pode dizer imanente à lógica
da produção, pois “maximizar” por “maximizar” se converte num performativo que
induz a conclusão que afirma: a legitimação da ação se concretiza na efetividade
da ação mesma.
Ora, isto leva a concluir que deverá prevalecer toda a ação (que não é senão
um direito de propriedade em exercício) ou a articulação de ações (negociação)
que induza como resultado um tautológico “melhor resultado”, desde o critério
da maximização.
A consequência mais imediata, é que esta causalidade teleológica reduz todo
o direito ao direito de propriedade, de outra parte, reduz toda a liberdade à
liberdade de mercado (quando Coase exemplifica com o caso que, frente a um
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fábrica poluente, os vizinhos se mudem de lugar, deixando seus terrenos para a
fábrica, tendo em conta os custos mais baratos, para a fábrica, na transladação
e na alocação desses vizinhos para outro espaço urbano, do que o de mover
a fábrica está empregando um princípio de causalidade teleológica produtivista
com fundamento numa ética performativa).
O que Coase não leva em consideração são os motivos dos vizinhos, valores que
sua tese despreza como: significações valorativas culturais, étnicas, urbanísticas,
afetos, etc. O argumento de que esses motivos se podem traduzir em expressão
monetária não convence. Por óbvio, se convertidos, eles vão formar parte dos
fatores de produção final, mas se indaga: se pode expressar tudo por meio de um
preço?). O que Coase refuta é a tese pigouniana, muito cara aos economistas
do bem-estar, entre a tensão dialética: custos privados e custos sociais. São estes
últimos, segundo Pigou25, os que justificam a intervenção reguladora do Estado
no mercado.
Finalmente, uma crítica importante está em que, para que efetivamente tenha
resultado a negociação entre os atores, é necessário que o procedimento da
negociação entre eles não tenha custos associados. Portanto, o sistema só implica
aplicabilidade quando o número de atores (agentes) envolvidos no cenário
negocial é reduzido, e na medida direta da nulidade ou residualidade dos custos
de transação.
Assim, toda teoria econômica em direito ambiental precisa ser lida com
cautela, pois o princípio de responsabilidade causal de que deriva o princípio
do poluidor-pagador representa, como diz Ramón Martin Mateo, um sólido
fundamento para a política e o direito ambiental e sua concretização está na
eliminação das motivações econômicas da contaminação ambiental, desde uma
perspectiva de uma ética distributiva26.
Observe-se, especialmente, ensina Kloepfer, que o princípio do poluidor pagador
(Verursacherprinzip) deve ser entendido como princípio de responsabilidade
25
26
PIGOU, Arthur C. (1932). The Economics of Welfare. London: Macmillan and Co. [ed. orig.: 1920]. Ver����
são eletrônica, http://www.econlib.org/library/NPDBooks/Pigou/pgEWCover.html.
MARTIN MATEO, R. Manual de derecho ambiental. Madrid: Trivium, 1995, p. 55
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(Verantwortungsprinzip) efetiva27. Estes princípios, certamente, são importantíssimos
para a concreção do mínimo existencial ecológico e para a vedação do retrocesso,
pois desde a efetiva responsabilização se aproxima uma justiça ambiental das
condições fáticas ambientais que reclamam, no plano político e jurídico, correção
de injustiças sociais – resultante de encargos para a sociedade não incluídos nas
decisões de produção ou de consumo por parte dos agentes contaminantes28.
Relativamente ao princípio de cooperação (Kooperationsprinzip) e ao princípio
de integração (Integrationsprinzip), serão referidos brevemente. Ambos, por óbvio,
estão em consonância com a manutenção de um mínimo existencial ecológico e
com a garantia de proteção contra a retrogradação ambiental.
O princípio de cooperação está conformado por dois imperativos: a
responsabilidade e a distribuição dos deveres entre o Estado e a sociedade,
entendidos estes como uma comunhão perceptiva dos encargos que a conservação
e a manutenção do ambiente exigem29; está, também, suportado pelo princípio
da participação democrática que envolve a todos, pois forte na ideia que os
graves problemas ambientais têm de que ser enfrentados entre o Estado e a
sociedade conjuntamente, por meio dos diversos grupos e atores sociais, lhes
garantindo não apenas a participação nas decisões, mas também, e de maneira
especial, a possibilidade de formular e executar políticas ambientais.
O princípio da cooperação – fundado na participação todos aqueles relacionados
ao ambiente – exige para a sua concretização consenso dos diversos Estados e
organizações internacionais, pois o ambiente como “lugar de encontro” dos seres
e das coisas não obedece a fronteiras normativas, espaciais ou temporais30. No
direito interno brasileiro, vale lembrar a Lei nº 9985, de 2000, que regulamentou o
artigo 225, § 1º, incisos I, II, III E VII, da Constituição de 1988, e instituiu o sistema
nacional de unidade de conservação da natureza (SNUC - que está formado pelo
conjunto das unidades de conservação federais, estaduais e municipais).
27
28
29
30
Cf. KLOEPFER, Grundprinzipien..., p. 9
Cf. CANOTILHO, J. J. G., Direito público..., p. 43
Cf. KLOEPFER, M., Umweltrecht…, p. 198 e s.
Nesse sentido o art. 174º, nº 4, do Tratado CE, dispõe que, no domínio do meio ambiente, a Comunidade e os Estados-membros cooperarão, no âmbito das respectivas atribuições, com os países terceiros
e as organizações internacionais competentes.
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O princípio de integração (Integrationsprinzip) revela-se num princípio de
equilíbrio entre meios adequados de políticas de crescimento econômico e social,
bem como diretrizes jurídicas socioambientais para a conservação do entorno
com o objetivo de desenvolvimento integrado, coerente e, aí sim, sustentável.
Deste princípio, numa perspectiva holística, são constituídos critérios de decisão
que não podem ser de ordem estritamente econômica, bem como não podem ser
de ordem exclusivamente ambientalista, apostando pela integração das diversas
políticas com o objetivo de uma justa composição dos vários interesses envolvidos na
questão ambiental. Este princípio enfoca toda a proteção ambiental, não se impondo
cortes entre contaminação das águas, solos ou emissões poluentes na atmosfera; de
outro modo, esta integração incorpora duas dimensões, uma externa, conformada
na jurisdição internacional, e outra interna, relativa ao limite da jurisdição nacional31;
no plano interno, dele decorre o princípio de unidade de gestão e ação, pois a
responsabilidade pela política ambiental e sistematização ambiental do território
fica integradamente distribuída ente os agentes públicos e privados encarregados
do planejamento econômico e social integrados na política ambiental.
O princípio da integração rompe a dicotomia público/privado, reafirma a
dignidade da pessoa humana, pois envolve os indivíduos na maior intervenção
nas decisões do Estado, especialmente aquelas relacionadas com a qualidade de
vida, minimizando as injustiças e intentando promover uma substancial igualdade
no seio da sociedade.
Ainda, ao lado, pode-se visualizar o princípio de conservação ou manutenção
do status quo (Prinzip der Status-quo-Erhaltung), como também o importante
princípio de proteção da continuidade ou da existência (Bestandsschutzprinzip),
ou ainda, o princípio de proibição da deterioração (Verschlechterungsverbot).32
Todos, de algum modo, são expressões do princípio da proibição de retrocesso.
Objetivam uma proibição de retrogradar (ou de “evolução reacionária” no dizer
de Canotilho) das condições ambientais conquistadas.
Esses princípios tornam possíveis as condições de um mínimo existencial
ecológico, desde uma perspectiva dos princípios da dignidade do humano e da
31
32
Cf. KLOEPFER, M., Grundprinzipien..., p. 13-14; Umweltrecht…, p. 204 e s.
Cf. KLOEPFER, M., Grundprinzipien..., p. 3; Umweltrecht…, p. 169
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segurança jurídica. José Joaquim Gomes Canotilho assim formula uma concepção
do princípio de proibição do retrocesso:
[...] o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através
de medidas legislativas (...) deve considerar-se constitucionalmente
garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que,
sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios,
se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’
pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do
legislador e a inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo
essencial já realizado33.
Portanto, em sede de direitos fundamentais, a proibição do retrocesso social (no
caso socioambiental) vincula o legislador infraconstitucional ao poder originário
revelador da Constituição, não podendo retroceder em direitos fundamentais
efetivados.
Contudo, observe-se, este princípio não é absoluto, protege apenas o que
se considera como “núcleo essencial”, vale dizer, a “fronteira que o legislador
não pode ultrapassar, delimitando o espaço que não pode ser invadido por uma
lei sob o risco de ser declarada inconstitucional”34, fronteira esta que não pode
ser violada. Ingo Wolfgang Sarlet já anotou que a proibição de determinadas
alterações do texto constitucional objetiva o futuro, já que o a Constituição se
projeta nele, num exercício proléptico inarredável. Logo, a imposição de limites,
pois, impõe-se em defesa da própria Carta Magna35.
A racionalidade ecológica e o intento de uma
formulação teórica dos deveres fundamentais
socioambientais
Pensa-se em um modelo de racionalidade ecológica, desde uma perspectiva
ecocêntrica moderada36, com o objetivo de construir uma crítica jurídico33
34
35
36
CANOTILHO, J. J. G., Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina,
1.998, p. 320 e 321.
D’ÁVILA LOPES, A. M., Os Direitos Fundamentais como Limites ao Poder de Legislar. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 2.001, p. 188
A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
Uma perspectiva ecocêntrica moderada não refuta um antropologismo de meios, empregando-se aqui
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ambientalista. Neste passo, entende-se por racionalidade ecológica todo o
exercício da razão que privilegia as formas impuras e periféricas do pensamento37,
desde formas argumentativas, empíricas e procedimentos indutivos para a
indagação e compreensão da realidade socioambiental, privilegiando a intuição e
a emoção, identificando-a com a relação substantiva natureza/cultura, imanente
em todo o vínculo presencial biótico/abiótico.
Perceber-se-á, assim, que uma racionalidade ecológica está, na verdade,
integrada por muitas visões mesológicas: uma ecologia que pode aceder
ao irracional38; uma ecologia dos saberes, científicos ou não científicos, dos
tradicionais, mesmo daqueles emergentes de crenças e práticas ancestrais; uma
ecologia da relação natureza e cultura e da relação adjetivada: natural e cultural;
uma ecologia da religião, da estética, da ética, da política, da economia, do
direito e da ciência; uma ecologia global, regional, local; uma ecologia urbana,
rural; uma ecologia do indivíduo, do gremial, do social; uma ecologia energética,
industrial, comercial e incrustada nos serviços de qualquer tipo; uma ecologia
humana, interior e que privilegia o alter; uma ecologia profunda, transpessoal e
com aguda consciência holística. Uma racionalidade ecológica deste tipo aposta
na convivência harmônica com a natureza, intenta por todos os meios preservar
as espécies (ameaçadas ou não), já que essas são valorações humanas.
De outro modo, ninguém mais duvida da grave crise ecológica que põe em
sério risco o agora frágil equilíbrio natural e cultural de todas as formas bióticas
37
38
antropologismo, não como o faz o materialismo que considera o homem apenas como uma parte da
natureza, sendo dela um produto; não, o que se pretende com a expressão antropologismo de meios
é significar os meios racionais do homem ao perceber a realidade que pode compreender; assim, um
antropologismo de meios, não supõe um antropocentrismo de resultados, antes, afirma uma holovisão
do mundo da natureza e da cultura.
Uma razão que privilegia as formas impuras e as periféricas do pensamento revela um compromisso de
aprender a apreender, penetrar na dimensão estética e na dimensão paidética do pensar e do agir, com
a possibilidade singular de desenvolver a passagem do pensamento linear ao pensamento sistêmico e
complexo por intermédio do uso de recursos expressivos que nos fornece a razão sensível, vale dizer, a
capacidade humana em captar e representar as formas cognitivas da realidade, desde uma proporção
que reconheça similitudes e diferenças, diria Aristóteles, à percepção que nós percepcionamos – atualidade do sensível e do sensitivo (cf. ARISTÓTELES. Del Alma, 425b, In: Obras Completas. 2. ed.
Madrid: Aguilar, 1967, p. 860).
Atente-se, na realidade não há o racional e o irracional fora do conhecimento, pois como dizia Pontes
de Miranda, “a irracionalidade já é conhecer, e há caminhos para conhecer-se o irracional como tal: o
que não conhecemos é o conteúdo, digamos, do irracional, mas por vezes e provavelmente sempre é
o que ocorre com o nosso conhecimento” (O problema fundamental do conhecimento. 2. ed. Rio de
Janeiro: Editor Borsoi, 1972, p. 93).
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e abióticas39, fato que afirma a necessidade de uma racionalidade ecológica
consequente. Atente-se, ainda, que uma racionalidade ecológica, ainda que
se dirija numa perspectiva ecocêntrica, não repudia o antropocentrismo e o
antropomorfismo para fazer sua a defesa da diversidade no seu mais amplo
sentido. Ademais, uma racionalidade ecológica privilegia o fator humano revelado
pela “dignidade” emprestada ao ser humano, valor este que se estende a todas
as coisas e as criaturas vivas, pois todas estão presentes no humano do ser40.
Uma racionalidade ecológica, por preocupar-se em manter contrabalançada
a relação biótico/abiótico, desde uma substantiva relação integral natureza/
cultura, compromete-se com as futuras gerações ameaçadas com uma funesta
herança, consistente em receber um planeta inabitável pela agressão sistemática
ao ambiente: envenenamento da biosfera com suas consequências, desequilíbrios
climáticos e efeito estufa, deterioração da camada de ozônio, desflorestamento,
contaminação das águas, extinção de espécies vivas, desorganização urbana,
enfim, um entorno depreciado à vida em qualquer de suas manifestações.
Uma razão ecológica moderna está na perspectiva do agrupamento dos
organismos que processam ou consumem energia, classificados pela sua forma
de alimentação, caracterizando-se em níveis tróficos, com os “produtores” ou
39
40
E aqui não se fala dos riscos produzidos pela probabilidade de perigo criada pelo “imaginário” individual
ou social.
Por fator humano se entende a multiplicação do que é próprio do ser no jogo humano na perspectiva de
Gadamer (La actualidad de lo bello. El arte como juego, símbolo y fiesta. Barcelona: Paidós, 1977, p.
66-68 – a lição de Gadamer vem a calhar, pois o “jogo” veste um símbolo de universalidade, pois associa
as noções de regra, liberdade e totalidade, qualquer que seja a ordem destes termos, e ao mesmo tempo
se substitui um estado anárquico, por um estado de ordem, metaforicamente se pode dizer que vincula um
estado de natureza a um estado de cultura, ou de um estado espontâneo para um estado de ordem. Talvez
a ideia mais importante de Gadamer nesta obra seja a de que não se pode pensar o cultural humano sem se
pensar no lúdico. De outro modo, por meio do “jogo”, encontra-se uma história do “movimento”, um automovimento, como diz Gadamer, que se revela no “jogo” e na “arte”. Ademais, Gadamer ensina que, na prática
humana, o “jogo” inclui a “razão” dado que o homem, disciplina e ordena seus próprios movimentos, “como
se tivessem fins”, diz ele; isto é, uma racionalidade livre de fins. No “jogo” – afirma Gadamer – se exige um
“jogar com...” numa manifestação comunicativa), vale dizer, um jogo que pode incluir em si mesmo a razão,
o caráter distintivo mais próprio do ser humano, consistente em darem-se fins e aspirar a eles conscientemente, e poder ironizar o característico da razão. Pois a humanidade do jogo humano tem sede em que esse
jogo de movimentos ordena e disciplina, por dizer assim, seus próprios movimentos; movimentos esses
expletivos na combinação de dois outros fatores, o abiótico e o biótico, o primeiro, representando os agentes
físicos, químicos, geológicos, etc., do ambiente; o segundo, relativo a cada um dos seres vivos da ecosfera;
ademais, o fator humano revela-se num processo cujos pressupostos físicos, bioquímicos e fisiológicos vão
integrar mecanismos que estão na base de um processo histórico e cultural, este essencialíssimo do homem
e da mulher, não encontrado em qualquer outro ser vivo.
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“autrofos” na base do sistema, vale dizer, plantas verdes (terrestres ou aquáticas)
das quais deriva, ultima ratio, toda a energia para os demais organismos. Portanto,
neste modelo se encontram os herbívoros que consomem os produtores,
predadores que se alimentam dos herbívoros e os predadores que consomem
outros predadores (cadeia de alimentação).
Nos anos setenta, a razão ecológica, na perspectiva sociológica, passa a
ser investigada por meio do que se denominou de “estudos de impacto”. Seu
mais ilustre representante, Allan Schnaiberg, desenhou uma importante teoria
sociológica sobre análise energética e escassez41.
Dos anos oitenta em diante, desenha-se, especialmente frente à realidade
da globalização, a tese sociológica da “sociedade risco” com os consequentes
problemas ecológicos derivados. Seus expoentes máximos são Ulrich Beck42 na
Alemanha e Anthony Giddens43 na Inglaterra.
Em síntese apertada da obra desses autores, pode-se dizer que, em primeiro
lugar, eles descrevem as características e as implicações derivadas dos novos
riscos (e perigos também) produzidos pelos processos de modernização e
procedimentos de industrialização, fatores que conduzem à sociedade de
risco; em segundo lugar, analisam os efeitos desses, numa sociedade em que a
incerteza e a insegurança se manifestam desde uma “modernização reflexiva”. Este
processo, por sua vez, gera uma crise de identidade pessoal pela individualização
de muitas esferas da vida cotidiana, incluindo a família e o trabalho; e, finalmente,
de posse dessa análise, estudam o papel ambíguo da ciência e a sua influência na
formatação de novos espaços e estratégias políticas.
Na atualidade se aposta numa racionalidade ecológica, cosmocêntrica, impura
e periférica. Quando se refere ao impuro e ao periférico, quer se referir a um
estado que nega o “puro”, vale dizer, algo situado num espaço enclausurado
e não contextual e atomizado, inversamente, o “impuro” está contextualizado,
assume posições, vínculos e relatos, tudo isto gera uma “pluralidade” que produz
diferentes (dis)posições e conteúdos que se ampliam em “novas narrativas”
41
42
43
SCHNAIBERG, A. The environment: From surplus to scarcity. Oxford: Oxford University Press,1975.
BECK, U. The risk Society. London: Sage, 1992.
GIDDENS, A. Consecuencias de la modernidad. Madrid: Alianza Ed., 1993.
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cronotopicamente localizadas que predicam a historicidade do processo.
Aposta-se na periferia tendo em consideração que “centro” só há um, caso se
aceite que tudo está relacionado, ademais, uma “visão da periferia” força por refletir
que “não se está num entorno”, como se ele fosse “algo alheio” a nós mesmos.
Não! Não se está no entorno, “Nós somos o entorno”! Pensar uma razão ecológica
conduz à interdisciplinaridade de todos os campos dos saberes, ampliando e
desenvolvendo as disciplinas existentes e propondo, por meio delas, e do patrimônio
cultural periférico, novos contextos, para que o núcleo interdisciplinar se enriqueça
e atenda a todos, neste “lugar de encontro” que é o ambiente.
Por certo, o direito moderno, no paradigma do Estado Democrático de Direito,
esgota-se na formalidade legalista e positivista do ordenamento jurídico estatal. Tal
circunstância aponta, desde logo, a sua limitação para a resolução dos problemas
e conflitos gerados no âmbito socioambiental, seja no nível institucional do poder
judiciário, seja no nível da legislação positiva estatal. A ideologia liberal-capitalista
(encerrada no princípio da acumulação e seu corolário da eficiência) que sustenta
esse paradigma acredita num tipo de democracia exclusivamente representativa, do
mesmo modo, credita à cidadania apenas o poder de representação, assegurando
aos indivíduos direitos abstratamente considerados.
Por isso, pensa-se num Estado Socioambiental e Democrático de Direito – numa
perspectiva de inclusão das necessidades sociais e ambientais –, do qual flui a
emergência de um novo sentido de cidadania, que aponta para uma democracia
socioambiental fundada em direitos e deveres concretos, na participação real e
consciente dos indivíduos singulares e plurais, conformando uma ecocidadania
responsável em assegurar as condições que possibilitem afirmar que um mínimo
existencial ecológico, núcleo material do princípio da dignidade humana, deve
ser um máximo de concretização dos direitos fundamentais.
Na verdade, uma porta aberta para a regulação e garantia das conquistas
sociais, enfim, uma afirmação consciente da supremacia do princípio da dignidade
humana, induzindo à concretização de um direito fundamental à segurança que
este Estado de Ambiente deve produzir para as presentes e futuras gerações,
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entendendo, esta última, como um dos resultados da garantia de regulação
eficaz que atenda à supremacia dos interesses constitucionalmente albergados;
de modo especial, o princípio da dignidade da pessoa humana, que só se realiza
com a proteção de um mínimo existencial ecológico, forte na vedação da
degradação ambiental. Uma razão assim articulada, não pode ser refutada.
O emérito e saudoso professor da Universidade de São Paulo (USP), Gofredo
da Silva Teles Júnior (nome como ele mesmo adotou), afirmava que ter direitos
é ter, evidentemente, as obrigações correspondentes aos direitos dos outros44;
contudo, não é só isso. Ter deveres é condição para o próprio sujeito (que deve)
conservar os direitos e, não se está tratando aqui da noção de direitos-função
(a que se refere à dogmática jurídica)45; de outro modo, não se está tratando
daquelas cadeias do pensamento jurídico que afirmam a unidade do direito (em
sentido objetivo-subjetivo)46; prefere-se conceber o dever como uma atribuição
de necessidade, necessitas moralis, como já afirmara há muito Leibniz47, correlativo
do direito, que é atribuição de poder, potentia moralis e subsume o binário do
justo/injusto, do legal/ilegal, etc.
O dever está travado na valoração desde uma permissão (ser) que exige
cumprimento (dever-ser). De outro modo, reveste uma realidade do cultural, pois
o direito/dever está dirigido ao valor da segurança e da justiça, num exercício
derivado das relações de fraternidade, objetivando realizar a máxima vantagem
social (ou o bem comum48). Está em nós mesmos (portanto, está no sujeito), por
44
45
46
47
48
TELLES JUNIOR, G. Iniciação na ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 273.
Onde o sujeito tem a permissão e ao mesmo tempo o dever, como no caso específico dos funcionários
públicos.
Como é o caso da teoria pura do direito de Kelsen, ou a teoría egológica del derecho de Cossio. A teoria
pura destaca a norma, fazendo depender o direito subjetivo do objetivo, e a teoria egológica arrazoa,
fundamentalmente, sobre a conduta, isto é, o direito subjetivo (faculdade e dever jurídico e não o direito
subjetivo em sentido estrito), só que reconhece ser direito objetivo e subjetivo, termos logicamente correlativos (cf. BATALHA, Wilson de Souza Campos, Nova introdução ao direito. Rio de Janeiro: Editora
Forense2000, p. 526)
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 - 1716), definia o direito como “potentia moralis” ou ainda, como “facultas seu moralis potentia”: “Qualitas realis [moralis?] in ordinem ad actionem duplex est: potentia agendi
et necessitas agendi; ita potentia moralis dicitur Jus, necessitas moralis dicitur Obligatio” (“A qualidade
real (moral?) ordenada à ação é dupla: potência de agir e necessidade de agir; assim, a potência moral
se chama direito, a necessidade moral, obrigação”), isto está em Fragmento sem título, in: Textes
inédits, tomo II, Grua, Gastón ed., París, 1948,p. 811; obra consultada na Biblioteca Central de Universidade de Coimbra (2003). Em Spinoza, potentia moralis, melhor se expressaria com potestas moralis
Que nada tem a ver com a doutrina da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Ao
contrário, realizar o bem comum, ou a máxima vantagem social, é concretizar a supremacia do inte-
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isso, está no sentimento que o direito envolve uma identidade em um sistema
binário: justo-injusto, legal-ilegal, permitido-proibido, adimplido-inadimplido.
Está em nós mesmos, já que todo direito pressupõe liberdade, mas ausente o
“dever” (e.g., o dever de não interditar), não há liberdade possível. Assim, só entendida
como resultado de direitos e deveres, equitativamente pensados (resultado de
uma noção política-jurídica equilibrada), a liberdade alcança a Justiça49. Contudo,
assinale-se que o direito justo ou injusto é direito (desde que inserido num sistema
jurídico existente, válido e eficaz), já o direito e o dever desequilibrados não; isso
porque o ideal que o equilíbrio busca alcançar é o ideal de Justiça (e não se está
falando de uma justiça metafísica, mas de uma Justiça como uma câmara de
compensações cujos direitos e deveres sejam os títulos50).
49
50
resse social (popular) ou interesse público primário, materializado na sua constituição, que reside em
participação sociopolítica fraterna, desde mecanismos de conscientização para a ação que deverá ser
desenvolvida numa praxis social que irá confrontar as diversas ideologias dos grupos sociais num ciclo
dialético permanente.
Justiça como adequada prestação jurisdicional conforme ao Direito.
Sim, pode-se pensar a Justiça como uma câmara de compensações (a semelhança de uma Verrechnungsstelle, ou em inglês: Clearing House) dos títulos inscritos como direitos e deveres. Quase sempre
a Justiça está obscurecida, convenientemente, por aqueles que podem manipular o poder comunicativo
social, mas eles olvidam da grandeza do poder do ser a que bem se referiu o grande Walt Whintman: I
am an acme of things accomplished / And I am an enclosure of things to be (Apud, PROGOFF, I. Depth
Psychology and Modern Man, New York: The Julian Press Inc., 1959, p. 90: Sou um ápice de coisas
realizadas / E sou um [espaço] cercado de coisas que são). Daí que o simbolismo da Justiça acentua,
sistematicamente, uma união harmoniosa de forças opostas; os pratos da balança não pesarão olho
contra olho, e não distribuirão a recompensa e o castigo. As complexidades do ser humano não podem
ser assim, mecanicamente, determinadas. A espada da Justiça não está aí para ferir os perversos, ou
para agradar os virtuosos, seu símbolo é maior, está implicado a reconciliarmos em um mundo em que
os trapaceiros parecem prosperar e os inocentes acabam em um monte de esterco. De outro lado, Jó
não foi o primeiro e certamente não será o último a lastimar-se desse estado de coisas, mas seguirá
sempre determinado que, ao fim e ao cabo, a Justiça triunfará. Os dois pratos da balança da justiça permanecem vazios, prontos para aceitar e receber a dualidade humana. Somente depois que aceitarmos
a complexidade de nossa natureza seremos capazes de abordá-la e compreendê-la. Os místicos vêm
nos pratos o número oito, também o signo do infinito [∞], os dois círculos do “oito” perpassados por dois
eixos, um superior, o vertical (celeste), outro inferior, o horizontal (terreno), que lhe dá equilíbrio. A Justiça, assim, é mediadora de duas realidades, não mira nem a balança nem a espada, sua visão é interior,
e sua venda está ali para que não se confunda com o detalhe e a parcialidade pessoal. Nossos tribunais
de justiça mantêm um equilíbrio de trabalho entre o indivíduo e o Estado, e entre um indivíduo e outro.
A solução legal não é determinada por uma régua de cálculo. O querelador que vence uma ação judicial
nunca recuperará exatamente o que perdeu, seja a saúde, os bens materiais, o tempo precioso ou o
nome honrado. O tribunal só pode adjudicar-lhe uma compensação. A natureza, igualmente, oferece
compensações, ainda que aí, também, nunca se recupera exatamente o que se perdeu, v.g., quando se
debilita um sentido, os demais se tornam mais aguçados. O que quer que se ganhe nunca é idêntico ao
que se perde, nem se poderá dizer que seja, precisamente, o oposto, mas, de um modo especial, compensa a perda da capacidade debilitada. Os tribunais são instrumentos úteis para conseguir certos tipos
de compensação e equilíbrio social (Cf. PEREIRA DA CÂMARA, A., O valor Justiça, manifestação, no
plano social, da vontade criadora e redentora de Deus, in: AJURIS, n.o 6, Porto Alegre, 1976.
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Em nosso entendimento os direitos e os deveres equilibrados estão no mundo
cultural sobreposto ao natural, em uma relação de dependência factual. Por isso,
estão incorporados em uma ação (ou estrutura) de relevância social (pois a ideiavalor que o social lhes implica não é arbitrária); ainda mais, é a força que deve
subordinar-se ao direito, todavia, é evidente que somente numa sociedade ficta,
o direito dispensaria a força, o respeito devido seria autógeno51.
De qualquer forma, direitos e deveres equilibrados servem como instrumentos
de resistência, pois eles, nesta situação, articulam uma especial forma de ser
e de dever-ser, isto é, do fático e do normativo (natural/cultural), da realidade
e da normatividade, o que leva a juridicidade que é sempre articulação da
normatividade e da realidade, como bem afirmou Baptista Machado:
[...] é certo por um lado que o conteúdo normativo-valorativo do Direito
não depende da eficácia (vigência social); mas, por outro lado, também
o é que os valores ideais só são jurídicos-positivos, só têm juridicidade,
quando se institucionalizam na ordem social real vigente52.
Considerações finais: uma deontologia socioambiental
Lançar as bases para a formulação de uma reflexão sobre os deveres
fundamentais socioambientais, com a preocupação de desenhar um Estatuto
Deontológico dos Direitos e Deveres Fundamentais Socioambientais, é um
empreendimento que requer muito esforço.
Sabe-se que deontologia etimologicamente significa ciência do dever, está
em δέον –οντός, ou aquilo que é devido, preciso ou necessário, particípio
presente neutro de δέω53, logo, vai-se entender a expressão como aquilo que é
necessário, conveniente. Contudo, não se esquece de que a criação do termo é
de Benthan (Deontology or the science of morality, 1834), e depois foi empregado
pelos utilitaristas para designar o estudo empírico que se necessita fazer em uma
situação determinada. Com o passar do tempo o uso do termo foi apropriado
51
52
53
Do grigo αuτογνές – autogenés, isto é, que se gera a si mesmo.
BAPTISTA MACHADO, J. Introdução ao Direito e ao discurso legitimador. Coimbra: Livraria Almedina, 1999, p. 42
Que é obrigar, mas, antes, ter falta ou estar necessitado de algo, também desejar, pretender.
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pelas associações profissionais para construir um catálogo de deveres vinculados
à praxis profissional.
A origem da necessária apropriação está na dissimetria ocasionada por alguns
detentores do conhecimento e da técnica que lhes outorgou um grande poder,
e o usuário deste saber e técnica ficou reduzido a uma dependência intelectual
e econômica. Logo os códigos intentaram superar essa dissimetria com regras
formais cuja transgressão é passível de sanção.
O intento de refletir sobre os deveres fundamentais socioambientais está
intimamente vinculado ao desenho de uma Deontologia Socioambiental, e por
consequência, não pode afastar-se do indispensável estudo da Moral, na perspectiva
de uma Moral Pública54. Neste sentido, a deontologia possui um viés moral.
Os deveres morais frequentemente denominam-se deontológicos. Há uma
deontologia moral, sem dúvida, assim como há uma deontologia jurídica em
sentido estrito. O que mais interessa é a deontologia jurídica, na qual estão
contidos os deveres jurídicos de qualquer tipo. Atente-se que, mesmo nos
códigos de ética profissional, a parte dispositiva sobre os deveres é jurídica, pois
os atos de coerção previstos não são unicamente aprovados pela consciência,
mas são atos coercitivos socialmente organizados que têm efeitos no próprio
grupo profissional, levando inclusive a interdição da profissão (!) e com efeitos
na ordem jurídica estabelecida.
Com maior razão, a construção de uma deontologia socioambiental, fundada
na moral pública, mas com forte densidade jurídica, é uma exigência para a
maior eficácia dos direitos fundamentais socioambientais que todos, Estados e
particulares, devem privilegiar.
54
Cf., em particular, Joseph Raz, The Morality of Freedom, Oxford: Clarendon Press, 1979 (especialmente p. 37-52; 212-220). Também, About Morality and the Nature of Law, em: The American Journal of Jurisprudence 48 (2003) 1-15. Ainda, The authority of Law: Essays on Law and Morality.
Oxford: Oxford University Press, 2002. Observe-se que, para Raz, o que determina a validez das regras
de direito são suas fontes jurídicas, portanto, ainda que o fenômeno jurídico, como tal, resulte de fatos
sociais e estes de alguma forma vinculem conteúdos morais, tal circunstância não autoriza a incorporação da moral no direito, pois a validade da norma está indelevelmente presa a sua fonte (jurídica), e
esta última não vincula um conteúdo moral. Daí a formulação da sua strong social thesis, pois a validade
das normas jurídicas depende apenas de fatores empíricos, de fatos sociais, livres, portanto, de critérios
de justiça ou de correção moral (The authority of Law: Essays on Law and Morality. Oxford: Oxford
University Press, 2002. pp. 39-40; também 228 e segs.).
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Portanto, a deontologia jurídica no âmbito ambiental deve intentar desenhar
uma deontologia socioambiental que construa e identifique os deveres
fundamentais socioambientais distintos das obrigações socioambientais. Daí
o necessário enfoque da distinção entre deveres, obrigações, ônus, sujeições
e encargos socioambientais, privilegiando sempre a fundamentalidade dos
deveres e das responsabilidades inerentes ao próprio conceito dos Direitos e dos
Deveres Fundamentais. Neste sentido, foi feliz a Declaração de Responsabilidade
e Deveres Humanos de Valença de 1999, pois os deveres estão na base da efetiva
validez dos direitos humanos e fundamentais.
Por conseguinte, necessário investigar com apuro e com o intento de
sistematizar os deveres dedicados à proteção do ambiente e da biodiversidade,
além do dever de informar todas aquelas atividades que possam afetar o meio
ambiente, ademais do dever de restaurar ou ressarcir os danos eventualmente
ocasionados, deveres esses que cabem tanto ao Estado como aos particulares,
que devem ter presente todos os recursos naturais, renováveis e não renováveis,
incluídos a biodiversidade biológica (flora e fauna); o solo; o subsolo; o
espaço aéreo; o espectro eletromagnético; os recursos hídricos, hidrocarburos,
minerais; pedras preciosas ou semipreciosas e outros compostos e elementos
que se encontram de forma natural na terra, dentro dos limites do território
nacional; tendo em vista a conservação e o manejo das áreas protegidas e os
sítios de importância biológica, paleontológica, histórica, cultural, arqueológica,
espeleológica, geológica e as paisagens de excepcionais características.
De outro modo, tal empresa deverá identificar e sistematizar o dever do
Estado na regulação e no controle no ingresso e na saída do país de recursos
biológicos e genéticos, e sua utilização de acordo com os interesses nacionais,
somando-se o dever do Estado e da Sociedade na proteção do acervo natural
e do seu aproveitamento sustentável para a garantia de sua conservação, até
mesmo como recurso estratégico, para as atuais e futuras gerações.
Direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções, a célebre sena
pontiana, conjunto de seis categorias que ocorrem no espaço jurídico, são produtos
culturais. Direitos e Deveres como categorias jurídicas implicam atribuições para
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sujeitos identificados ou identificáveis em algum cronotopo definido ou definível.
Sujeitos de direitos e deveres são as pessoas naturais ou fictas, as universalidades
de direito e as instituições e os órgãos despersonalizados.
Partir de uma consideração deontológica dos direitos fundamentais
socioambientais revela uma conexão íntima com deveres que a todos são
impostos em relação com a natureza, com o biótico e abiótico, motivo pelo
qual se assumem obrigações (correlativas às pretensões) de evitar a degradação
sistemática do espaço socioambiental.
Como sujeitos de direitos, de alguma forma, todos estão submetidos às leis
naturais (e aos mandamentos culturais) a que se submete o planeta, especialmente
os humanos. Como espécie, somos como qualquer outra espécie, e os deveres de
proteção são da espécie, não da natureza. Os sistemas naturais, a natureza, dispõem de
processos de proteção frente à ação antrópica55. Basta, para tanto, destruir a espécie,
não há qualquer segurança transcendente para a proteção aos seres humanos que
degradam o espaço que ocupam e onde atuam, portanto, esta é uma razão suficiente
para uma autoimposição de deveres de preservar e promover as condições de vida
planetária. Os recursos naturais são limitados, as reservas não são intermináveis e
acabarão por esgotar-se, não se pode esperar que uma tecnologia viesse no futuro
sanar os problemas que no presente são quase incontornáveis.
Como sujeitos de direitos, somos também obrigados a atuar de modo
responsável. Neste sentido, tem-se o dever de se solidarizar, primeiro, com os
processos naturais, em estrita cooperação com eles, só assim se poderão construir
os instrumentos necessários para a nossa sobrevivência como espécie. Atente-se
que os intercâmbios bióticos e abióticos não se comportam de modo singelo e
linear, mas sim de modo complexo plurilinear, isto é, tudo está em interação e em
mútua dependência: o que ocorra em um determinado lugar do planeta repercutirá
em outra ambiência ou em uma determinada espécie, pois esta mútua interação e
dependência asseguram – ainda que de modo paradoxal – a biodiversidade.
Contudo, essa interação e essa biodiversidade ocorrem em uma larga escala
temporal que necessariamente não coincide com o timing da produtividade
55
O adjetivo antrópico é qualificador da ação do homem relativamente às transformações por ele provocadas no ambiente.
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alocada e inconsciente que exigem as sociedades de consumo indiscriminado, sirva
de exemplo o denominado aquecimento global, que conduz ao dano atmosférico
irreversível dado ao progredimento rápido e continuamente crescente da escala
temporal em que os processos naturais atuam em sua reprodução56. Observese que se as interações humanas respeitassem a biodiversidade, incluídas nesta
ambiência as relações sociais, os mecanismos de regulação entre os qualificados
e diversificados elementos dos sistemas naturais estariam assegurados. Todavia,
a intervenção antrópica homogeneizante e preocupada exclusivamente pelo
benefício econômico imediato modificou substancialmente a velocidade, a
simetria e os equilíbrios entre tais processos.
É sabido que uma floresta, em sua escala temporal, filtra os elementos
daninhos à sua manutenção; contudo, quando a ação antrópica é que “filtra”
rápida e continuamente, por lavradores ou madeireiros, esses processos naturais
se fragmentam e desaparecem. Portanto, uma deontologia socioambiental
tem por objetivo afirmar o dever de proteger e promover a sustentabilidade
ambiental e social em todas as relações que se estabelece com o biótico e abiótico;
ademais, tem o dever de precaução ante as incertezas e a falta de previsão das
consequências sociais e naturais das políticas econômicas e ambientais do atual
modo de produção, um modelo já convertido na forma globalizada de justificar,
decodificar e interferir no mundo.
Discorrer sobre direitos e deveres, na perspectiva jurídica – abandonando
propositadamente os denominados moral rights e os respectivos moral duties, ainda
que possam, como efetivamente assim ocorre, influir como razões justificatórias dos
56
As emissões de gases de efeito estufa, v.g., dióxido de carbono (CO2), metano (CH4), e óxido nitroso
(N2O), além dos clorados e fluorados dos hidrocarbonetos (CFC), produzem significativo mudança
climática, o que tem gerado uma imensa dívida ambiental, a denominada dívida do carbono. Esta
dívida que deveria ser paga pelos que mais contaminam passa a ser através da “razão astuta” um ótimo negócio; aliás, desde os anos setenta uma “razão astuta” tem sido sustentada teoricamente pelos
seguidores do movimento do Law and Economics, na denominada escola de análise econômica do
direito, na esteira de Ronald Coase, Guido Calabresi, Richard A. Posner, Kenneth Arrow, entre outros.
Atente-se que os juristas imbricados aos postulados do Law and Economics acreditam na análise econômica, seja instrumental e funcional, perseguindo uma evolução formal do direito. Mas, na verdade,
esta teoria se associa a uma versão pragmatista do direito com forte acento na crença de um direito
flexível e intuitivo. Contudo, a análise econômica do direito, suportada num determinismo de tipo científico, aponta soluções ambivalentes e indeterminadas mais próximas dos interesses crematísticos da
economia moderna. Certamente, está-se gerando uma dívida ecológica para com as gerações futuras
que, evidentemente, não se vai poder pagar; vale dizer, está-se vivendo do “crédito ecológico”, com a
tranquilidade de saber que nunca se vai quitar essa dívida, sequer os seus “juros”.
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direitos e dos deveres jurídicos –, pode levar a equívocos entre as relações que se
estabelecem entre autoridade e liberdade como característica dos regimes políticos.
Em sede política, é comum que ao privilegiar-se a autoridade seja atribuído aos
deveres a maior significância na ordem jurídica; ao contrário, sempre que privilegiada
a liberdade, o destaque vai para o conjunto de direitos atribuídos pelo ordenamento
jurídico. Ao lado, discorrer sobre deveres fundamentais, na perspectiva jurídica, pode,
também, levar a alguns equívocos na distinção entre deveres e obrigações, entre
deveres constitucionais e entre estes os deveres fundamentais, e deveres legais, entre
obrigações constitucionais e obrigações legais.
Neste artigo, desprezam-se deliberadamente, ainda que importantes, as
considerações históricas da inserção dos deveres nas Constituições, assim
como, do mesmo modo, não se referiu às características analíticas dos deveres
na perspectiva modal, portanto se simplificou a aproximação a eles desde uma
única perspectiva: a de posições jurídicas subjetivas em sentido amplo no espaço
do jurígeno57, seja na esfera social de sujeitos singulares ou plurais, seja na esfera
do Estado e suas extensões.
Toda produção do direito está impregnada pelas significações de disposição e
posição. Com estes termos se quer denominar:
(a) a produção das normas de permanência temporal e integração no
sistema jurídico constituído e dominado por disposições de naturezas
diversas, entre elas, veja-se o caso do denominado direito objetivo,
dispondo sobre os modos e meios de adaptação e corrigenda das
relações inter-humanas no espaço/tempo social; e,
(b) a atribuição e individuação de posições jurídicas subjetivas positivas
ou negativas ou intersubjetivas, como o caso dos denominados direitos
subjetivos (ou a subjetivação do direito objetivo) ou dos deveres
jurídicos (positivos ou negativos, como correlatos dos direitos, ou
autônomos).
No que toca às posições subjetivas, podem estas ser qualificadas como ativas,
passivas, ou mistas, segundo especiais condições conferidas ao sujeito. As posições
jurídicas passivas, que nos interessaram, no momento, são aquelas denominadas
57
Aqui se utilizou a expressão espaço jurígeno para identificar aquela fração do espaço sociocultural em
que é produzido o direito.
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de deveres-obrigações, e entre estas, os deveres fundamentais. Neste sentido
convém, num primeiro momento, pensar os deveres, em sentido amplo, como
posições assertórias de determinado comportamento, isto é, o comportamento
devido e as obrigações refletem o lado passivo das relações jurídicas, como há
muito já o afirmava Couture58, em que um sujeito está compelido a fazer ou
omitir alguma coisa em relação a outro. Portanto, enquanto um comportamento
devido tem por pressuposto uma abstenção de qualquer interdição na fruição
de um direito, um comportamento obrigatório cuida por satisfazer o direito
correlativo mediante o exercício de ações ou omissões dedicadas.
Nem todas as posições passivas são deveres, no sentido estrito; e nem todas
as posições ativas, direitos subjetivos como com acuidade afirmava Pontes de
Miranda59. Os exemplos que se trazem, segue o pontiano, são de “interesse legítimo”,
interesse econômico ou moral, com que se pode intentar ação, sem se ser titular
de direito subjetivo. Porém o interesse legítimo, em tal caso, é ligado à proteção
de direito que seria ofendido com a decisão, ou a que ela aproveitaria, embora não
seja a res in iudicium deducta. As principais situações jurídicas, que se procuraram
ver como sem sujeito passivo, foram as do direito de propriedade e as dos direitos
de personalidade, como se o ser relação jurídica com todos importasse em ser
relação jurídica sem o segundo termo60. Isto é facilmente compreensível, pois no
momento em que há violação, o que está em causa é a ação, e não só o direito.
Na realidade, a regra jurídica é regra para relações inter-humanas, ou, mais
exatamente, interpessoais, sendo o conceito de pessoa o conteúdo de uma das
regras jurídicas, pois nela há regramento de relação entre as pessoas existentes e
as que ela cria. A regra, considerando suficiente o suporte fático, torna-o jurídico;
e a relação jurídica estabelece-se entre a nova pessoa e as outras. Onde quer que
a regra jurídica crie direitos, do lado passivo, por parte de todos, ou de alguém,
está o alterum non laedere. E da natureza das coisas que não se possam criar
direitos que se não dirijam a alguém. Nem dever que não tenha do outro lado, a
posição subjetiva, ativa, do titular de direito. Dever consigo mesmo seria, apenas,
58
59
60
Cf., Eduardo J. Couture. Vocabulário Jurídico, Montevideo, 1960, Vox: deber.
Tratado de Direito Privado, tomo V, § 560, 2, p.103 e ss. Rio de Janeiro: Editor Borsói, 1955.
Pontes de Miranda, F. C. Tratado de Direito Privado, tomo V, § 560, 2, p.104. Rio de Janeiro: Editor
Borsói, 1955.
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dever moral, não dever jurídico61.
Em síntese, como já afirmava Pontes de Miranda, dever corresponde a direito;
obrigação, pretensão62, logo, os deveres e as obrigações estão identificados
ou com o direito subjetivo, ou com os interesses legítimos, e enquanto os
deveres pressupõem uma abstenção de perturbação do gozo de um direito, ou
na interdição dele, ou no exercício de suas faculdades; as obrigações implicam
o exercício indispensável das atividades necessárias para satisfazer os direitos
(cumprimento das obrigações) cuja pretensão se manifestou.
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61
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