https://doi.org/10.47456/cadecs.v12i1.45340
ENTRE A RUA E O PASTO,
ENTRE O PAVÃO E A VACA:
Relações humano-animais no
nascimento do Urbanismo e do
Paisagismo brasileiros1
BETWEEN THE STREET AND THE PASTURE,
BETWEEN THE PEACOCK AND THE COW:
human-animal relations in the birth of
Brazilian Urbanism and Landscaping
Ana Paula Perrota*1
Diana Helene**1
Palavras-chave:
reforma urbana;
relação humano-animal;
urbano versus rural;
antropologia da moral.
Resumo: Partindo da premissa que a Arquitetura, o Urbanismo
e o Paisagismo se estabelecem como uma forma privilegiada de
normatização da relação entre ser humano e natureza nas
cidades, o artigo propõe analisar as transformações
empreendidas no processo brasileiro de urbanização (ou
desruralização) da metade do século XIX ao início do século XX,
com foco na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país.
Trata-se de analisar como a presença na cidade da natureza no
geral e dos animais em particular foram classificados de
diferentes maneiras: ora permitidos ora proibidos a partir da
dicotomia rural e urbano e conforme os diferentes contextos
socioambientais.
A
partir
de
referências
documentais/iconográficas e de pesquisa bibliográfica em
diálogo com os estudos sobre as relações humano-animais foi
possível observar como as práticas e atividades que articulam
a vida entre humanos e animais são atravessadas por
fenômenos multifacetados, que, longe de serem uma resposta
objetiva e racional aos problemas da cidade, caracterizam-se
1 Recebido em 16 de maio de 2024; aceito para publicação em 03 de junho de 2024.
*1 Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professora Adjunta da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro e do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFRRJ. Coordenadora do
Núcleo de Pesquisa em Socialidades mais que humanas (SOMAH).
[email protected].
**1 Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professora Adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
e Design da Universidade Federal de Alagoas.
[email protected].
27
ENTRE A RUA E O PASTO, ENTRE O PAVÃO E A VACA
como formas de intervenção que atendem aos ideais
modernizantes e civilizatórios conformadores das reformas
urbanas.
Keywords:
urban reform;
human-animal
relationship;
urban versus rural;
anthropology of morals.
Abstract: Starting from the premise that Architecture,
Urbanism and Landscaping are established as a privileged form
of standardizing the relationship between human beings and
nature in cities, the article proposes to analyze the
transformations undertaken in the Brazilian process of
urbanization (or deruralization) at the middle of 19th century to
the beginning of the 20th century, focusing on the city of Rio de
Janeiro, the country's capital in this period. The aim is to analyze
how the presence of nature in general and animals in particular
in the city were classified in different ways: sometimes permitted
and sometimes prohibited based on the rural and urban
dichotomy and according to different socio-environmental
contexts. Based on documentary/iconographic references and
bibliographical research in dialogue with studies on humananimal relations, it was possible to observe how the practices
and activities that articulate life between humans and animals
are crossed by multifaceted phenomena, which far from being
an answer objective and rational approach to the city's
problems, they are characterized as forms of intervention that
meet the modernizing and civilizing ideals that shape urban
reforms.
Introdução
Perseguição às vacas, mendigos, cães, tudo revela um horror da
autoridade ao que não é estável, fixo, imediatamente controlável.
(Nicolau Sevcenko, 2015, p.86)
P
artindo da premissa de que a Arquitetura, o Urbanismo e o Paisagismo se
estabelecem como uma forma privilegiada de normatização da relação entre ser
humano e natureza nas cidades, o artigo se propõe a analisar as transformações
empreendidas no processo brasileiro de urbanização (ou desruralização) do final do
século XIX ao início do século XX, com foco na cidade do Rio de Janeiro, capital do país
neste período. Trata-se então, de analisar como a presença na cidade da natureza no
geral e dos animais em particular são classificados de diferentes maneiras: ora
permitidos ora proibidos a partir da dicotomia rural e urbano. As intervenções realizadas
neste período pelo poder público, seus peritos e o mercado imobiliário entraram em
choque com a forma como as pessoas ocupavam, se apropriavam e davam sentido aos
lugares, gerando perturbações de diversas ordens que afetaram o cotidiano da população
de forma expressiva.
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
PERROTA, Ana Paula; LORETO, Diana Helene.
28
Desse modo, a vilanização de diferentes espécies animais em paralelo à
valorização de outras nas cidades enquanto uma paisagem multiespecífica2 é um
fenômeno multifacetado e socioantropológico que caracteriza o processo de
urbanização. Ao analisar tais transformações, iremos explorar os discursos subjacentes
à separação entre rural e urbano, de modernização, saúde pública, racismo e segregação
socioespacial. Historicamente, esse modelo de ordenamento humano-animal tem sido
justificado por meio de um ideal de progresso e pressupostos estéticos e higienistas que
confluem para uma perspectiva moralizadora, colonizadora e civilizatória sobre a
cidade, que redefine o espaço de acordo com determinados valores e ideais.
Um aspecto importante a se considerar é como essas ações urbanizantes vão
afetar de forma desproporcional as populações subalternas e seus modos de relação com
os animais. Como será tratado, enquanto os setores privilegiados da sociedade passam a
desfrutar de espaços paisagísticos ornamentados com animais pitorescos, as populações
pobres e negras são impedidas de manter suas criações animais, afetando também suas
formas de subsistência. Essa proibição está intrinsecamente ligada a uma lógica de
segregação socioespacial em que determinados corpos, espaços e práticas são
classificados como inadequados ou incompatíveis com a visão dominante de
modernidade e progresso. Nesse sentido, a proibição da criação de animais não pode ser
compreendida apenas como uma medida de higiene pública, mas sim como parte de um
processo mais amplo do ideal de urbanidade.
Para entender esse processo iremos examinar, a partir de referências
documentais/iconográficas e de pesquisa bibliográfica, os valores que sustentam o
processo de urbanização no Brasil. Discutiremos então, conforme Tim Ingold (1994), que
se os animais ocupam de forma antagônica uma posição central na construção ocidental
do conceito de “homem” - e entendemos aqui esse ideal construído de humano como
também do sexo masculino e de raça branca -; veremos que essa mesma perspectiva em
relação aos animais e, de forma, geral à natureza, é importante para a construção
material e idealizada da cidade.
Assim como a animalidade, segundo o antropólogo, é entendida como uma
deficiência de tudo que apenas humanos possuem. O rural também é: sujo, incivilizado
e atrasado. Em oposição, portanto, a cidade precisa ser limpa, civilizada e moderna. E
para tanto deu-se início a um processo de separação de certos elementos do mundo
natural, entendidos como signos de atraso e da falta de civilidade. Sendo assim, partimos
da perspectiva de que as idealizações em torno da noção de cidade por oposição ao
rural, seguem as oposições entre natureza e cultura, humano e animal produzindo uma
Partiremos aqui do conceito “paisagem multiespecífica” de Vander Velden e Silveira (2021). Esse
conceito está em conformidade, segundo os próprios autores, com a virada na Antropologia que
descentralizou o humano enquanto protagonista na produção de paisagens para pensar em mundos
compartilhados e co-constituídos por seres humanos e outros-que-humanos.
2
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
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ENTRE A RUA E O PASTO, ENTRE O PAVÃO E A VACA
imposição de padrões materiais e simbólicos que visam normatizar a relação entre o ser
humano e os animais a partir de novos termos.
HUMANIDADE E ANIMALIDADE E AS CIDADES OCIDENTAIS
MODERNAS
Já se tornou lugar comum nas Ciências Sociais discutir de maneira crítica sobre
os esforços realizados pelos modernos de separar a natureza da sociedade. Essa
dimensão mais geral, no entanto, será discutida aqui a partir do surgimento das cidades
ocidentais modernas, com foco na urbanização brasileira e suas profundas raízes raciais
marcadas pelo nosso processo de colonização. Isso porque, segundo Gabriela Leandro
(2019), não existe nenhum espaço isento de racialização nas cidades brasileiras. A ideia
é pensar um dos desdobramentos dessa problemática geral, tratando de como esses
modos de aglomeração urbana corresponderam aos ideais de modernização que
carregavam, entre outras coisas, o constructo de homem civilizado ocidental a partir
dos pressupostos de uma purificação entre os usos rurais e urbanos do espaço, assim
como da afirmação do predomínio humano sobre o mundo natural.
Essas ideias partem, então, da concepção de uma separação estrita entre
humanos e animais, que culminaram no próprio pressuposto filosófico sobre a
humanidade como radicalmente oposto à animalidade. De maneira geral, essas
operações constitutivas dos processos de urbanização seguem as dicotomias
estruturantes do pensamento ocidental e moderno. A divisão entre humanos e animais
faz parte da divisão mais ampla entre ser humano e natureza que é parte constituinte
da construção da alteridade e da inferioridade daqueles estabelecidos a partir da
colonização europeia como os "Outros" - humanos e não humanos.
Esse empreendimento epistemológico, colonizador, político e moral cria
hierarquizações a partir de uma certa elaboração do humano, como portador de
habilidades exclusivas que o localiza numa posição exterior e superior à natureza e de
todos aqueles colocados ao seu redor. Embora a noção de humanidade atualmente seja
percebida como um axioma evidente, trata-se de uma invenção recente, que na época
das colonizações europeias, havia sido vividamente debatido. De acordo com Edmund
Leach, a garantia de que todo indivíduo é membro de uma única espécie animal se fez
a partir de uma invenção garantida no século XX e então “homem, espécie humana,
humanidade acabaram por ser tratados como sinônimos permutáveis” (LEACH, 1982, p.
55). E como pretendemos afirmar aqui, seu lócus privilegiado é a cidade.
A partir dessas ideias é possível compreender aspectos significativos das
transformações sobre a presença e as relações estabelecidas com animais na paisagem
urbana por meio dos novos enquadramentos morais a que humanos e não humanos foram
recolocados. Nesse sentido, de acordo com Keith Thomas, a “insistência tão grande em
distinguir o humano do animal também teve consequências importantes para as relações
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
PERROTA, Ana Paula; LORETO, Diana Helene.
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entre os homens” (THOMAS, 1988, p. 49). Trata-se então de pensarmos como esses
enquadramentos tiveram implicações não sobre as espécies de animais em si, mas sobre
as relações com os humanos, considerando também os diferentes grupos sociais e essa
presença compartilhada nas cidades.
Durante a colonização se estabelece uma necessidade da Europa se colocar como
o centro de uma ideia de humanidade. Para Aníbal Quijano (2005), a colonização vai
impulsionar uma classificação da população humana mundial de acordo com a ideia de
Raça, uma construção elaborada por meio das relações de poder estabelecidas entre
colonizadores (brancos) e colonizados/as (indígenas americanos/as e africanos/as).
A noção de natureza, enquanto marcador que estabelece desigualdades de
gênero, raça e espécie, consiste em uma perspectiva que acredita em estados e
substâncias. Para tanto, é preciso acreditar na natureza a partir desses mesmos
atributos, e antes mesmo disso, inventá-la (WAGNER, 2010). E em associação oposta à
sociedade, a natureza é inventada a partir de um princípio ético que promove sua
desvalorização através de ideias de atraso, incivilidade, sujo e etc. De maneira geral e
simplificada, como discutido em trabalho anterior (PERROTA, 2015), nós, modernos,
acreditamos então na separação entre natureza e cultura e que, quanto mais nos
distanciamos da natureza, mais humanos nos tornamos. Nessa gradação temos dois
processos: o primeiro de humanização, que se dá pelo processo de civilidade; o segundo,
de controle da natureza, isto é, de subjugação dos corpos d'água, da flora e da fauna,
pela sua objetificação e domesticação, que na modernidade se aprofundam em razão do
desenvolvimento técnico-científico.
Desse modo, “civilização humana” é virtualmente sinônimo de conquista da
natureza (THOMAS, 1988). E ainda de acordo com Thomas (1988), na Inglaterra do início
do período moderno, o domínio humano sobre as “criaturas inferiores” forneceu a
analogia mental em que se baseiam vários arranjos políticos e sociais. E trata-se de
pensar aqui nas cidades, enquanto uma forma e instrumento de agrupamento humanoanimal, como um desses arranjos.
No mundo ocidental a clássica separação entre urbano e rural, ou entre cidade e
campo, se dá a partir da ideia de que estes se constituem como espaços opostos e
inconciliáveis. Pensando nessa dicotomia como uma dualidade específica da separação
geral entre sociedade e natureza, observamos como a cidade encarna a civilidade e o
campo, a natureza selvagem, primitiva e rude. Tais classificações carregam então os
mesmos pressupostos morais que definem a separação entre humanos e animais. Em
ambos os casos, o primeiro é tido como superior ao outro, e encarnando o signo de
desenvolvimento e progresso. Adjetivos que servem tanto aos humanos quanto às
cidades. E falando especificamente do urbano, este carrega em si a representação de
uma evolução do rural, um caminho rumo à civilização, constituindo também a ideia de
um avanço temporal entre os dois.
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
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ENTRE A RUA E O PASTO, ENTRE O PAVÃO E A VACA
Apesar da palavra de ordem de diversos movimentos sociais camponeses “se o
campo não planta, a cidade não janta”, no imaginário do senso comum, do mesmo modo
que a humanidade é tida como separada da natureza, a cidade é percebida como um
organismo independente do campo. E mesmo que nossa agricultura seja marcada cada
vez mais por intensos processos tecnológicos de mecanização, que configuram as áreas
rurais como diversas de algo “natural”, na constituição dessa dualidade, o imaginário do
rural ainda é situado como similar à natureza “natural”. Ademais, nesta lógica
oposicional e evolutiva entre humanos e animais, assim como, entre campo e cidade,
podemos dizer que o processo de urbanização é também constituído simbolicamente
como um processo de desruralização (SANTOS, 2013; TORRES, 2017). Colocados como
dicotomicamente
e
temporalmente
diversos,
todo
espaço
ainda
não
urbanizado/civilizado/humanizado/avançado, isto é, em uma etapa anterior de
desenvolvimento, seria configurado como rural/selvagem/natural/atrasado.
A partir dos pressupostos evolucionistas, que se misturam entre as ciências
biológicas e humanas, pensa-se numa história única e linear em que toda área rural um
dia viraria urbana. E para tanto é preciso trabalho. Para humanizar-se perante si e o
outro são imprescindíveis muitos esforços. De acordo com Agamben (2017), os traços do
tipo humano são de tal maneira indecisos e aleatórios, que são sempre capazes de se
desfazer e de se anular como aqueles de um ser temporário. Frente a uma humanidade
que não possui feição própria e, portanto, de uma ontologia instável, a virtual volta do
humano ao animal é sempre um perigo. E então, de diferentes modos, e a partir de
múltiplas esferas simbólicas e de poder, estamos lidando com a nossa humanidade, com
a perspectiva do outro sobre a nossa humanidade e sobre a humanidade do outro,
incluindo também os animais neste jogo elástico que a noção moral de humanidade
opera, valorizando e/ou desvalorizando certas vidas (PERROTA, 2015) e espaços
(HELENE, 2015).
A separação entre a sociedade e a natureza, e entre a humanidade e a
animalidade, por um lado eleva o humano enquanto ser moral que possui uma vida
sacralizada, mas por outro lado encerra no campo da amoralidade aqueles que se
encontram próximos ao que seria um “estado natural”. Analisando a Inglaterra, nos
séculos XVII e XVIII, Thomas (1988) discute sobre como negros, mulheres e pobres foram
alvos de debates se estes pertenceriam ou não ao “clubinho dos humanos” (KRENAK,
2019, p. 13) e então possuiriam domínios sobre as criaturas inferiores. O distanciamento
das mulheres e dos colonizados da ideia de humanidade também foi o que consolidou a
exploração e a marginalização desses grupos (FEDERICI, 2017, p. 360).
Trata-se de dizer então que Sociedade versus Natureza, Humano versus Animal,
Masculino versus Feminino, Brancos versus Racializados, etc; constituem um conjunto de
pares dicotômicos que encontra seu espaço em outra dicotomia: Urbano versus Rural.
Patrícia Hilll Collins (2016) nomeou tal forma de organização do pensamento como o
"constructo da diferença dicotômica por oposição", eixo filosófico central dos sistemas
de opressão de raça, classe, gênero, sexualidade e, mais recentemente, foi cunhado
também o termo especismo, que organiza hierarquias de superioridade e inferioridade,
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
PERROTA, Ana Paula; LORETO, Diana Helene.
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das quais se organizam também a separação entre urbano e rural. Segundo Collins, uma
característica fundamental desse constructo é que as dualidades criadas por estas
dicotomias não se complementam3, “ao contrário, as metades dicotômicas são
diferentes e inerentemente opostas umas às outras” implicando em “relações de
superioridade e inferioridade, relações hierárquicas que se enredam com economias
políticas de dominação e subordinação” (COLLINS, 2016, p. 108-109).
Olhando de perto a tarefa de distinguir a sociedade e a natureza e, por
conseguinte, a demarcação da diferença entre humanos e não humanos, constata-se que
de forma alguma trata-se de um projeto simples e objetivo. E o que poderia parecer
evidente é, em realidade, um projeto instável que acompanha a história do pensamento
filosófico ocidental. Frente à dificuldade de um projeto que podemos dizer inacabado,
tal como o mito de Sísifo, Agamben discute que o surgimento das ciências humanas no
século XIX teria contribuído para o estabelecimento de fronteiras mais fixas entre esses
domínios. No que diz respeito à humanidade, o filósofo elabora então a ideia em torno
do que chama de uma “máquina antropológica dos modernos” para explicar a operação
existente na nossa cultura que produz os humanos por meio das oposições homem e
animal, humano e inumano (AGAMBEN, 2017). E como iremos discutir aqui, também
entre cidade e campo.
O primeiro e mais fundamental esforço dos modernos é então o de distinguir-se
da natureza e por conseguinte dos animais. De acordo com Ingold (1994), a concepção
própria de animalidade se dá como uma deficiência de tudo aquilo que apenas os seres
humanos possuem. A prerrogativa então do sujeito como único ser que pensa, seguindo
o essencialismo cartesiano, fez com que apenas os humanos fossem capazes de ir além
da condição física da animalidade, alcançando a condição moral de pessoa. E além de
portar exclusivamente competências como a racionalidade, a distinção em relação aos
animais passa também pelo processo civilizador. Nesse sentido, Norbert Elias (2011) nos
ajuda a pensar nessa distinção, conforme trata da civilização dos costumes como prova
de que não existiria atitude natural no homem, ou não deveria existir para que pudesse
ser chamado de civilizado e então de humano.
3
A questão da complementaridade entre os gêneros é a base da divisão do trabalho em muitas
sociedades não ocidentais. No entanto, no capitalismo, não se observa a complementaridade, mas
sim a hierarquização, que é a base da subjugação das mulheres. Isso porque, na divisão de tarefas
entre homens e mulheres, as atividades designadas aos homens são aquelas consideradas trabalho
(aquelas relacionadas à produção de mercadorias, bens e serviços), e por tal condição são aquelas
remuneradas. As tarefas designadas às mulheres, ao contrário, não são classificadas como trabalho
(aquelas ligadas à reprodução da vida, alimentação/nutrição, cuidado, provisão de habitação, limpeza
e cuidados), mas colocadas como uma condição “natural” feminina e, portanto, realizadas como um
“ato de amor”, que, por essa razão, não deveriam ser remuneradas. Em um mundo onde todos
dependem de dinheiro para a manutenção da vida e sem a possibilidade de ter seu próprio capital se
criam as condições materiais para a sujeição das mulheres e para a apropriação de seu trabalho por
parte dos trabalhadores homens (FEDERICI, 2017, p.195).
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33
ENTRE A RUA E O PASTO, ENTRE O PAVÃO E A VACA
Os que se denotam ou são denotados por esse termo apresentam um conjunto de
comportamentos tidos como socialmente aceitáveis, que Elias explorou em seus
pormenores – mas que não iremos tratar aqui. O importante é pensar como o humano
racional se distingue hierarquicamente como superior do animal sem razão, assim como
o civilizado se distingue do não civilizado, de modo que sua humanidade é colocada em
xeque. Em ambos os casos está posto o mesmo ponto argumentativo: cabe a uns
competências específicas que faltam a outros. Fato esse que promove ideias morais de
superioridade e inferioridade, organizadas em torno da humanidade e animalidade.
Afinal, de quem se aproximam os grupos sociais constituídos como humanamente
inferiores? Uma vez distante da humanidade, argumentamos aqui que são colocados em
proximidade da animalidade (PERROTA, 2015).
O fato de viver próximo à natureza e em proximidade aos animais, no “mundo
rural”, inclusive, significava que os povos não ocidentais não possuíam uma cultura
desenvolvida e, portanto, eram “incivilizados” (HALL, 2016, p. 33). Tais afirmações
constituem os discursos colonialistas, que celebram o progresso, a civilização e o
desenvolvimento urbano, atribuindo ao Ocidente o papel de modelo e protótipo. E como
iremos ver, as populações das cidades emergentes nesse período, como o Rio de Janeiro,
foram alvo do mesmo escrutínio. A humanidade advém de um esforço humano. A cidade,
como definiu Thomas, também é um “empreendimento propriamente humano” (1988,
p. 290). Entretanto é o espaço não só do humano, mas do homem civilizado ocidental. E
como queremos discutir aqui, trata-se de pensar na cidade e em seus arranjos
socionaturais enquanto antagonista ao campo ou ao rural e, portanto, como parte do
esforço humano para garantir sua humanidade.
E para tanto é preciso tratar ainda de um último par dicotômico ligado ao
surgimento do conceito de tradição. Igualmente produzido pelo discurso da
modernidade, o termo tradição identifica práticas rurais como atrasadas. Desse modo,
essa ideia, tal como é usada pelo Estado e pelas ciências adquire o sentido e a função
de um elemento desqualificante. Associado ao campo, esse conceito o representa como
espaço de atraso, tanto daqueles que vivem nele, quanto das suas lógicas territoriais
que envolvem as relações com os animais. A partir de então, como enfatiza Renzo Taddei
(2017), formas de vida ligadas ao campo têm sofrido alterações em suas identidades
sociais, ganhando o rótulo pejorativo de tradição. Esse discurso, que atravessa todo o
século XX, é vigoroso até os dias atuais ao associar atraso e subdesenvolvimento à vida
no campo em oposição à modernidade e ao progresso atrelados à vida urbana.
Os pares dicotômicos discutidos aqui são pensados como um conjunto de
pressupostos que fornecem uma visão sobre o que deveria ser a cidade e a vida das
pessoas, de modo que a convivência entre usos urbanos e rurais no espaço das cidades
tornou-se um acinte ao modelo de civilização e modernidade. A cidade pode ser pensada,
então, como uma tentativa de materialização de tais dicotomias, que, em paralelo a
outras que também refletem nosso "constructo da diferença dicotômica por oposição"
(COLLINS, 2016), vão estruturar as espacialidades urbanas, como as relações entre
Público/Privado, Produção/Consumo, Coletivo/Doméstico, Trabalho/Moradia, entre
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
PERROTA, Ana Paula; LORETO, Diana Helene.
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outros (HELENE; ALBINATI; LAZARINI; ANDREOTTI, 2022). Isto é, se configura como o
espaço em que ganham lugar as condições materiais do processo de urbanização,
afetando a vida de humanos e animais, que sentiram os processos reais da modernização
por meio da imposição de uma modificação de suas práticas e saberes e, por conseguinte,
de seu direito à cidade.
Pretendeu-se com essa discussão lançar as bases para discutir como usos
classificados a partir de então como “rurais” se tornaram impróprios ao espaço urbano,
de modo que se tornaram vilanizadas, não propriamente os animais em si, mas aqueles
ligados, por exemplo, à atividades como as práticas agropecuárias. Como já foi dito,
consideramos que controlar a natureza ou afastar o natural da cidade não é simples e
nem óbvio. Mas é um processo multifacetado. Trata-se na sessão seguinte de nos
atentarmos para as questões colocadas neste item, respondendo às perguntas: que
natureza/animais estão autorizados, desautorizados e essas ações ocorrem em que
circunstâncias e por parte de quais grupos sociais?
Ao sair desse debate feito em escala macro e entrando na perspectiva micro,
referente às reformas urbanísticas da metade do séc. XIX e início do XX, poderemos
visualizar como o projeto urbano buscou operar uma purificação das misturas entre usos
“rurais” e “urbanos”, por meio da expulsão de determinadas populações humanas e
animais que habitavam mutuamente as ruas e os espaços residenciais das regiões
centrais do Rio de Janeiro. Como veremos, muitas casas possuíam, por exemplo, granjas,
hortas e pastagens. A reorganização geral da sociedade por meio de intervenções
urbanísticas seguiram teorias científicas, notadamente os saberes médicos, para elevar
o Brasil aos termos da nova ordem econômica mundial. Guiados pelos ideais
modernizadores e ancorados nas dicotomias hierarquizantes, discutidas acima, nessa
reorganização, as pessoas e os costumes tidos como “rurais”, e por conseguinte, a
presença de certos animais, se tornaram inaceitáveis e inadequados ao espaço urbano
por serem classificados, a partir de então, como “insalubres”.
HUMANOS E NÃO HUMANOS INDESEJÁVEIS NA CIDADE: notas sobre
o nascimento do Urbanismo e do Paisagismo no Brasil
“Far-se-ha longe da cidade todos os depósitos de animaes
destinados á alimentação; ficando inteiramente vedado aos particulares
que conservem taes animaes em áreas ou pequenos quintaes (sic)” Código
de Posturas do Rio de Janeiro” de 1894, lei de 1850, p. 11, grifo nosso.
No início do século XX, acontece na cidade do Rio de Janeiro uma intervenção
popularmente conhecida como “bota-abaixo”, que, em certa medida, inaugura e marca
de forma duradoura a atuação e a teorização do urbanismo brasileiro. Conduzida pelo
prefeito da então capital do Brasil, o engenheiro Pereira Passos e pelo médico higienista
Oswaldo Cruz, tratou-se de um plano com objetivo de transformar radicalmente a antiga
cidade colonial em direção à “modernização” e à “civilização”. A partir dessa reforma
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
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ENTRE A RUA E O PASTO, ENTRE O PAVÃO E A VACA
e outras medidas reguladoras, que tinham como linha orientadora um projeto médicosanitário para a prevenção/erradicação de doenças e o embelezamento da cidade,
iremos demonstrar como tratou-se de vilanizar dentro do espaço urbano o que passou a
ser classificado a partir de então de “usos rurais”. Como discutiremos, esses usos diziam
respeito sobretudo às formas de vida das classes populares, que incluíam atividades
produtivas envolvendo também os animais. Essas foram o alvo primordial do “botaabaixo” e da regulação urbana. Nesse caso, humanos e não humanos, em seus modos de
habitação mútua, foram violentamente afetados.
Desde a época colonial, as ruas da capital eram massivamente ocupadas pela
população negra, entre escravizados/as e alforriados/as (FARIAS; GOMES; SOARES;
MOREIRA, 2006). O processo de abolição da escravidão vai coincidir com o
estabelecimento da propriedade privada no país e com a adoção do regime republicano4.
Tratava-se então de um cenário marcado por intensas transformações políticas, sociais
e econômicas que refletiam o processo de transição colonial para o capitalismo e para o
trabalho assalariado. Durante a década de 1890, a população do Rio de Janeiro
avolumou-se por meio dos movimentos migratórios característicos do êxodo rural que se
sucedeu ao fim da escravidão. Sem acesso à terra no campo e na cidade, muitos exescravizados enfrentaram dificuldades para se integrar ao nascente mercado de trabalho
assalariado, vivendo aglomerados em cortiços na capital, sofrendo com a falta de
políticas sociais, resultando em condições precárias de vida (DINIZ; CARDOSO, 2015).
O centro da cidade era popular e negro, com seus seus habitantes se “virando”:
transportando mercadorias, carregando as águas das fontes, fazendo batuques,
capoeiras, zungus e vendendo quitutes nos tabuleiros. As quitandeiras e lavadeiras eram
figuras notórias da cidade, entre diversos serviços realizados por uma “multidão de
ambulantes e pequenos artesãos” (BENCHIMOL, 1997, p. 280). Médicos e barbeiros de
origem africana utilizavam as ruas para seus atendimentos, mostrando a diversidade de
modos de uso e ocupação do espaço público carioca neste momento, que congregava
lazer, atividades produtivas, religiosidade, entre outras (FARIAS; GOMES; SOARES;
MOREIRA, 2006). E tudo isso com a presença de animais em diversas formas. Vagando
pelas ruas, nas funções de suprir a subsistência alimentar da população, como parte do
comércio ambulante e auxiliando no transporte de pessoas e insumos. De acordo com
autoras que estudaram essa temática (OSÓRIO, 2013; FARAGE, 2013; TORRES, 2017), a
cidade era habitada por uma variedade de espécies animais tanto no espaço público
quanto privado. Mas o processo de modernização urbana se caracterizou como expulsiva
4
No mesmo ano que se estabelece a propriedade no país com a Lei de Terras, em 1850, se inicia o
fim do sistema escravista, com a promulgação da Lei de Extinção do Tráfico de Escravos em 1850
(seguida pela Lei do Ventre Livre em 1871, pela Lei dos Sexagenários em 1885 e a Lei Áurea em 1888,
que finalmente aboliu a escravidão no país, pouco após a consolidação do regime republicano, em
1880) (FERREIRA, 2005).
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dos animais, considerando que assim seria promovido o rompimento com as raízes rurais
coloniais (OSÓRIO, 2013).
Até então, era, portanto, comum casas e quintais com cultivo de capinzais, de
hortas e de pastos. Além de árvores frutíferas, cocheiras, celeiros, chiqueiros, currais e
um amplo comércio urbano de vacas, bezerros, porcos, galinhas, perus, patos e pássaros.
De manhã, cruzavam manadas de vacas pelas ruas, ordenhadas de porta em porta, e em
1903 contava-se mais de 300 estábulos dentro do perímetro urbano da cidade
(BENCHIMOL, 1997, p. 278 e 311). Desse modo, misturavam-se às sedes dos poderes
político e econômico, carroças, animais e cortiços (SEVCENKO, 2015).
Neste período, a vida social da família branca e oligárquica se concentrava dentro
de seus palacetes, órgãos públicos e igrejas. Por detrás das janelas e escondidas por
treliças de madeira, as mulheres brancas raramente saíam de casa, exceto para ir à
missa, enquanto os homens brancos se dedicavam principalmente às atividades de
negócio: “o lar era uma prisão mourisca, onde a mulher, alheia ao mundo, mais ou
menos feliz, mais ou menos conformada, vivia, amava, tinha filhos, criava-os, sorria,
chorava, até que a morte viesse e lhe cerrasse os olhos” (EDMUNDO, 2000, p. 285).
Segundo Fraya Frehse, as ruas das cidades coloniais brasileiras eram consideradas pela
elite como um lugar marginal, indecente e subalterno na sociedade do século XIX
(FREHSE, 2005, p. 550).
Tal configuração de uso na cidade pode ser observada nas imagens ilustradas por
Jean Baptiste Debret, do seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1834-39,
volume II), exemplificadas a seguir.
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ENTRE A RUA E O PASTO, ENTRE O PAVÃO E A VACA
Esses modos de ocupação urbana, no entanto, começam a se tornar incômodos à
elite, no momento em que a cidade passa gradualmente a representar o moderno e o
civilizado. Nesse contexto, as famílias oligárquicas tinham os recursos econômicos e o
poder político para pautar os parâmetros e as regras “adequadas” de circulação nas ruas,
entrando em conflito com esses costumes populares, que até então eram majoritários
no espaço público: “a partir do momento em que a rua se torna central e valorizada na
rotina dos tipos humanos em questão, não há como ela abrigar ambos, 'nós' e os 'outros'.
Alguém tem que sair. Mas quem? (FREHSE, 2005, p. 535)”.
Em geral, os jornais da época refletiam as visões da elite, frequentemente
expressando queixas e críticas, especialmente em relação ao uso popular do espaço
público. As reportagens evidenciam as tensões sociais e raciais presentes na sociedade
carioca do século XIX, que se desdobram também para tensão entre usos rurais e
urbanos. Segundo o Diário do Rio de Janeiro (11/04/1861, p. 1): "Uma nuvem de
quitandeiras, cercadas de vadios e curiosos, toma a calçada e parte da rua; literalmente
não se pode passar". Da mesma forma que se observa o uso da palavra 'nuvem' para se
referir ao conjunto de mulheres negras, comparando-as a insetos, a associação
desqualificadora entre a ocupação negra e animais na paisagem urbana era frequente:
Vasa o manancial desde cedo, por largas bicas de bronze, sobre barris e
potes, a água que o negro escravo apanha e leva. Em torno há sempre um
sórdido formigueiro humano, inquieto, rumoroso, que serpenteia e palpita.
Aproximemo-nos. São os negros escravos chapinhando nas sobras da água,
berrando ameaças, gingando capoeiragens, discutindo, gesticulando; tipos
fortes e espadaúdos, reluzentes e nus, tendo apenas pendente da cintura, à
guisa de velário, em pregaria escassa, uma tanga. Há-os de todas as raças
africanas: gente de Moçambique e da Guiné, da Angola e da Costa da Mina,
cafres, quiloas, benguelas, cabindas, monjolos e vatuas. Todos com a mesma
pele ebânica e retinta. As almas são, entanto, diferentes. Na gleba natal,
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eles, os negros, formaram outrora nações desavindas que lutaram, que
sofreram. Por isso aqui não se unem, antes se detestam e se odeiam.
Separam-se por castas, orgulhosas, soberbos, e, como os animais, olham-se
de esguelhas, rilhando os dentes. (EDMUNDO, 2000, p. 26 e 27 grifos nossos)
O nascente discurso higienista passa a compreender essas presenças e as
atividades desempenhadas como disseminadoras de doenças. E de fato a cidade, nesse
momento, passava por uma problemática envolvendo uma série de epidemias, como a
da febre amarela e a da varíola. A presença dos animais passou a ser contestada. Diziase que era um cenário tão pestilento e mal-cheiroso, que mais parecia com de uma
“cidade africana”. O que estava posto era então um incômodo não só com as doenças e
a presença de roedores e mosquitos, mas com grupos sociais tão ou mais indesejáveis à
elite (SANTOS, 2013, p. 87). Animais se tornam, então, um problema público e o poder
estatal inicia uma fase de expulsão, captura e extermínio de animais (OSÓRIO, 2013).
A reconstrução da cidade se fez, portanto, acompanhada de medidas sanitárias,
respondendo aos anseios da elite. O objetivo dessas medidas seria o de resolver
problemas de saúde pública, infraestrutura e eliminar hábitos considerados insalubres.
A promulgação do Código de Posturas, na década de 1830, iniciou um processo de
estabelecimento de diretrizes para garantir a ordem urbana, através de leis, por
exemplo, sobre o movimento do gado, o abate e o comércio de carne fresca. Essas
medidas buscavam controlar desde o alinhamento das vias até o comportamento da
população e dos animais em relação à moral pública, demonstrando também como se
dava a imposição de uma ideia de urbanidade por meio da ação estatal:
Nos oitocentos, vários decretos proibiam que se realizassem no perímetro
da área urbana, notadamente no centro político e comercial da cidade,
atividades de caráter agrícola, tais como hortas e capinzais para o comércio,
criação de suínos, edificação de albergarias de vacas e currais para gado de
corte. Também se controlava, com o cadastramento e aplicação de multas,
a circulação de carroças e cocheiras para carregar água, café e produtos
agrícolas (TORRES, 2017, p. 79).
Essas medidas se desdobraram ao longo da segunda metade do século XIX5 e com
a nomeação de Pereira Passos como prefeito da cidade do Rio de Janeiro, em 19026 , as
5
Seguem-se alguns exemplos retirados de uma compilação do código de posturas do Rio de Janeiro
(CÓDIGO, 1894): 1831 - criação de licença, cadastro e inspeção veterinária da saúde de vacas
destinadas a oferecer leite; 1838 - proibição de andar à cavalo sem cabresto e montaria; 1838 proibição de cabras, cabritos, galinhas e outra aves soltos nas ruas e praças; 1843 - regulamentação
dos recém criados Matadouros Públicos; 1844 - proibição de joeirar (debulhar) milhos, arroz e outros
cereais nas praças do centro; 1850 - proibição de depósitos de animais destinados à alimentação
dentro da cidade; 1866 - proibição de matar e esquartejar rezes, porcos, cabras e ovelhas fora dos
matadouros; regras para transporte de carnes e outros animais mortos dos matadouros para os
açougues; 1876 - proibição de criar ou conservar porcos dentro da cidade, nas residências e seus
pátios ou quintais; 1881 - proibição de albergarias de vacas no centro da cidade, só fora do centro;
1881 - estipulação de horário para lavagem de animais nas praias; 1884 - normas construtivas para
estábulos; 1888 - normas para o tráfego de animais; 1891 - criação do Registro Geral de Animais:
obrigação de cadastro de todo animal nascido ou trazido de outro local para a cidade.
6
Em 1902, Rodrigues Alves assumiu a presidência do Brasil com a intenção de modernizar a capital
seguindo modelos europeus de urbanização e desenvolvimento. Para isso, nomeou o engenheiro
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ENTRE A RUA E O PASTO, ENTRE O PAVÃO E A VACA
iniciativas antes esparsas se organizaram em torno de um modelo que pretendia botar
abaixo a antiga cidade colonial. A criação de certos animais e sua presença na cidade
será um dos principais alvos das interdições criadas a partir desse momento. Isso pode
ser observado ao constatar-se que as primeiras medidas realizadas pelo recém prefeito
consistia na interdição de práticas relacionadas a animais. Nas palavras do próprio
Pereira Passos:
Comecei por impedir a venda pelas ruas de vísceras de reses, expostas em
tabuleiros, cercados pelo voo contínuo de insetos, o que constituía espetáculo
repugnante. Aboli, igualmente, a prática rústica de ordenharem vacas leiteiras na via
pública, que iam cobrindo corn seus dejetos, cenas estas que, ninguém, certamente,
achará dignas de uma cidade civilizada. (...) Mandei, também, desde logo, proceder à
apanha e extinção de milhares de cães, que vagavam pela cidade, dando-lhe o aspecto
repugnante de certas cidades do Oriente, e isso com grave prejuízo da segurança e da
moral públicas (Pereira Passos, Decreto nº 314, de 11/4/1903 apud BENCHIMOL, 1997,
p. 277).
Nesse período também foi proibida a criação dos chamados animais de produção
e passou-se a coibir e regular a passagem pela cidade de “cargueiros” e comboios de
animais, amarrados uns aos outros ou transportando produtos hortigranjeiros. Houve o
controle demográfico de populações animais na rua: ratos, cachorros e vacas. O prefeito
ordenou a apreensão/eliminação de cães de rua, cadastrando e impondo o pagamento
de imposto aos animais domésticos. E oferecia pagamento em dinheiro para quem
capturasse e entregassem os ratos encontrados na cidade. Além disso, o uso de cavalos
e burros como tração foram tributados. Também foi proibida a manutenção de hortas e
capinzais em áreas urbanas. Uma medida que repercutiu de forma expressiva no
consumo alimentar da população foi a revalidação de uma postura de 1890, que não
havia sido efetivada de fato, “não tinha pegado”, pois proibia a criação de suínos, uma
atividade de fundo de quintal bastante popular na época (ainda hoje presente em muitas
áreas periféricas cariocas). Em seu governo, Pereira Passos, investe em fazer valer essa
lei, desta vez com o auxílio da polícia, que aprendeu e leiloou os animais. É importante
entender que essas ações eram primeiramente legisladas e depois executadas por
agentes sanitários, fiscais e pela ajuda do braço armado do estado, a polícia. Isso porque,
tais alterações profundas na vida cotidiana não aconteceram sem resistências e
protestos. Segundo Jaime Benchimol, por essas razões, Pereira Passos ficou conhecido
como “prefeito cruel” e "inimigo dos animais” (BENCHIMOL, 1997, p. 278, 282 e 283).
A Reforma Urbana de Pereira Passos teve impactos significativos na vida da
população carioca, envolvendo sua remoção forçada do espaço público e a demolição
em massa de habitações populares. Cerca de 1.600 edifícios foram demolidos, tendo
Pereira Passos como prefeito. Com experiência prévia em várias obras públicas, sobretudo na
expansão da malha ferroviária brasileira sob a demanda da economia cafeeira, o engenheiro
estudou em Paris e pôde observar de perto as intervenções lá realizadas por Georges-Eugène
Haussmann implementadas de 1853 a 1870, que serviram de inspiração para várias cidades ao redor
do mundo (BENCHIMOL, 1997; ABREU, 1988).
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como foco as residências e formas de ocupar a cidade das classes populares (CHALHOUB,
1996). Também houve a proibição de vendedores ambulantes e de costumes populares
considerados insalubres, como andar descalça, soltar pipas, balões e fogos de artifício,
e também a ocupação das ruas com serenatas, batuques, rodas, candomblé e outras
práticas de origem africana e/ou indigena (BENCHIMOL, 1997); FARIAS; GOMES; SOARES;
MOREIRA, 2006). Além disso, medidas como a obrigatoriedade de vacinação e fumigação
das residências geraram grande insatisfação entre os habitantes, que se manifestavam
sob diversas formas de resistência às medidas e que culminaram na famosa “Revolta da
Vacina”, em 1904 (SEVCENKO, 2015).
Essas sanções eram parte da campanha de saneamento e higienização liderada
pelo médico Oswaldo Cruz, diretor do Serviço de Saúde Pública do Distrito Federal.
Conjugando engenheiros, inspetores sanitários, médicos e outros técnicos como os
fotógrafos oficiais da prefeitura, foi se criando um panorama de horror em torno da
forma de habitar o centro da cidade pela população pobre e negra. Relatos médicos e
fotografias documentavam as estalagens e habitações populares e seu cotidiano
construindo uma visão do poder público sobre elas como "valhacoutos de desordeiros"
(CHALHOUB, 1996). Isto é, utilizando-se amplamente de argumentos técnicos
relacionados a problemas de saúde pública e de embelezamento foram sendo expulsos
os/as indesejados/as e suas práticas do núcleo existente da cidade.
A Rua Colonial, [...] é de terra batida, sem nível, toda em sulcos e crateras,
onde as águas adormecem formando poças, viveiros de rãs e de mosquitos.
[...] Por vezes, em lugares onde não é intenso o trânsito, vê-se um
verdoengo tapete de gramíneas desafiando o paladar dos animais, que nela
vivem ou passeiam inteiramente à solta: cabritos, carneiros, porcos,
cavalos, galinhas e perus. Ao mesmo tempo rua e pasto. (EDMUNDO, 2000,
p. 33, grifo nosso).
Olhando de perto essas medidas, que se reivindicavam como orientadas
estritamente por saberes técnico-científicos, é possível compreender que havia
intenções também de ordem moral. Como Alline Torres discute, tratou-se de combater
os modos de apropriação da cidade inventados pela população afro-brasileira que foram
considerados “sujos” e indesejados (TORRES, 2017, p. 73). Não era a população em si o
alvo, assim como também não eram unicamente os animais, mas as práticas e atividades
que articulavam essa vida comum.
Como já discutido em trabalhos anteriores (HELENE, 2015; PERROTA, 2020), ideias
de sujeira e contaminação, articuladas a certos modos de relação entre humanos e entre
humanos e animais, podem ser compreendidas por meio da análise das relações de
"pureza" e "perigo" descritas por Mary Douglas (1966). De acordo com Douglas, a noção
de sujeira surge de um sistema de "organização e classificação sistemática de coisas,
implicando a rejeição de elementos inadequados". A partir de uma noção de ordem, as
dicotomias, e aqui podemos ler, entre urbano e rural, são separados para evitar a
"poluição" e a "contaminação". Qualquer mistura torna-se capaz de desafiar ou
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ENTRE A RUA E O PASTO, ENTRE O PAVÃO E A VACA
contradizer classificações ideais. Então, medidas são tomadas para separar, condenar,
evitar, isolar e/ou confinar cada um deles (DOUGLAS, 1966, p. 50 e 51).
Dessa forma, revelou-se uma associação entre a ideia de contaminação e o
controle social: “os relatos dos sanitaristas expressam uma visão elitista, viciada pelas
concepções higienísticas e preconceituosas em relação aos trabalhadores” (BONDUKI,
2011, p. 21-22). Muniz Sodré também aponta como a ideologia higienista justificava não
apenas a modernização urbana, mas também a marginalização dos negros e negras,
associando-os à sujeira e à insalubridade (SODRÉ, 2002, p. 41 e 44). Leis destinadas a
reprimir manifestações culturais negras, como sambas, congadas e o bumba-meu-boi,
refletiam a tentativa de controlar e disciplinar essas comunidades (FARIAS; GOMES;
SOARES; MOREIRA, 2006, p. 131 – 137). Sidney Chalhoub (1996) vai relatar como, sob o
discurso de contenção de doenças que assolavam o país, foi criado uma relação
intrínseca entre intervenções urbanas, higiene, controle social e racismo no contexto
brasileiro.
A partir dessa perspectiva moral sobre as noções de sujeira e contaminações, as
medidas sanitárias foram sendo constituídas a partir de uma simetria entre as normativas
municipais que incidiam sobre animais e as que incidiam sobre as pessoas desempregadas
ou trabalhadores informais como mendigos, prostitutas, vendedores ambulantes e
moradores de cortiços, albergues e estalagens que também foram presos/as ou
removidos/as das áreas centrais da cidade (FARAGE, 2013). A partir dessas separações
se estabelece o que deveria ser apartado do que agora se constituía como o signo da
modernidade e do que é de fato urbano, fortalecendo as simbologias que vão constituir
o imaginário das divisões entre urbano e rural. E então, o modo de vida popular, que
produzia alimentos de origem animal e vegetal, incluindo a criação de animais, foram
classificados como rurais, carregando o estigma de sujo, primitivo, desordenado e uma
ameaça de contaminação.
A partir de então, como explica Nicolau Sevcenko, definiu-se em termos legais
que a área central da cidade seria o lugar de gente civilizada, de práticas e hábitos
modernos, o lugar da cultura (2015, p. 92). As populações expulsas desta nova cidade,
foram também impedidas de realizar suas práticas que partiam de uma coexistência com
os animais e que contribuam para a garantia de uma certa soberania alimentar e de
aquisição de renda. Para Benchimol devemos tomar essas ações “sob a mesma
perspectiva, agregando-lhe outras medidas direcionadas contra práticas rurais que
subsistiam no perímetro urbano do Rio de Janeiro”. Segundo o autor é importante
destacar que enquanto Pereira Passos reprimia ou desarticulava a criação de animais, a
pequena lavoura, o comércio ambulante e os meios artesanais de transporte e
distribuição, promovia a construção de grandes mercados na cidade. Assim, abria espaço
para que o grande capital comercial (aliado ao comércio atacadista e ao capital
estrangeiro) passasse a explorar com exclusividade o abastecimento alimentar da
população (BENCHIMOL, 1997, p. 282 e 283). Na separação rural urbana, se estabelecia
também uma separação entre produção e consumo, erradicando opções de subsistência
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PERROTA, Ana Paula; LORETO, Diana Helene.
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e fortalecendo, por meio de condições espaciais, a organização na cidade das
mercadorias e seus consumidores.
PARIS TROPICAL: a cidade idealizada
Na transição para esse novo paradigma, tornou-se imperativo adaptar as cidades
brasileiras a esses princípios de ocupação do espaço público. Contrapondo os ideais de
sujeira e impureza postos abaixo nos processos de demolição e interdição, e objetivando
constituir na capital o que foi chamado de “Paris Tropical” (BENCHIMOL, 1997), são
construídos os novos espaços da cidade. Por meio da materialização de uma nova
Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo em oposição ao antigo Rio de Janeiro colonial, vai
se constituindo como Espaço Urbano uma estética importada que vai simbolizar ideais
de modernidade, higiene e pureza.
Nestas reestruturações espaciais, o espaço da “natureza” foi sendo constituído
em sua manipulação e reconstrução simbólica de uma maneira bastante similar às formas
de intervenção espacial do momento. Fauna e flora foram alinhados por ordens de
Pureza e Impureza, Cidade e Campo. O que passou a ser chamado, a partir desse período,
de “Paisagismo”, refletia uma série de idealizações e formas de enquadramento, que
autorizava e regulava a existência possível da natureza dentro das cidades. Segundo
Céline Veríssimo e Leo Name a disciplina nasce de uma contínua renovação da crença
moderna no progresso e na destruição de paisagens e culturas “selvagens”, “sobretudo
as relacionadas ao pastoreio e ao cultivo e consórcio de plantas visando a alimentação”,
intervindo na paisagem e moldando aquilo que deveria “ser visto” (2017, p. 4 e 5)
As reformas, seguidas do bota-abaixo e das expulsões de humanos e animais,
incluíam a presença de uma outra natureza. É nesse contexto que nasce em Paris7,
durante a reforma de Haussmann, a concepção de parque urbano como uma natureza
regulada, se tornando um “elemento típico da grande cidade moderna” (MACEDO;
SAKATA, 2003, p. 13). Em outras palavras, se tornando um componente das intervenções
urbanas e das necessidades de lazer que acompanharam as mudanças urbanísticas,
sociais e culturais desse período (SUN, 2008, p. 68). No entanto, é importante ressaltar
que, no Brasil, ao contrário da Europa, esses parques não foram concebidos para atender
às massas de trabalhadores/operários urbanos. Em vez disso, se tornaram uma expressão
do domínio do espaço público pelas elites emergentes, complementando a segregação
7
O parque Bois de Boulogne realizado por Georges-Eugène Haussmann durante a famosa reforma de
Paris é considerado o primeiro projeto de parque urbano do mundo industrial (1850). Originalmente
uma vasta área de caça real que se transformou em parque público, inaugurando uma nova relação
entre cidade e natureza: concebido como um refúgio verde para os parisienses, oferecendo um espaço
para lazer, recreação e contemplação, em oposição ao ritmo frenético da vida urbana. Com lagos,
jardins paisagísticos, trilhas para caminhadas e espaços para piquenique, o Bois de Boulogne
rapidamente se tornou um destino popular para os parisienses de todas as classes sociais. Sua criação
influenciou o planejamento de parques semelhantes em todo o mundo (BENÉVOLO, 1997, p. 573-606;
CALABI, 2012, 168-176; LAMAS, 2011, 212-220).
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ENTRE A RUA E O PASTO, ENTRE O PAVÃO E A VACA
espacial estruturada na época. O “Passeio Público”, criado no Rio de Janeiro pouco antes
da intervenção de Pereira Passos (1875), marca o início do tratamento paisagístico em
áreas públicas no Brasil (MACEDO; SAKATA, 2003, p. 16).
Caracterizados por imponentes maciços arbóreos, vastos relvados e corpos d'água
sinuosos, esses espaços eram destinados ao passeio e à contemplação, um passatempo
típico da burguesia nascente. A paisagem era concebida para criar uma atmosfera
distante da realidade circundante, evocando uma visão idílica da natureza. Os parques
apresentavam uma rede intricada de caminhos e alamedas. Elementos pitorescos, como
grutas, monumentos e pérgulas adornavam esses cenários nos quais a água
desempenhava um papel central, manifestando-se em fontes, chafarizes, lagos e
espelhos d'água. A vegetação, cuidadosamente selecionada, combinava espécies em sua
maioria europeias associadas com algumas nativas, criando cenários bucólicos que
simulavam uma "paisagem natural" idealizada e romântica. Viveiros de plantas (similar
a pequenas estufas) e de aves, pequenos zoológicos e alguns animais soltos (cotias e
outras espécies consideradas “elegantes” como cisnes, patos e pavões) eram
estrategicamente inseridos nas intervenções paisagísticas integrando a fauna ao
paisagismo construído, da mesma forma que se colocam nesse cenário plantas exóticas,
estátuas, pérgolas e outros elementos estéticos (Ibidem, 19 e 21, 63- 64). A presença
quase cenográfica de animais nos parques e jardins urbanos dessa época estava associada
a uma visão exótica da natureza, influenciada por ideais românticos europeus. Os
animais eram parte integrante da composição paisagística, contribuindo para criar uma
atmosfera bucólica e encantadora, mas sua presença não refletia preocupações com o
bem-estar animal, sua preservação ou de seu ecossistema.
Desse modo, ao mesmo tempo que animais associados à subsistência, aos usos
populares e à uma ideia de ruralidade eram excluídos do novo desenho de cidade, outros
animais eram colocados na paisagem enquanto objetos de contemplação, confinados nas
áreas da natureza enquadrada dos parques. Da mesma forma, as espécies vegetais
escolhidas para desenhar esses espaços eram aquelas “não comestíveis”, que cumpriam
apenas aspectos estéticos, característica ainda hoje marcante nas formas hegemônicas
de Paisagismo (VERISSIMO, NAME, 2017). Esse movimento fortaleceu a dualidade ruralurbana, mas não propriamente pela supressão da natureza. Afinal, outra natureza foi
inventada, mas agora atrelada aos valores dominantes. O parque é, nessa época, “um
grande cenário, um elemento codificador de uma modernidade importada, totalmente
alheio às necessidades locais da massa urbana contemporânea" (Ibidem, p. 23 e 24), que
reforçou valores de separação e hierarquia que passam a constituir a forma como a
segregação urbana no Brasil se estrutura.
O controle dos corpos hídricos representa outra faceta da tentativa de subjugar
a natureza por meio da urbanização. A manipulação dos cursos d’água, restingas e
manguezais por meio de retificações, canalizações, aterramentos, sistemas de
saneamento e drenagem impõem uma ordem artificial sobre os ecossistemas e vai incidir
diretamente na desestruturação dos usos populares desses espaços. Enquanto as elites
começavam a desfrutar de espaços paisagísticos meticulosamente planejados, as massas
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desprivilegiadas que, antes dessas intervenções, encontravam seu entretenimento em
várzeas, banhados, fundos de vale, riachos, matas, lagoas e praias (Ibidem, p. 24),
passam a ter dificuldades de acessá-los. Além do lazer, esses espaços também eram
usados para manifestações festivas/religiosas, pescaria, coleta de mariscos/caranguejos
e lavagem de utensílios e roupas. O advento do saneamento e da água encanada
culminou ainda em uma mudança drástica no cotidiano da população, sobretudo na
rotina das mulheres. Lavar roupas em córregos e lagoas passa ser proibido, e as fontes
públicas de coleta de água são substituídas por torneiras e tanques na esfera privada das
casas, fazendo com que elas perdessem seus principais lugares coletivos de socialização
(GRAHAM, 1992, p. 57; HELENE; ALBINATI; LAZARINI, ANDREOTTI, 2022).
Após as grandes demolições de Pereira Passos, essa mesma reprodução de uma
imagem de modernidade e de cidade civilizada vai ser realizada com a transposição, sem
mediações culturais, de elementos da Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo europeus
sobre as áreas demolidas e aterradas. Segundo Lima Barreto: “De uma hora para outra,
a antiga cidade desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de
teatro. Havia mesmo na cousa muita cenografia.“ (BARRETO, 2021 [1922]). O espaço
público passou a ser utilizado de forma massiva pelas elites brancas, configurando os
novos usos burgueses e europeus das ruas e parques da cidade, como o footing e flânerie.
Isto é, o que era antes um espaço popular e negro, ocupado também pelos chamados
usos rurais, com a constante presença de animais; passa ser o espaço de lazer da
branquitude capitalista. Passeando pelas novas calçadas, largas avenidas e parques,
trajada de modo europeizado - com fraques, longos vestidos de várias saias e armações,
chapéus e sombrinhas rendadas - e circulando entre a nova arquitetura de estilo eclético
e suas tabacarias, cafeterias, casas de chá, confeitarias, boutiques e chapelarias.
Segundo Muniz Sodré, foi fortalecida uma ideia de exclusão social de tudo que se
associasse a negação da ideia de “modernidade”: “o que faz da Reforma Pereira Passos
uma espécie de MODELO SEMIÓTICO-CULTURAL para os variados processos de
modernização ocorridos em território brasileiro: a doutrina européia do progresso e da
civilização aplicada aos "nativos" de cima para baixo, sem quaisquer mediações
simbólicas” (SODRÉ, 2002, p. 47). Nesse contexto, Raquel Rolnik (2007) vai afirmar que
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
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o componente ideológico do movimento sanitário por meio do disciplinamento sócioespacial foi um método de indução de novos hábitos ao mesmo tempo que as formas de
habitar humano-animais populares, negras e “rurais” eram vilanizadas como imorais,
insalubres e atreladas a ideia de sujeira. Coibir vendedores ambulantes, carroças,
terreiros, moradias coletivas, hortas, capinzais, granjas e estábulos desestruturou um
arranjo humano-animal, ligado à ocupação e aos circuitos da população pobre e não
branca, por serem considerados/as impróprios/as à urbanização que se consolidava no
país e ao ideal ocidental de humanidade.
Separações Urbano Rural e a contemporaneidade
O CAMINHO DAS MULAS. O CAMINHO DOS HOMENS
. O homem caminha em LINHA RETA porque tem um objetivo; sabe aonde vai.
Decidiu ir a algum lugar e caminha em linha reta.
A mula ziguezagueia, vagueia um pouco, cabeça oca e distraída, ziguezagueia para evitar os grandes
pedregulhos, para se esquivar dos barrancos, para buscar a sombra; empenha-se o menos possível.
O homem rege seu sentimento pela RAZÃO; refreia os sentimentos e os instintos em proveito do
objetivo que tem. Domina o animal com a inteligência. Sua inteligência constrói regras que são o
efeito da experiência. A experiência nasce do labor; o homem trabalha para não padecer. Para
produzir, é preciso uma linha de conduta; é preciso obedecer às regras da experiência. É preciso
pensar antes no resultado.
A mula não pensa em absolutamente nada, senão em ser inteiramente despreocupada....”
Le Corbusier8, O URBANISMO, (1925)
Se entendemos a imagem da linha reta descrita por Le Corbusier, citada acima,
como o ápice da racionalidade, o caminho mais rápido a ser percorrido para alcançar um
objetivo, podemos afirmar que não foi isso que de fato aconteceu, nem com a Reforma
Pereira Passos nem com as intervenções urbanas que se seguiram ao longo do tempo,
sob essa mesma lógica. Os pressupostos que orientam a urbanização, com seus ideais
modernizadores e civilizatórios também visavam acabar com um determinado modo de
coabitação entre seres humanos e animais. Essas ações nos espaços urbanos foram as
medidas consideradas corretas do ponto de vista higienista para acabar com as
epidemias, decorrentes das contaminações zoonóticas. Mas essa idealização não cumpriu
a sua profecia, pelo contrário, trouxe novos problemas.
8
O franco suiço Le Corbusier é o grande intelectual e precursor do chamado Movimento Moderno. Os
reflexos de seu pensamento podem ser observados tanto na teoria como na arquitetura e urbanismo
modernistas estabelecidos no século XX, como na própria cidade de Brasília, exemplo mais concreto
da da doutrina corbusiana (LAMAS, 2011, p. 351). Atualmente, sua trajetória é controversa, devido
descobertas que relatam sua proximidade ao facismo e ao nazismo, denunciadas no livro “Le
Corbusier, un fascisme français” de Xavier de Jarcy (2015).
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
PERROTA, Ana Paula; LORETO, Diana Helene.
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A criação animal para a produção de alimentos que antes era pulverizada,
descentralizada e em pequena escala passou-se a organizar de outro modo na
configuração marcada pela oposição entre rural e urbano. Com o aprofundamento dessa
divisão dicotômica e o desenvolvimento tecnológico e industrial, que se refletiu nas
monoculturas agrícolas, a criação animal se torna uma produção concentrada,
industrializada e em larga escala. Essa produção trouxe, no entanto, outros problemas
ligados à saúde pública. Se a presença de animais na cidade representava um problema
por conta dos odores, dos dejetos e da atração de moscas e roedores, não foi o
distanciamento do urbano e o confinamento dos animais de produção no campo que
resolveram os inconvenientes ligados à criação animal.
A produção agora destinada fundamentalmente à escala global implica em
grandes gastos com transporte e distribuição, fontes de poluição por queima de
combustíveis fósseis. A questão dos dejetos (fezes, urina e sangue), um dos principais
argumentos na vilanização da presença de animais na cidade, continua sem solução.
Tornando-se, na verdade, um problema de saúde ainda mais grave. Na produção
industrial de carne animal, principalmente de aves e suínos, criados de forma confinada
e concentrada no Brasil, são formadas montanhas em escala industrial desses mesmos
resíduos, que criam problemas graves de poluição do ar, do solo e da água. Formam-se
em determinados frigoríficos rios vermelhos em razão da cor de sangue, e verdes em
razão das fezes. O cheiro contagia o ar, e formam-se grandes nuvens de moscas e outros
vetores atraídos pelas pilhas de dejetos. Contaminando trabalhadores, as vizinhanças
dessas unidades produtivas e de forma indireta, a todos nós, a produção industrial, dita
moderna, não exatamente solucionou os problemas relacionados às atividades de abate
nos centros urbanos. Criação intensiva e extensiva em larga escala, medicamentos,
alterações genéticas do próprio animal e do seu alimento são aspectos desenvolvidos
pelas ciências zootécnicas, a medicina veterinária e as ciências agronômicas com vistas
ao aumento da produtividade e da eficiência produtiva, mas que conformam uma
realidade mais propensa ao surgimento de novas doenças zoonóticas9.
Portanto, longe de romantizar as cidades coloniais e os modos de coexistência
entre seres humanos e animais que antecederam a modernidade (e que, vale ressaltar,
não deixaram de coexistir na contemporaneidade), trata-se aqui de questionar a ideia
de linha reta. Existiria mesmo uma racionalidade objetiva nessa forma de imposição de
constituição de mundo?
9
Tais condições foram observadas presencialmente, em trabalho de campo, pelas autoras do artigo.
A recente pandemia de Covid 19 pode ser elencada como mais uma tragédia relacionada a tais
condições, para saber mais, ler: PERROTA, 2020.
Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 12, n. 1, pp. 26-51, 2024.
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