Colonialismos e
Colonialidades:
teorias e circulações
em português e francês
Theya Editores - Marge - MSH Lyon Saint-Étienne
Este livro é resultado do projeto CILIPO-FP, apresentado por Natália Guerellus
em 2022 e financiado pelo dispositivo Bourgeon da Université Jean Moulin Lyon
3, em parceria com o SGR, o laboratório Marge e a Theya Edições-CEG-CIPSH-UaB.
Capa © Roberto Rosa @instanapontadolapis
Formatação e projeto gráfico : Amélie Dumont https://www.amelie.tools
Página Web e projeto editorial : Antoine Fauchié https://www.quaternum.net
Traduções : Raísa França Bastos e Natália Guerellus
Responsável editorial Theya Edições : Susana Mourato Alves-Jesus
Coordenação : Natália Guerellus
Edição bilíngue
Título original em português : Colonialismos e Colonialidades : teorias e
circulações em português e francês
Lisboa-Lyon
© Theya Editores-Marge-MSH Lyon Saint-Étienne
Todos os direitos reservados
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ISBN : 978-989-9012-80-6
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[email protected]
Sommaire
Introdução
Apresentação
7
Primeira parte - perspectivas
teóricas
Regimes de colonialidade
19
Os estudos pós-coloniais « lusófonos »
nas universidades europeias
41
Comparativismos Combinados e
Desiguais. Repensar o campo dos
estudos literários africanos à luz do
debate sobre literatura-mundial
55
Segunda parte - circulações
intelectuais
O “Anti”, o “Pós” e o “De” (Colonial):
As disputas teórico-epistêmicas em
torno de Frantz Fanon
75
Carolina Maria de Jesus, intérprete do
Brasil
95
“Os galhos pelados da caatinga rala”:
Graciliano e(in)screve o Brasil na
França (1956-1998)
111
Diálogos e circulação de feminismos
negros e pós-coloniais contemporâneos
entre Brasil e França: o caso de
Djamila Ribeiro e a coleção Feminismos
Plurais
125
Representações e vozes ameríndias:
memória e historicidade do espaço das
Américas
139
A receção pós-colonial e decolonial de
Vieira : usos e significados das
apreciações controversas sobre a sua
vida e a sua obra
155
Terceira parte - circulações e
medias
Instâncias etnográficas, colonialismo
e edição de livros no Estado Novo
português
169
Mercado editorial de quadrinhos e
leituras do Brasil na França
185
Uma estética da desprogramação: o
Observatório da Literatura Digital
Brasileira e a invenção de um outro
mundo possível
201
Colonialismos e Colonialidades
Regimes de colonialidade
Michel Cahen
19
20
Primeira parte - perspectivas teóricas
A colonialidade foi e é um fenômeno global (embora não
generalizado) ligado à expansão do sistema-mundo capitalista
moderno (mercantil e esclavagista) desde o século XV, para além
(e depois em combinação) da expansão posterior do modo de
produção capitalista. Mas ela não é uniforme, pois está
intimamente ligada à história dos territórios em causa. Podemos,
portanto, falar de regimes de colonialidade, um conceito derivado
do de regimes de historicidade. Este capítulo analisa, assim,
alguns dos principais regimes de colonialidade que estão
intimamente ligados à história, tanto na periferia do capitalismo
como no seu centro.
1
A noção de "regimes de colonialidade", que dá título a este texto, deriva
naturalmente do conceito de "regimes de historicidade", que foi
gradualmente elaborado entre 1979 e 2003 por vários historiadores e
filósofos preocupados com a disciplina histórica 1 , antes de se impôr na
sequência da publicação do livro Régimes d’historicité. Présentisme et
expérience du temps, de François Hartog (2003) 2 . No entanto, é possível
que a sua utilização, desdobrada posteriormente, tenha modificado um
pouco o seu significado, o que não é necessariamente um problema.
2
Para Hartog, a noção de “regime de historicidade” é um instrumento
heurístico que serve para melhor compreender os momentos em que as
articulações entre passado, presente e futuro transformam-se numa dada
sociedade. Serve para designar as modalidades de autoconsciência de
uma comunidade humana. Hartog discute os exemplos de Marshall
Sahlins (1983) a propósito das Ilhas Fiji ou dos Maoris da Nova Zelândia,
cujas comunidades humanas não têm “futuro”, o passado designando
explicitamente o que deve ser feito no presente — o futuro ficou para trás,
o evento é um mito. Hartog vê isto como um exemplo de um antigo regime
de historicidade — o que é discutível, uma vez que diferentes regimes de
historicidade podem muito bem revelar modernidades alternativas. Podese igualmente tomar o exemplo das revoltas camponesas na Benguela
Ocidental, estudadas pelos primeiros autores subalternistas (Subaltern
Studies Collective), quando os revoltosos diziam que estavam meramente
a obedecer a um pedido recebido dos seus deuses — o que não fez desta
uma revolta menos moderna, contra uma ordem social moldada pela
colonialidade contemporânea, ainda que menosprezada como arcaica e
pré-política pelos "modernizadores" próximos do partido do Congresso ou
do partido comunista da Índia. Com a Revolução de 1789 na França, teria
surgido um regime moderno de historicidade em que o futuro se tornaria a
peça fundamental da autoconsciência, no lugar do passado. Com a queda
da URSS e do seu futuro radiante em 1989 (e, pode-se acrescentar, com
a virada neoliberal que naturalizou o capitalismo como sendo o estado
definitivo da economia — o chamado "fim da história" — e as grandes
Colonialismos e Colonialidades
21
incertezas que hoje rodeiam o futuro do planeta), o presente tornar-se-ia o
dado dominante, a que Hartog chama presentismo. Mais um novo regime
de historicidade.
3
O que é certo é que as experiências do tempo são múltiplas e que cada
sociedade tem uma relação particular com o passado, o presente e o
futuro. Ao comparar as formas com que estas temporalidades são
articuladas, François Hartog destaca estes vários "regimes de
historicidade". Mas será um regime de historicidade apenas a expressão
de uma ordem do tempo dominante? Construído a partir de "diferentes
regimes de temporalidade, é uma forma de traduzir e ordenar
experiências do tempo, formas de articular passado, presente e futuro e
de lhes dar sentido", aponta Bertrand Lessault (2004). Esta precisão
necessária parece contudo insuficiente, restringindo o uso da noção à
consciência que os membros de uma dada comunidade têm dela. Com
esta restrição, poderíamos falar em regimes de historicidade das lutas
sociais? Para retomar a famosa distinção feita por Marx (1972 [1847])
entre "classe em si" (uma classe existente de fato, sem que os seus
membros desenvolvam consciência dela, o que restringe a possibilidade
de um movimento de resistência) e "classe por si" (uma classe dotada da
sua consciência, o que lhe permite, assim, tornar-se uma força social), a
luta social só seria possível no segundo caso. Contudo, a história tem
mostrado que mesmo uma "classe (ou qualquer comunidade) por si" não
é necessariamente um conjunto de indivíduos passivos e resignados e
que as condições da sua (sobre)vivência e da sua (mesmo não
"classista") subjetividade têm consequências muito além das suas
próprias fileiras. Jacques Revel parece ampliar a noção de regimes de
historicidade, que designaria:
o conjunto de relações que um ator social coletivo
ou uma prática social — como a história — desenvolve
com o tempo, bem como [a] forma como estas relações
estão envolvidas num presente que pode ser o da
memória, o da ação, o do saber. De modo mais preciso
e operacional, a noção pode permitir articular três
registos em conjunto: a construção de uma relação
com o tempo histórico; as modalidades cognitivas de
um saber sobre o passado; as formas através das
quais esse saber pode ser expresso" [itálicos
meus] 3 .
4
Embora as consequências das subjetividades sobre a ação sejam
evocadas, Revel permanece concentrado essencialmente nas suas
manifestações de acordo com os tempos e os contextos — ainda que se
trate necessariamente também disso. Por exemplo, segundo Hartog ou
Revel, poderíamos falar de "regimes de historicidade" dos Estados 4 e da
escravatura? — não sei. Falaríamos somente das historicidades destes
dois 5 ?
22
Primeira parte - perspectivas teóricas
5
É possível que o uso abundante e uma certa banalização da utilização
dos "regimes de historicidade" os torne por vezes quase sinônimo de
“historicidade” tout court, o equivalente de uma expressão que seria
"diversidade de historicidades". No entanto, quando a historicidade se
refere a uma ordenação sociocultural da história que permite articular
rupturas e continuidades, o "regime" enfatiza a formatação de longas
tendências históricas, independentemente das consciências dos
indivíduos em questão — a proeminência ou insignificância destas
consciências obviamente também compondo a complexidade de um
regime de historicidade. A declaração de tal regime desenha, de fato, um
ideal-tipo (M. Weber), algo que tende para a realidade, sem nunca a
alcançar exatamente. Em consequência, falar de "regimes de
historicidade" demanda uma comparação.
6
Este deve poder ser aplicável à colonialidade. Efetivamente, quando
daqui em diante falarei em "regimes de colonialidade", será de fato uma
versão condensada de "regimes de historicidade da colonialidade". Estes,
podem perfeitamente incluir a consciência dos atores, mas o enunciado
deles será obviamente, antes de mais nada, o resultado da prática do
historiador (ainda que os movimentos sociais expressem frequentemente,
com as suas próprias palavras e práticas, a consciência das suas distintas
historicidades, eles não ‘reivindicam’ um regime de historicidade —
permanecemos aqui no campo das ciências sociais). E, se usamos a
noção de "regime de colonialidade", é necessariamente porque há vários
deles, dentro de um sistema mundial que é simultaneamente unido e
caracterizado pela diversidade dos capitalismos 6 .
O conceito de colonialidade
7
Muitas vezes o conceito de colonialidade é utilizado como uma simples
substantivação de ‘situação colonial’ (Balandier 1951) ou ‘daquilo que é
colonial’. Após a colonização, o que resta dela poderia, portanto, ser
chamado de "pós-colonialidade". Se for assim, esta utilização nos é de
pouco interesse. Aliás, não era isto que Aníbal Quijano (1928-2018) quis
definir 7 e que ele apresentou pela primeira vez em seu texto de 1992,
intitulado “Colonialidad y modernidad/racionalidad”’ 8 .
8
A teoria da colonialidade trata inextricavelmente das heranças e da
reprodução contemporânea de características estruturais coloniais*,* no
quadro do capitalismo globalizado (tal como a matriz racial, constitutiva do
mundo moderno de acordo com Quijano — características,
consequentemente, não diretamente ligadas ao modo de produção
capitalista (MPC) que surgiu no final do séculoXVIII). Mesmo no quadro
do domínio mundial do MPC, o capitalismo precisa, a nível dos Estados e
de sociedades inteiras, destas características coloniais. Certamente a
colonialidade é expressa de forma diferente na América dita Latina
(continente de nascimento do conceito, principalmente na sua região
andina) e na África ou na Ásia pós-colonial — voltarei a este assunto. Mas
Colonialismos e Colonialidades
23
ela permite, deste modo, pelo menos parcialmente, evitar algumas das
deficiências do poscolonial "clássico", com a sua tendência a reificar
legados, a concentrar-se em fragmentos da sociedade e não em
sociedades, nações e Estados inteiros, e a preferir a crítica
epistemológica à crítica política 9 .
9
A colonialidade, tal como definida por Aníbal Quijano, diz respeito ao
conjunto das relações sociais, culturais e cognitivas de tipo colonial,
independentemente do estatuto do território em questão. Assim, a
colonialidade pode surgir mesmo antes da colonização formal de um
território 10 , dura naturalmente todo o período da colonização e continua
a existir em certos países muito depois da independência, e mesmo
indiretamente diz respeito a todo o planeta (fica, deste modo, evidente
que não faz sentido falar de "pós-colonialidade"). A colonialidade pode ser
combinada, sem portanto desaparecer, com o MPC, mas realça a
existência de vastas camadas sociais que não são proletárias (uma vez
que não estão diretamente integradas no MPC), mas subalternas.
10
Utilizo amplamente o conceito de colonialidade, mas sou crítico de alguns
aspectos da definição dada por Quijano e sua escola (Walter Mignolo,
Ramón Grosfoguel, Edgardo Lander, etc.). Não posso entrar aqui nos
detalhes da minha crítica (ver nomeadamente Cahen, 2018a), mas aqui
está um resumo. É altamente questionável argumentar: 1°) que a raça
(enquanto expressão da racialização das relações sociais) apareceu em
1492, enquanto que na Península Ibérica ela é claramente perceptível em
relação aos judeus durante a Idade Média e, inversamente, nem sempre
foi visível nos primeiros tempos do comércio de escravos (Horta & Pedro,
2019); 2°) que a raça se manteve como o princípio dominante da
estruturação capitalista desde 1492 até aos dias de hoje; 3°) que é a
descoberta de Colombo que funda o sistema-mundo, o que revela uma
ignorância gigantesca da expansão portuguesa para a Ásia à mesma
época, economicamente no início muito mais importante do que a
América 11 , e ignorando da mesma forma o sistema-mundo
mediterrânico-leste-atlântico 12 existente desde pelo menos o séculoxive
com um comércio de escravos extremamente importante 13 . Devemos
também refutar 4°) a reificação do "Ocidente" (uma área gigantesca e
extremamente heterogênea) e da "Modernidade" (período histórico de
quatro séculos com características não menos diversas ou antagônicas)
que os Quijanistas praticam sistematicamente, num verdadeiro
"Ocidentalismo" (invenção do "Ocidente") que é apenas um "orientalismo
inverso" 14 (fr.:orientalisme à rebours). De fato, Quijano e sua escola, nas
críticas ao eurocentrismo (muitas vezes com razão!), pecam pelo
latinocentrismo. A favor de seus escritos, teria sido benéfica a leitura de
estudos sobre o mundo africano, árabe, turco-mongol e sul-asiático, e
mesmo em relação aos mundos neo-ibéricos, Quijano e sua escola
deveriam ter sido menos hispano-americanistas e mais luso-brasileiristas,
etc.
24
Primeira parte - perspectivas teóricas
11
A colonialidade é um fenômeno mundial — mas não generalizado 15 — e,
portanto, requer uma definição que não seja ‘regional’ como acaba sendo,
de fato, aquela de Quijano. Mais uma vez, não posso desenvolver
aqui 16 , mas é necessário sublinhar a ligação estreita e secular entre a
natureza da expansão capitalista anterior ou independente do MPC e a
colonialidade. Esta expansão mercantil/escravocrata produziu imensas
camadas sociais nas quais, ainda hoje, a burguesia e o proletariado (este
último, inclusive na sua forma manufatureira inicial, entre o artesanato e a
indústria) não são, nem as duas classes hegemônicas da economia 17 ,
nem as mais importantes demograficamente, e tampouco o proletariado é
necessariamente a classe mais explorada, ainda que todas estas
configurações façam parte do sistema-mundo. Tenho demonstrado
noutros textos que, mesmo quando o MPC surgiu e se tornou hegemônico
no centro do mundo, era frequentemente mais rentável para o capitalismo
não proletarizar as massas subalternas na periferia a fim de permitir que
os modos de produção domésticos permanecessem, numa articulação
desigual de modos de produção que permitiam que os trabalhadores
fossem pagos abaixo do custo da sua reprodução social 18 .
12
A subalternização foi assim uma lei fundamental da expansão capitalista:
a existência de formas de exploração não capitalistas — no sentido de
formas de exploração não constitutivas do MPC- era e continua a ser
indispensável para o domínio capitalista. O comércio de escravos do
Leste Atlântico e depois transatlântico, a escravatura nas Américas e na
Ásia, a predação durante as guerras de conquista, o indigenato 19 e o
trabalho forçado, o paternalismo (Lena, Geffray & Araujo, 1996) e as
dívidas imaginárias dos seringueiros amazônicos (Geffray, 1995, 2007),
tudo isto forma uma grande diversidade de formas de exploração não
capitalistas da dominação capitalista. A presença destas formas não
capitalistas dentro do capitalismo não é de forma alguma exclusiva das
periferias. Pelo contrário, é extremamente frequente, mesmo no centro
(por exemplo, relações domésticas ou a manutenção de uma atividade
camponesa junto a uma população já proletarizada — neste caso, pode
ser uma forma residual de articulação de modos de produção 20 —, etc.).
No entanto, no centro do capitalismo contemporâneo, estas formas não
são dominantes no processo de produção de valor de mercado 21 , ao
passo que, demográfica e economicamente, ainda são massivas nas
periferias.
13
Dei, portanto, uma definição mais ampla da colonialidade, como um
fenômeno global para além das suas diversidades locais, ou seja, o
conjunto das formações sociais e relações sociais produzidas pelas
formas de exploração não capitalistas da dominação do capitalismo em
toda a sua expansão externa (mercantilista e imperialista), com todas as
consequências culturais, políticas, identitárias, etc., em sociedades
inteiras.
Colonialismos e Colonialidades
25
Regimes de colonialidade na periferia do
capitalismo
14
Uma definição mundial da colonialidade não significa em absoluto que
tenha havido uma realidade homogênea em todo o globo. Pelo contrário,
pode dizer-se que ela é proteiforme, o que é bastante compreensível,
uma vez que a colonialidade foi, ao mesmo tempo, uma causa e uma
consequência da imposição capitalista em contextos muito diferentes. Um
ponto em comum, porém, é que nunca se trata de um fenômeno
puramente local, pois que está sempre inserido no sistema-mundo
capitalista 22 . A colonialidade é consubstancial ao sistema-mundo
capitalista (aqui, concordo plenamente com Quijano). Não se trata de
elaborar uma lista exaustiva dos tipos de colonialidade, mas podemos
notar que estes estão obviamente ligados à natureza das relações entre a
metrópole e as colônias, e, em seguida, ao processo de ruptura destas
últimas com as primeiras. Deste ponto de vista, devem ser distinguidas
pelo menos três categorias de importância desigual:
independências sem descolonização
descolonizações sem independência
independência com descolonização
Independência sem descolonização
15
A primeira categoria diz respeito a toda a América (exceto ao Haiti),
Austrália e Nova Zelândia e, muito especificamente, à Libéria (de 1847 ao
início da guerra civil de 1980, que expulsou a elite americano-crioula do
poder), à África do Sul de 1910 a 1991, à Rodésia do Sul de 1965 a 1979,
e ao Estado de Israel. Nestes países, não só a ruptura com a metrópole
não foi uma descolonização, mas foram os colonos — na maioria das
vezes sociologicamente crioulos, quer se chamassem assim ou não —
que foram a força motriz do processo. Os colonos quebraram (ou
negociaram) com a metrópole para fundar a sua própria colônia, o seu
próprio Estado, um Estado colonial. Deste modo, o "Brasil colônia" não
termina em 1822. A colonialidade continuou a ser a característica
dominante da estruturação social, expressa no próprio nome de América
"latina" na parte sul, e por vezes até nos nomes dos países escolhidos
pelos colonos (‘Colômbia’, ‘Bolívia’ 23 ). Tem se feito muita confusão entre
"colônia" e "território sem governo próprio" — esta definição puramente
institucional é ainda a principal apresentada em muitos dicionários.
16
No entanto, o antigo significado da palavra "colônia" estava
principalmente relacionado com o aspecto demográfico e identitário,
aquele de uma comunidade humana que se estabelece num lugar, para
ela, exógeno — assim, os fenícios ou os antigos gregos tinham criado
colônias (Cartago, Siracusa, Massília, etc.) em redor do Mediterrâneo sem
qualquer ligação de dependência com as suas cidades-mãe. Os Estados
criados pela independência americana no final do séculoxviiie e no
26
Primeira parte - perspectivas teóricas
séculoxixe permaneceram estruturalmente colônias, embora em graus
variáveis, mantendo relações sociais perfeitamente coloniais com
subalternos indígenas e relações de classe com subalternos escravos ou
libertos, combinadas com o paternalismo autoritário e racismo estrutural. A
questão colonial continua a ser relevante nestes países, mas de modo
mais pronunciado em alguns do que em outros.
17
Quando o Presidente Evo Morales — o primeiro presidente indígena em
toda a América — promulgou a nova constituição do seu país como
"Estado Plurinacional da Bolívia" em 2009, ele foi muito além do
multiculturalismo que é cada vez mais reconhecido em várias
constituições do continente. De fato, o multiculturalismo mantém
implicitamente uma norma, uma vez que são reconhecidas como ‘étnicas’
ou ‘afros’ somente as pessoas que não são hispânicas, uma vez que
estas últimas não são especificadas, já que são simplesmente
’nacionais/normais’. Para Evo Morales, o conceito de estado plurinacional
era claramente uma afirmação da natureza não-latina e não-bolivariana
do país como um todo 24 . Assim, a orientação do presidente boliviano foi
anti-colonial (não apenas decolonial). A colonialidade do país não é ‘póscolonial’, é aqui… colonial, tout court, nas suas relações sociais e
culturais. Mas a Bolívia, o Equador e o Peru são países onde a população
indígena permanece maioria, ou pelo menos considerável. A
descolonização seria aí possível com um projeto para uma república
indígena — o que não significa a expulsão dos hispânicos, mas a regra da
maioria, um pouco como na África do Sul sob o regime do apartheid
(através do projeto de uma "república negra"). Nestes países "neolatinos", existem lutas anticoloniais (tendencialmente autonomistas, as
dos povos indígenas, que continuam a lutar contra a colonização, mesmo
que seja "interna", na afirmação das suas nações pré-coloniais
territorializadas), e lutas decoloniais (tendencialmente integracionistas, as
dos descendentes de escravos, dos mestiços pobres, que lutam contra a
colonialidade para melhor se integrarem na nação sem abandonar em
absoluto suas epistemes 25 ). Percebemos de imediato que este tipo de
colonialidade estabelece um verdadeiro regime societal conflituoso e de
longa historicidade. É um verdadeiro regime de colonialidade.
18
Mas será que se pode dizer o mesmo dos países do Cone Sul, ou da
América do Norte, em que a população indígena foi reduzida a uma
população marginal? O ponto em comum é a fundação do Estado colonial
através da independência. Mas em países como o Brasil, onde os vários
povos originários constituem cerca de 0,5% da população, a
descolonização e a transformação do país num Estado indígena são
impossíveis. Isto significa que, uma vez que estes povos quase
desapareceram, a colonialidade ipso facto também o teria feito? Não, de
forma alguma, mas a colonialidade se expressa de outras formas. A
primeira delas é através do espaço. Por que é que estes países têm
espaço (o far west norte-americano, o desierto argentino, as ocupações
dos bandeirantes brasileiros e a Amazônia contemporânea, etc.)?
Existiriam outras terras, a par as da Antártida, que estariam vazias de
Colonialismos e Colonialidades
27
seres humanos? Se ainda existirem áreas de uso não produtivista e não
intensivo, não existem terras vazias. O que existe são terras esvaziadas
de seus humanos por genocídio e etnocídio. O espaço — que permitiu ao
capitalismo norte-americano continuar a sua expansão "interna" até aos
anos 1940 e, assim, resolver muitas das suas contradições 26 — é uma
característica fundamental da colonialidade destes Estados nascidos
como Estados coloniais. Esta colonialidade tem, naturalmente, outras
características, mais frequentemente mencionadas — a questão negra em
particular — ou menos frequentemente — tais como o imaginário
nacional, o imaginário do país em si, que pode de modo mítico conceder
um lugar importante aos povos indígenas enquanto os extermina (como
no Brasil). Nestes Estados onde a população indígena está reduzidíssima,
existe, portanto, igualmente um regime de colonialidade. Mas estes
países combinam, mais do que os primeiros (aqueles mais indígenas) a
estrutura colonial, a pós-colonial (reprodução contemporânea de
subalternidades coloniais historicamente situadas) e a estrutura capitalista
"habitual" (MPC). São ao mesmo tempo colônias, pós-colônias e Estadosnação capitalistas. Dentro da mesma ampla categoria de Estados
nascidos da independência sem descolonização, existem assim dois
regimes de colonialidade (ou dois "sub-regimes", de acordo com o que se
preferir). São semelhantes (Estados nascidos coloniais) e distintos
(relação diversa com a indigeneidade).
Descolonizações sem independência
19
Esta segunda categoria é espacialmente muito mais modesta. Diz
respeito a territórios cuja descolonização teve lugar através da integração
a um país independente. Trata-se da Índia francesa (Pondicherry) e da
Índia portuguesa (Goa), que foram devolvidas à União Indiana em 1954 e
1961 respectivamente, de Hong Kong e de Macau, que foram devolvidos
à China em 1997 e 1999, dos "departamentos e territórios ultramarinos"
franceses, em princípio plenamente integrados na República Francesa em
1946, e do Estado do Havaí, que foi integrado aos Estados Unidos em
1959.
20
Mas também aqui também é preciso distinguir duas subcategorias: não
havia grandes diferenças entre as populações de Pondicherry e de Goa, e
as da Índia na altura da reintegração, ou de Macau com a da China (o
caso de Hong Kong é mais complexo, com uma grande minoria britânica,
pelo menos inicialmente, enquanto as comunidades portuguesa e crioula
de Macau eram minúsculas). Nestes territórios (exceto parcialmente Hong
Kong), o fim da colonização significou também, em grande parte, o fim da
sua colonialidade específica (mesmo que não totalmente 27 ) ou, pelo
menos, a integração na colonialidade global do seu país de anexação. Os
territórios reintegrados eram indígenas, assim como era o seu país de
anexação.
28
Primeira parte - perspectivas teóricas
21
Por outro lado, os departamentos ultramarinos franceses eram as "velhas
colônias" com populações muito diferentes das da França metropolitana,
uma vez que a grande maioria delas nasceu da escravatura. A
colonialidade nas antigas "velhas colônias" francesas é portanto expressa
1°) por uma crioulidade resultante do cataclismo identitário da crioulização
histórica 28 que finalmente "constituiu sociedade" a partir das suas duas
classes fundamentais (senhores e escravos); 2°) por uma "dor identitária"
entre a afirmação de uma identidade própria e a consciência de um
interesse material em permanecer no seio da República Francesa; 3) pela
concomitância raça/classe (um pouco como no Brasil, deste ponto de
vista); 4) por uma dependência econômica extrema da "metrópole" e da
União Europeia; 5) por uma desconfiança em relação ao Estado francês,
como demonstrou a hostilidade massiva em relação à vacinação contra a
Covid-19. Aqui, a descolonização — uma vez que já não se trata mais de
colônias — significou a manutenção da colonialidade pela vontade da
metrópole em manter estes territórios em dependência econômica (sem
industrialização, etc. 29 ) e cultural (subalternização das línguas crioulas e
não reconhecimento das populações crioulas como nações distintas, por
exemplo).
Independência com descolonização
22
Esta categoria abrange toda a África e parte da Ásia. A descolonização
teve lugar uma vez que estes países, anteriormente parte dos Estados
imperiais europeus, se tornaram novamente indígenas. Os seus governos
são muito provavelmente neo-colonialistas (política ativa de manutenção
da subalternidade em relação ao sistema-mundo, etc.), mas isto não os
impede, enquanto países, de terem sido descolonizados. O
neocolonialismo diz respeito à política governamental e está obviamente
ligado à colonialidade, mas a colônia, no caso das colonizações de
povoamento — Argélia, Angola, Moçambique, Rodésia, África do Sul
(Michel, 2018) — bem como nos outros — muitos Estados africanos,
Índia, Sudeste Asiático — desapareceu. Os países são de nova natureza.
Será que a colonialidade desapareceu aí? A resposta é não, por várias
razões.
23
A primeira é a questão territorial. A maior parte destes países foi formada
a partir do território da colônia — a colônia foi feita "nação" (ou seja, a
"produção da nação" foi considerada equivalente à existência da nação).
No entanto, o território colonial por vezes tinha pouco a ver com as
nações nativas pré-coloniais, uma vez que a fronteira podia passar bem
no meio de um povo com longa historicidade. A fronteira era, sobretudo,
resultado da estabilização das rivalidades inter-imperialistas. Por exemplo,
a área do Kongo, anteriormente governada quase inteiramente pelo
Estado do Kongo, descoberto pelos portugueses no final do séculoXV,
está hoje dividida em cinco territórios: sul do Gabão, sudoeste do Congo
(ex-Congo francês) e do chamado Congo democrático (ex-Congo belga),
Cabinda e duas províncias do norte de Angola. Basta olhar para um mapa
Colonialismos e Colonialidades
29
para compreender que o norte do atual Mali nada tem de "maliano", que a
faixa de Caprivi (hoje na Namíbia) só foi utilizada pela Alemanha para
chegar ao Zambeze, que Casamansa é o resultado de um acordo entre
França e Portugal, que a Somália perdeu três quintos da área somali pela
definição das fronteiras etíope, eritreia e dijbutiana, que a Indonésia nada
mais é do que o antigo império holandês na Ásia, reunindo povos muito
diversos que estão agora sujeitos ao nacionalismo javanês, que as
fronteiras da Birmânia e da Tailândia muitas vezes não têm qualquer
ligação com os povos locais, que foram cortados em dois, etc. No entanto,
estes territórios não nacionais foram aceitos pelos novos governantes
africanos ou asiáticos porque faziam sentido para as elites nascidas no
interior, ou na periferia imediata, do aparelho de estado imperial. Estes
Estados não são, portanto, muitas vezes, representativos dos povos
historicamente presentes em seus territórios. A "nação" neste contexto só
pode ser construída negando as nações pré-coloniais, desvalorizadas
como "etnias", "tribos", através de políticas de modernização
autoritária 30 , etc. Significa isto que as fronteiras coloniais devem ser
postas em causa para pôr fim à colonialidade territorial? A resposta não
pode ser unívoca, porque o tempo passou e a própria fronteira (mesmo
arbitrária) é, a longo prazo, um produtor de identidade. No entanto, o
princípio de não questionamento das fronteiras coloniais (mesmo que por
meios democráticos) está na origem de muitas instabilidades e formas de
guerrilha nestes países. O mínimo a se fazer seria reconhecer este estado
de coisas, devendo as nações pré-coloniais serem promovidas a fim de as
integrar uma "conjugação" — e não uma oposição — com a emergência
da nação pós-colonial com o objetivo de promover uma nação de
nações 31 . Isto implicaria políticas de promoção social e cultural e de
construção do Estado muito diferentes das que são geralmente adotadas.
Claro que isto não resolveria todos os problemas (por exemplo, o Sul do
Sudão mergulhou imediatamente na guerra civil após a sua separação do
Sudão — note-se que mesmo o Sul do Sudão era uma construção
colonial).
24
Mas esta questão do imaginário nacional pós-colonial tem consequências
muito concretas. Está ligada ao tipo de construção do Estado, à ideologia
do desenvolvimento (paradigma da modernização), às relações
interétnicas no interior do território, ao paternalismo autoritário das elites
políticas, etc. Não se trata meramente de uma situação conjuntural, mas
de uma situação estrutural e de longo prazo 32 . É, de fato, um regime de
colonialidade.
Os regimes de colonialidade no centro
25
Serão os países do capitalismo central também caracterizados pela
colonialidade, já que o MPC seja aí esmagadoramente hegemônico na
produção de valor? A resposta é sim, mas, mais uma vez, temos de
distinguir entre diferentes situações.
30
Primeira parte - perspectivas teóricas
26
Em primeiro lugar, há países do capitalismo central que são, eles próprios,
produto da conquista colonial. Este é particularmente o caso da América
do Norte, cujos dois Estados (Estados Unidos e Canadá) realizaram uma
conquista colonial tardia, exatamente comparável à da Europa Ocidental
na África, com a diferença de haver continuidade territorial. Nestes países
norte-americanos, já discutidos na categoria das colonialidades de países
de independência sem descolonização, a questão colonial ela própria
persiste, mesmo para além da colonialidade pós-colonial: os povos
indígenas sobreviventes continuam a travar lutas anticoloniais (e não só
decoloniais). Por vezes, como no caso do Canadá, houve colonos
(franceses) que foram eles mesmos posteriormente colonizados (pelos
ingleses: é o caso dos Acadianos e Quebequenses) 33 . A Rússia pósestalinista, agora um país capitalista e imperialista, já experimentou este
tipo de problema (caso da aniquilação da Chechénia independente), e irá
experimentá-lo muito mais no futuro, dado o grande número de povos
não-russos no seu território, resultante da colonização czarista.
27
Todos os Estados-nação modernos têm sido historicamente fruto de
guerras de conquista, embora toda a colonização implique conquista, o
contrário não é verdade. Quando uma potência externa conquista um
território, mas aceita imediatamente os ‘hábitos e costumes’ dos povos
conquistados e não os discrimina, não há colonização (para citar casos
medievais, os normandos na Sicília ou na Grã-Bretanha são um excelente
exemplo: conquista sem colonização). Além disso, a longa duração da
gênese nacional nestes países pode ter modificado profundamente
situações que antes eram coloniais ou ‘semi-coloniais’ 34 .
28
Na análise da colonialidade — pelo menos na definição que procurei dar
—, esta não deve ser confundida com as relações capitalistas
imperialistas. Quando uma grande empresa capitalista investe em países
da periferia, é antes de mais uma expressão da divisão internacional do
trabalho capitalista e da expansão do MPC. Naturalmente, a mesma
empresa vai também querer tirar partido da situação de colonialidade que
existe naquele país, por exemplo, confiando no poder local para
expropriar populações consideradas por este último como "irrelevantes"
— por exemplo indígenas, ou quilombolas negros, etc. — que vivem na
área. Outro exemplo: a presença de comunidades imigrantes de antigas
colônias num país central é antes de mais o produto do funcionamento
"normal" do capitalismo (ter um exército industrial de reserva para manter
os salários baixos) e neste sentido não é pós-colonial (não é o produto
direto do legado colonial, mas da produção contemporânea de
subalternidade à escala internacional). Além disso, muitos emigrantes
para este ou aquele país do centro não vêm de antigas colônias daquele
país (espanhóis, portugueses, italianos, polacos no passado, turcos,
romenos hoje, na França; ucranianos e moldavos em Portugal nos anos
90; haitianos nos Estados Unidos, etc.). Ora, não vamos estabelecer uma
muralha da China entre as diferentes razões pelas quais um bissauguineense e um ucraniano emigram para Portugal. Dito isto, existe
também uma dimensão pós-colonial em alguns dos casos porque, uma
Colonialismos e Colonialidades
31
vez tomada a decisão de emigrar por razões de subalternidade
contemporânea, um bissau-guineense escolherá emigrar mais facilmente
para Portugal do que para a Alemanha. Há relações sociais nãocapitalistas aqui em jogo, e este é um aspecto da colonialidade.
29
Enfim, mais globalmente, os governos do centro têm muito
frequentemente relações "especiais" com elites de países periféricos, e
nestas relações o legado colonial desempenha um papel importante
— apesar do fato de que, se este legado sobrevive, é porque tem uma
utilidade social contemporânea (a duradoura "FrançÁfrica" é um bom
exemplo), caso contrário desapareceria rapidamente. Existe uma
dimensão pós-colonial e de colonialidade numa relação que
fundamentalmente não é desta natureza mas que está diretamente
relacionada com a divisão internacional do trabalho capitalista.
30
Finalmente, não é surpreendente que a colonialidade esteja agora mais
ou menos enraizada no capitalismo globalizado. Tende a tornar-se menos
importante com a generalização do MPC, mas permanece muito
importante para milhões de pessoas nos países do centro, e milhares de
milhões na periferia, profundamente enraizada em historicidades distintas,
desenhando, assim, uma variedade de regimes de colonialidade.
32
Primeira parte - perspectivas teóricas
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1. Ver a bibliografia fornecida, em nota, no artigo de
Garcia (2002), um artigo escrito mesmo antes do famoso
livro de François Hartog (2003). ↩
2. Hartog utiliza explicitamente o termo "regime de
historicidade" pela primeira vez em um artigo de 1983
sobre Marshall Sahlins (apontado por Pascal Payen (2003,
296)). ↩
Colonialismos e Colonialidades
35
3. Tradução minha. Jacques Revel (2001, 33) (citado por
Abel Kouvouama (2018); este último, estudando os estados
africanos, utiliza quanto ao aspecto subjetivo, a noção
de "regime de subjetividade", o que implica, segundo
ele, que o "regime de historicidade" não se refere
apenas à subjetividade, p. 3 e 14). ↩
4. Como já vimos (nota 3), Abel Kouvouama respondeu
positivamente. ↩
5. Laurent Fourchard publicou recentemente um belo trabalho
sobre a utilização das noções de historicidade e regimes
de historicidade nos estudos africanos, no qual
apresenta uma extensa bibliografia sobre o assunto
(Fourchard, 2021). ↩
6. Existe uma enorme bibliografia sobre a diversidade dos
capitalismos e, em particular, sobre os regimes de
acumulação. Por exemplo, Colin Hay (2018) e Agnès
Labrousse & Sandrine Michel (2018). Agradeço a Louison
Cahen-Fourot por chamar a minha atenção para estas
obras. ↩
7. O Consejo Latinoamericano en Ciencias Sociales (CLACSO)
publicou uma importante antologia de textos de Aníbal
Quijano (2014), que também está online. ↩
8. Este texto foi publicado duas vezes, quase
simultaneamente e com o mesmo título (Quijano 1992a,
1992b). ↩
9. Realizei esta discussão extensivamente em trabalhos
anteriores (Cahen 2011, 2018a, 2018b, 2022). ↩
10. Dois exemplos em momentos diferentes da história seriam
o comércio de escravos ibérico do Atlântico Oriental
(séculosxiv-xvie ) que não resultou em conquistas
territoriais, mas teve repercussões profundas nos
Estados africanos da época; e as chamadas "Guerras do
Ópio" contra a China (1839-1842 e 1856-1860) e a
situação decorrente dos tratados desiguais impostos ao
império chinês pela Inglaterra, França e Estados
Unidos. ↩
11. Bethencourt & Chaudhuri (1998); Subrahmanyam (2013
[1993]); Thomaz (2018, 2021). ↩
36
Primeira parte - perspectivas teóricas
12. É preciso lembrar que um "sistema-mundo" não é
necessariamente mundial, mas "cria um mundo" na sua área
de implementação. ↩
13. A tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453
teve certamente consequências tão importantes como o ano
de 1492, interrompendo o fornecimento de escravos
eslavos brancos ao Mediterrâneo ocidental e incitando o
comércio de escravos atlântico. Além disso, 1492 não foi
apenas a data da "descoberta" de Colombo, foi também a
data da queda do Estado muçulmano de Granada, e portanto
o fim do fornecimento de escravos peninsulares pela
nobreza ibérica cristã, tendo a mesma consequência a
favor da expansão marítima. Sobre o primeiro tráfico de
escravos do Atlântico, ver em particular Saunders
(1982), Green (2011) e Mendes (2017). ↩
14. Amplio aqui os argumentos de Gilbert Achcar (2008). ↩
15. Por exemplo, a expansão capitalista na área recuperada
da queda dos países estalinistas foi feita diretamente
através da expansão do MPC, sem relações dominantes de
colonialidade. ↩
16. Discuti em pormenores as teses de Quijano na minha tese
de HDR (Cahen 2010). ↩
17. No entanto, elas podem ser polarizantes, o que é
diferente, uma vez que o seu desenvolvimento, mesmo que
seja minoritário, pode ter uma influência duradoura em
toda a sociedade mercantil. ↩
18. A sobrevivência dos modos de produção domésticos
proporciona então o rendimento complementar aos
miseráveis emolumentos recebidos pelos trabalhadores na
esfera capitalista. Como exemplo, pode-se consultar o
meu estudo sobre trabalho forçado nas colônias
portuguesas em África (Cahen, 2015). ↩
19. O « indigenato », no sentido de categoria oficial da
legislação colonial portuguesa na África. ↩
20. Em Portugal, um caso bem estudado foi a formação da
classe trabalhadora da indústria têxtil no norte do
país, que combinou a proletarização e a atividade
camponesa. ↩
21. Elas podem ser massivas — como o trabalho doméstico das
mulheres — mas não produzem valor de mercado. ↩
Colonialismos e Colonialidades
37
22. Não discutiremos aqui se a chamada Ásia soviética
(estalinista) teve uma relação de colonialidade com o
centro moscovita, que não era capitalista. ↩
23. Não esqueçamos que, independentemente do que os neobolivarianos da Venezuela contemporânea possam pensar,
Simon Bolívar era um independentista branco e não era
nem um anti-colonialista, nem um mestiço. Ele foi mesmo
perseguido pela ideia do perigo de uma pardocracia.
Frédérique Langue publicou extensamente sobre o assunto,
ver por exemplo ‘Bolivarianismos de papel’, Revista de
Indias, LXXVII (270), 2017, pp. 357-378. ↩
24. Isto, apesar das boas relações com os vizinhos neobolivarianos de Hugo Chavez na Venezuela (Alto &
Stefanoni, 2008; Albó & Romero, 2009; Lacroix, 2012). ↩
25. Como se pode ver aqui, não atribuo ao conceito de
decolonalidade exactamente o mesmo significado que
Walter Mignolo (2008a, 2008b, 2011). Para Mignolo, a
decolonialidade é uma postura que permite aos
subalternos desligarem-se das epistemes do colonizador
[tradução minha]: ‘A decolonialidade [de-coloniality] é
[…] a energia que não permite que a lógica da
colonialidade funcione e não acredita nos contos de
fadas da retórica da modernidade. A decolonialidade tem,
assim, um leque diversificado de manifestações […] e o
pensamento decolonial [de-colonial thinking] é, deste
modo, um pensamento que se desvincula [sic: de-link] e
abre […] às possibilidades escondidas (colonizadas e
desacreditadas, como o tradicional, o bárbaro, o
primitivo, o místico, etc.) pela racionalidade moderna
[…]" (Mignolo 2011, 45-46). Considero que o que Mignolo
descreve e define aqui nada mais é do que o aspecto
subjetivo e cognitivo do anti-colonialismo, e é portanto
relativo ao anti-colonial. O que é anti-colonial é
também decolonial, mas o contrário nem sempre é verdade.
De fato, quando o anticolonialismo se opõe à
colonização, o decolonial e a decolonialidade opõem-se à
colonialidade. [Nota para a versão portuguesa: em
português e espanhol, é possível distinguir
“descolonial” e “decolonial”, o que não é possível em
francês. Aqui uso “decolonial” em português porque não é
relativo à descolonização, mas à luta contra a
colonialidade. Mignolo fez a mesma escolha ortográfica
em inglês, mas com significado diferente.] ↩
26. Sobre as "espetaculares expansões do capital no Sul e
Sudoeste dos EUA", ver Robert Brenner (2009). ↩
38
Primeira parte - perspectivas teóricas
27. Por exemplo, muitos intelectuais indianos ainda pensam
ser muito “colonial” o fato linguístico (ou patronímico
ou arquitetônico ou culinário) português em Goa, mas não
acham nada de colonial no fato linguístico inglês em
outros locais… (experiência pessoal, Goa, 1999). ↩
28. Ou seja, a formação de grupos sociais exógenos (senhores
e escravos importados) nos territórios conquistados no
contexto da expansão do sistema-mundo capitalista
mercantilista. ↩
29. É instrutivo comparar os respectivos desenvolvimentos na
ilha Maurícia e na ilha da Reunião — indústria têxtil e
informática na primeira, sem industrialização nenhuma na
segunda. ↩
30. Esta negação global da relevância das nações indígenas
pré-coloniais não impede os governantes de terem
atitudes etno-clientelistas. ↩
31. Utopia? No entanto, é exatamente isso que o Reino Unido
é, incluindo na identidade britânica as nações da
Inglaterra, do País de Gales, da Escócia e da Irlanda do
Norte (esta última com uma questão colonial não
resolvida). ↩
32. Por esta razão, sugeri que fizéssemos a distinção entre
nacionalismo — a expressão política de uma nação
existente — e nacionismo- o projeto elitista de nação
pós-colonial em oposição às nações indígenas précoloniais (Cahen, 2012). ↩
33. Assim, o ativista socialista quebequense François
Moreau, escreveu em 1989 [tradução minha] que "O Estado
canadiano é uma prisão dos povos. Desde o seu início,
foi construído sobre as costas dos povos quebequense,
ameríndio, inuit, acadiano e mestiço, bem como
francófonos fora do Quebec, todos reduzidos a um status
subordinado e colocados sob o domínio da burguesia
anglo-canadense e do seu Estado central em Otawa. Estas
nações continuam a ser oprimidas mais de cem anos após a
fundação da Confederação" (Moreau, 2002 [1989]). Alain
Deneault considera que os quebequens eram/são de fato
colonos, mas reserva a categoria de colonizados aos
povos aborígenes (Deneault, 2020). Isto pode ser
discutido. Em todo o caso, se os francófonos do Canadá
não são colonos depois colonizados, permaneceram numa
relação de colonialidade com o poder central. ↩
Colonialismos e Colonialidades
34. Michel Rocard, que era um bom especialista do caso,
tinha mais ou menos qualificado a situação corsa como
"semi-colonial" (as características tipicamente
coloniais existiam a nível econômico, por exemplo, mas
os corsos nunca foram sujeitos ao indigenato). ↩
Michel Cahen
Universidade de Bordeaux, Sciences Po Bordeaux (França)
[email protected]
Michel Cahen é Diretor de Pesquisa Emérito do CNRS no Centro
“Les Afriques dans le monde” (Sciences Po Bordeaux). Ele é
historiador da colonização portuguesa na África, mas também tem
se interessado pela ideia colonial no império português, pela
ideologia da lusofonia, pelas abordagens pós-coloniais/poscoloniais
e decoloniais nos países de língua portuguesa, entre outros temas.
39