Marcelo Medeiros
Simone Caetano de Melo
(OrganizadOres)
A LITERATURA EM DIÁLOGO
perspectivas contemporâneas do literário
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Copyright © dos autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida
ou arquivada, desde que levados em conta os direitos dos autores.
Revisão
Déborah Letícia Ferreira de Sousa
Conselho Editorial
Profa. Dra. Lilian Barbosa (UPE, Brasil)
Profa. María Isabel Pozzo (IRICE-Conicet-UNR, Argentina)
Comitê Científico
Profa. Dra. Eva Paulino Bueno (St. Mary´s University, Estados Unidos)
Profa. Dra. Kelly Cristiane Henschel Pobbe de Carvalho (UNESP, Brasil)
Prof. Dr. Maged Talaat Mohamed Ahmed Elgebaly (Aswan University, Egito)
Profa. Dra. Véronique Le Dü da Silva-Semik (UNL, Portugal)
Marcelo Medeiros e Simone Caetano de Melo [Organizadores].
A literatura em diálogo: perspectivas contemporâneas do
literário. São Paulo: Mentes Abertas, 2023. 90 p.
ISBN: 978-65-80266-98-2
DOI: 10.47180/978-65-80266-98-2
1. Literatura. 2. Perspectivas contemporâneas. I. Título.
CDD: 800
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ....................................................................................................................................... 4
Déborah Letícia Ferreira de Sousa
A CIDADE DE ULISSES: O MITO HOMÉRICO PRESENTE EM LISBOA ..... 7
Simone Caetano de Melo
PROTAGONISMO FEMININO, VIOLÊNCIA E REPRESENTAÇÃO SOCIAL
EM TORTO ARADO DE ITAMAR VIEIRA JUNIOR ................................................. 21
Ana Paula Santos Silva
Pablo Emmanuel Araújo Dias
Renato Marques de Brito
O USO DO CONTO NAS AULAS DE LÍNGUA ESPANHOLA: REFLEXÕES
A PARTIR DE AUTORES HISPANO-AMERICANOS ................................................ 42
Juliana Fernandes de Lima Paixão Ribeiro
Raquel Espínola de Oliveira
Simone Caetano de Melo
OLHARES OPOSICIONAIS NA NARRATIVA DE CHIMAMANDA NGOZI
ADICHIE: UMA ANÁLISE DE AMERICANAH .............................................................. 57
Ana Paula Santos Silva
Pablo Emmanuel Araújo Dias
Renato Marques de Brito
DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E ÉTICA: UMA LEITURA DE VOLTO
SEMANA QUE VEM, DE MARIA PILLA E OUTROS CANTOS, DE MARIA
VALÉRIA REZENDE .............................................................................................................................. 74
Simone Caetano de Melo
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APRESENTAÇÃO
Ao desbravar as páginas deste livro, somos conduzidos por
uma exploração rica e diversificada das intrincadas relações entre
a literatura e os contextos contemporâneos que a nutrem. Nesta
jornada que atravessa diferentes geografias, tempos e temáticas,
adentramos nas vozes literárias que ressoam em sintonia com as
inquietações do presente.
Inaugurando esse diálogo, Simone Caetano de Melo nos
presenteia com um mergulho na obra “A Cidade de Ulisses” de
Teolinda Gersão. Em “A Cidade de Ulisses: o mito homérico presente
em Lisboa”, a autora destaca a influência da Odisseia de Homero
na tessitura da cidade de Lisboa, proporcionando uma reflexão
contemporânea sobre a conexão entre a epopeia homérica e a
literatura lusitana. Neste contexto, eventos históricos da sociedade
lusitana ganham vida, entrelaçados a um olhar peculiar sobre
Lisboa, enquanto a autora resgata o mito de Ulisses em uma trama
que transcende tempos e geografias distintas.
Avançamos na narrativa com Ana Paula Santos Silva,
Pablo Emmanuel Araújo Dias e Renato Marques de Brito, que,
em “Protagonismo feminino, violência e representação social em
Torto Arado de Itamar Vieira Junior”, exploram as camadas de
resiliência das personagens femininas diante das adversidades
de uma sociedade patriarcal. Sob a égide de teorias como as de
Saffioti e Spivak, a análise revela as múltiplas formas de violência
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enfrentadas pelas protagonistas, oferecendo uma reflexão profunda
sobre as experiências das mulheres marginalizadas na sociedade
contemporânea.
Juliana Fernandes de Lima Paixão Ribeiro, Raquel Espínola
de Oliveira e Simone Caetano de Melo, em “O uso do conto nas
aulas de língua espanhola: reflexões a partir de autores hispanoamericanos”, direcionam nosso olhar para a importância dos contos
de autores hispano-americanos no ensino da língua espanhola.
Para além das fronteiras gramaticais, a literatura emerge como
um veículo enriquecedor do aprendizado, proporcionando
conhecimentos interculturais, linguísticos e sociais. O conto, por
sua natureza acessível e diversificada, se revela como uma ferramenta
pedagógica eficaz, permitindo a leitura integral em curtos períodos
e enriquecendo a experiência de aprendizado.
No capítulo seguinte, Ana Paula Santos Silva, Pablo Emmanuel
Araújo Dias e Renato Marques de Brito, em “Olhares oposicionais
na narrativa de Chimamanda Ngozi Adichie: uma análise de
Americanah”, desvendam as estratégias de “olhares oposicionais”
presentes na obra de Adichie. A literatura é apresentada como uma
poderosa ferramenta de contestação, lançando luz sobre as complexas
dinâmicas de identidade, poder e resistência em uma sociedade
historicamente limitada na visão da história das mulheres negras.
Encerrando este cativante percurso, Simone Caetano de
Melo, em “Diálogos entre literatura e ética: uma leitura de Volto
Semana que Vem, de Maria Pilla, e Outros Cantos, de Maria Valéria
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Rezende”, explora a interseção entre literatura e ética. Ao focalizar
as obras de Pilla e Valéria Rezende sobre a ditadura militar no Brasil,
as autoras apresentam narrativas testemunhais e ficcionais que
resgatam a participação das mulheres na resistência contra o regime
autoritário. A literatura se revela como uma ferramenta essencial
para preservar a memória histórica, promovendo reflexões éticas e
políticas sobre os eventos do passado, além de criticar as violações
dos direitos humanos durante o período ditatorial.
A cada capítulo, este livro se revela como um convite à reflexão
e ao diálogo, evidenciando como a literatura, em suas diversas
formas e manifestações, tece uma trama intrincada com os desafios
e questionamentos contemporâneos. Ao virar cada página, o leitor é
convidado a se perder nos intricados corredores da literatura, onde
cada obra se transforma em um espelho reflexivo da complexidade
do mundo que habitamos.
Boa leitura!
Déborah Letícia Ferreira de Sousa
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Linguagem e Ensino
da Universidade Federal de Campina Grande.
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A CIDADE DE ULISSES: O MITO
HOMÉRICO PRESENTE EM LISBOA
Simone Caetano de Melo1
O presente capítulo aborda o estudo de duas obras: a Odisseia, obra célebre do poeta épico da Grécia Antiga, Homero, que
influenciou a literatura ocidental a partir de A cidade de Ulisses da
autora portuguesa Teolinda Gersão (2017), no contexto da modernidade. O mito de Ulisses já foi representado na tradição literária
inúmeras vezes, o que mostra suas potencialidades e a fonte inesgotável dessa personagem. Vale ressaltar que o herói tem uma grande
influência na escrita de vários escritores lusitanos que nos possibilitam a reflexão desse guerreiro sob diferentes óticas.
Em A cidade de Ulisses (Gersão, 2017) temos como protagonista o narrador-personagem Paulo Vaz e Cecília Branco, ambos
seguem a carreira de artista plástico. Um dos destaques da obra é
a cidade de Lisboa, que vai ganhando uma dimensão singular ao
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual
da Paraíba.
[email protected]
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longo do romance, pois a autora vai recuperando eventos históricos da sociedade lusitana, ambientados em tempos e geografias
distintas. A narrativa vai resgatando de forma direta ou indireta aspectos da grande epopeia homérica, a Odisseia, numa perspectiva
contemporânea, com relação a isso, Calvino (1988) discute que o
romance contemporâneo é uma enciclopédia, como método de conhecimento e, principalmente, como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas e entre as coisas do mundo, construindo assim
uma intertextualidade com esse texto que é referência na literatura
ocidental.
Gersão (2017), comprometida com a realidade, as questões
atuais de seu país e seu papel social como autora traz, na sua obra,
a construção de personagens que nos faz ter um olhar particular
sobre a cidade de Lisboa, possibilitando um diálogo com o mito
homérico e o conhecimento sobre aspectos socio-históricos desse
lugar, além de debater temas como a submissão da mulher no casamento, tomando, como exemplo, a relação dos pais de Paulo Vaz.
Isso se torna possível, uma vez que, de acordo com Reis e Margato (2016) podemos entender Ulisses como um herói antigo e moderno ao mesmo tempo, sendo ele capaz de atravessar épocas, pois
desde o início se mostra aberto ao futuro. Desse modo, o presente
ensaio tem como objetivo discutir a evocação do mito homérico no
contexto da modernidade.
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A influência do mito de Ulisses na litearatura portuguesa
A influência da Grécia Antiga no ocidente é inegável, basta
pensarmos em diversos conceitos que tomamos dos gregos, existindo ainda uma relação particular desses povos com a sociedade lusitana através do mito de Ulisses que é trazido na obra de Teolinda
Gersão como um patrimônio cultural português.
A figura de Ulisses está presente na escrita de muitos autores
portugueses, que exaltam e cantam seus feitos durante suas viagens
até seu regresso a Ítaca, nomes importantes como Luís de Camões,
Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner e a própria Teolinda
Gersão são exemplos da importância e dimensão desse guerreiro
para a sociedade portuguesa, além de outros autores. A título de
exemplo, citamos o texto Mensagem de Fernando Pessoa publicado
em 1934, uma das principais obras do autor onde ele dialoga com a
narrativa construída por Camões em Os Lusíadas.
Moniz (2003), no livro intitulado Estudos Neogregos, levanta
uma extensa lista de obras da literatura portuguesa que trabalha de
modos distintos o mito de Ulisses, apresentando escritores mencionados anteriormente a Diogo Pires:
Em 1596, Diogo Pires, no canto fúnebre a D. Sebastião e à derrota de
Alcácer Quibir, invoca, no exílio, a cidade fundada por Ulisses, interpelando-a, enquanto pátria, como “morada dos deuses”, exemplo reiterado de resistência ao domínio filipino. No “Epitáfio de João, Rei
de Portugal”, o Poeta lamenta de novo tal perda nacional, dizendo
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que “os paços de Ulisses” não teriam de ver tido lágrimas se “ao magnânimo Sebastião tivessem agradado os reinos que lhe pertenciam.
(Moniz, 2003, p. 22)
Podemos perceber, então, a relevância desse guerreiro para a
literatura portuguesa a qual atua como exemplo das muitas aberturas a novas interpretações que esta personagem mítica e literária
está aberta, possibilitando novos diálogos no contexto da Modernidade e sendo uma forma de revisitar os clássicos como a Odisseia. Ademais, “os livros modernos que mais admiramos nascem da
confluência e do entrechoque de uma multiplicidade de métodos
interpretativos, maneiras de pensar, estilos de expressão” (Calvino,
1988). Além disso, a mitologia grega nos ajuda a refletir sobre o
mundo e sobre nós. Os personagens migram, ganham vida e novas
versões, desde a ótica de outros textos, como discute o estudioso
Umberto Eco:
Porém, a certos personagens literários que – não a todos – acontece-lhes de saírem do texto em que nasceram para migrar para uma zona
do universo que nos é difícil delimitar. Os personagens narrativos
migram, quando têm boa fortuna, de texto em texto, e aqueles que
não migram não é porque sejam ontologicamente diversos de seus
irmãos mais afortunados: simplesmente não tiveram a sorte e não
nos preocupamos mais com eles. (Eco, 2011, p. 15)
Na perspectiva de Eco, Ulisses é um personagem migrante e,
por isso, é recorrente textos que o evoquem, além disso, como discute Ítalo Calvino, “há coisas que só a literatura com seus meios
específicos nos pode dar”. (Calvino, 1988).
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Vestígios da Odisseia na Cidade de Ulisses
A cidade de Ulisses nos traz uma leitura sobre Lisboa pelos
olhos da arte, onde os personagens percebem aspectos locais de forma precisa e crítica que outras pessoas ainda não tinham percebidos. Para contar a história desse lugar encantador evocam um dos
personagens mais célebres da literatura: Ulisses. Dessa maneira, a
escritora tece a narrativa utilizando a intertextualidade como recurso, fazendo assim:
Claras alusões não só à Odisseia, como, mais amplamente, ao mito
de Ulisses e seus possíveis desdobramentos literários, psicológicos e
filosóficos, são desenvolvidas ao longo de toda a obra, relacionando
as imagens do guerreiro da Grécia Antiga e do homem português
contemporâneo. (Matos, 2013, p. 60)
Nesse sentido, podemos considerar que “A história da Odisseia era universal e intemporal, nunca acabaria de ser contada”
como comenta Paulo Vaz. Além disso, “A viagem de Ulisses era a
vida de todos nós. A primeira palavra, abrindo o livro, era a palavra
“homem” (Gersão, 2017, p. 49), assim, essa personagem homérica
transcende seu tempo fazendo-nos pensar sobre a vida e em suas
complexidades.
Segundo Bernardes (2009) o legado de Ulisses que suscita
certa abertura para especulações e tentativas de compreensão advém da própria Odisseia de Homero, quando o adivinho Tirésias
faz uma previsão estando eles no Hades. A mensagem do adivinho
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prolonga-se ao futuro por sua ambiguidade, marcada pela expressão
grega thanatos ex halos, que pode significar que o herói teria uma
morte vinda do mar ou distante do mar. Essa forma ambígua deixada por Tirésias poderia ser um dos motivos para o prevalecimento
do tema de Ulisses na literatura e na cultura ocidental. Dessa forma:
Odisseu torna-se uma figura de longa duração, aberta às diversas interpretações, que intentam completar o anúncio de Tirésias. Assim,
além de revelar a morte do herói pela expressão ambígua, o adivinho
abre mais uma possibilidade para o futuro: sua viagem não terminaria com a chegada a Ítaca, como ocorre em Homero, mas se prolongaria para além do nóstos. Desse modo, Odisseu torna-se o viajante
por excelência, ininterruptamente. (Bernardes, 2009, p. 74)
Diante disso, Gersão (2017) lança o questionamento “Que
marcas do mito se encontravam em Lisboa? Em outras palavras,
quais os resquícios dessa figura têm uma relação tão particular com
a cidade de Lisboa? visto que, segundo a lenda difundida pelos romanos durante muito tempo, ela teria sido fundada por Ulisses.
Portanto:
Segundo a lenda Ulisses dera a Lisboa o seu nome, Ulisseum, transformado depois em Olisipo através de uma etimologia improvável.
O que dava à cidade um estrato singular, uma cidade real criada pela
personagem de um livro, contaminada, portanto, pela literatura,
pelo mundo da ficção e das histórias contadas. (Gersão, 2017, p. 43)
Lisboa estaria historicamente ligada à Grécia, através das rotas marítimas e comerciais dos gregos. Essas eram ideias profundamente disseminadas pelos romanos, constituindo uma relação par-
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ticular entre Lisboa e Ulisses, embora, provavelmente, quem teria
fundado a cidade tenha sido os fenícios. No entanto, Roma tinha
interesses em espalhar sua tese de que haveria sido os gregos. Com
isso, de acordo com Paulo Vaz a história de Portugal acaba se confundindo em diversos aspectos com a da Grécia. A ideia de que uma
personagem mítica e literária teria fundado uma cidade, mesmo que
seja uma história fictícia, nos revela a força desse mito.
Pensar a diferenciação entre turista e viajante parece ser umas
das preocupações do narrador do romance de Teolinda Gersão. Segundo Paulo Vaz, os turistas vão à procura de lugares para fugirem
de si próprio, enquanto os viajantes vão à procura de si, noutros lugares, e estão o tempo todo buscando encontrar-se. Foi nessa busca
de si que ele e Cecília, seu primeiro grande amor, encontraram o
que exatamente procuravam: a cidade de Ulisses. É possível vislumbrar a personagem de Homero como sendo também esse viajante,
pois suas muitas viagens é essa incansável procura de si e a busca
pelo autoconhecimento. Paulo Vaz morou em outros países da Europa e Estados Unidos, experimentando mundos novos e vivendo
experiências, mas sem renegar sua origem portuguesa, assim como
Ulisses, que declarou seu amor por Ítaca, porém não desperdiçou a
oportunidade de navegar por outros mares, ambos os personagens
estavam abertos a conhecer o desconhecido. Além disso, podemos
encarar o narrador-protagonista como um viajante dentro da própria Lisboa, pois ele vai desbravando seus recintos e caminhos e fazendo descobertas sobre a cidade, conforme Paulo Vaz:
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Mas no fundo não era Lisboa que procurávamos, era um ao outro e
a nós mesmos que procurávamos em Lisboa. Éramos viajantes, e é
para si próprios que os viajantes caminham. Querem saber quem são
e onde moram. E, como escreveu Novalis, vamos sempre finalmente
para casa. (Gersão, 2017, p. 83)
De acordo com Matos (2013), quando o artista recebe precisamente um convite inesperado do diretor do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste-Gulbenkian para fazer uma exposição
sobre Lisboa, ideia que foi pensada juntamente com Cecília Branco, ele acaba retomando reflexões a respeito da influência do guerreiro na cultura dos lisboetas.
Dessa forma, Teolinda Gersão (2017) traz, em sua narrativa, a
relevância e necessidade do legado helênico para a contemporaneidade, quando o narrador-protagonista diz que:
Na verdade, a Odisseia fora escrita três séculos antes de essas ideias
surgirem, em Atenas, no século v a. C. (e reportava-se a um tempo
muito antigo, a queda de Tróia teria sido em 1215 a. C.). Mas no
nosso imaginário Ulisses, o grego representava o legado helénico.
Saía da sua época arcaica, da sua ilha de pastores e marinheiros, navegava pelo tempo levando estas três coisas fundamentais que a Grécia
deixara ao mundo: além da Odisseia, a Racionalidade e a Democracia. (Gersão, 2017, p. 79)
Ulisses é essa figura que vai renascendo ao longo do tempo e
consequentemente ligamos esses conceitos a este herói, conceitos
que, segundo a autora, nunca foram praticados na íntegra em nenhum lugar do mundo, visto que “no melhor dos casos, o que se
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encontrava eram meras aproximações muito imperfeitas” (Gersão,
2017, p. 79).
Paulo Vaz, questiona e levanta suposições para a partida do
herói, supondo que sua família não é suficiente para si e não se sente
satisfeito com a vida em Ítaca. Na visão do narrador-protagonista,
Penélope, Telêmaco e sua terra não lhe bastavam. O guerreiro desejava adentar a outros lugares, mares, enfrentar novos desafios, conhecer outras pessoas e viver as mais inusitadas experiências. Matos
(2013) diz que para Ulisses não lhe bastava a vida cheia de regras e
segura do mundo humano, eram necessários os deuses, o fantástico,
os perigos e as provas de coragem que o mar lhe traria em suas viagens. Com isso, o mito homérico acaba vivendo por um ano no palácio de Circe, uma feiticeira que transformou seus companheiros
de viagem em porcos, além de outros eventos vividos durante seu
tempo longe de Ítaca. Quando olhamos para a narrativa de Homero percebemos tais acontecimentos como tormentas, porém Paulo
Vaz acredita que essa ausência de Ulisses durante 20 anos faz parte
de seu plano inconscientemente egoísta:
Assim Ulisses encontra na guerra de Tróia um álibi perfeito para abandonar Penélope. A mulher, o filho e a ilha de Ítaca tornaram-lhe a vida
demasiado estreita, está cansado do quotidiano doméstico e anseia por
fazer-se ao largo, em busca de aventuras. Tem saudade do mundo forte
dos homens, do mundo sem mulheres que é o mundo da guerra. Não
porque deseje como Aquiles o amor e o sexo com outro ou outros homens, mas porque a vida familiar se tornou para ele sufocante. Claro
que esconde o seu desejo com palavras habituais e masculinas: dever,
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honra, lealdade e outras semelhantes. Mas na verdade ele não trocaria a
guerra por nada nesse mundo, Tróia é um objectivo irresistível. Haverá
como é evidente perigos, ciladas, inimigos, traições, mortes e naufrágios, mas ele aceita todos esses riscos em troca do direito de deixar Penélope e partir. Ela não lhe basta. Não por culpa própria, mas porque
nenhuma mulher lhe bastaria. (Gersão, 2017, p. 51-52).
Na análise do artista plástico, Ulisses é tomado pelo egoísmo e
não ver como justo a espera que Penélope e Telêmaco devem se submeter, tendo em vista que, para ele duas décadas é um tempo bastante
longo. Temos, então, a partir da ótica da escritora portuguesa, uma
outra versão desse guerreiro, novas possibilidades de impressões são
trazidas também numa série de quadros que Paulo Vaz pintou, como
seu quadro intitulado Em Tróia com Helena, onde ele relata que:
Toda a gente, do galerista ao comprador do quadro supôs que a figura masculina era Páris. Mas eu sabia que era Ulisses com Helena,
a caminho da sua hora de amor, nas ruínas de Tróia devastadas. Na
escultura que fiz depois registrei noutra forma esse momento. Colhi
aqui e ali alguns dados (Penélope, prima de Helena e menos bela, é
de facto numa das versões a segunda escolha de Ulisses) mas no essencial esse mito inventei-o eu. Em nenhuma versão Ulisses viveu em
Tróia uma hora de amor com Helena. (Gersão, 2017, p. 53)
O artista traz em sua pintura outras óticas para este herói, fazendo com que seu leitor mergulhe junto com ele na imaginação de
outras possibilidades para uma das figuras míticas mais importantes de todos os tempos.
O narrador-personagem vai enfatizando ao longo da narrati-
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va de um modo particular as personagens homéricas: Ulisses, Penélope e Telêmaco. O ambiente familiar foi fundamental para seu
interesse e posteriormente formação nas artes plásticas. Paulo Vaz
discorre sobre o tempo que viveu com seus pais (Luísa Vaz e Sidónio Ramos) com um período conturbado, visto que seu pai era autoritário e inflexível, tendo que por vezes anular sua personalidade
por tais fatores, mas também foi um momento da descoberta do
prazer de criar, iniciado por sua mãe nas aulas de pintura que lhe
permitiu que a acompanhasse nessa jornada de produção.
O pai é descrito por ele, conforme mencionado anteriormente, como alguém autoritário, ríspido, que não aceita ser contrariado
e que não se sente satisfeito com a escolha do filho de seguir carreira
de artista plástico, pois seu desejo era que ele adentrasse na carreira
militar como ele. Matos (2013) discute que o nome do pai de Paulo
Vaz remete a uma questão histórica de Portugal, pois Sidónio Ramos foi um conhecido ditador português do século XX. Assim, essa
condição dominadora e violenta do pai afastou desde muito cedo
de seu filho. A relação de Sidónio Ramos com Luísa Vaz também
é marcada pelo autoritarismo e exigência de sua total submissão.
Diante disso, analisando sua conjuntura familiar formada por ele,
Sidónio Ramos e Luísa Vaz podemos perceber algumas semelhanças com a família apresentada na Odisseia de Homero, visto que há
uma identificação de Paulo Vaz com Telêmaco, pois ambos sofrem
com a ausência da figura paterna. O primeiro vê um distanciamento
afetuoso de seu pai, embora esteja presente fisicamente, enquanto
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o segundo uma ausência literal de vinte anos, fazendo com que estes não tenham uma referência sólida se assemelhando em muitos
aspectos.
Percebemos que nunca houve uma relação de carinho entre o
artista e seu pai, pois ele mesmo declara “os meus sentimentos em
relação a ele foram, durante muito, tempo, medo, confusão e vergonha” (Gersão, 2017, p. 90). Já o filho de Ulisses, presente na obra
de Homero tinha uma visão mais positiva do pai, embora não o
conhecesse pessoalmente e que foi adotando a visão que os demais
tinham do herói, um homem nobre. Na Odisseia, há um intento de
demostrar a falta que Telêmaco e Ulisses sentiam um do outro, mesmo sem se conhecerem e a emoção do encontro dos dois no retorno
do pai a Ítaca:
Beijou o filho e deixou correr pela face e cair no chão uma lágrima,
que até aí vinha retendo a custo. [...] Telêmaco, abraçando o seu nobre pai, gemia derramando lágrimas e neles cresceu o desejo de soluçar. Romperam em pranto [...]. E teriam chorado até o pôr-do-sol
[...] (Homero, 2006, p. 191-192).
Portanto, podemos entender que a visão negativa que Paulo
Vaz tem de Ulisses com seu filho pode ter relação com o ressentimento que ele tem de seu próprio pai. Assim, ele olha a obra clássica
de Homero com os olhos de alguém que teve que ser criado pelas
mulheres do seu entorno sem uma referência masculina.
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Conclusão
A figura mítica e literária de Ulisses tem atravessado o tempo em todas as suas dimensões, constituindo-se uma personagem
inesgotável que tem se reinventado no contexto da modernidade
mostrando suas potencialidades. É importante mencionar a relevância desse herói para a literatura ocidental e, em particular, para
a literatura portuguesa, visto que se tem a ideia cultural fictícia de
que esse guerreiro teria fundado Lisboa.
Teolinda Gersão, uma das principais escritoras portuguesas
contemporâneas nos traz novas visões e possibilidades para as personagens da Odisseia, a partir das personagens de sua narrativa. Seu
narrador-personagem coloca suas experiências pessoais relacionando com eventos da obra de Homero possibilitando novas leituras
desse clássico. A título de exemplo, Paulo Vaz mostra um Ulisses
que seria egoísta pela sua decisão de partir de Ítaca deixando sua
família, além de recriar, por meio de sua percepção, outros eventos
que não estão presentes na obra de Homero, fazendo com que o
leitor imagine novos cenários, como é o caso de sua tese em que
Penélope havia sido a segunda opção do herói grego, cena que foi
retratada em sua pintura intitulada Em Tróia com Helena. Este mesmo personagem de Gersão acaba relacionando seus sentimentos individuais com os sentimentos dos personagens de Homero, quando
discorre sobre a ausência física de Ulisses na vida de Telêmaco se
identificando pela ausência afetuosa de seu pai Sidónio Ramos.
19
Referências
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Acesso em: 12 de jan. 2023.
20
PROTAGONISMO FEMININO, VIOLÊNCIA
E REPRESENTAÇÃO SOCIAL EM TORTO
ARADO DE ITAMAR VIEIRA JUNIOR
Ana Paula Santos Silva1
Pablo Emmanuel Araújo Dias2
Renato Marques de Brito3
Desde o momento em que voltou seu olhar para a realidade
das classes mais marginalizadas e desfavorecidas da sociedade brasileira, a literatura nunca mais deixou de refletir o sofrimento que esses grupos enfrentam. Em particular, as populações rurais e as mulheres negras emergiram como símbolos inequívocos de um atraso
que, por muito tempo, permeou a nossa cultura. Esse atraso que
abordamos refere-se às representações ausentes ou estigmatizadas
na literatura brasileira: personagens mulheres, negros, LGBTQI+
Graduanda em Letras – Inglês pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
[email protected]
Mestre em Literatura e Interculturalidade pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade
da Universidade Estadual da Paraíba. (PPGLI-UEPB).
[email protected]
3
Graduado em Letras - Português pelo Centro Universitário Maurício de Nassau (UNINASSAU).
[email protected]
1
2
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e outros grupos que foram historicamente marginalizados, silenciados e subalternizados4.
A virada no olhar literário desencadeou uma onda de escritores motivados a dar voz a um Brasil profundo, e nesse contexto resplandece o romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. A
obra, galardoada nos concursos Leya (2018), Jabuti (2020) e Oceanos (2020), tece a saga de uma família rural baiana, imersa em
condições de vida que evocam reminiscências de tempos de escravidão. Estruturado em três capítulos, o romance adota três narradoras femininas negras: as irmãs Belonísia e Bibiana, e uma entidade
transcendente. Através de suas vozes, somos guiados pela trama que
denuncia a persistência de espaços marginalizados, onde a lei do
mais forte prevalece e estratégias de resistência são forjadas contra
as opressões de uma sociedade patriarcal.
Torto Arado é um testemunho do protagonismo feminino, especialmente das mulheres negras, e da influência da religiosidade
tradicional, representada pelo jarê5. Além disso, a escolha vocabular
incorpora elementos da linguagem local, estabelecendo a atmosfera
das narradoras e tornando a história acessível mesmo para leitores
menos familiarizados, enquanto dialoga com as histórias de famíEssa perspectiva é amplamente respaldada por Gayatri Spivak em sua abordagem teórico-política. De acordo com sua visão, a categoria de subalterno diz respeito: “às estratas mais desfavorecidas da sociedade, que
são marcadas por formas específicas de exclusão dos espaços de representação política e legal, e pela limitação em alcançar a plena participação no estrato social dominante” (Spivak, 2010, p. 14).
5
O Jarê, como uma prática religiosa de origem africana, tem suas raízes na região da Chapada Diamantina,
com destaque para localidades como Lençóis, Mucugê, Palmeiras e Iracuara. Essa característica confere à
temática uma abordagem com nuances regionais, no sentido mais estrito do termo. O fato de ser uma prática religiosa traz consigo uma linguagem, um culto e uma dinâmica intrinsecamente distintos e localizados
regionalmente. Esse aspecto, quando observado de uma perspectiva mais ampla, se transforma em um valor
literário que não apenas é incorporado, mas também é elaborado pelo autor do romance em análise.
4
22
lias negras que ecoam de um passado escravagista, cujos resquícios
ainda ecoam na sociedade brasileira.
Como uma expressão artística que reflete a sociedade, a literatura sempre desempenhou um papel crucial em questionar épocas, estilos e comportamentos dentro de contextos históricos. Com
isso em mente, este estudo analisa o protagonismo das personagens,
principalmente focando nas irmãs Belonísia, à luz das dinâmicas
feministas e das estruturas patriarcais delineadas no texto. O objetivo é explorar como, apesar da opressão e silenciamento impostos
por uma sociedade patriarcal, essas personagens exibem resiliência
e força para transcender as adversidades.
Dentro dessa análise, o artigo examina o destaque das personagens e a opressão que enfrentam no contexto do romance Torto
Arado. Para embasar essa análise, são empregados os conceitos teóricos de Saffioti (1997), Spivak (2010), Zinani (2006) e Touraine
(2007). O estudo evidencia como as protagonistas do romance sofrem diversas formas de violência e como cada uma busca maneiras de resistir à crueldade que as envolve. A obra também expõe as
profundezas de um Brasil pouco reconhecido pela maioria, podendo induzir até mesmo um leitor desatento a pensar que a trama se
desenrola no século XIX, logo após a abolição da escravatura, ou
mesmo no século XXI, dada a persistência de situações similares
em algumas regiões do país.
É notável que as protagonistas em foco no romance buscam
resistir às opressões que enfrentam. Donana carrega uma vida de
23
tragédias, mas persistentemente procura superá-las; Bibiana concretiza seu desejo de educação e se torna professora, ao mesmo tempo em que luta pela posse da terra, buscando conceder aos negros o
direito de serem verdadeiros donos de suas moradias de longa data.
Já Belonísia, após um casamento infeliz, escolhe rejeitar a ideia de
um novo matrimônio, optando por uma vida sem a presença de um
homem, algo raro no contexto em que as jovens geralmente se casavam e engravidavam precocemente.
Submissão e resistência feminina: o patriarcado e a construção
da identidade em Torto Arado
Historicamente, uma hierarquia arraigada na sociedade conferiu aos homens um status superior, estabelecendo um papel central em diversas esferas, enquanto relegava as mulheres a uma posição subalterna, frequentemente confinadas aos limites do espaço
doméstico. Esse sistema patriarcal perpetuou desigualdades que se
propagaram ao longo dos anos, resultando na marginalização das
mulheres e exacerbando a opressão e a violência de gênero. No entanto, o movimento feminista emergiu como um catalisador de
mudança, empoderando as mulheres a reivindicarem um papel ativo e vocal na sociedade, rejeitando sua subalternidade e buscando
forjar sua própria identidade.
A construção da identidade feminina se baseia naquilo que
resiste às imposições sociais, indo além das limitações de uma cul-
24
tura específica ou de uma estrutura organizacional. Nesse contexto,
as mulheres estão se erguendo, trilhando um caminho em direção
à afirmação de suas singularidades e à liberdade de escolherem seus
próprios destinos. Como salientado por Touraine (2007, p. 47), a
luta das mulheres visa transcender as definições impostas externamente. Assim, é fundamental combater o discurso essencialista que
simplifica a natureza feminina, frequentemente estabelecendo comparações desfavoráveis com os homens. As aspirações das mulheres
não se limitam à reação contra a supremacia masculina, mas abrangem objetivos positivos de desenvolvimento pessoal. Ao longo dos
anos, a superioridade masculina tem sido questionada, visto que
as mulheres têm ocupado posições transformadoras na sociedade.
Elas estão aspirando a passar de meras consumidoras a produtoras
ativas dentro da estrutura social, buscando o crescimento pessoal e
desafiando a transformação das esferas privadas, incluindo a relação
com seus próprios corpos e a construção de sua sexualidade.
O foco primordial das mulheres não é derrotar os homens
dominantes, mas sim subverter a ideia de que a esfera pública deve
ser dissociada da esfera privada, uma esfera muitas vezes excluída
das disparidades culturais. Pelo contrário, muitas mulheres argumentam que é necessário começar pela esfera privada para transformar a esfera pública, como destacado por Touraine (2007, p. 89).
A medida que se aventuram em um novo mundo de possibilidades,
as mulheres percebem a capacidade de criar e recriar modos alternativos de vida, visando eliminar as discriminações históricas que
25
afligiram as gerações passadas. Assim, o movimento feminista vai
além da superfície, examinando as raízes da dominação que geraram categorias de dominantes e dominados. O movimento busca
(re)inventar uma cultura inclusiva, uma cultura que todos possam
compartilhar, eliminando qualquer forma de aversão entre os sexos.
Essa nova cultura não visa rebaixar o homem, mas sim transcender
a ideia de superioridade e inferioridade.
Contudo, quando olhamos especificamente a partir da perspectiva do patriarcado e não indo além desse ponto, como será
abordado e analisado nos próximos segmentos deste trabalho, identificamos a submissão das mulheres em diversas situações em “Torto
Arado”. Já começamos a tocar nessa questão patriarcal que se manifesta de maneira evidente no romance. Desde cedo, as meninas
eram compelidas a se casarem e a se submeterem aos desejos de seus
maridos. “Muitas cediam diante das insistentes propostas, sucumbindo à pressão, e, abençoadas por seus pais, se uniam a eles quando
seus corpos ainda estavam em formação. Se rendiam à autoridade
do homem, dos capatazes, dos fazendeiros dos arredores” (Vieira
Jr., 2020, p. 54). O ponto crucial de submissão reside na obrigação
de satisfazer os desejos sexuais do marido, procriar, administrar as
tarefas domésticas e frequentemente, também trabalhar nos campos.
Essas manifestações de submissão estão intrinsecamente ligadas à ideia de que as mulheres não possuem controle sobre o domínio masculino, sobre o espaço compartilhado com esses ho-
26
mens “chefes”. Isso reflete uma visão profundamente patriarcal.
Esse contexto confina as mulheres a três territórios: o campo que
não é delas, a casa que não é delas e seus próprios corpos - uma
vida que transita entre esses domínios. Saffioti (1997, p. 76) observa que uma vez estabelecido o domínio territorial, o líder, frequentemente um homem, assume o controle quase incondicional
sobre todos os ocupantes. Esse processo de territorialização não
é apenas geográfico, mas também simbólico. Dessa forma, uma
pessoa que pertença a um determinado território pode sofrer violência, mesmo que não esteja fisicamente presente nesse espaço.
A percepção do poder simbólico territorial, enraizado na
vida doméstica e amplificado pelo ambiente patriarcal circundante,
é uma experiência vivida por Belonísia, que, longe de resignar-se,
toma a decisão de casar-se para se tornar mulher. Ela compreende
que não precisa aceitar a violência passivamente.
As personagens femininas em Torto Arado
As protagonistas do romance são Bibiana e Belonísia, irmãs e
filhas de trabalhadores rurais do sertão baiano. Como descendentes
de negros que sofreram a escravidão, elas vivem na modesta fazenda
Água Negra, onde as casas são construídas com barro e a subsistência provém da agricultura. A narradora da primeira parte é Bibiana,
que começa a história com apenas 7 anos de idade. Acompanhada
por sua irmã mais nova e movida pela curiosidade, ela aproveita um
27
momento de distração para examinar a mala cuidadosamente guardada por sua avó paterna. No entanto, um ato de ingenuidade desencadeia uma série de eventos que entrelaçam o destino das irmãs.
Com a lâmina de corte de marfim em suas mãos e sangue escorrendo por seu corpo, uma conexão profunda é formada entre elas.
Esse trágico episódio fortalece ainda mais a intimidade e a
cumplicidade entre as irmãs durante a infância e o início da adolescência. À medida que o enredo se desenrola, a história delas se destaca, entrecortada por questões familiares, aspectos raciais, tradições
religiosas afro-brasileiras, diálogos com o período de escravidão e
suas consequências na sociedade, mesmo após a abolição. Bibiana e
Belonísia crescem quase como uma só entidade, uma ligada à outra,
imprimindo os desejos uma da outra no mundo.
Para sutilmente prenunciar o que acontecerá com as personagens durante a adolescência, Vieira Junior introduz duas outras
mulheres, também irmãs, Crispina e Crispiniana. As histórias desses dois pares se entrelaçam e ecoam, até que um rompimento ocorre entre Bibiana e Belonísia. A mais velha foge de casa em busca
de seus sonhos, já que em Água Negra ela não encontra motivação
nem realizações.
A segunda parte do livro é centrada em Belonísia, agora sem
a irmã como sua companheira, mas ainda em processo de desenvolvimento e enraizada na fazenda. Ela descobre a satisfação em trabalhar a terra e experimenta a angústia de um relacionamento sem
um futuro promissor. Ao observar o sofrimento da vizinha Maria
28
Cabocla, que suporta violência e abuso do marido, Belonísia amadurece ainda mais. Após muitos anos, Bibiana retorna, agora casada
e com filhos, e a ligação entre as irmãs é restabelecida, apesar das
dificuldades do passado. A conexão entre elas se revela mais forte
do que qualquer ressentimento ou desarmonia juvenil.
Após termos realizado um resumo sucinto dos acontecimentos delineados nos capítulos anteriores do livro, é hora de adentrarmos nas entranhas da nossa proposta, que almeja conduzir uma
análise minuciosa sobre o protagonismo e a opressão enfrentados
pelas personagens. Essa análise assume uma relevância ímpar ao nos
depararmos com a persistência do patriarcado, que ressoa de maneira vigorosa no contexto em que as protagonistas estão imersas.
O nosso propósito é escavar as profundas camadas da narrativa e do
cenário, explorando de que forma as personagens interagem com e
respondem ao sistema patriarcal enraizado. Desejamos identificar
as maneiras pelas quais elas desafiam as normas pré-estabelecidas,
reivindicando suas vozes e autonomia dentro de uma estrutura que,
historicamente, as subjugou.
Neste cenário de análise, emerge uma tentativa de distanciamento da imagem da mulher submissa no romance. Encontramos
em Água Negra personagens femininas que não aceitam o papel social imposto a elas e não se resignam diante dos eventos da vida. De
certa forma, elas manifestam empoderamento e desejos individuais.
Um exemplo marcante é Donana, a avó de Bibiana e Belonísia, que,
marcada pela morte de dois maridos, chega ao extremo de assassi-
29
nar seu terceiro companheiro após ele agredir e violentar sua filha
Carmelita. Esse ato de defesa foi realizado com a mesma lâmina de
corte que Bibiana e Belonísia encontraram na Fazenda Caxangá
quando eram crianças, e que causou o acidente de Belonísia, deixando-a sem voz pelo resto da vida. Essa lâmina, que trouxe tanto
infortúnio, também funcionava como um talismã para Donana e,
posteriormente, para suas netas.
[...] A melhor coisa que Tobias fez foi devolver involuntariamente o
punhal de sua avó. Talvez esse tenha sido o único propósito de seu
erro. Mesmo após muitos anos, você percebeu que ainda era fascinada pelo brilho da lâmina. Quando teve a lâmina em suas mãos novamente, viu seu reflexo com o mesmo brilho nos olhos: a menina e a
idosa, a inocente e a culpada (Vieira Jr., 2020, p. 119).
A lâmina de corte se transforma em um símbolo da força
dessas mulheres. Para Donana, ela representou uma ferramenta de
defesa contra um agressor; para Belonísia, apesar de ter causado a
perda de sua fala, tornou-se uma ferramenta que contribuiu para
sua força interior. O fascínio de Belonísia pela lâmina de corte não
é em vão.
O romance retrata a vida das agricultoras, cujas vidas são marcadas por árduas jornadas de trabalho. Como resultado, elas carregam consigo sinais de envelhecimento, amargura e exaustão, frutos
da dureza cotidiana da vida no campo: “Todas nós, mulheres do
campo, éramos um tanto maltratadas pelo sol e pela seca. Pelo trabalho árduo, pelas dificuldades que enfrentávamos, pelas crianças
que tínhamos em sequência, que esgotavam nossos seios e alarga30
vam nossos quadris” (Vieira Jr., 2020, p. 246). Além do trabalho
na terra, da vida doméstica e das numerosas gestações, elas muitas
vezes têm de lidar com maridos agressivos e misóginos, como evidenciado pelo caso de Maria Cabocla, frequentemente vitimizada
por Aparecido, que alega que seus acessos de violência são provocados pelo álcool.
[...] Aparecido chorou, pedindo desculpas, afirmando que esse não
era o seu comportamento usual, que o álcool era uma maldição em
sua vida. Maria Cabocla aproveitou a fraqueza que ele demonstrou
para finalmente afastá-lo. Ela mostrava as marcas pelo corpo, algumas
aparentemente curadas, outras não, e aquelas recém-feitas (Vieira Jr.,
2020, p. 150).
A análise revela que tal situação não se apresenta como um
caso isolado. A agressão, a violência e outras formas de desrespeito
contra as mulheres frequentemente têm suas raízes no patriarcado
profundamente arraigado. Este sistema as relega a uma posição subalterna, onde são objetificadas e oprimidas. Nas palavras de Cecil
Jeanine Albert Zinani (2006), o patriarcado não apenas legitima a
dominação, mas também a solidifica através da tradição e do arbítrio do dominador. O poder do patriarca é firmado na crença entranhada nos dominados de que a dominação é um direito tradicional
do dominador, exercido para seu próprio benefício. Zinani (2006)
argumenta que a problemática de gênero, em grande medida, encontra-se inserida na própria mulher, influenciada por uma cultura
androcêntrica que historicamente definiu e priorizou papéis sociais
sob a ótica masculina. Para superar esses estigmas cristalizados, é
31
imperativo que as mulheres reconheçam sua capacidade, competência e rejeitem a noção de serem sujeitas subalternas.
Contudo, a subalternidade assume contornos ainda mais
profundos para as mulheres situadas em contextos de desvantagem
social, relegando-as à margem e obscurecendo suas vozes devido à
opressão de gênero. De acordo com a autora Spivak (2012), a mulher subalterna frequentemente se vê impedida de fazer sua voz ser
ouvida, encontrando-se em uma posição em que lhe faltam os meios
para expressar sua perspectiva. A subalternidade, portanto, não apenas enfraquece a voz das mulheres, mas também as aprisiona em um
ciclo de invisibilidade e silenciamento, perpetuando as desigualdades de gênero e a marginalização. Essa constatação reforça a importância de examinar de maneira mais profunda como as personagens
do romance estão entrelaçadas em uma luta contra essas formas de
opressão arraigadas em seu contexto e como suas ações e escolhas se
tornam atos de resistência em face dessas adversidades.
O protagonismo das personagens em Torto Arado
Belonísia, que perdeu a capacidade de fala após um acidente
na infância envolvendo a lâmina de corte de Donana, emerge como
uma personagem verdadeiramente notável dentro do complexo
contexto patriarcal. Ela demonstra uma inclinação natural por atividades tradicionalmente consideradas masculinas e, de maneira
decidida, opta por trilhar seu próprio caminho, distante de relacio-
32
namentos com homens ou maternidade. Desde cedo, encontrava
satisfação em acompanhar seu pai nas atividades rurais, destacando-se por sua presença ativa nas discussões familiares. Apesar disso, esbarrava nas limitações impostas pela mentalidade patriarcal,
evidenciadas nas restrições que seu irmão e seu pai, Zeca, frequentemente colocavam em suas ações (Vieira Jr., 2020, p. 75). Em contrapartida ao panorama que aprisionava muitas mulheres às tarefas
domésticas, Belonísia não nutria aspirações de seguir uma formação
educacional, em grande parte devido à falta de incentivo.
No entanto, Bibiana trilhou um percurso distinto ao engravidar de seu primo Severo. Abraçou o destino que lhe parecia imposto, percebendo que caso estivesse grávida, deveria deixar sua casa
para viver com Severo, uma decisão que não foi tomada por escolha,
mas por uma sensação de obrigação (Vieira Jr., 2020, p. 76). Apesar
de resistir a deixar seus pais e sua comunidade natal, a persuasão de
Severo a fez vislumbrar a possibilidade de um futuro mais digno.
A mudança tornou-se necessária devido à humilhação cotidiana e
à falta de recursos básicos que enfrentavam no ambiente atual. Assim, Bibiana fugiu com Severo e anos depois retornou, agora mãe
de quatro filhos, com o sonho de se tornar professora concretizado. Sua trajetória desafiou as expectativas que geralmente recaíam
sobre meninas e mulheres naquele contexto, onde o aprendizado
formal era desencorajado para as jovens (Vieira Jr., 2020, p. 96).
Bibiana transformou-se em uma figura de resistência, enfrentando e superando as adversidades da vida ao lado de seu marido, em
33
busca de condições de vida melhores para sua família e a comunidade
que habitavam. Eles eram relegados à margem de todos os benefícios
básicos: a moradia, os salários e até mesmo a alimentação eram negados. Essa realidade cruel os forçava a sobreviver em um ciclo de trabalho incessante, sem qualquer direito ou reconhecimento.
E como bem destacou, para sobreviver na cidade, cada pequeno conforto tinha um custo monetário. Desde uma simples cebola
até um tempero, tudo demandava dinheiro. Nesse contexto, Bibiana não hesitou em se tornar uma força ativa ao lado de seu marido.
Enquanto ele se engajava na luta por melhores condições de vida, ela
desempenhava seu papel, cuidando das crianças e proporcionando
a ele a liberdade para participar das reuniões, escrever e até mesmo
se deslocar na garupa da motocicleta que havia adquirido. Juntos,
eles frequentavam sindicatos, participavam de reuniões e orquestravam estratégias, muitas vezes agindo clandestinamente, buscando
formas de melhorar a situação (Vieira Jr., 2020, p. 198).
Bibiana personificou a resiliência, encontrando a força necessária para lutar por melhores condições não apenas para si mesma,
mas para toda a comunidade. Eles ousaram começar uma jornada
arriscada, trabalhando incansavelmente para estabelecer uma associação de trabalhadores, unindo esforços e mobilizando outros que
compartilhavam da mesma aspiração: conquistar a posse da terra
e, mais do que isso, garantir a dignidade humana. No entanto, esse
empenho teve um custo alto. A vida de Bibiana foi profundamente
abalada com o assassinato brutal e impune de seu marido Severo.
34
Esse trágico evento reforçou de maneira amarga a ideia de que a
vida dela e de outros indivíduos negros era desvalorizada. A voz deles estava silenciada, as possibilidades de reivindicação de direitos
eram praticamente inexistentes, revivendo a sensação de serem tratados como escravos, sem permissão para expressar suas opiniões ou
clamar por justiça.
Belonísia se destaca como uma figura notavelmente distinta
de sua irmã. Enquanto a busca pelo conhecimento e a educação não
a cativavam, ela encontrava satisfação nas atividades manuais, utilizando sua força e coragem na terra. A fuga de sua irmã grávida com
Severo despertou nela um novo interesse: encontrar um marido
para si. Seus desejos eram práticos, enraizados na ideia de que a vida
segue um curso natural, seguindo o mesmo trajeto trilhado por todas as garotas de sua idade, incluindo sua irmã Bibiana. Ela aspirava
a uma vida convencional: um marido, uma casa, filhos; chegando
até a alimentar a fantasia de que Tobias, consideravelmente mais
velho, a tomaria como esposa. Essa aspiração era forjada pela observação das vidas das outras jovens ao seu redor, e ela ansiava por
incorporar esse modelo em sua própria trajetória:
[...] À medida que testemunhava o nascimento de novas vidas, sentia
uma vibração interior cada vez mais forte, um movimento que parecia clamar por uma gestação, assim como a terra úmida implora para
ser semeada. A própria natureza realiza seu próprio processo de cultivo, proporcionando capoeira, maracujá da caatinga e uma variedade
de folhas capazes de curar os males do corpo e do espírito (Vieira Jr.,
2020, p. 105).
35
Há uma incerteza que paira, questionando se esse desejo profundo era, de fato, um anseio pela maternidade ou meramente uma
tentativa de imitar o que as outras jovens faziam. É crucial lembrar
que Belonísia era uma adolescente, como mencionado anteriormente. Essa “necessidade” de ser mãe parecia derivar da observação
das outras jovens que já estavam mergulhadas na experiência da maternidade. O contexto a envolvia e moldava suas aspirações. Em um
ambiente onde a iniciação sexual precoce era uma constante, o desejo de ser mãe era quase inevitavelmente influenciado pela norma
cultural que associava a feminilidade à maternidade.
Entretanto, a vida de Belonísia tomou um rumo árduo após
se tornar esposa de Tobias. Enquanto as mulheres inseridas naquele
contexto eram relegadas ao papel doméstico, Belonísia se viu condenada a cuidar da casa com meticulosidade, preparar refeições e,
em última instância, existir para satisfazer o marido. No entanto,
em troca de sua dedicação, Tobias raramente expressava gratidão:
“Não houve qualquer sinal de agradecimento. Ele era um homem,
por que deveria agradecer? Foi isso que passou pela minha mente.
Contudo, nos olhos dele, eu podia discernir a satisfação de quem
tinha feito um negócio proveitoso ao trazer uma mulher para sua
tapera” (Vieira Jr., 2020, p. 113).
No momento de sua primeira experiência sexual, um acontecimento temido, Belonísia concluiu que estava simplesmente cumprindo mais uma obrigação imposta às mulheres. Afinal, era para
isso que Tobias a havia levado para sua casa, para que ela o servisse:
36
“Eu interrompia o que estivesse fazendo para atendê-lo” (Vieira Jr.,
2020, p. 115). E isso envolvia não apenas cuidar da casa e preparar
sua comida, mas também satisfazê-lo sexualmente. Refletindo sobre sua primeira noite, Belonísia observou:
[...] Depois que ele me deitou na cama, beijou meu pescoço e despiu-me, não senti nada que justificasse meu temor. Era semelhante
a cozinhar ou varrer o chão, algo rotineiro. No entanto, esse ato era
inédito para mim, desconhecido, mas agora eu estava ciente de que,
como mulher que vivia com um homem, essa era uma responsabilidade a cumprir (Vieira Jr., 2020, p. 114).
A vida prosseguiu e muitos dias se passaram. Belonísia começou a perceber que era tratada como um mero objeto nas mãos de
Tobias, que sequer a chamava pelo nome: “Me sentia uma mercadoria adquirida, que diabo esse homem tem que me chamar de mulher,
minha mente tumultuada protestava” (Vieira Jr., 2020, p. 116). A
vontade de retornar à casa dos pais foi despertada, pois ela compreendeu que ali seria apenas um meio de agradar Tobias; este último
começou a chegar em casa embriagado e a tentar abusar dela. Ele
reclamava da comida e, em uma ocasião, atirou um prato em sua direção. Contudo, Belonísia não estava disposta a tolerar tais abusos.
“Logo ele poderia me bater como o marido da Maria Cabocla. Mas
eu já me sentia diferente, não tinha medo dos homens, eu era filha
de Donana e descendente de Salu, mulheres que fizeram os homens
dobrarem a língua ao dirigirem-se a elas” (Vieira Jr., 2020, p. 121).
Belonísia ansiava por abraçar a liberdade, e em pouco tempo
de convívio, ela já havia discernido que a vida que estava vivendo
37
não era o que desejava para si mesma. Não estava mais disposta a
tolerar o abuso de seu marido: “Antes que qualquer homem ousasse
me ferir, eu arrancaria suas mãos ou sua cabeça. Que ninguém subestimasse minha fúria” (Vieira Jr., 2020, p. 121). Embora as agressões não fossem estritamente físicas, a convivência com aquele homem tornava-se cada vez mais insustentável.
Quando ele foi encontrado morto à beira da estrada, Belonísia não derramou lágrimas. Em vez disso, tomou a decisão de viver
sozinha, mesmo com a insistência de seus pais para que voltasse a
morar com eles. Sentiu como se um peso tivesse sido retirado de
seus ombros. Ela começou a experimentar alegria em sua própria
companhia, encontrando satisfação em seu trabalho. Foi nesse momento que ela percebeu que não dependia de nenhum homem para
trilhar seu próprio caminho: “Se algo eu havia aprendido, era que
não deveria depender da proteção de ninguém. Se eu mesma não
tomasse as rédeas, ninguém o faria” (Vieira Jr., 2020, p. 134).
Considerações finais
As nuances do contexto patriarcal ganham uma clareza marcante através da análise detalhada das passagens selecionadas. Fica
inegável que as vidas das personagens examinadas são profundamente enraizadas nesse cenário, onde persistem as sombras da negação
de direitos e a presença constante da violência contra as mulheres.
A triste realidade se desenha de maneira contundente: mulheres que
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trabalham incansavelmente, destituídas de salário, moradia digna e
até mesmo alimento adequado, revelando que, de certa forma, a triste
herança da escravidão perpetua-se sob novas formas.
O traço que intensifica o sofrimento e a opressão enfrentados pelas personagens é o universo machista no qual estão inseridas.
Desde tenra idade, são condicionadas a serem as cuidadoras do lar
e dos filhos, e cedo demais são direcionadas a se unirem a homens
que as tratam como servas. Essa subserviência as transforma em cativas das vontades masculinas, compelidas a existirem unicamente
para agradá-los, suportando serem objetos de prazer e humilhação.
A demanda por muitos filhos, uma marca do contexto, não apenas
as faz adoecer precocemente, mas também as lança em um ciclo de
envelhecimento acelerado, mantendo-as aprisionadas nas circunstâncias que as cercam.
A rotina dessas mulheres é uma repetição constante desse
contexto opressor, onde a presença de homens violentos é lamentavelmente comum. A agressão física infligida por esses homens é
mais uma camada de dor sobre as múltiplas formas de sofrimento e
humilhação que elas enfrentam diariamente.
Dentre as personagens em foco - Donana, Bibiana e Belonísia - emergem como representações vívidas desse ciclo de abuso e
violência. Contudo, é a resiliência de Belonísia que se destaca, ao
recusar-se a se submeter a qualquer homem após o fracasso de seu
casamento com Tobias. Sua determinação em não se curvar perante
a opressão demonstra uma tentativa genuína de redefinir seu desti-
39
no. Ela busca autonomia sobre sua própria vida, reivindicando sua
proteção e independência. Essa atitude não apenas a torna uma figura de destaque, mas também uma inspiração para outras mulheres que, de maneira menos visível, também enfrentam suas batalhas
diárias.
Em última análise, a obra expõe com vigor as complexidades
do patriarcado arraigado, expondo a exploração e os abusos que as
mulheres suportam. Ao mesmo tempo, através da lente das personagens analisadas, somos lembrados de que mesmo em meio a situações desafiadoras, a chama da resistência e a busca por autonomia
podem brilhar intensamente. Isso ressalta a necessidade contínua
de reflexão e ação para combater as desigualdades de gênero, garantindo um futuro onde as narrativas das mulheres sejam de empoderamento, liberdade e igualdade.
40
Referências
SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2015.
SPIVAK, G. Pode o subalterno falar?. Editora UFMG, 2010.
TOURAINE, A. O mundo das mulheres. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
VIEIRA JUNIOR, I. Torto Arado, São Paulo: Todavia, 2019.
ZINANI, C. J. A. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina.
Caxias do Sul, RS: EdUCS, 2006.
41
O USO DO CONTO NAS AULAS DE LÍNGUA
ESPANHOLA: REFLEXÕES A PARTIR DE
AUTORES HISPANO-AMERICANOS
Juliana Fernandes de Lima Paixão Ribeiro1
Raquel Espínola de Oliveira2
Simone Caetano de Melo3
A inserção da literatura nas aulas de línguas atualmente tem
ganhado cada vez mais espaço, mas se olharmos até um tempo atrás
não se tinha essa perspectiva da relevância do texto literário para
os indivíduos, o foco principal era o ensino da gramática, visão que
foi mudando ao longo do tempo com o desenvolvimento de novas
metodologias para o ensino de línguas estrangeiras, segundo Santos
e Melo (2021, p. 45) o texto literário ganha maior espaço nas aulas
de LE (Língua Espanhola) na era pós-método, quando novas conGraduada em Letras Espanhol pela Universidade Estadual da Paraíba.
[email protected]
Graduada em Letras Espanhol pela Universidade Estadual da Paraíba. Especialista em Metodologias do
Ensino de Língua Portuguesa, Língua Espanhol e Literatura, pela Universidade Dom Alberto. Santa Cruz
do Sul- RS./Brasil Graduanda de Letras Português pela Universidade Estadual da Paraíba. Monteiro –PB/
Brasil.
[email protected]
3
Mestranda em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba.
[email protected]
1
2
42
cepções de linguagem surgiram na sociedade, fazendo com que os
professores tivessem um novo olhar para tal abordagem.
Neste sentido, o presente trabalho tem como proposição trazer reflexões a partir de três contos de autores hispano-americanos,
são eles: Horacio Quiroga, Cecilia López Ridaura e Liana Castello.
Entendemos que as temáticas abordadas por esses autores são de
fundamental importância e que podem ser trabalhadas com alunos
a partir do fundamental 2 até o ensino superior fazendo as adaptações necessárias. A inserção do texto literário nas aulas de línguas
torna-se essencial no processo de aprendizagem dos estudantes,
pois aprender um idioma vai além de conteúdos gramaticais, dessa forma, a literatura possibilita conhecimentos interculturais, linguísticos, sociais, entre outros.
A importância da literatura nas aulas de língua espanhola
Considerando que o estudo do texto literário se faz de suma
importância dentro do contexto de ensino/aprendizagem, não se
pode deixar de falar sobre sua relevância também no ensino de uma
segunda língua, no caso aqui presente no ensino da Língua Espanhola. Trabalhar com a literatura na sala de aula talvez não seja tão
simples, uma vez que um dos principais pontos a se pensar é a familiaridade e gosto dos alunos pelo habito da leitura. Pensando nessa
vertente é que se faz importante o professor saber por onde fazer
essa introdução do texto literário, e podemos aqui pensar em iniciar
43
por textos que caiam no gosto dos alunos, ou seja, texto de fácil e
rápida leitura, como são o caso dos contos.
De acordo com, Arruda e Ribeiro (2013),
durante o processo de ensino/aprendizagem por meio da literatura,
o papel do professor é fundamental para que possa desenvolver no
aluno o gosto pela leitura, já que o docente tem a função de, não
apenas transmitir um conteúdo ou apresentar de maneira superficial
uma obra literária, mas ser o incentivador de novas leituras. (Arruda
& Ribeiro. 2013. p.2)
Desse modo, o professor é aquele que vai plantar muitas vezes
a primeira semente do gosto pelo ato de ler, aquele que apresentara
aos alunos a literatura e suas possibilidades e caminhos diversos. O
ato de ensinar literatura não é somente o ensinar escolas literárias
ou usar o texto literário para ensinar conteúdos linguísticos, mas
sim o ensinar a pensar fora do que é cotidiano, ir além nas entrelinhas e descobrir novos mundos e culturas.
Por que utilizar o gênero conto?
Trabalhar textos literários em sala de aula “desenvolve a leitura, a escrita e a aprendizagem dos mecanismos de funcionamento linguístico [...] abre caminhos para a compreensão textual e o
desenvolvimento de competências socioafetivas e metacognitivas
dos estudantes” (Silvia, 2023, p. 7) tradução nossa4. Ademais, de“El desarrolla la lectura, la escritura y el funcionamiento lingüístico(...)abre caminos para la comprensión
textual y el desarrollo de competencias socioafectivas y metacognitivas de los educandos”. (SILVIA,2023, p.7).
4
44
dicar-se ao gênero conto em sala de aula possibilita o tratamento
de questões culturais, como também questionar e discutir assuntos
sociais trabalhando a subjetividade do aluno com a obra literária.
Segundo Terra (2019) o conto permite tratar inúmeras possibilidades em sala de aula:
“O conto revela-se bastante adequado em virtude da sua curta extensão. Por ser uma narrativa condensada, é possível ler um texto integral em pouco tempo, o que se pode fazer na própria sala de aula,
sobrando tempo para discussão sobre o que foi lido e fazer relações
com outros textos, inclusive de outras semióticas, compartilhando
experiências de leitura. Além disso, o conto é um gênero que apresenta diferentes categorias (policial, de mistério, de terror, fantástico,
maravilhoso etc.), cobrindo um leque de temas muito amplo e acessível a leitores de todos os gostos e idades. Não é por acaso que está
sempre presente em antologias escolares. Trabalhar com o gênero
conto permite ainda que se entre em contato com um maior número de produções. Podem ser lidos textos de autores, épocas, estilos e
temas diversos, o que permite ao aluno-leitor construir um conhecimento bastante amplo sobre o gênero” (p.39).
A leitura de contos ou de qualquer outro tipo de gênero textual
vai além da codificação de códigos, mas requer que o aluno-leitor seja
capaz de entender o sentido do texto e que possa detectar seu funcionamento social e histórico e que consiga apreciá-lo estimulando seu
entendimento sobre variados temas. Sendo assim, o docente apresenta um papel fundamental na abordagem de textos literários em sala
de aula, pois de acordo com Scheffel (2016):
45
“O professor mediador se preocupa com a percepção que os alunos
tiveram do texto, se eles foram capazes de entender os mecanismos ficcionais utilizados pelo autor, se eles desenvolveram uma reflexão mais
crítica sobre o tema abordado em determinada obra, ou seja, o foco
deste professor está na recepção que os alunos têm do texto” (p. 39).
Para concluir, abordar textos literários em sala de aula conforme Silva (2016, p. 1) “proporciona ao indivíduo experiências novas
a partir de cada leitura, de cada personagem e situação, proporciona
uma nova visão de si mesmo e da realidade que o cerca”, neste caso,
o gênero conto, segundo o autor Scheffel (2016, p. 45) é uma ferramenta de “leitura real de obras que contribuem para a formação de
cidadãos críticos e de leitores competentes, do mundo e da palavra”.
Reflexões de contos hispano-americanos
Nesta seção selecionamos três contos de autores hispano-americanos onde teceremos breves reflexões acerca da temática que
cada um aborda. São eles respectivamente: La guerra de los yacarés,
de Horacio Quiroga, Desde la vitrina, de Cecilia Lopez Ridaura,
Cien pesos de Liana Castello. Entendemos que ambos os autores
problematizam temáticas fundamentais que podem ser inseridas
nas aulas de Língua Espanhola por meio do texto literário.
46
A interferência do homem na natureza a partir do conto
La guerra de los yacarés de Horacio Quiroga
O trabalho docente com a literatura é perpassado por muitos desafios, o primeiro deles é fazer com que os estudantes possam
compreendê-la como um deleite e para além disso, uma forma de
entender melhor o mundo em que vivemos, visto que como afirma
Candido (2006) a literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo uma sobre as outras e sobre os leitores. Nesse sentido, traremos
uma breve reflexão acerca do conto La guerra de los yacarés de Horacio Quiroga que problematiza sobre a interferência do homem no
meio ambiente. Quiroga, foi um escritor e dramaturgo uruguaio,
um dos principais representantes do conto latino-americano. Os
temas centrais de suas obras são principalmente a natureza e a morte, viveu grande parte de sua vida na Argentina, na região de Misiones, lugar que o conto aqui abordado se passa.
La guerra de los yacarés é um conto que faz parte do livro de
Quiroga intitulado Cuentos de la selva publicado em 1918, embora
seja considerado um livro direcionado para crianças o autor aborda
temas de intensa complexidade. A história se passa em uma região da
selva argentina, onde um grupo de jacarés vivem em paz e felizes até
que o ser humano começa a explorar o lugar e eles ficam ameaçados
de não ter mais o que comer, visto que os peixes do rio onde viviam
estavam morrendo, os animais começam a entrar em desespero, pois a
interferência do homem havia causado um desequilíbrio na natureza,
47
“E como tinham fome foram buscar peixes. Mas não nenhum peixe.
Não encontram um só peixe. Todos tinham ido embora, assustados
com o barulho do barco. Não havia mais peixes” (Quiroga, 1998, p.
2, tradução nossa)5. Percebemos que apesar da publicação deste conto
ser algum tempo atrás a temática segue atual, pois a sociedade capitalista tem invadido cada vez mais o meio ambiente sem respeitar seus
limites, além disso, quando falamos em preservação têm sido poucos
os países que de fato cumprem com medidas de proteção à natureza.
Outro fator importante de ser mencionado é que essa temática ganhou mais espaço para ser discutida na atualidade, mas ainda falta
mais ação, não só por parte dos governantes com políticas públicas
que preservem a fauna e a flora, mas cada um na sua individualidade
fazer a sua parte respeitando os animais, a floresta, etc.
Apesar das inúmeras insistências dos marinheiros que estavam
invadindo o território dos jacarés, os animais não se deram por vencido e empreenderam um plano para afastar de uma vez por todas
os humanos, se organizando em uma grande de rede para na hora
exata que o barco passasse explodissem com uma espécie de bomba:
Organizaram então uma viagem. Os jacarés se ataram uns nos outros; da cauda de um ao pescoço do outro; da cauda desse ao pescoço daquele, formando assim uma extensa cadeia de jacarés que tinha
mais de quadra (Quiroga, 1998, p. 6, tradução nossa)6.
Quiroga nos faz aprender com estes animais a importância do
Y como tenían hambre se pusieron a buscar pescados. Pero no había ni un pescado. No encontraron un solo
pescado. Todos se habían ido, asustados por el ruido del vapor. No había más pescados.
6
Organizaron entonces el viaje. Los yacarés se ataron todos unos con otros; de la cola de uno al cuello del otro; de la
cola de éste al cuello de aquél, formando así una larga cadena de yacarés que tenía más de una cuadra.
5
48
trabalho coletivo, pois eles se uniram e não aceitaram a presença do
homem em seu habitat causando o desequilíbrio ambiental. Desse
modo, a coletividade da sociedade visando a proteção do meio ambiente é fundamental para conter o avanço da poluição que só tem
aumentado ao longo dos anos.
A violência contra a mulher no México a partir do conto desde
La Vitrina de Cecilia López Ridaura
Desde la Vitrina, é um conto escrito pela mexicana Cecilía
López Ridaura. É uma professora Licenciada em Língua e Literatura Hispânica, sua área de investigação é a literatura popular e a
feitiçaria hispano-americana. O conto relata a história de Paloma
Díaz del Rincón, uma jovem que foi morta pelo seu pai no dia de
seu casamento ao perder a virgindade com seu namorado. Paloma
foi obrigada pelo seu pai a casar-se com outro homem e, na sua noite de núpcias é agredida por seu marido que a devolve a sua família
ao descobrir que a garota não era mais virgem, em consequência é
morta por seu pai ao desonrar o nome da família.
Apesar de ser uma história que ocorreu em outra época, este
conto nos proporcionou trabalhar temas atuais da sociedade como
violência contra a mulher, a autora Cecília relata de forma clara as
violências sofridas pela jovem Paloma:
“Paloma Díaz del Rincón volta para casa de madrugada, nua, coberta
apenas com um lençol branco imaculado, sem sapatos, seu braço es-
49
querdo tem os dedos encravados do marido que a puxa. Em seu rosto
um hematoma já está começando a escurecer. (...) Paloma Díaz del
Rincón sente o primeiro contato com o cinto do pai e pensa que quer
morrer. Ele acredita que tem pouco a ver com o segundo golpe, que
vai conseguir. A cada golpe, ele consegue parar a respiração, fechar
um pouco mais o coração” (Ridaura, n.p, tradução nossa)7
Cecília trata um tema bastante polêmico que ocorre de maneira frequente em seu país nos dias atuais, uma vez que o índice de violência sofrida por mulheres mexicanas aumenta a cada ano. Segundo
o Jornal Uol, entre janeiro e setembro de 2021, 2.840 mulheres foram
assassinadas no país, segundo estatísticas oficiais. Ao decorrer da leitura do conto podemos perceber que a jovem Paloma estava perdidamente apaixonada por seu namorado Simón, mas por interferência
do seu pai a garota se vê obrigada a casar-se com outro homem:
“Paloma Díaz del Rincón, sentada na sala da casa de seu pai, finge
não ouvir a pergunta que seu pai lhe cospe furiosamente depois de
ouvir seu marido. Quem foi? Ela fica em silêncio sem tirar os olhos
dos pés machucados pelas pedras da estrada. Não há como falar, contar sobre o rio, sobre as mãos de Simón em sua cintura, não há como
falar sobre os beijos(..)” (Ridaura, n.p, tradução nossa)8.
Outra característica que apresenta o conto é a questão do “ca“Paloma Díaz del Rincón, por la madrugada regresa a su casa, desnuda, tapada tan sólo con una sábana
blanca inmaculada, sin zapatos, en el brazo izquierdo tiene los dedos incrustados del marido que la jalonea.
En su cara un moretón ya se empieza a obscurecer. (..) Paloma Díaz del Rincón siente el primer contacto con el
cinturón de su padre y piensa que se quiere morir. Al segundo golpe cree que le falta poco, que lo va a lograr. Con
cada golpe, consigue detener su respiración, apagar su corazón un poco más”.
8
“Paloma Díaz del Rincón, sentada en la sala de la casa paterna finge no escuchar la pregunta que su padre le
escupe furioso luego de oír a su marido. ¿Quién fue? Ella calla sin despegar la vista de sus pies magullados por
las piedras del camino. Ni modo de hablar, de contar lo del río, de las manos de Simón en su cintura, ni modo
de hablar de los besos [...]”.
7
50
samento arranjado”, embora seja uma tradição em algumas regiões
da Ásia, Oriente Médio, África e América Latina, e em algumas
religiões, se percebe ao decorrer do conto a infelicidade da jovem
Paloma ao casar-se com outro homem por determinação do seu pai.
No decorrer da história o principal conflito que leva Paloma a óbito
é a perda de sua virgindade, enquanto um valor moral, no conto a
virgindade é tratada como a honra da família. O pai e o esposo da
jovem não concordaram com a conduta da mesma e a trataram com
atitudes que representavam valores machistas e que, em consequência, levaram Paloma à morte:
A vergonha de Don Anastasio Díaz já não a mágoa. Paloma Díaz del
Rincón sai de casa ao meio-dia; o vestido preto até os pés, meias de
seda, botins de verniz, crisântemos nos cabelos, um rosário nas mãos.
Seguindo-a com uma carranca está seu pai. Dona María Luisa del Rincón, toda de preto, arrasta os pés ao lado dele. Um pouco mais atrás
vai o marido com a honra recuperada. (Ridaura, n.p, tradução nossa)9
É uma história contada na maioria das vezes pela própria jovem,
que ao final do conto relata sua experiência com a morte “eles jogam
flores e terra em mim, um por um, meus parentes se despedem de mim.
A terra está cobrindo lentamente a luz e os soluços de minha mãe. Agora tudo é silêncio e escuridão”. (Ridaura, n.p, tradução nossa)10
“Ya no la lastima la vergüenza de don Anastasio Díaz. Paloma Díaz del Rincón sale de su casa al medio día;
el vestido negro hasta los pies, medias de seda, botines de charol, crisantemos en el pelo, en las manos un rosario.
Siguiéndola con el entrecejo fruncido, va su padre. Doña María Luisa del Rincón, toda de negro, arrastra los pies
junto a él. Poco más atrás va el marido con la honra recobrada”.
10
“Me avientan flores y tierra, uno a uno mis deudos se despiden de mí. La tierra va tapando lentamente la luz
y los sollozos de mi madre. Ahora todo es silencio y obscuridad”.
9
51
A importância do não julgamento no conto Cien pesos,
de Liana Castello
O julgamento infelizmente faz parte do ser humano, e muitas vezes o fazemos sem nem mesmo perceber. Contudo, é preciso
olhar o outro e entender que nem sempre sua aparência, nível social, modo de falar irão contar a sua história, a superfície, aquilo
que vemos é apenas um recorte de toda uma história. Cien Pesos é
um conto um tanto sensível, que retrata a situação de tantas pessoas
atualmente. Porém, no conto da autora Liana Castello uma situação triste e dolorosa, acaba por se tornar em um momento de muito
aprendizado e felicidade. Liana Castello é uma escritora Argentina,
que trás em suas histórias valores tanto didáticos como educativos.
Suas histórias foram publicadas em vários países, como Péru, Chile,
Espanha, entre outros. Em seu conto Cien pesos, Liana traz a história de uma mulher que é pedinte e cega. A história é contada em
primeira pessoa, e logo no inicio se perceber a dor retratada na fala
da mulher pela situação que se encontra e pelo desprezo de tantas
pessoas diante de sua situação.
Sou cega e sou pobre. Não sei o que me dói mais, não ver nada ou
não ter nada. Não sei o que é pior, se a realidade que não vejo ou a
realidade que não tenho, se a realidade que vivo ou a que nunca verei.
Meu trabalho é pedir esmola. Pode-se dizer que moro em uma estação de metrô. Sento-me sempre no mesmo patamar de uma escada
por onde passam milhares de pessoas, todas apressadas, a maioria in-
52
diferente ao meu pedido. (Castello, 2007, p. 2, tradução nossa)11
A fala da mulher que se encontra ali, em uma situação de pobreza, não é diferente da de tantas e tantas pessoas pelo mundo. Pelo
seu olhar percebemos a indiferença daqueles que passam apressados
em seus afazeres, correndo para seus trabalhos, famílias, perdidos
muitas vezes em suas próprias preocupações, não deixa lugar para
perceber a dor do outro, a necessidade daquele que lhe este a mão
pedindo por ajuda.
A mulher cansada, porém, conformada de estar naquela situação, em uma situação nada recorrente para ela, que estava acostumada
a receber apenas poucas moedas, percebe que alguém lhe deixará cem
pesos, percebe a nota ao tocá-la, uma vez que não podia vê-la.
Quando toquei, congelei, minhas mãos não estavam confusas, era uma
nota de cem pesos. Não era possível, mas estava se tornando realidade.
– “Pobre senhora” - pensei - “ela me deu por engano”. Guardei a nota
no bolso pelo que era, um tesouro inesperado, surpreendente e maravilhoso. O que me tirava o sono, mais do que o valor da conta recebida,
era pensar que, sem dúvida, aquela mulher havia se enganado, que ao
querer me ajudar talvez tivesse se prejudicado e que, ao chegar em casa,
teria percebido conta de seu erro. Para aqueles de nós que estão necessitados, não é difícil pensar que outros possam tê-los. Eles certamente
não eram meus, mas sendo dela, eles também eram valiosos. (Castello,
2007, p. 2, tradução nossa)12
Soy ciega y soy pobre. No sé qué me duele más, si no ver nada o no tener nada. No sé qué es peor, si la realidad
que no veo o la realidad que no tengo, si la realidad que vivo o la que jamás veré. Mi trabajo es pedir limosna.
Podría decirse que vivo en una estación de subte. Me siento siempre en el mismo descanso de una escalera donde
pasan miles de personas, todas apuradas, la mayoría indiferente a mi pedido.
12
Cuando lo toqué, me congelé, mis manos no estaban confundidas, era un billete de cien pesos. No era posible,
11
53
Percebe-se na voz da mulher, que embora necessitasse muito
daquele dinheiro ela pensou que a pessoa que o deixará, talvez por
engano também estivesse precisando. No entanto o que Liana trás
logo em seguida no relato dessa mulher nos surpreende, ela mostra
que não houve engano por parte da outra pessoa, foi um gesto genuíno e que mudou para sempre, não de maneira financeira a vida
daquela pedinte mas de forma que sua alma foi tocada.
De repente, o perfume voltou. Pensei em me calar, em não falar nada,
mas não consegui ou melhor, não queria ficar com algo que não era
para mim. “Isto é seu, pertence a você. Você me deu por engano outro dia, lembra? “Não foi um erro”. Entre tanta pobreza e tanta escuridão, a generosidade daquela mulher deu luz e riqueza à minha
alma. Naquele dia, pela primeira vez na vida, senti que não havia recebido uma esmola, mas uma bênção. (Castello 2007, p. 2-3, tradução nossa)13
Assim, percebemos pelo gesto da mulher que deu para pedinte
os cem pesos, que um simples gesto pode transformas a vida de uma
pessoa de diversas formas, e que nem sempre vai ser sobre o dinheiro,
mas sobre saber que se é “gente”, que se tem valor. É preciso olhar o
outro além de sua aparência, além do seu status social, porque um
pero se estaba haciendo realidad. – “Pobre señora” -pensé- “me lo dio por error”. Guardé una nota en mi bolso
porque era un tesoro inesperado, sorprendente y maravilloso. O que me arrepentí o soñé, a pesar de que el valor
de la factura recibida, fue pensar que, sin duda, esa mujer había sido engañada, que, al querer ayudarme, tal
vez tenía prejuicios y que, cuando llegó a su casa., ella habría recibido una factura de su error. Para los que lo
necesitamos, no es difícil pensar que otros lo tienen. Ciertamente no eran míos, pero considerándola a ella, también eran valiosos.
13
De repente, el olor volvió. Pensé en callarme, en no decir nada, pero no podía, o mejor dicho, no quería quedarme con algo que no era para mí. “Esto es tuyo, te pertenece. Me lo diste por error el otro día, ¿recuerdas? “No
fue un error”. En medio de tanta pobreza y tanta oscuridad, la generosidad de aquella mujer dio luz y riqueza a
mi alma. Ese día, por primera vez en mi vida, sentí que no había recibido limosna, sino una bendición.)
54
simples gesto pode fazer ou desfazer uma vida. E você já olhou hoje
além do seu círculo, além da sua janela e além de suas dores?
Considerações finais
O uso da literatura nas aulas de línguas estrangeiras, especificamente, o espanhol neste caso, é de fundamental importância não só
para a aprendizagem da língua alvo, bem como para a formação crítica dos indivíduos, pois o texto literário abrange uma série de questões
históricas, interculturais, sociais e políticas. A literatura hispano-americana enriqueceu e inspirou a muitos escritores de todas as partes
do mundo, sendo também uma importante ferramenta para que possamos entender a história dos povos hispanos na perspectiva de mudanças e desconstrução dos estereótipos criados ao longo do tempo,
trazendo assim obras diversas com reflexões valiosas que podem ser
abordadas pelo professor, como é o caso dos três contos selecionados
para análise neste trabalho. A utilização do conto hispano-americano
pode ser uma estratégia de leitura mais curta no intuito de ir preparando os alunos para textos mais longos como é o caso do romance, além disso, não é porque o texto seja curto que não traga grandes
ensinamentos, pelo contrário de acordo com as temáticas levantadas
pelos autores analisados aqui percebemos que o conto pode gerar intensos debates.
55
Referências
ARRUDA, A. O.; RIBEIRO, K. G. M. Literatura infanto-juvenil em aulas de
ELE: reflexões e possibilidades. UFCG.
CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
CASTELLO, L. Cien pesos. In: Cuentos - Literatura Infantil e Juvenil. Disponível em < https://www.encuentos.com/autor/liana-castello/#google_vignette> Acesso: 26 de julho de 2023.
Conto Desde la Vitrina. Umanitoba.ca,1997. Disponível em: <https://home.
cc.umanitoba.ca/~fernand4/desde.html>. Acesso em: 27/07/2023
QUIROGA, H. La guerra de los yacarés. In: Cuentos de la selva. Buenos Aires,
Argentina: Bunydrem, 1998.
SANTOS, A. C. dos; MELO, S. C. de. A literatura em Língua Estrangeira:
Possibilidades didáticas para a formação do aluno do Ensino Médio. In: Prática
docente: Rupturas, diálogos, inovações. Volume 2. São Paulo: Editora Mentes
Abertas, 2021.
SILVA, M. G. P. da. Leitura en la clase de ELE: trabajando los cuentos en la
educación secundaria. 2023.
SCHEFFEL, M. V. Leituras mediadas do conto na sala de aula. Cadernos de
Letras da UFF, v. 26, n. 52, 2016.
SILVA, D. N. da C. O conto na sala de aula: uma proposta para a formação
de leitores literários. Anais VI ENLIJE... Campina Grande: Realize Editora,
2016. Disponível em: <https://www.editorarealize.com.br/artigo/visualizar/26044>. Acesso em: 26/07/2023.
Violência contra as mulheres no México. Noticias Uol, 2021. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2021/11/25/violencia-contra-as-mulheres-no-mexico-uma-emergencia-nacional.htm>. Acesso em: 27/07/2023.
56
OLHARES OPOSICIONAIS NA NARRATIVA
DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE:
UMA ANÁLISE DE AMERICANAH
Ana Paula Santos Silva1
Pablo Emmanuel Araújo Dias2
Renato Marques de Brito3
Introdução
A literatura, ao longo dos tempos, tem funcionado como
um espelho da sociedade, proporcionando uma ferramenta poderosa para explorar e compreender as complexas dinâmicas humanas. Nesse contexto, nossa pesquisa visa adentrar no universo da
renomada escritora Chimamanda Ngozi Adichie, com foco em sua
obra magistral, Americanah (2014). O cerne desta pesquisa reside
Graduanda em Letras – Inglês pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
[email protected]
Mestre em Literatura e Interculturalidade pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba. (PPGLI-UEPB).
[email protected]
3
Graduado em Letras - Português pelo Centro Universitário Maurício de Nassau (UNINASSAU).
[email protected]
1
2
57
na análise das estratégias de “olhares oposicionais” presentes na narrativa dessa obra, um romance que transcende o simples entretenimento literário, atuando como uma lente aguda que lança luz sobre
questões fundamentais de identidade, poder e resistência.
No entanto, este estudo não busca apenas desvendar as estratégias literárias de Adichie, mas também mergulhar na teia teórica
que sustenta sua narrativa. A importância de incorporar teóricas
como Patricia Hill Collins e Bell Hooks é fundamental, pois essas
vozes ampliam e enriquecem nossa análise.
A obra de Adichie, com sua habilidade singular de entrelaçar
a narrativa com questões sociais prementes, oferece uma plataforma
única para questionar e desafiar não apenas as normas estabelecidas,
mas também os paradigmas literários tradicionais. Seu olhar aguçado sobre a diáspora africana e a experiência de indivíduos que transitam entre diferentes mundos culturais e geográficos constitui um
convite para explorar as intersecções e tensões que surgem quando
raça, gênero e identidade se entrelaçam em um cenário globalizado.
Em Americanah, a notável obra de Adichie, somos imersos
na jornada de uma protagonista africana enquanto ela enfrenta os
desafios de se ajustar à sociedade americana das décadas de 1990 e
2000. Esta personagem se encontra diante de uma miríade de imagens e expectativas culturalmente impostas, muitas das quais conflitam com sua própria identidade enraizada em sua criação africana.
58
Esse confronto não só a força a resistir, mas também a questionar
profundamente as narrativas pré-determinadas, levando-a a desenvolver seu próprio “olhar oposicional” – um olhar que, como descrito por Bell Hooks, recusa submissamente as representações que
lhe são impostas.
Através da escrita, a protagonista utiliza sua voz para explorar e contestar as imagens controladoras que permeiam seu entorno. Esse ato de confrontação e questionamento é central para o seu
processo de autoafirmação e preservação de sua autenticidade em
um mundo que muitas vezes insiste em classificá-la de acordo com
estereótipos simplistas.
Para entender o contexto que envolve essas representações e o
significado do “olhar oposicional”, recorreremos a algumas teóricas
negras, como Patricia Hill Collins, que, em “Pensamento Feminista Negro”, explica o que são imagens controladoras e por que são
usadas. Collins destaca que retratar as afro-americanas com estereótipos como a mammy, a matriarca, a mãe dependente do Estado e
a gostosa ajuda a justificar sua opressão. Nos Estados Unidos, essas
imagens são profundamente enraizadas devido aos quase duzentos anos de escravização de africanos e a um pós-abolição marcado
por injustiças, falta de reparações e condições desiguais para que a
população negra se integrasse como portadora de todos os direitos
humanos.
59
Assim, este estudo busca não apenas analisar a obra de Adichie, mas também lançar luz sobre a grande importância do “olhar
oposicional” como ferramenta de resistência e redefinição das narrativas de gênero, raça e identidade, especialmente no contexto das
mulheres negras.
Chimamanda Ngozi Adichie e o mundo de Americanah
Chimamanda Ngozi Adichie, nascida em 15 de setembro de
1977 na cidade de Enugu, Nigéria, tem sua terra natal como um
elemento fundamental para a compreensão de sua criação literária.
A própria palavra “Enugu” possui significados profundos, traduzindo-se como “topo da montanha” no dialeto igbo, a mesma etnia de
seus pais e, por conseguinte, de sua própria identidade. Os Igbos, um
dos três maiores grupos étnicos da Nigéria4, juntamente com os Yorubás e os Hauçá-Fulani, representam cerca de 18% da população do
país em 2017, segundo dados da CIA (Central Intelligence Agency), a
agência de inteligência civil do governo norte-americano.
Em um contexto internacional, Chimamanda teve participação destacada no evento de 2017 PEN World Voices Festival: Gender
& Power, sediado na cidade de Nova York, Estados Unidos. Este festival é uma iniciativa literária realizada pela PEN America e pela PenDisponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/ni.html>. Acesso em
24 set. 2023.
4
60
guin Random House, uma ONG e um dos maiores grupos editoriais
do mundo, respectivamente, resultado da fusão dessas duas influentes entidades em 20125. O tema desta edição do festival foi “Gênero
& Poder”, explorando questões fundamentais relativas às dinâmicas
de gênero e poder no cenário contemporâneo. Chimamanda Ngozi
Adichie, através de sua presença neste evento, demonstrou seu compromisso e influência na discussão dessas temáticas relevantes.
Em seu terceiro romance, intitulado Americanah e originalmente publicado em 2014, Adichie oferece uma visão singular da
experiência de uma mulher negra inserida em um meio intelectual
nos Estados Unidos. O que torna esta obra notável é a maneira como
ela desafia o leitor, deixando-o em dúvida: é um romance fictício ou
uma narrativa autobiográfica? O livro mergulha tão profundamente
na vida de sua protagonista que a linha entre a ficção e a realidade se
torna tênue, criando uma leitura cativante e intrigante.
A qualidade literária de Americanah é inegável, pois o romance
foi agraciado com o prestigioso National Books Critics Circle Award
em 2013 e aclamado pelo New York Times, que o incluiu na lista dos
dez melhores livros do ano de seu lançamento. Esta obra tem a capacidade única de capturar a complexidade da experiência de uma
mulher negra que se adapta a um ambiente cultural e intelectual estrangeiro.
Disponível em <http://www.publishnews.com.br/materias/2012/10/30/a-fusao-entre-a-penguin-e-a-randomhouse>. Acesso em 24 set. 2023.
5
61
Mais notavelmente, a influência de Americanah ultrapassou as
fronteiras da literatura. Em 2017, a cidade de Nova York lançou uma
campanha para identificar o livro que seus habitantes deveriam ler.
Por meio de votação popular, Americanah foi eleito como a leitura
indispensável para todos os residentes da maior metrópole dos Estados Unidos, solidificando seu lugar como uma obra de significado
cultural e social inestimável.
Americanah é uma obra complexa que traça a trajetória de
Ifemelu por meio de dois paralelos temporais: sua adolescência em
Lagos, capital da Nigéria, nos anos 90, e sua idílica história de amor
com Obinze; quinze anos depois, acompanhamos sua vida nos Estados Unidos, onde se tornou uma blogueira aclamada e obteve uma
bolsa de estudos na Universidade de Princeton. O romance se desdobra através de quatro narrativas interconectadas: a vida de Ifemelu
na Nigéria, sua mudança para os Estados Unidos e o desafiador processo de adaptação a essa nova sociedade; a experiência de Obinze
como imigrante em Londres, que é marcada por traumas e desafios;
e, a partir da metade do livro, a transformação de Ifemelu em uma
blogueira com seu blog intitulado “Raceteenth”, onde ela compartilha observações perspicazes sobre negros americanos (anteriormente
conhecidos como “criolous”) feitas por uma mulher negra não-americana. É nesse ponto que a autora expõe a complexidade cultural que
caracteriza os Estados Unidos, abordando temas de classe, preconcei-
62
tos e interações entre diferentes grupos, sejam eles nativos, imigrantes
ou brancos.
Os posts do blog de Ifemelu, que são intercalados ao longo do
romance, oferecem um olhar franco e sem rodeios sobre as diferenças
de classe e preconceitos que permeiam a sociedade americana. Eles
são uma janela para uma narrativa autêntica e sem filtros, em contraste com as afetações e eufemismos muitas vezes associados à cultura
americana. Após a publicação do livro, esses posts foram reunidos em
um site dedicado, que continuou sendo atualizado por um período,
proporcionando um canal de interação contínua com os leitores e,
assim, estendendo a influência do livro para além de suas páginas.
A jornada de Ifemelu e Obinze é enraizada no sonho de uma
vida melhor nos Estados Unidos, moldada ao longo de suas infâncias
e adolescências em Lagos. Em um cenário de instituições de ensino
frequentemente em greve e uma economia em declínio, a juventude
nigeriana anseia por escapar das adversidades do seu país de origem.
Essa busca por uma nova realidade os leva a nutrir o sonho de uma
vida americana.
A oportunidade finalmente bate à porta de Ifemelu quando ela
obtém um visto americano, abrindo as portas para uma jornada que
a levará a estudar nos Estados Unidos, onde ela passa a viver com sua
tia Uju, estudante de medicina em Nova Jersey, e seu sobrinho. O que
se segue é uma árdua trajetória, marcada pela busca incansável por
63
emprego e pela necessidade de enfrentar múltiplas formas de preconceito relacionadas à sua cor de pele e ao seu sotaque. Apesar desses
obstáculos, Ifemelu conquista prestígio na internet por meio de seu
blog, tornando-se uma espécie de celebridade virtual. Após 15 anos
imersa na “americanah way of life,” a protagonista toma uma decisão
impactante ao decidir retornar à Nigéria, uma escolha que surpreende aqueles que a cercam.
A história começa com Ifemelu refletindo sobre sua vida até
aquele ponto, enquanto está sentada em um salão de beleza nos Estados Unidos, preparando-se para partir e voltar à sua terra natal,
Lagos. O retorno a Lagos marca um reencontro com Obinze e desencadeia uma série de novas impressões e emoções para alguém que
passou tanto tempo longe e se depara com uma sociedade em evolução, superando desafios políticos enquanto busca estabilidade e crescimento. A narrativa de Americanah é uma exploração profunda da
complexidade da experiência de migração e retorno, ao mesmo tempo em que questiona as noções de pertencimento e identidade em
um mundo em constante transformação.
Americanah transcende as fronteiras da narrativa e se torna um
tratado sobre identidade. Em várias passagens da obra, somos confrontados com os conflitos de identificação que a protagonista, como
imigrante, inevitavelmente enfrenta. O livro nos conduz por uma exploração profunda da condição da mulher, independentemente de
64
seu lugar de residência, seja nos Estados Unidos ou na Nigéria. Revela como as expectativas de subordinação do feminino podem ser notavelmente similares, mesmo em nações geograficamente distantes.
Além disso, Americanah serve como um veículo para discutir
a diáspora nigeriana, uma experiência compartilhada por muitos jovens que buscam oportunidades de vida e educação nos Estados Unidos e na Europa para escapar de uma existência sombria e instável em
um país marcado pelo regime militar. O livro desvenda as complexas
motivações por trás dessa busca por uma vida melhor, oferecendo
um olhar perspicaz sobre os desafios enfrentados por aqueles que se
aventuram além de suas fronteiras em busca de esperança e realização pessoal.
Explorando Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie:
abordagem ao enredo e representações
Ao longo da narrativa, torna-se evidente que a personagem
principal já possui uma profunda percepção de que algumas representações do “feminino” são intrinsecamente opressoras. Este entendimento é exemplificado no seguinte trecho, quando Ifemelu
reconhece que sua conformidade com certos padrões de beleza,
particularmente aqueles relacionados ao seu cabelo, equivale a uma
performance de feminilidade que a subjuga:
65
Ifemelu tinha crescido à sombra do cabelo de sua mãe. [...] Durante
toda a infância, Ifemelu muitas vezes olhava no espelho e puxava seu
cabelo, esticava os cachinhos, desejando que ficasse como o da mãe;
mas ele permaneceu crespo e crescia com relutância; as cabeleireiras
que o trançavam diziam que os fios cortavam que nem faca (Adichie,
2014, p. 49).
No entanto, Ifemelu já demonstra uma predisposição para o
questionamento ao não adotar certos comportamentos considerados desejáveis para mulheres. Quando ouve a descrição que um colega faz dela, sente orgulho de ser diferente:
“Então, o que foi que Kayode disse sobre mim?” [...] “Ele disse: ‘Ifemelu é linda, mas dá trabalho demais. Sabe discutir. Sabe falar. Nunca concorda com ninguém. Mas Ginika é um doce de menina’.” [...]
Gostava dessa imagem de si mesma como sendo alguém que dava
trabalho, que era diferente, e às vezes encarava aquilo como uma carapaça que a mantinha segura (Adichie, 2014, p. 69).
Neste contexto, torna-se evidente que o modelo de feminilidade desejável, caracterizado como ser “um doce de menina,” implica
em não questionar, não se manifestar, e não discordar de ninguém.
Estes modelos de comportamento desempenham um papel fundamental na construção da personagem, mesmo quando contradizem
sua natureza. A mãe e a tia de Ifemelu são exemplos notáveis desse
contraponto. Embora tenham influência significativa em sua jornada, elas não representam modelos absolutos a serem seguidos.
A mãe, por exemplo, personifica um excesso de religiosidade
66
que a leva a renunciar completamente à vaidade, simbolizada pelo
corte de seus cabelos em nome de sua fé. Por outro lado, a tia ilustra
um modelo muito comum na sociedade nigeriana, como a autora explica: aquele no qual a mulher se anula em prol de relacionamentos
caracterizados pela dependência financeira e emocional. Esses exemplos destacam como as expectativas sociais em relação à feminilidade
podem ser complexas e muitas vezes contraditórias, influenciando a
jornada de autodescoberta e resistência da protagonista.
[...] Existem muitas jovens em Lagos com Fontes Desconhecidas de
Riqueza. Elas vivem uma vida pela qual não podem pagar. Só viajaram para a Europa de classe executiva, mas têm um emprego cujo
salário não paga nem uma passagem de classe econômica. [...] Temo
que vá acabar como muitas mulheres de Lagos que definem sua vida
pelos homens que jamais poderão realmente ter, tolhidas por sua cultura de dependência, com desespero nos olhos e bolsas de marca nos
braços (Adichie, 2014, p. 454-455).
Quanto à tia de Ifemelu, é a partir dela que a protagonista começa a perceber as influências opressivas da sociedade norte-americana. Sua tia, que chegou aos Estados Unidos antes de Ifemelu, torna-se
um exemplo vívido de como alguém pode comprometer sua própria
identidade para se conformar com os padrões impostos pela cultura
estadunidense. Essa observação marca o início de uma série de confrontações e supressões que Ifemelu testemunha, ou mesmo às quais
é forçada a se submeter.
67
Com o tempo, ela reconhece o quanto essas concessões a
restringem, e a narrativa desvela o despertar da personagem para a
opressão de uma cultura que é não apenas marcada pela misoginia,
mas também profundamente enraizada no racismo:
E Ifemelu pensou, olhando para ela, que a velha tia Uju jamais usaria tranças tão malfeitas. Jamais teria tolerado os pelinhos encravados
que pareciam passas em seu queixo, ou usado calças que sobravam entre as pernas. A América a deixara submissa (Adichie, 2014, p. 121).
O poder do olhar oposicional: desafiando representações e
mudando destinos
É no contexto dessa crescente necessidade social por representações mais justas e igualitárias que nos aprofundaremos no
processo de desenvolvimento do olhar oposicional. A jornada da
personagem principal a conduz de forma inevitável à aquisição e ao
aperfeiçoamento desse olhar, um olhar crítico que questiona profundamente as narrativas convencionais que lhe foram apresentadas como os únicos modelos aceitáveis de comportamento e aparência. Esta evolução do olhar oposicional se manifesta de maneira
marcante ao longo da narrativa, à medida que a protagonista desafia as normas preestabelecidas e busca sua própria identidade em
um mundo repleto de estereótipos e expectativas rígidas.
Bell Hooks aborda o conceito do “olhar oposicional” como a
68
capacidade de “ver de uma maneira que permite a resistência” (2017,
p. 485). Durante muito tempo, as mulheres negras foram submetidas a representações que não apenas reforçaram estereótipos, mas
também as limitaram a vislumbrar opções limitadas em suas vidas.
O ato de questionar essas representações tornou-se, portanto, um
elemento crucial da resistência. Isso significa negar veementemente
que essas representações distorcidas possam definir a verdade sobre
suas próprias identidades e experiências, desafiando ativamente as
narrativas que as oprimem e buscando uma visão mais autêntica e
libertadora de si mesmas.
Ifemelu, como mulher negra e africana, desde seu nascimento, encontra-se imersa em um ambiente que a instiga a questionar
tanto o mundo à sua volta quanto a sua própria identidade. Ela se
depara com uma série de desafios decorrentes de representações deturpadas que tentam limitar quem ela pode ser e o que pode alcançar. No entanto, sua jornada a conduz a desenvolver um olhar crítico, um olhar oposicional, que desafia as estruturas estabelecidas.
Esse olhar oposicional torna-se uma ferramenta poderosa que
lhe permite questionar as narrativas predominantes e reconquistar
o controle sobre a representação de si mesma. Ao fazê-lo, Ifemelu
se torna capaz de forjar sua própria voz e traçar seus próprios caminhos, em oposição à narrativa convencional que procurou definir
suas limitações. Ela se recusa a ser moldada por estereótipos e, em
69
vez disso, molda seu próprio destino.
A escolha de Adichie em utilizar a escrita como uma ferramenta de contestação é profundamente emblemática. Tanto Ifemelu quanto a própria autora adotam a escrita como um meio de
questionar as narrativas convencionais e oferecer novas perspectivas a uma sociedade que historicamente esteve presa a uma visão
limitada da história das mulheres negras. A escrita emerge como
uma forma de poder, permitindo que Ifemelu desenvolva uma carreira como escritora.
Esse ato de escrever se revela transformador para Ifemelu,
proporcionando-lhe não apenas uma voz, mas também uma plataforma para questionar e subverter as representações iniciais que a
confinavam a subempregos e a uma vida de lutas incessantes. Ela supera imensas dificuldades até encontrar um emprego que lhe oferece uma vida digna nos Estados Unidos, desafiando as expectativas e
as representações limitadas que antes a cercavam. A escrita torna-se,
assim, um ato de resistência e afirmação, permitindo a redefinição
da própria identidade e a reescrita de sua própria narrativa.
Neste contexto, o simbolismo da importância do olhar oposicional transcende a mera contestação e questionamento. Ele representa a possibilidade de que essas vozes críticas sejam não apenas
ouvidas, mas também capazes de efetuar mudanças significativas na
vida da personagem. Essa narrativa serve como um encorajamento
70
poderoso para não aceitar mais que a própria vida seja restringida
pelo racismo, machismo ou qualquer outra forma de exclusão.
Ifemelu, por meio de seu olhar oposicional, torna-se um farol
de resistência e mudança. Sua história é um lembrete de que é possível desafiar as estruturas de poder opressivas e criar novos caminhos. A narrativa encoraja não apenas a rejeição das limitações impostas pela sociedade, mas também a luta ativa pela igualdade e pela
ampliação das oportunidades, inspirando outros a fazer o mesmo.
O olhar oposicional, portanto, é uma força motriz que alimenta a
transformação e a busca por uma sociedade mais justa e igualitária.
Considerações finais
Este artigo se propôs a analisar a obra de Adichie como uma
poderosa expressão da representação da feminilidade negra, desafiando padrões prevalecentes na sociedade. É evidente que a narrativa ficcional lida com questões profundamente enraizadas na
realidade, estabelecendo uma ponte entre a leitora e suas próprias
experiências. A trajetória da personagem principal sofre uma transformação significativa quando ela se muda para os Estados Unidos,
um ponto de virada que a leva a se adaptar, amadurecer e confrontar os desafios impostos pelas representações controladoras de sua
identidade como mulher e mulher negra.
71
Tanto a personagem quanto a obra como um todo desempenham um papel social importante ao oferecer representações diversificadas que ampliam o espectro de possibilidades de autorrepresentação para as mulheres negras na arte e na vida cotidiana. Além
das questões exploradas na trama, a mera existência de “Americanah” (2014) como uma obra escrita por uma autora negra, de origem nigeriana, com uma protagonista negra, representa um marco
significativo na construção de novos modelos de representação das
mulheres negras.
Como Bell Hooks argumenta em seu artigo, “não estamos
apenas resistindo, estamos criando textos alternativos que não se limitam a reações” (Hooks, 2017, p. 504). Nesse sentido, a existência
da obra e da autora estabelece um desses “textos alternativos”. Essas
representações imagéticas na arte e na vida cotidiana abrem portas
para uma diversidade de possibilidades para as mulheres negras e
desafiam as fronteiras tradicionalmente estreitas do que é considerado “feminino” e dos modelos convencionais de feminilidade.
72
Referências
ADICHIE, C. N. Americanah. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
COLLINS, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a
política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.
HOOKS, B. O Olhar Oposicional: Espectadoras Negras. Tradução Raquel
D’Elboux Couto Nunes. In: Traduções da Cultura: Perspectivas Críticas Feministas (1970-2010). BRANDÃO, Izabel. [et al] (org.). p. 483-509. Florianópolis: EDUFAL; Editora da UFSC, 2017.
73
DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E ÉTICA:
UMA LEITURA DE VOLTO SEMANA QUE
VEM, DE MARIA PILLA E OUTROS CANTOS,
DE MARIA VALÉRIA REZENDE
Simone Caetano de Melo1
Os anos de ditadura na América Latina ainda emergem sobre o presente, sendo perceptível, deste modo, a constituição de democracias frágeis ao longo dos últimos anos. Dessa forma, torna-se
essencial o desenvolvimento da conscientização histórica da sociedade, principalmente quando se trata do caso do Brasil, que, por vezes, ignora seu passado, visto que, com a ascensão dos regimes neoliberais, cresceu uma tendência de parte da população em se tornar
defensora desses eventos, por um conjunto amplo de fatores. Vale
ressaltar que esta consciência é fundamental para a compreensão do
mundo e como ele se encontra configurado no presente.
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual
da Paraíba.
[email protected]
1
74
Nesse sentido, a literatura e a ética estabelecem certos diálogos cruciais para a compreensão desse recorte histórico. O texto
literário das últimas décadas tem trabalhado, de diferentes formas,
essa época marcada pelo horror e pela repressão compartilhada pelos países latino-americanos durante as décadas 1960/80. O período ditatorial foi palco de duras lutas de homens e mulheres, que
reivindicavam a redemocratização. No entanto, segundo Colling
(2015), a mulher militante política foi praticamente excluída dos
relatos da época, visto que essa luta estava marcada consoante a história masculina. Atualmente, a mulher tem lutado cada vez mais
para conseguir os espaços que lhes são merecidos, conforme sujeitos históricos.
Pretende-se, então, trazer a visibilidade das mulheres militantes, através dos romances Outros Cantos de Maria Valéria Rezende
(2016) e Volto Semana que Vem, de Maria Pilla (2015), pois ambas
as narrativas tecem uma escrita de forma magistral, dado que refletem a vida de mulheres que decidissem participar politicamente,
seus embates e desafios perpassados pela questão de gênero, ajudando a compreender melhor a relação entre mulher e ditadura.
A escritora brasileira Maria Valéria Rezende é autora de cinco romances: Vasto mundo (2011), Quarenta dias (2014), Outros
cantos (2016), entre outros, além de contos e crônicas. Rezende
atuou educadora popular em distintas regiões do Brasil e sempre
se inspirou na educação proposta por Paulo Freire, sendo também
uma das idealizadoras do Coletivo literário feminista Mulherio das
75
letras. Em Outros cantos (Rezende, 2016), a autora traz uma escrita
ficcional, embora, conforme discute Figueiredo (2017), tenha uma
inspiração autobiográfica, visto que seu ofício com a alfabetização
forma parte de um trabalho político mais amplo presente na própria trajetória da escritora.
Maria Pilla, outra autora aqui estudada, é uma ativista, jornalista e escritora brasileira, começando sua militância política no
Partido Comunista Brasileiro e, desde cedo, sempre esteve interessada nas questões políticas e sociais. Em Volto semana que vem
Pilla (2015), a autora tece uma escrita autobiográfica a partir de
suas memórias, constituindo também um texto de testemunho e,
assim, uma narrativa de forma fragmentada e datada, ou seja, há
marcações dos anos de cada história que a narradora-protagonista
conta, baseada diretamente em sua história de militância, sua prisão
e exílio vivenciados ao longo do regime, além de contar as histórias
de seus companheiros de luta.
Pode-se perceber que ambos os romances procuram pensar
um momento bastante complexo da história brasileira, sobretudo
para as mulheres que ousassem sair do espaço privado. Além de pensar o por que nosso país não olha seu passado de forma crítica, como
problematiza Figueiredo (2017) quando diz que: “No Brasil não se
cultiva a memória política porque a anistia significou amnésia, o
país se recusa a enfrentar seu passado, a rever os crimes cometidos, a
expor as atrocidades perpetradas por um regime de exceção”. Dessa
forma, em comparação a outros países do cone sul que enfrentaram
76
autoritarismo, o Brasil vive uma memória de esquecimento, portanto, a temática não pode ser esquecida.
A ética na literatura
A Ética e a literatura estão em constante diálogo, seja de forma direta ou indireta. Com isso, o texto literário nos possibilita
importantes reflexões observando os questionamentos éticos que
cada um levanta. Oliveira e Barberena (2017) em seu artigo intitulado Literatura e ética: notas para um diálogo que não se acaba
problematiza essa amplitude das relações entre esses dois campos
de conhecimento e, como o próprio título diz, a ética e a literatura
estabelecem conversas que não se findam. Ainda de acordo com os
mesmos autores é perceptível “a incidência do tema ético nas abordagens críticas da literatura brasileira” (Oliveira; Barberena, 2017,
p. 12).
Cabe pensar ainda que a obra literária é capaz de despertar no
leitor novas perspectivas, outras formas de enxergar e interpretar a
sociedade, o que o leva a uma posição ativa e não passiva, fazendo-o
perceber o mundo de forma mais crítica e em suas complexidades.
Ademais, “ao escrever para um público mais amplo, o autor encontra no leitor um elemento ativo na transmissão da memória para
que não se apague aquilo que afetou a vida das pessoas” (Figueiredo, 2017, p. 46). Portanto, “em sua dimensão ética – e, portanto,
política – a literatura demanda um olhar para fora, além de si, fa-
77
zendo perceber as divisões e as posições sociais, em meio às quais
ela própria se estabelece” (Oliveira; Barberena 2017, p. 14). Assim,
destacamos que o literário tem importantes funções no contexto
da contemporaneidade, mas essa é uma questão que segundo os autores citados anteriormente cabe à crítica problematizar. Portanto,
entendemos que “a literatura é o único meio de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no
espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de
vida” (Figueiredo, 2017, p. 45). Em outras palavras, essa arte pode
assumir diversas aplicações e, como como discute Eco (1999), a literatura assume uma série de funções para a nossa vida individual e
coletiva.
A respeito da ética, é importante mencionar que concordamos com as ideias de Malacarne et al (2011) quando diz que:
A ética, então, não é separável da teoria da ação. Ela deriva sua significação a partir da aplicação prática dos princípios para o bem dos
outros ou da equidade coletiva. Ela pressupõe a consciência de suas
nascentes e seus efeitos reais, objetivando adquirir ou inventar formas de ser ético sem perder de vista a necessidade de reflexão aprofundada sobre as motivações e os meios para construir e desenvolver
a humanidade. (Malacarne et al, 2011, p. 57)
É nesse constante diálogo entre o texto literário e a ética que
fundamentaremos a análise de Pilla e Rezende, observando-as a
partir dos princípios éticos abordados pela filosofa Jacqueline Russ,
que nos mostra como a ética está presente em nosso dia a dia e as
mudanças e discussões pelas quais ela passou ao longo do tempo
78
e ainda como está configurada na contemporaneidade, além disso,
cabe destacar a importância da escrita das nossas autoras em questão que elaboram o trauma da ditadura de forma coletiva.
Perspectivas éticas nas obras de Maria Pilla e de
Maria Valéria Rezende
As obras de Pilla e Rezende fazem parte de um conjunto de
romances que foram produzidos logo após a criação da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), a qual representou um grande avanço
para se debater o tema da ditadura. Foi com ela que pela primeira vez as mulheres tiveram espaço e puderam relatar livremente os
crimes dos quais foram acometidas durante o regime. Em relação
à CNV, é importante destacar que ela tinha como função apurar
graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre dezoito de
setembro de 1946 e cinco de outubro de 1988. Nesse percurso, a
comissão ouviu vítimas e testemunhas, bem como convocou agentes da repressão para prestar depoimentos.
A literatura, diante do exposto, tem um papel de extrema importância, pois, através dela, as pessoas puderam conhecer o que de
fato foi o regime ditatorial no Brasil, possibilitando assim o acesso
ao conhecimento sobre uma temática que ainda guarda tantas incógnitas. Consequentemente, podemos dizer que essas narrativas
produzidas são uma espécie de arquivo como discute Figueiredo
(2017) em seu livro intitulado A literatura como arquivo da ditadu-
79
ra, no qual a autora levanta uma série de romances que trabalham o
golpe de 1964. Logo, “esse material pode ser, também, considerado
como arquivo, pois ele faz um inventário das feridas e das cicatrizes
que as torturas e as mortes provocaram em milhares de brasileiros”
(Figueiredo, 2017, p. 45). É importante pensar a relevância da escrita para Pilla e Rezende, sendo elas mulheres que militaram de fato
durante a ditadura, enfrentando os perigos do autoritarismo e dedicando sua vida a luta pela democracia e pelo espaço da mulher no
meio político. Através da escrita registram não só esse recorte histórico do Brasil, mas também a luta dos militantes contra o horror,
afinal escrever é uma forma de contar sobre acontecimentos que em
palavras de forma verbal não seria possível. Por isso, como aborda a
filósofa e escritora espanhola Zambrano (1934), o que se publica é
para algo, para alguém, um ou muitos, para que saibam sobre algo,
para que vivam de outro modo após serem informados, ou seja, a
intencionalidade das autoras é que as pessoas possam compreender
sua própria história e conhecer o que caracteriza uma ditadura.
Pensando a questão ética em Maria Pilla
Na narrativa Volto Semana que vem de Maria Pilla, a questão
ética é abordada a partir de questionamentos sobre a (re)elaboração
da memória e como os direitos humanos foram desrespeitados, em
contraponto ao negacionismo que se introduziu no Brasil de forma
tão acentuada. Trata-se de colocar em reflexão a luta de homens e
mulheres pela derrocada do golpe militar de 1964, aqui cabe desta80
car principalmente a luta deste último grupo que tinha uma jornada dupla: militar contra os ditadores e os preconceitos de gênero,
que já existiam, mas foram reforçados pelos ditadores. A autora traz
para discussão o período de autoritarismo a partir do olhar feminino. A mulher, nesse contexto, não era considerada sujeito histórico
e era vista como um ser desviante, já que, ao adentar na vida pública
e política, fugiam do que a lógica patriarcal estabelecia.
O livro de Pilla (2015) com caráter testemunhal relata a história de uma mulher (narradora-protagonista) e de outras mulheres que militaram no período ditatorial. Logo no início da obra, a
narradora comenta sobre sua prisão na Argentina, país que também
estava sob ditadura e no qual ela passou certo tempo, pois teve que
sair do Brasil. Assim ela descreve a respeito da prisão em Villa Devoto:
O grande Gatsby não é um grande filme, mas foi minha última ida ao
cinema antes da detenção. [...] Éramos catorze num espaço retangular com beliches: Uruguaias, argentinas e eu. As “sessões” eram o que
podíamos fazer de menos dispendioso para sair daquele lugar. Na
cela, o calor sufocava. [...] No dia da nossa chegada nos colocaram em
fila durante mais de dez horas, em pé, até nos levarem para os pavilhões com as celas. Ali, em pleno verão, nos deram uniformes escuros
de sarja de lã. (Pilla, 2015, p. 8)
Como Pilla (2015) problematiza, os prisioneiros eram expostos a situações desumanas, a narradora faz questão de descrever o
pequeno espaço ao qual as presas eram levadas e como era o tratamento com cada uma delas. Durante a ditadura centenas de pessoas
81
foram presas, torturadas e assassinadas pelo fato de discordarem do
regime repressor, sendo assim vistos como uma ameaça e vítimas de
várias atrocidades que desrespeitam totalmente os direitos humanos, além disso negaram a todo custo a liberdade dos indivíduos
pensarem diferente e exprimirem sua opinião. Desse modo, é interessante refletir sobre o que traz Jacqueline Russ (1999) em seu texto chamado Pensamento Ético Contemporâneo a respeito dos princípios de liberdade, quando ela tematiza que liberdade seria essa:
De que liberdade se trata aqui? Não da liberdade metafísica, mas do
poder de agir, de se exprimir livremente, de gozar de seus bens sob
a proteção das leis e sem sofrer o constrangimento de outrem etc.
O princípio de liberdade - afirmando o direito legal de cada um às
liberdades fundamentais - acha-se expresso claramente na filosofia
ética e política contemporânea [...] (Russ, 1999, p. 48-49)
Portanto, o princípio de liberdade foi duramente desrespeitado pelo autoritarismo que não aceitava opiniões contrárias, assim
sendo, o golpe de 1964 como discorre Figueiredo (2017) foi um
atentado à legalidade e à constituição, o que ocasionou um regime
de exceção, em que as liberdades democráticas eram tolhidas por
um regime repressor, foi contra essa falta de liberdade que muitas
militaram e lutaram dia a dia com as suas próprias vidas.
Na prisão de Olmos, a narradora-protagonista conta que conheceu uma mulher chamada Cachita, uma senhora argentina presa pelo motivo de seu filho ser militante:
82
Desnaturada era a mãe que denunciava o filho. Ela Cachita, não denunciara. Dois segredos guardou com unhas e dentes: a idade e o
endereço do filho, militante da organização peronista Montoneros.
Foi detida em casa.
“O senhor pode, por favor, guardar a minha dentadura?”
“E por que eu faria isso?”
“Vocês fazem as pessoas sofrerem... Nesse caso eu vou gritar, e a dentadura pode cair no chão e quebrar. Os senhores com certeza não vão
me pagar outra nova, não é? (Pilla, 2015, p. 12)
Como podemos perceber muitas mulheres que não estavam
ligadas diretamente à militância acabava sofrendo violências pela
razão de ter algum parente envolvido. Cachita, foi detida pelos oficiais pelas atividades de militância de seu filho que, pouco tempo
depois, foi morto num enfrentamento com a polícia. Nessa ocasião,
os ditadores permitiram que ela fosse, escoltada, até ao velório. Portanto, ela representa mais um exemplo da negação do princípio de
liberdade, desse modo, todos os fatores descritos por Russ (1999)
que o pensamento ético contemporâneo, com J. Rawls, reformula,
como a liberdade política, liberdade de expressão, de pensamento,
de consciência, liberdade da pessoa, etc., foram cerceados e negados
pelo Estado, a justiça tinha como base o medo que foi implanto de
uma maneira severa.
A narradora-protagonista que entrou na militância através de
um convite de um amigo tematiza como viviam tudo com intensidade, lutando pelos seus ideais: “Seguíamos em frente passando por
cima de tudo: não queríamos uma vida como a deles, nossos pais.
83
Queríamos tudo, e tudo em excesso. A vida, o amor, a política, a
aventura, o mundo. Um mundo que fosse bem melhor do que aquele” (Pilla, 2015, p. 31-32).
Estar na militância requeria muito empenho e coragem, pois
a repressão era dura com seus opositores, tentavam eliminar todos
que se contrapunham ao regime. Nesse sentido, outra cena é relatada trazendo o momento em que a narradora-protagonista é abordada por policiais quando ela estava em um ônibus lendo um livro,
eles a levaram, mas, no meio do caminho, ela pediu para ir ao banheiro na casa de um zelador no intuito de se desfazer do material
impresso que levava em sua bolsa:
Empurrei o máximo que pude a porta empenada e já tirava da bolsa
o rolo de papel A4 com meu texto sobre stalinismo. Aquela papelada
tinha de sumir. Não sabia como fazer. No vaso? Melhor não. No ralo
da pia! Comecei a forçar algumas folhas que não desciam. Tentei engolir o papel, mas o medo seca a saliva. (Pilla, 2015, p. 34)
Diante desse episódio, percebemos que Pilla (2015) escreve de
uma maneira para que o leitor possa captar como foi a época ditatorial, mostrando de fato como aquela realidade era vivida pelos militantes e como ela impactou a vida de cada um, desse modo, sua escrita
segue o que Russ (1999) aborda sobre o princípio de realidade:
O princípio da realidade, que já preside a axiologia de alguns pensadores do século XIX, é, pois, reintroduzido com força em nosso
tempo. Designa a capacidade de admitir o real percebido, encarado
em sua essência intrinsicamente dolorosa e trágica, como mundo
desprovido de sentido ou de fundamentos. (Russ, 1999, p. 43-44)
84
Com isso, Pilla nos possibilita olhar para a realidade, ou seja,
como estava configurada a repressão, tendo consciência de que a
crueldade existe e ela pode está espalhada e disfarçada em diversas
instâncias. É só lembrar da visão que os ditadores queriam passar
para a sociedade de que aquele modelo de governo era o melhor,
mas por trás buscavam eliminar todos aqueles que denominavam
subversivos. Nesse sentido, a escrita da autora nos faz analisar sobre
esse recorte histórico sem romantizá-lo, mostrando tal como ele era
de fato e como ocasionou a morte de centenas de pessoas. Muitos
desses crimes até hoje permanecem em aberto.
Refletindo a questão da ética em Maria Valéria Rezende
Na narrativa de Maria Valéria Rezende, a questão ética é discutida a partir de questionamentos sobre como as pessoas do interior enfrentaram a ditadura, uma vez que boa parte das obras publicadas narram como era esse período a partir dos grandes centros
urbanos. A autora põe em diálogo a importância da educação para a
conscientização política das pessoas e como foi viver o regime num
pequeno povoado, além de criticar o programa de educação criado
pelos ditadores intitulado Mobral.
O romance de Rezende (2016) de caráter ficcional aborda
a história de Maria (narradora-protagonista), uma professora militante e revolucionária a partir de suas memórias, que aceitou o
desafio de ir para o Sertão nordestino em plena ditadura no Brasil
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no intuito de trabalhar a conscientização política dos moradores da
cidade de olho d’Água pautada nos ensinamentos de Paulo Freire:
Devia desenrolar-me sozinha, incomunicável pelo tempo que fosse
necessário, para não despertar suspeitas, até criar as condições para
a vinda dos outros. Assim, tinha sido planejado, e eu, corajosa ou insensatamente, havia aceitado a missão. Depois do meu longo périplo,
praticamente sozinha, por três continentes, acreditava-me pronta para
tudo. Saberia, sim, abrir uma frente de inserção, preparar pacientemente a vinda dos demais para fermentar, por longo tempo, a consciência,
a organização, a longa luta, verdadeiramente popular, de baixo para
cima, alastrando-se pouco a pouco por todo país e o continente, contra todas as formas de opressão. (Rezende, 2016, p. 105)
A personagem Maria, uma mulher bastante viajada, já conhecendo alguns lugares da Europa, África e América, envolvida diretamente na militância encara o desafio de ir viver sozinha no interior
nordestino liderando uma missão bastante audaciosa e que requeria
muito empenho, teria que despertar a criticidade daquele povoado,
assim percebemos que ela foge totalmente do que o patriarcado colocava para as mulheres na época. Com isso, podemos enfatizar sobre o princípio de responsabilidade na escrita de Rezende (2016),
que registra, através de seu texto, a participação feminina como
sendo de extrema importância. Além disso, “uma ideia nova de responsabilidade vem à luz em nossa época, como preservação da vida
num futuro extremamente longínquo” (Russ, 1999, p. 47). Portanto, sua escrita e a da própria Pilla (2015) propaga essa visão para o
futuro, em que outras gerações tenham conhecimento do que foi a
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ditadura, que o negacionismo não tome maiores proporções e que
os indivíduos olhem este passado de forma crítica.
A autora tece algumas críticas ao Movimento Nacional de Alfabetização (Mobral) criado em 1967 com o intuito de alfabetizar
jovens e adultos, o projeto era condizente com a proposta ideológica do regime militar:
O vereador não dava sinal de vida. O trabalho que mim tinha sido
oferecido era de manter uma turma do Mobral. Até então, porém,
nem contrato, nem material ou local de trabalho e, pior, nem a modestíssima ajuda de custo prometida. O pretexto para minha presença naquele lugar começava a perder consistência, o que não parecia
um problema para o povo, eu já parte deles, quase natural. (Rezende,
2016, p. 104)
Em várias passagens do romance, é enfatizado as debilidades
desse projeto, Maria foi para a pequena cidade sertaneja como educadora do Mobral, utilizou seu ofício de professora para se inserir
no meio do povo e colocar em prática o plano construído junto com
seus companheiros de militância, isto é, despertar a consciência política daquele povo, fazer com que eles tomassem conhecimento
das opressões que sofriam. Consequentemente, ela mostra como o
Mobral representou um retrocesso para a educação brasileira, visto
que as aulas não aconteciam de fato e o projeto ficava só no papel.
Estar na militância não era fácil, requeria muito empenho e
compromisso com os ideais democráticos, se por um lado esta seria
a única forma de reivindicar os direitos, por outro também podia
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ser um caminho de incertezas e dificuldades, já que a comunicação
deveria ser menos possível, além disso, “Éramos muitos, decididos a
assumir esse caminho, mas onde estariam os outros? Vivos? Desaparecidos, desanimados, apanhados pelos perscrutadores da ditadura,
torturados, resistindo ou não?” (Rezende, 2016, p. 106). No entanto,
apesar dos desafios muitos jovens na década de 1960/80 se doaram
por inteiro, arriscando sua própria vida em busca de justiça, “Maria,
então com 30 anos, esperava transformar o mundo, mesmo que à custa de sua própria vida, como tantos outros jovens idealistas de então”
(Figueiredo, 2017, p. 100). Podemos encarar a escrita de Pilla e Rezende como uma ferramenta contra a opressão, como discorre Zambrano (1934), pois escrever é uma forma de documentar aquilo que
as escritoras vivenciaram, de elaborar esse trauma da ditadura e, como
a própria autora discute, pela palavra nos tornamos livres.
Considerações finais
A literatura e a ética estabelecem diálogos de forma direta ou
indireta, ou seja, a ética está presente na maioria das esferas da sociedade de forma tão natural que, às vezes, é difícil vê-la de forma
separada. Nas obras de Pilla e Rezende, observamos como elas conversam com o pensamento ético contemporâneo e a importância
da escrita dessas autoras para se debater um tema, neste caso, a ditadura militar no Brasil, que, todavia, deixa tantas incógnitas.
Pilla (2015) com sua escrita testemunhal mostra que as mu-
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lheres mesmo com os impasses das questões de gênero lutaram bravamente pela derrocada do golpe de 1964, evidenciando como o
princípio de liberdade foi totalmente desrespeitado, haja vista que
os indivíduos não podiam exprimir suas opiniões, por exemplo. Por
conseguinte, Rezende (2016) a partir de sua narradora-protagonista, Maria, nos mostra como as pessoas enfrentaram a ditadura longe
dos grandes centros urbanos e enfoca, assim como Pilla, a participação feminina na militância em diversas instâncias, mostrando que
as mulheres não recuaram em meio ao autoritarismo, mas estiveram
presente nas organizações de esquerda, na luta armada, etc.
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