Frequentemente me perguntam como nasceu a minha relação com o universo da gastronomia. Eu me mudei para a Califórnia com meus três filhos pequenos em 1989 - eles tinham menos de quatro anos na época. País novo, vida nova e com três boquinhas para alimentar, a primeira coisa que fiz foi me inteirar da oferta de ingredientes na região.
Foi só pisar no mercado pela primeira vez para que eu ficasse maravilhada. Enquanto nos Estados Unidos de modo geral era difícil encontrar ingredientes frescos e saudáveis, a Califórnia já vivia o boom dos orgânicos, que foi uma herança deixada pelo ideário hippie da década de 1960. Uma profusão de frutas, legumes, hortaliças, ervas e mais dezenas de insumos de pequenos produtores abasteciam as cidades, tudo com uma qualidade altíssima. A partir daí, passei a ter uma relação íntima e irreversível com a questão dos orgânicos, a arte de cozinhar e tudo que envolve comida, da terra ao prato.
Relembro aqui essa sementinha da minha trajetória de vida porque, depois de voltar para o Brasil, já estive na Califórnia diversas vezes, e minha ida mais recente me trouxe uma experiência que vale ser compartilhada: finalmente conheci o trabalho do casal Michael e Lindsay Tusk - ele chef, ela restauratrice -, que se tornou mundialmente conhecido pelo caminho do campo à mesa e é responsável pela conquista das três estrelas Michelin do Quince, um dos restaurantes da dupla em São Francisco.
O Michael se formou em história da arte antes de cursar o Culinary Institute of America em Nova York e assumir de vez a vocação na cozinha. Formado, foi trabalhar em casas premiadas da França e da Itália para depois se instalar em São Francisco, em 1989, e trabalhar com a lendária Alice Waters no Chez Panisse. Para quem não sabe, em 1971, quando pouco se falava sobre a questão dos agrotóxicos no mundo, Alice, que já era uma grande entusiasta dos orgânicos, abriu o restaurante dela em Berkeley, na Califórnia. Desde então a chef se tornou uma das mais famosas defensoras dos ingredientes frescos e naturais, da cozinha sazonal e dos pequenos produtores locais e surgiu todo um movimento na gastronomia californiana seguindo a mesma filosofia.
Quinze anos depois, foi a vez de Michael e Lindsay se juntarem ao movimento, com a inauguração do Quince, onde o chef pratica uma cozinha local e baseada nos sabores da Califórnia que lhe rendeu três estrelas Michelin; depois vieram o vizinho italiano Cotogna, mais casual, o charmoso espaço de eventos Officina e o wine bar Verjus, que reabriu as portas recentemente, depois de encerrar a operação na pandemia. O que os quatro têm em comum, além do casal no comando: todos são abastecidos pela Fresh Run Farm, fazenda costeira da pequena região de Bolinas, onde Michael se juntou ao proprietário Peter Martinelli para cultivar mais de 40 variedades de frutas, vegetais e flores exclusivamente para seus restaurantes.
E foi visitando a fazenda que tive um primeiro contato com a cozinha de Michael Tusk e o frescor e a exuberância dos ingredientes que brotam desse terroir específico, que fica à beira do Pacífico e é rodeado por colinas. Lá eles plantam de tudo - batata, alho, frutas, ervas, brócolis, beterraba, couve, aspargos verdes, alcachofras, alface, tomate, feijões… E a quantidade e o tipo de nutrientes presentes naturalmente no solo da região contribuem para intensificar o sabor desse mundo de insumos, que vão variando de acordo com a estação. O chef diz que o processo criativo dele começa como uma tela em branco, a partir de uma visita à fazenda em que ele acompanha as plantações ao lado de Peter, colhendo, provando. Aquilo que estiver no auge do sabor vira a peça central de cada prato. Relação mais estreita entre o campo e a mesa, impossível.
A Fresh Run Farm recebe eventos privados em uma longa mesa posta na horta e eu tive a sorte de poder participar de um, mas foi à mesa do próprio Quince que vi a obra completa se desenrolar. Instalado em um edifício histórico de 1906, ao lado do Cotogna, o restaurante foi concebido de forma muito pessoal por Michael e Lindsay. Nada ali é por acaso, a começar pela decoração e mobília que claramente contam a história pregressa e atual de um homem de muitas facetas artísticas.
O Quince propõe uma fusão das cozinhas francesa e italiana, que foram as duas grandes escolas do chef, mas com toques também de Japão e Portugal e a criatividade vibrante da cena gastronômica da Califórnia. Os pratos - que variam muito, somadas à sazonalidade dos ingredientes e à inquietação constante de Michael - são leves e ao mesmo tempo super meticulosos. Há uma beleza importante na forma como os produtos são exaltados em sua essência a cada receita: daquilo que vem da fazenda própria às iguarias de pequenos produtores locais e outras mais específicas da Itália ou da França, tudo é elevado à enésima potência, sem disfarces e sem excessos.
O aspargo verde da fazenda é servido com caldo de mostarda de verão, cogumelo morel e lagostim; o camarão de Santa Bárbara, de textura firme e sabor adocicado, ganha companhia do cogumelo porcini; o cordeiro de Don Watson - um conhecido criador de Napa Valley - é assado na lareira e empratado com um tian de vegetais de verão, tomate em conserva e favas gorduchas. Amora gelada com gerânio rosa e pinhão, uma tarte de cereja Bronte e pistache, mignardises e panetone fecham um menu que seria intocável… Até que o chef decida mudar quase tudo, plantar coisas diferentes, experimentar ideias, celebrar a chegada de insumos queridos como as trufas e os aspargos brancos e trazer novas surpresas para a mesa. Como ele mesmo diz, “o mais importante é nunca se contentar com o que já é ótimo. É preciso estar sempre em busca das melhores matérias-primas e, ao mesmo tempo, manter-se fiel ao que é realmente bom”.
Serviço
Michael Tusk
Instagram @michaeltusk
Quince
Instagram: @quince_sf
Fresh Run Farm
Instagram @freshrunfarm
Cotogna
Instagram @cotogna_sf
Verjus
Instagram @verjus_sf
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