cultura
Semana de Arte de 22: exposições que ressignificam o centenário
Uma série de mostras que ressaltam nomes por muito tempo silenciados marcam o centenário da Semana de Arte de 22 e questionam o marco temporal e regional do Modernismo brasileiro
4 min de leitura"Esta história foi muito mal contada. E continua sendo”, declarou o crítico literário Eduardo Sterzi sobre a lendária Semana de Arte Moderna de 22, que marcaria o início do Modernismo no Brasil: um momento importante de rompimento como academicismo, negação do tradicionalismo, valorização da experimentação e busca pela identidade brasileira. Mas Sterzi, que coassina a curadoria de Desvairar 22, que abre em agosto no Sesc Pinheiros e questiona o que é de fato “moderno”, reunindo nomes como o pintor, escritor e dramaturgo Abdias Nascimento e o carnavalesco Joãosinho Trinta, é apenas um dos muitos estudiosos que, por ocasião do centenário da Semana, estão trabalhando para virar o movimento do avesso.
Quem começou os trabalhos foi a Pinacoteca, com um recorte essencial para pensar sobre o Modernismo: a indústria. Em cartaz até o dia 22, A Máquina do Mundo: Arte e Indústria no Brasil 1901-2021 traz uma reflexão sobre como as novidades técnicas, materiais e transformações sociais influenciaram a produção de arte e aponta para novos temas que passaram a ser recorrentes desde então – os operários, o crescimento das cidades e as consequências disso – em obras de Tarsila do Amaral, papisa do movimento, do gaúcho Romy Pocztaruk e do britânico Adrian Cooper, alguns do nomes que compõem a coletiva.
A definição do que é “moderno” ou “vanguarda” também passa por uma série de preconceitos daqueles que olhavam para a cultura nacional por uma ótica eurocêntrica. Contestando essa narrativa, nascem três exposições este ano. Em Margens de 22: Presenças Populares, prevista para abrir em maio no Sesc Carmo, os curadores Alexandre Bispo, Tadeu Kaçula e Joice Berth pretendem analisar porque a cultura popular foi deixada de lado no evento paulista, criticando também a desvalorização do popular dentro do sistema da arte contemporânea.
“Como pessoas negras, nós três tínhamos muitas angústias em relação à Semana de 22. Por que as vozes que entraram para a história eram todas brancas? Não queremos desvalorizar a influência e relevância desses personagens: eles até traziam a lembrança do negro e do índio, mas não davam voz a essas pessoas”, explica Berth, que pretende remontar, só com artistas contemporâneos, o que seria hoje uma Semana de Arte Moderna.
Um belo exemplo é o artista Agnaldo Manuel dos Santos. Apesar de ter convivido com a elite modernista, ele foi por muitos anos subjugado ao popular por sua cor e falta de educação formal. O artista é um dos destaques de Raio-que-o-parta: Ficções do Moderno no Brasil, que abre este mês no Sesc 24 de Maio com cerca de 600 obras selecionadas por Raphael Fonseca e cinco curadores de diferentes cidades do Brasil: Aldrin Figueiredo, de Belém do Pará; Clarissa Diniz, de Recife; Divino Sobral, de Goiânia; Marcelo Campos, do Rio de Janeiro; e Paula Ramos, de Porto Alegre. A ideia é fazer a necessária revisão histórica expandindo o movimento moderno no tempo e espaço.
“Ainda temos uma visão muito focada em São Paulo e no Rio de Janeiro e não vemos como a Semana de 22 é um marco perverso. Representa o Modernismo do Brasil, mas foi um evento muito localizado. Os poucos artistas que não eram do Sudeste [pense em Vicente do Rego Monteiro e Cícero Dias] moraram aqui ou na Europa”, explica o curador-geral. A coletiva abraça produções do fim do século 19 até os anos 1960, incluindo nomes excluídos, esquecidos ou reorganizados. Entre os destaques estão as pintoras Lídia Baís, Maria do Santíssimo e Aurora Cursino dos Santos – uma prostituta que pintou sobre sua profissão e o direito das mulheres na década de 1940. Vale conferir, ainda, os trajes de Lampião, de Carmen Miranda, do pai de santo Balbino de Xangô e do palhaço Piolin.
Outra exposição que promete abalar as estruturas dos livros de história da arte é Nakoada, prevista para julho no MAM do Rio de Janeiro, com curadoria de Denilson Baniwa. “Nakoada”, para os Baniwa, refere-se ao entendimento do outro e a capacidade de capturar informações e técnicas não indígenas para construir narrativas anticoloniais para a continuidade indígena. Ou seja, é uma reantropofagia. Este, inclusive, é o título de uma pintura onde Denilson coloca uma versão negra da cabeça de Mário de Andrade oferecida numa bandeja indígena junto a uma edição de Macunaíma.
No bilhete da cena, está escrito que o jantar está servido aos indígenas, sugerindo que eles devorem essa antropofagia constituída a partir do pensamento europeu e ocidental. Denilson explica: “O que parece ser uma violência é também uma homenagem a Mário e Oswald de Andrade que, de alguma maneira, conseguem condensar um pensamento muito complexo que é o indígena, mas não acertam totalmente pois estão presos aos seus corpos brancos, acadêmicos, ocidentais e elitistas”, explica Baniwa.
“O “re” do título pode significar revolta, ressignificação ou retomada do início do pensamento dele. A gente não come nada que não gosta. Então, se eu servi a cabeça de Mário, o livro e o pensamento antropofágico, foi porque eu gosto desse prato. Ofereço aos meus amigos indígenas porque gostaria de compartilhá-los com eles. Mas, claro, agora com outros temperos”, completa. O prato está servido. Agora vamos ver quem vai devorá-lo e como será digeri-lo.