Séries
Uma conversa com a direção da série documental ‘O Enigma da Energia Escura’, de Emicida
As diretoras Day Rodrigues e Mariana Luiza comentam os detalhes da nova produção documental e a importância de pessoas pretas e indígenas retomarem as narrativas da história do Brasil
6 min de leituraEmicida e Evandro Fióti entregam ao público na noite desta quarta-feira, 18.08, a nova uma série documental O Enigma da Energia Escura, às 23h30 no GNT, e também estará disponível no Globoplay. A cada episódio, Emicida irá atrás das suas histórias e, para além da música, convidará especialistas, ativistas, artistas e pensadores para buscar reconstruir a história do Brasil.
Com produção assinada por Evandro Fióti, por meio da Laboratório Fantasma, a série tem direção geral de Day Rodrigues, diretora de Mulheres Negras - Projetos de Mundo, que também fez parte do time de diretores da série Quebrando o Tabu, do GNT; Emílio Domingos, diretor do longa-metragem documental Favela é Moda; e Mariana Luiza, diretora do curta-metragem Cascas de baobá.
Para compartilhar os principais detalhes da série, da concepção ao papel social que a produção busca em contribuir na narrativa da história contada por quem sempre esteve sua fala silenciada e identidade apagada, as diretoras Day Rodrigues, cineasta, produtora, escritora e educadora e Mariana Luiza, graduada em roteiro de cinema pela New York Film Academy (NY) e montagem pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro, que conversam com Vogue sobre O Enigma da Energia Escura. Confira a seguir.
VOGUE: Day, como esse projeto foi concebido e como foi o convite para você integrar a equipe?
Day Rodrigues: O projeto é uma idealização dos irmãos e fundadores da Lab Fantasma: Emicida e Evandro Fióti, que dispensam apresentação, pela relevância de seus trabalhos na música, moda e produção de conteúdos. E a idealização da série O Enigma da Energia Escura nasce de um sonho deles de realizar uma produção audiovisual com uma equipe de pessoas negras. E assim, por conta da série Quebrando o Tabu para o GNT, em que estive na equipe de diretores de duas temporadas (2018 e 2019), o próprio canal fez a indicação do meu nome para compor a equipe do projeto.
Por outro lado, em 2020, quando estávamos em plena pandemia, sem saber muito bem como sairíamos daquele momento de tantas incertezas, passei a ouvir muitas vezes o álbum AmarElo, e desejei desenvolver algum projeto com eles, daí, por coincidência ou não, o Fióti entrou em contato comigo e fez o convite para que eu pudesse compor a equipe de diretores, junto ao Emilio Domingos e a Mariana Luiza. E aqui estamos!
Mariana Luiza: Foi Joelma Gonzaga quem me convidou para o projeto. E a proposta tinha muito a ver com minha caminhada no audiovisual que se resume a narrar histórias que combatam ao epistemicídio. Os veículos de comunicação, o cinema, a TV o rádio foram e ainda são, muito responsáveis pelo embranquecimento e europeização do imaginário social brasileiro, então o convite do Laboratório Fantasma para colocar na televisão narrativas pretas me interessou bastante, é uma forma de tentar, ao menos, contar a história do Brasil por uma outra perspectiva.
Notei que os todos os entrevistados e falas durante o trecho que assisti foram de pessoas negras. Qual a importância dessa tomada de narrativa dos negros em contar a própria história na tela?
Day Rodrigues: As pessoas negras e indígenas, historicamente, não têm o devido reconhecimento pela produção intelectual e suas epistemologias, logo, a série O Enigma da Energia Escura reflete uma reivindicação de realizadores e profissionais do audiovisual negres em projetos de filmes e TV, junto ao mercado audiovisual e com reivindicações por políticas públicas. Assim, todos os esforços são para termos pessoas negras atrás e na frente das câmeras, no roteiro ou em cena, com as suas subjetividades e saberes que não são somente faltas de acessos, direitos e oportunidades, mas também resistência, afetividade, sonhos e o desejo por transformação para todo mundo.
Na impossibilidade de narrar as nossas vidas por tais parâmetros, temos o silenciamento da maioria, e isso resulta um "apagamento de memória", conforme disse a Potyra Guajajara, em entrevista para o episódio 05 da série, quando nos lembra da importância de uma educação diferenciada para alunos e alunas indígenas, para que não esqueçam de sua cultura.
Portanto, a presença de especialistas, entrevistades e personagens negros é uma escolha da Lab Fantasma em diálogo com o nosso tempo, com as urgências contemporâneas de se pensar o lugar da diversidade para muito além das presenças hegemônicas, por uma produção estética negra.
A cabine de onde Emicida apresenta a série remete aos MCs dos anos 1970 de Nova York, pioneiros do hip-hop. Quais são as principais referências buscadas para compor a narrativa visual da série?
Day Rodrigues: Para compor a narrativa visual, a direção da série partiu de referências como Faça a coisa certa (1989), do Spike Lee, Branco sai, preto fica (2015), do Adirley Queirós, Orquestra invisível (2016), de Alice Riff e a série Cara gente branca (2017)/ Netflix. Com estas referências, o Emicida ganhou um protagonismo, afinal, de artista das palavras, enquanto músico e compositor, na série, teremos a sua participação como um comunicador nato, entre a audiência e os conteúdos abordados ao longo dos arcos narrativos das personagens, em cada episódio.
Mariana Luiza: Nós tínhamos a limitação da pandemia, e não queríamos submeter nenhum entrevistado a um risco de contágio. A solução encontrada pela produção foi enviar celulares aos entrevistados para que eles se filmassem e assim, diminuiremos as possibilidades de contágio. Como estávamos falando sobre Energia Escura, a ideia foi colocar cada entrevistado em seu universo particular. Em seu microcosmo e o mesmo se deu para a filmagem de Emicida. Se para Flávia Rios, o universo microcósmico é a biblioteca, para Emicida que é um homem da palavra e do ritmo, esse universo seria uma rádio.
Alguma parte da pesquisa e do que será retratado chegou a emocionar vocês?
Foi um grande desafio realizar este trabalho em equipe, de forma remota e com todos os altos e baixos da pandemia, ao longo dos oito meses de desenvolvimento, produção e finalização. Daí, acredito que uma das coisas marcantes deste processo foi a morte da Doné Eleonora, sacerdotisa e uma das entrevistadas da série, ela nos deixou no dia 27 de julho, em decorrência das consequências do Covid-19.
Qual o papel que a série busca ocupar no entretenimento e conteúdo jornalístico?
O principal papel desta série é a valorização para os debates raciais que deveriam ser parte de qualquer formação, e não vistos como algo específico de um segmento da sociedade (negros e/ ou indígenas). A população negra precisa estar presente na idealização das pautas, dos conteúdos e das produções dos projetos de audiovisual, e não somente em datas específicas.
Assim, olhar para a série pelo viés da mudança de paradigmas, com criticidade sobre quem até hoje escreve e conta a história oficial brasileira, deveria trazer reflexões sobre as falácias das desigualdades e um respeito às vidas negras e indígenas, por ações urgentes de implementação de políticas por equidade, nas instituições de comunicação.
E por último, destaco uma frase que achei emblemática: “O futuro do Brasil é o futuro da maioria. O futuro do Brasil é o futuro da família negra”. Como vocês enxergam esse futuro?
Day Rodrigues: Esta é uma frase do economista Hélio Santos, entrevistado para o episódio 01 - "Por que a desigualdade racial é uma grande burrice? - Raça e Poder". E trouxemos para a narração do Emicida para lembrar que sem a família negra não haverá mudança possível em nosso país, nem progresso, muito menos com a transformação radical necessária. E sobre como enxergamos este futuro, assistam a série (risos).
Mariana Luiza: Ao invés de falar de futuro que é algo que não existe, eu prefiro falar do passado. E acho que a série cumpre esse papel. Lançar olhos para um passado que foi negligenciado e deturpado pela narrativa oficial. O legado negro para a construção do Brasil foi vilipendiado pelas narrativas oficiais e o nosso compromisso com a série é da trázer à tona essas narrativas que sempre existiram.