Morto em 2017, Azzedine Alaïa deixou não apenas o legado de um dos maiores gênios da moda das últimas cinco décadas, mas também uma monumental coleção de roupas assinadas por outros costureiros, do final do século 19 até o início do 21. Era uma obsessão fatal e, também, secreta; poucas pessoas, até os mais íntimos colaboradores e amigos, tinham noção da magnitude exata desse tesouro. Pois bem: eram mais de 20 mil peças, 140 das quais serão expostas entre 27 de setembro e 21 de janeiro de 2024 no Palais Galliera, o Museu da Moda de Paris, na mostra Azzedine Alaïa: Costureiro Colecionador.
Tudo começou quando Cristóbal Balenciaga decidiu fechar as portas de sua maison, em 1968. Fazia apenas três anos que Azzedine havia aberto seu pequeno ateliê na Rue de Bellechasse, longe de explodir na profissão. Dinheiro não havia para salvar as criações do espanhol, mas sobrava a angústia de vê-las perdidas para sempre. Assim que começou a ter êxito na carreira, no fim dos anos 1970, Azzedine passou a percorrer leilões, lojas de segunda mão e coleções privadas para montar sua própria.
Ele estudava as peças que comprava como um dedicado médico legista. Com seu conhecimento enciclopédico, era capaz de recitar cada técnica, cada ponto, cada intenção por trás das criações. Era tão passional no colecionismo, que nutria um ódio visceral por seus adversários de leilões, em especial Karl Lagerfeld – daí a rixa histórica entre os dois mestres.
Na exposição do Galliera, ficará evidente que havia espaço para monstros sagrados – Worth, Jeanne Lanvin, Jean Patou, Paul Poiret, Gabrielle Chanel, Madeleine Vionnet, Elsa Schiaparelli e Christian Dior –, mas também para seus contemporâneos, como Jean Paul Gaultier, Rei Kawakubo, Alexander McQueen,Thierry Mugler e Yohji Yamamoto. No prédio vizinho, o Museu da Arte Moderna de Paris, três trajes de cena concebidos pelo pintor Henri Matisse em 1919 para a companhia Ballets Russes serão apresentados pela primeira vez ao público – Azzedine, conhecendo minha paixão pelo tema, me deu a honra de conferi-los no porão de sua casa, em 2014. Retribuí-lhe com muitas lágrimas.
Mas um dos mais importantes volumes da coleção é, sem dúvida, o acervo amealhado em torno da obra de Madame Grès. E ele terá direito a outra exposição, de 11 de setembro a 11 de fevereiro de 2024, na Fundação Azzedine Alaïa. O estilista tunisiano dizia que guardava “umas três ou quatro roupas” de Madame; quando ele morreu, descobriu-se que eram quase 700. Em Alaïa/Grès, Além da Moda, será possível conferir, lado a lado, as criações esculturais desses dois gênios, e como Madame (nascida Germaine Krebs) influenciou não apenas a criatividade de Azzedine, como também sua ética de moda. O nome Grès, artístico, foi escolhido por ela a partir do anagrama do marido, o pintor russo Serge Czerefkov, com quem se casou em 1937, mas que logo deixaria a França para a Polinésia, de onde esqueceu de voltar.
Ambos sonhavam tornar-se escultores, antes de começar a costurar – tanto que nunca desenhavam, preferindo esculpir as criações estatuárias nos corpos das modelos e das clientes. Ambos eram irredutíveis na negociação de seus princípios, alheios a modismos, calendários e jogadas de marketing. Ambos perseguiam a atemporalidade, explorando obsessivamente suas ideias, até esgotá-las. Eram rigorosos nos cortes e nas proporções, desafiando os tecidos em busca de uma nova anatomia. Ela foi a primeira a adotar o jérsei, nos anos 1930, sua década mais emblemática, traduzida por seus vestidos longos, drapeados, restauradores da Antiguidade Clássica. Nos anos 1980, ele retomou o tecido em sua malharia flexível.
Eram mestres de decotes, pregas e fendas, evidenciados num vestido-coluna dela dos anos 1960, com as costas profundamente abertas, e outro com pregas minúsculas nos ombros. Para fazer eco, está um vestido curto de Alaïa com pregas brancas (1991) e um modelo de alta-costura vermelho com pregas densas e alças e corpete de malha. Eram econômicos nas cores (ele mais que ela), só fugindo dos neutros quando os tons fortes serviam para exaltar alguma precisão técnica.Origor do trabalho se refletia na indumentária pessoal dos estilistas. O uniforme de Grès era um vestido de lã cinza ou preto, e seu turbante, inspirado no quadro do julgamento de Beatrice Cenci, por Ingres. Azzedine não se separava de sua túnica chinesa negra – tinha 60 iguais no guarda-roupa.
Mas havia diferenças: Madame tinha uma personalidade inescrutável, vivia como uma monja extravagante e era tirana com as manequins – em visita ao Rio de Janeiro, nos anos 1960, quase bateu numa delas, que decidiu ir à praia em frente ao Copacabana Palace com uns amigos.Apesar de algumas declarações azedas, Azzedine era, na maior parte do tempo, festeiro, doce e generoso, o mais incrível dos anfitriões. E era um verdadeiro pai para suas modelos.
Madame morreu praticamente na miséria, numa casa de repouso em 1993, cinco anos depois de sua última aparição pública. Misteriosamente, sua única filha só revelou o fato um ano depois, dizendo que a mãe teria detestado qualquer tipo de badalação fúnebre. Azzedine também nos deixou de forma abrupta, após uma queda que deixou meio mundo chocado. Mas ele saiu de cena badalado, com todas as glórias, como um dos maiores nomes da História da moda.
E reverenciando, em sua monumental coleção, aqueles que o precederam. Como fazem as lendas.