A Finlândia parece ter entendido que, além de reciclar, é crucial otimizar o uso dos recursos naturais para combater a mudança climática e a perda de biodiversidade. Esse entendimento ficou claro no lançamento do Programa Estratégico para Promover a Economia Circular, em 2021, e agora deve ganhar ainda mais relevância na nova lei que está em discussão, que visa atualizar o programa e criar a Lei de Economia Circular.
“Se você olhar para a economia circular, não se trata apenas de reciclar resíduos, mas também de preservar recursos naturais. Isso também fornece meios para resolver a mudança climática e a perda de biodiversidade”, comenta Jarmo Muurman, diretor e conselheiro ministerial sênior do Departamento de Proteção Climática e Ambiental e Economia Circular do Ministério do Meio Ambiente finlandês, em entrevistas a jornalistas internacionais em outubro.
A busca pela redução do consumo de recursos ao longo do tempo não significa, porém, não utilizá-los, mas sim fazer o melhor proveito do que tem e com foco em materiais renováveis ou naturais. Nesse contexto, a rica cobertura vegetal da Finlândia é vista como um trunfo para o avanço da economia circular e também como oportunidade de ser referência em produtos à base vegetal, menos poluentes e de maior valor agregado.
Sinônimo de lazer, descanso e retiro para os finlandeses, as florestas cobrem cerca de dois terços (72%) do país. Desde 1970, a quantidade de madeira no país quase duplicou - a legislação nacional exige, por exemplo, que, ao cortar uma árvore, três sejam plantadas, para garantir a biodiversidade e a cobertura verde.
Além de ser instrumento de mitigação de gás carbônico (CO2), as árvores, de diferentes espécies, mas especialmente as usadas pela indústria de papel e celulose, têm sido objeto de estudo em universidades e centros de pesquisas espalhados pelo país com o foco no desenvolvimento de embalagens sustentáveis, de biocombustíveis, para integrar a composição de produtos e até ser base para a confecção de tecidos.
O principal centro de pesquisa e desenvolvimento finlandês, o Technical Research Centre of Finland (VTT), ligado ao governo e muito próximo a universidades e empresas, é referência no país para pesquisa nestas três frentes - bioeconomia circular, materiais de embalagem e combustíveis alternativos -, em grande parte envolvendo base florestal.
As embalagens são uma das áreas mais avançadas. Com a pressão legislativa para o fim do uso de embalagens plásticas em toda a União Europeia, a busca por alternativas menos poluentes é crescente. As feitas com base celulósica, se mostram, então, como uma boa alternativa.
“A embalagem feita a partir da celulose é mais resistente do que outras sustentáveis”, comenta Ali Harlin, professor de pesquisa do VTT e membro permanente da Academia de Ciências Técnicas da Finlândia, a jornalistas durante visita às instalações do laboratório em Espoo, na região metropolitana de Helsinque, no início de outubro.
No laboratório, os técnicos estão testando a fibra vinda de diferentes plantas, inclusive cana-de-açúcar. A embalagem já tem sido usada em produtos que não soltam muita água, como donuts. Mas a sensibilidade natural do produto à água ainda é um desafio a ser superado e, segundo o cientista, o VTT está buscando melhorias. “Estamos testando um método para congelar papel que não estraga”, exemplifica.
A legislação europeia propôs que todas as embalagens plásticas descartáveis na UE sejam recicláveis até 2030. Além disso, a quantidade total de embalagens utilizadas deve ser reduzida em 5% até 2030, 10% até 2035 e em 15% até 2040. Os países também devem reduzir, em particular, a quantidade de resíduos de embalagens de plástico. Na Finlândia, o plástico, contudo, segue sendo um desafio, assim como em boa parte dos países da União Europeia. A meta é alcançar 55% de reciclagem de plásticos até 2030.
Mas não é apenas nas embalagens que os produtos de base vegetal têm ganhado espaço. O setor têxtil é outro que vem sendo pressionado para encontrar substitutos aos tecidos sintéticos derivados do petróleo, como náilon, acrílico, spandex e poliéster. Por serem mais baratos que os naturais, são largamente utilizados em roupas, cortinas e carpetes, mas altamente poluentes.
A indústria têxtil também trabalha para diminuir o uso de recursos naturais, como a água, na fabricação de jeans. Segundo relatório Fios da Moda, a pegada hídrica de uma única peça é de 5,2 mil litros, desde o plantio da fibra até o pós-consumo.
O lixo é outro ‘problemão’ do setor. Sozinha, a indústria têxtil é responsável por 8% das emissões de gases de efeito estufa e é a segunda maior poluidora do mundo, atrás apenas da de petróleo. Estimativas do Boston Consulting Group (BCG) para o projeto Global Fashion Agenda mostram que são gerados cerca de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano no mundo, mas apenas 12% desse volume é reciclado e só 1% tem as fibras recuperadas para produção de novas peças. Se nada acontecer, o planeta chega a 2030 produzindo mais de 130 milhões de toneladas de material descartado.
Neste contexto, alternativas mais sustentáveis e biodegradáveis estão sendo estudadas no mundo todo e, na Finlândia, são as peças produzidas a partir da celulose que têm chamado a atenção. Empresas como o Grupo Metsä e Spinnova são expoentes na área: elas estão investindo em um processo de fabricação de fios a partir de celulose de diferentes espécies de árvores.
Enquanto a Spinnova focou em desenvolver produção mecânica da fibra celulósica, sem necessidade de processos de dissolução em produtos químicos, o Grupo Metsä, por meio de sua marca Kuura, usa uma pasta solúvel (polpa úmida, antes da secagem) e produtos químicos mais seguros e ecológicos. Após alguns anos de experimentações e testes, agora as duas empresas estão investindo no aumento da escala de produção e em desenvolvimento de novos produtos a partir do mesmo processo de produção de fibra celulósica.
Hoje, o mercado de fibras têxteis ultrapassa 100 milhões de toneladas produzidas por ano no mundo. As empresas acreditam que podem abocanhar uma parcela desta demanda, se aproveitando da pressão por sustentabilidade.
Marcas como Adidas, H&M e a finlandesa Marimekko já lançaram peças no mercado feitas com a fibra desenvolvida pela Spinnova, por exemplo, cuja textura e visual são similares às do algodão. O algodão, apesar de natural, é uma matéria-prima que demanda um grande volume de água na produção. Estima-se que são necessários cerca de quase 3 mil litros de água para fazer uma única camiseta de algodão.
Tuomas Oijala, CEO da Spinnova desde o ano passado, conta que a empresa nasceu a partir da descoberta de um novo método de produção de fibra celulósica. O então pesquisador do VTT Juha Salmela, na ocasião, pesquisava sobre nanocelulose e, ao ouvir uma apresentação de outro colega da Universidade de Oxford, na Inglaterra, percebeu que havia similaridades entre a proteína da teia de aranha e a nanocelulose.
A partir disso, ele desenvolveu, em 2009, uma técnica de produção mecânica da fibra celulósica, sem necessidade de processos de dissolução em produtos químicos, como é comum na indústria. “Temos uma posição única por causa disso e essa produção mecânica resulta em propriedades físicas que fazem o fio se comportar, agir e parecer muito mais com o algodão”, comenta Oijala. Spin-off do VTT, a Spinnova foi formalmente criada em 2014 e, em 2021, abriu seu capital na Bolsa de Valores Finlandesa.
A Spinnova conta com matéria-prima vinda das florestas da brasileira Suzano, inclusive plantações na Finlândia. As empresas criaram uma joint-venture em 2021, a Woodspin, com investimentos de 22 milhões de euros para uma fábrica em Jyväskylä com maior capacidade de produção de fibra têxtil sustentável, reciclável e totalmente biodegradável a partir do eucalipto - cerca de 1000 toneladas por ano agora, e com expectativa de chegar a 1 milhão em 2031.
“Em 2023, tivemos vendas líquidas de 10 milhões de euros e temos um pouco mais de 70 colaboradores agora”, disse o CEO aos jornalistas no prédio onde fica a fábrica da produção de fibras e matérias-primas produzidas a partir da celulose de árvores de eucaliptos, a marca Woodspin, operação resultante de uma joint venture (JV) com a companhia de papel e celulose Suzano. A madeira, é certificada e cultivada de maneira sustentável pela empresa brasileira, inclusive na própria Finlândia. A fábrica foi inaugurada em 2023 e contou com investimentos de 22 milhões de euros da Suzano.
Em outubro de 2024, a Spinnova captou 12,7 milhões de euros com a Business Finland, agência de incentivo aos negócios no país, para pesquisa e desenvolvimento (P&D), especialmente novas aplicações têxteis e outras, além da eficiência dos processos.
No Grupo Metsä, o processo de produção da fibra da Kuura é diferente da Spinnova, mas a companhia também espera surfar o crescimento da demanda por fibras naturais como alternativa mais sustentável.
Lançada no mercado em 2021, ainda como uma experimentação, a Kuura produz fibras celulósicas artificiais (MMCF) para a indústria têxtil a partir da pasta para papel como matéria-prima, enquanto a técnica mais comum é com a pasta solúvel. A produção de Kuura depende exclusivamente de celulose para papel, vista como ecologicamente melhor. Este novo método foi desenvolvido em colaboração com universidades locais.
“Testamos uma nova forma de produzir fibras têxteis a partir de polpa não seca, com base em produtos químicos mais seguros e ecológicos”, comenta Niklas von Weymarn, CEO da Metsä Spring, empresa de inovação do grupo, e membro do conselho da Woodio, empresa finlandesa de ecodesign para banheiros, e da Business Finland. Este método avançado de dissolução direta é fruto de uma colaboração com universidades e instituições de pesquisa há mais de uma década.
Após dois anos de testes e provas de conceito na planta de bioprodutos Äänekoski, o produto final foi apresentado em 2021 na Japan Fashion Week, quando modelos vestiram roupas e casacos feitos a partir da fibra da marca, em uma parceria com a tradicional casa comercial têxtil japonesa Itochu Corporation e a marca de roupas The Reracs.
No caso da Kuura, marca do Grupo Metsä, a madeira usada para a produção de fibra celulósica vem de proprietários-membros finlandeses da organização.
A árvore adulta é dividida em três partes. A parte grossa da madeira de aproximadamente 15 centímetros de diâmetro, a chamada tora, vai para a serraria e é base para a fabricação de folheados (painéis). A partir do folheado, são feitos compensados usados na construção civil. “Por ser a parte mais valiosa, isso incentiva os proprietários a deixarem as árvores crescerem por mais tempo e, com isso, elas também contribuem mais para a armazenagem de CO2”, comenta Niklas von Weymarn, CEO da Metsä Spring, empresa de inovação do grupo.
A parte mais fina de fora da madeira é de onde é extraída a celulose e outros componentes. O processo, chamado de polpação, pode ser feito de maneira química, mecânica ou na combinação dos dois métodos. Já os galhos do topo da árvore são usados para geração de bioenergia.
“Estamos investindo em várias pesquisas para desenvolver formas de medir o desenvolvimento da natureza para também garantir o nosso negócio, a chamada silvicultura regenerativa. E não se trata apenas de maior produtividade, mas sim de serviços ecossistêmicos”, diz von Weymarn, dando como exemplo a manutenção de água limpa, polinização e presença de animais.
Este ano, 2024, a empresa se dedicou a um novo pré-estudo sobre a construção de um moinho comercial. Depois do estágio inicial, para avaliar o tamanho do investimento do moinho e a possível lucratividade do negócio, começará, se a empresa identificar que é viável, o estágio de pré-engenharia, possivelmente no primeiro semestre de 2025. O estudo é uma parceria com a Andritz, responsável por fornecer equipamentos e determinar processos para a planta de demonstração. Por ora, a produção está concentrada em um espaço da planta de Äänekoski.
Os principais objetivos da parceria são desenvolver um método de pré-tratamento de celulose; maneiras inteligentes de integrar a produção de fibras têxteis nos vários departamentos de uma fábrica de bioprodutos; e automação para a produção de Kuura.
Segundo von Weymarn, ao integrar a produção de fibra têxtil diretamente na fábrica de bioprodutos, a empresa pode tornar seu ecossistema industrial ainda mais ecológico. A ideia é integrar a produção de MMCF à fábrica que produz celulose. Ao fazer isso, a produção do MMCF pode utilizar celulose que não passou pelo processo de secagem - em vez de celulose seca, mais comum - e também se valer do excesso de energia renovável gerada pela fábrica de bioprodutos. A fábrica de Äänekoski já opera 100% sem combustíveis fósseis e é uma das primeiras do mundo de celulose a chegar a esse patamar.
Jarmo Muurman, do Ministério do Meio Ambiente finlandês, acredita que a indústria florestal é um dos setores prioritários para a Finlândia alcançar suas metas de circularidade. “As empresas do setor utilizam bastante biomassa e também queimam parte dela para produzir energia. Estamos estudando se o material queimado poderia ser usado como matéria-prima também”, comenta.
Outra frente de pesquisa para uso da madeira em substituição a outros materiais está na indústria de construção civil. O VTT está desenvolvendo, por exemplo, em seus laboratórios, a criação a partir da lignina, concreto. A lignina é um polímero natural presente nas paredes celulares das plantas terrestres, é a substância que une as fibras da madeira. Sua principal característica é a rigidez, mas ela também confere resistência e impermeabilidade aos tecidos vegetais.
“Desenvolvemos um processo de LigniOx que permite usar a lignina em concreto, usado na construção civil”, conta Ali Harlin, do VTT. O LigniOx é um processo inovador de oxidação de álcali-O2 que transforma a lignina em dispersantes de alto desempenho.
Um projeto piloto da União Europeia coordenado pelo VTT da Finlândia, o Grupo Metsä, a Andritz e a Dow já demonstraram a adequação da lignina modificada como substituto de produtos químicos de base fóssil na produção de concreto.
(*) A jornalista viajou a convite da Business Finland.