O ano de 2024 foi tomado de debates sobre a regulamentação da reforma tributária e a concretização dos valores constitucionais enunciados pela EC 132/2023: simplificação, transparência e justiça tributária passam a integrar o rol dos princípios tributários que inauguram o Sistema Tributário Nacional. Com a aprovação do PLP 68, que seguiu para a sanção presidencial esta semana, devemos nos perguntar em que medida há a incorporação de tais princípios no texto legislativo.
Parece evidente que uma leitura geral do PL indica a realização do texto constitucional: o cálculo do IBS e da CBS por fora, a não cumulatividade plena e, com isso, a transparência sobre a carga tributária incidente nas operações colaboram para um sistema mais justo a partir do qual a apropriação do papel de cidadão fiscal é possível.
A despeito desses avanços, porém, o texto legal também inclui elementos que infirmam esses mesmos objetivos.
O primeiro deles diz respeito à ausência de tributação diferenciada sobre armas e munições. Sendo o imposto seletivo o único instrumento pelo qual se faz possível estabelecer ônus tributário mais gravoso sobre bens e serviços, a interpretação restritiva dos objetos causadores de males à saúde e ao meio ambiente resulta na irracional redução da carga tributária sobre bens notoriamente causadores de externalidades negativas. Armas e munições são um deles: a redução da carga tributária será de, aproximadamente, 70%. Como já tratamos exaustivamente neste e em outros espaços, o impacto sobre a desigualdade de gênero e raça é irrefutável. Não bastasse isso, o governo ainda abre mão de receita adicional que, se não chega a ser expressiva, não deixa de ser bem-vinda em contexto de apreensão fiscal como a que estamos vivendo no presente.
Ainda quanto ao imposto seletivo, a incidência sobre bebidas açucaradas foi ganho relevante, mas tímido. Antes da entrada em vigor do IS em 2027, seria relevante, inclusive para a preservação da isonomia, alteração legislativa que estabelecesse tal tributação não apenas para os refrigerantes, mas, também, outras bebidas açucaradas ultraprocessadas, como os energéticos, chás, néctares de fruta etc.
Ao lado disso, já na EC 132/2023, prevaleceu a necessidade de criação de regimes favorecidos de tributação para bens e serviços essenciais, dada a impossibilidade de se assegurar a devolução personalizada e integral do IBS e da CBS para toda população em situação de vulnerabilidade econômica. A criação da Cesta Básica Nacional de Alimentos é exemplar nesse sentido e repete as práticas internacionais relacionadas com o IVA. Não obstante, a análise de todos os itens que irão se beneficiar de alíquotas reduzidas dos impostos sobre o consumo em parte se distancia da essencialidade – a preservação de massas recheadas congeladas na lista dos alimentos que serão tributados à alíquota de 60% é incoerente tanto com o direito à saúde, já que se trata de produto ultraprocessado, quanto com a essencialidade.
Outro ponto a se destacar refere-se à avaliação quinquenal dos benefícios tributários e da tributação seletiva no consumo. Ainda que o PLP repita a fórmula da EC, ao enunciar que a redução da desigualdade de gênero e étnico-racial deve guiar tal avaliação, a regulamentação desse instrumento foi demasiadamente singela. Seria relevante a previsão do envolvimento da sociedade civil quanto à análise do impacto da redução de alíquotas ou alíquota zero no preço dos bens e serviços; afinal, trata-se de receita pública cujo controle orçamentário decorre da Constituição e das regras de responsabilidade fiscal. De outro lado, a criação de canais para o reporte de eventuais apropriações indevidas dos benefícios reforça o senso de cidadania fiscal e realiza os princípios da cooperação e da transparência.
O ano de 2025 certamente será ocupado pelas discussões em torno do PLP 108, que disciplina as questões processuais da reforma tributária. Nesse contexto, seria fundamental também voltarmos os olhos para os PLs que se originaram da Comissão de Juristas criada por ato conjunto do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal, cujos conteúdos podem auxiliar na redução do contencioso tributário: a previsão de arbitragem, mediação e alterações relevantes e necessárias ao CTN igualmente fazem parte do ambiente mais amplo da reforma e devem se inserir em tal debate. Simplicidade e eficiência tributárias são valores que devem informar não apenas a legislação material, mas também processual.
Por fim, uma última nota (e um desejo para o próximo ano): as questões relacionadas à tributação da renda, com a necessária redução da regressividade hoje existente, que penaliza especialmente a população negra a feminina, é urgente e deve ser cobrada de um governo que se elegeu com plataforma eleitoral progressista, ainda que haja resistências a isso no Congresso. Que a reforma do consumo recém-regulamentada não ofusque a necessidade se seguirmos vigilantes para que as alterações em nosso sistema tributário realizem de modo efetivo a justiça– objetivo fundamental da República Federativa do Brasil e agora inserido no artigo 145 da Constituição para que não restem dúvidas sobre sua relevância.