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Nos periódicos de maior prestígio, as taxas para publicações de artigos são incompatíveis com recursos limitados investidos na pesquisa de países como o Brasil. Mesmo assim, esses são os periódicos privilegiados pelos autores. Unsplash

O que é prestígio para a ciência? Reflexões sobre o atual modelo de publicação de artigos em periódicos científicos

Neste mês de setembro, em que completa um ano de vida, o The Conversation Brasil publica uma série de artigos que discutem a essência do nosso trabalho: os rumos da divulgação científica. Nesses tempos em que a mentira e as informações falsas viraram ferramenta de sucesso no universo das redes sociais, uma divulgação científica que seja ao mesmo tempo acurada e eficiente, capaz de transmitir conhecimento para camadas mais amplas da população, é fundamental para frear o flerte com a ignorância e o autoritarismo que parece cada vez mais ameaçador na sociedade contemporânea. No segundo artigo dessa série, publicamos o texto de Adeilton Brandão e Ana Carolina Vicente, ambos da Fiocruz, que versa sobre os obstáculos que dificultam a difusão de forma mais eficiente da produção de conhecimento gerada pela pesquisa brasileira.


O artigo científico — uma das produções centrais dos pesquisadores de todo o mundo — deixou de ser um tipo padronizado de carta, transmitindo resultados de pesquisa, para se tornar um “produto” que deve ser contabilizado e medido, como metas a serem cumpridas para que um pesquisador seja financiado e promovido.

É verdade que ainda há a transmissão de resultados de pesquisas em formato padrão, mas o conteúdo do artigo não é mais, prioritariamente, a essência a ser apreciada pelos leitores. Pelo contrário, o periódico onde foi publicado é o mais importante dessa equação atual.

Mas como tornar-se um periódico de “prestígio”? Ou, mais fundamentalmente, o que é “prestígio” para a ciência?

As respostas a estas questões estão abertas. Soluções foram propostas, mas nenhuma diz como se livrar dos poderosos incentivos que forçam ou estimulam os investigadores a publicarem seus artigos científicos em revistas de “prestígio”.

Um cenário que fomenta a destruição da credibilidade da ciência

Grandes editoras, novas editoras “caçadoras de dinheiro” e periódicos qualificados disputam espaço no atual cenário das publicações científicas. Isso gera um círculo vicioso para pesquisadores, instituições, periódicos e agências de fomento.

As revistas caça-níqueis (ou caçadoras de dinheiro, ou ainda conhecidas como predatórias) são revistas que, além de exigirem dos autores uma “taxa de publicação”, não cumprem com as boas práticas de publicação. Em vários casos já demostrados, essas revistas oferecem uma revisão pelos pares sem rigor, ou chegam mesmo a fraudar o processo, oferecendo “revisão muito rápida”, que na prática significa publicar sem avaliar o trabalho.

Além disso, elas apresentam como “editores” da revista nomes que nunca foram consultados e convidados a participar da equipe editorial. E soma-se ainda que não cuidam para que haja o “registro” permanente do artigo científico e, sem qualquer aviso, a página da revista pode desaparecer, assim como todo o seu conteúdo. Por fim, são aquelas que publicam facilmente, mediante pagamento, trabalhos científicos fraudulentos.

Nos chamados periódicos de “prestígio”, as taxas para publicações de artigos são incompatíveis com recursos limitados investidos na pesquisa de países como o Brasil. Mesmo assim, esses são os periódicos privilegiados pelos autores.

Já os periódicos qualificados são os que não cobram por publicação, e lutam para sobreviver diante de um modelo científico que valoriza métricas.

Memórias do Instituto Oswaldo Cruz

Foi esse cenário desanimador que nos motivou a escrever um editorial publicado recentemente no periódico Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Como atuais editores do periódico, refletimos, por um lado, sobre orgulho de pertencer a um diminuto e “altamente seletivo” grupo de revistas científicas internacionais que comemora mais de um século de atividade editorial. De outro, sobre como sobreviver diante desse cenário, que fomenta práticas de destruição da credibilidade da ciência.

A revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz completou, em maio deste ano, 115 anos dedicados a publicações científicas, e é considerada uma das revistas científicas mais relevantes nas áreas de Medicina Tropical e Parasitologia do mundo.

Seu lançamento ocorreu de acordo com o Decreto Federal 1802, publicado em 12 de dezembro de 1907, determinando a criação do “Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos”, hoje “Instituto Oswaldo Cruz”, um dos atuais 20 institutos de pesquisa da “Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)”.

O mesmo decreto determinou a criação de um periódico para divulgação dos trabalhos de pesquisa do Instituto, informando em seu parágrafo 9º: “Os trabalhos de pesquisa realizados no ‘Instituto de Manguinhos’ serão publicados como Memórias logo após a confirmação dos experimentos”. A primeira edição impressa da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz surgiu em abril de 1909, com a publicação de oito artigos exclusivamente do “Instituto de Manguinhos”.

Os artigos foram publicados em português e alemão ou francês. Esse foi o início de uma revista que demonstrou resiliência e adaptação às enormes transformações políticas, econômicas e sociais que o Brasil sofreu desde o final do século 19. Sobreviveu e se tornou uma revista centenária, que continua publicando trabalhos de pesquisa em doenças infecciosas humanas, seus agentes e vetores na América Latina.

Círculo vicioso de publicação

Mas manter a publicação não é tarefa fácil. Os “melhores” artigos não têm sido enviados para revistas como a Memórias como primeira opção, criando um círculo de publicação “vicioso”: sem relatórios de pesquisa relevantes ou artigos fundamentais para a ciência publicados nelas, essas revistas acabam não coletando citações - outra métrica importante de ciência deste século.

Dessa forma, seu “prestígio” é reduzido a cada círculo de avaliação, que tem duração de dois a cinco anos. Em outras palavras, se um periódico publicar apenas trabalhos de pesquisa não relevantes, será um periódico não relevante. Como superar esta barreira de autorreprodução se os investigadores relutam em enviar os seus “melhores” artigos para uma revista “sem prestígio”?

Há ainda uma questão, e que diz respeito aos próximos 100 anos para Memórias do IOC ou outros periódicos que desejam ter futuro: que mudanças devem promover para manter a sua atividade editorial e também ser percebida como uma revista científica “relevante”?

Por enquanto, o dia do juízo não parece tão próximo, já que a revista Memórias do centenário Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz conta como uma camada protetora, exibindo “credibilidade” e “tradição”.

Acreditamos que incentivos institucionais, governamentais e da própria comunidade científica são ainda essenciais para que publicações nacionais como a mais que centenária revista Memórias do IOC e outras de qualidade possam sobreviver diante desse cenário do século 21. Caso contrário, ficaremos para sempre subjugados dentro do atual modelo das grandes editoras e das editoras caçadoras de dinheiro.

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