Com um crescimento populacional global estimado em cerca de 2 bilhões de pessoas nas próximas quatro décadas, o combate à fome e à desnutrição se torna um desafio crescente. Não à toa, a criação de uma aliança global contra a fome e a pobreza foi o carro-chefe do Brasil na última Reunião de Cúpula do G20, realizada nos dias 18 e 19 de novembro, no Rio de Janeiro. E uma das ameaças mais graves à segurança alimentar de populações inteiras — mas que raramente aparece nos noticiários — vem do desmatamento.
As ameaças que o desmatamento representa para a saúde do planeta são amplamente documentadas e discutidas. Em meio às mudanças climáticas causadas por emissões de gases de efeito estufa, com destaque para o gás carbônico, a perda de florestas é corretamente associada à redução da capacidade de captura e absorção de carbono na atmosfera, agravando a crise climática.
No entanto, há outras consequências igualmente problemáticas do desmatamento, ligadas à perda de biodiversidade e a problemas sociais.
Perda da cobertura florestal e fome
Na Amazônia Legal, por exemplo, os peixes são a principal fonte de proteínas para uma população de 38 milhões de pessoas. Apenas no estado do Amazonas, 92,5% dos habitantes com 18 anos ou mais comem peixe pelo menos uma vez por semana.
Estudos comprovam que os padrões espaciais de diversidade de peixes amazônicos estão diretamente associados à cobertura florestal. Isso é alarmante, considerando que o bioma já perdeu 13% de suas florestas naturais desde 1985, segundo o Mapbiomas.
O que é Segurança Alimentar?
A noção de segurança alimentar propõe um debate sobre como as sociedades podem garantir uma alimentação adequada e saudável sem comprometer o meio ambiente. A maneira como produzimos e consumimos alimentos é uma das prioridades da Agenda 2030, que lista os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Publicado pelo Ministério da Saúde em 2014, o Guia Alimentar para a População Brasileira é um importante documento para a compreensão da segurança alimentar. Uma de suas regras de ouro é a de dar preferência por alimentos in natura ou minimamente processados no cotidiano das famílias.
Para isso, a disponibilidade e o acesso a alimentos regionais, como é o caso do peixe para a Amazônia, são fatores cruciais: é a garantia de comida saudável, sustentável, local e culturalmente significativa.
Contudo, as mudanças climáticas intensificam o desafio de assegurar alimentos de qualidade. O aumento previsto de 1,5ºC na temperatura média em relação ao período pré-industrial afetará a produtividade de alimentos, a extensão de áreas de cultivo, a ocorrência de pragas e, de maneira geral, a oferta de alimentos. Para os povos da Amazônia, esses efeitos negativos impactam particularmente a pesca.
Menos florestas, menos diversidade de peixes
As relações entre mudanças climáticas, desmatamento e segurança alimentar são complexas e variadas. No caso da pesca na Amazônia, essas interdependências são especialmente relevantes, dado que o bioma abriga cerca de 78% das florestas naturais do Brasil.
Um estudo publicado pelo Journal of Applied Ecology, de 2018, demonstrou que os padrões de diversidade de peixes estão fortemente associados à cobertura florestal. Em outras palavras, o desmatamento contribui para a homogeneização dos grupos de peixes. Esse estudo, realizado em 462 áreas de várzea no estado do Pará, abrangeu um gradiente de cobertura de solo, de regiões altamente florestadas a muito desmatadas.
As várzeas amazônicas abrigam a maior diversidade de peixes do mundo, com mais de 2 mil espécies identificadas. Grande parte dessa diversidade é atribuída à complexidade do sistema, que envolve variações sazonais de nível de água, temperatura, sedimentos e nutrientes, tipos de vegetação e conectividade entre rios e lagos. Esses fatores diversificados promovem uma ampla gama de adaptações entre os peixes, que desenvolvem diferentes padrões de migração, dietas, estratégias de reprodução, tempos de maturação e tamanhos.
Na prática, o estudo mostra que a perda de florestas favorece apenas algumas espécies, enquanto aquelas adaptadas à presença da vegetação começam a desaparecer. Isso afeta especialmente peixes herbívoros, detritívoros (que se alimentam de restos de vegetais e animais) e invertívoros (que se alimentam de invertebrados, como insetos).
A perda de diversidade não significa apenas que certos tipos de peixe podem se tornar menos disponíveis para a pesca. Ainda mais gravemente, o desaparecimento de algumas espécies provoca um desequilíbrio em toda a cadeia alimentar dos ecossistemas, levando a um ponto de inflexão que afeta também as comunidades humanas que dependem desses peixes e de outros para sua alimentação.
Caminhos para fora dessa crise
Entre os anos de 2023 e 2024, os povos amazônidas enfrentaram uma longa e severa seca. Em cada comunidade que vive da pesca, pesquisadores e jornalistas documentaram relatos de alta mortalidade de peixes em locais onde antes havia abundância. Esse quadro de ameaças interligadas – desmatamento, eventos hidrológicos extremos – representa um grave risco de redução da biodiversidade e das condições de subsistência na região.
Para mitigar esses impactos e assegurar a sustentabilidade nos próximos anos, a Amazônia exige um compromisso sólido de conservação. Aqui na Amazônia, à semelhança do restante do mundo, as áreas de várzeas são comumente desmatadas devido ao avanço da agricultura, expansão urbana e projetos de infraestrutura, como represas e estradas. É preciso barrar esta destruição.
No Brasil, no entanto, a legislação vigente não é o bastante para impor limites a esses avanços. O Código Florestal estabelece a proteção da vegetação nas margens dos rios em, no mínimo, 30 metros, mas essa medida é insuficiente para preservar ecossistemas tão complexos como os que existem na Amazônia.
Nesse contexto, o Brasil precisa desenvolver novos modelos de conservação específicos para ecossistemas aquáticos, com o argumento robusto, dentre muitos, de garantir a segurança alimentar das populações. Uma das propostas em discussão é o modelo de Reservas Fluviais Comunitárias, que alia conservação à geração de benefícios econômicos e sociais para as populações locais.
Experiências de manejo comunitário dos recursos pesqueiros no Brasil já mostraram resultados promissores, com a combinação da segurança alimentar, conservação da biodiversidade e redução de impactos diretos como da sobrepesca. Implementar e expandir esses modelos pode ser crucial para preservar tanto o meio ambiente quanto o sustento das comunidades amazônicas.