Milhem Cortaz já foi o tipo de ator que mergulha tão fundo no personagem que se envolvia naquela “realidade” por meses. A profissão, confessa, vinha antes do que acontecia fora dos sets. “Eu me levava muito a sério. Hoje, a minha vida é muito mais importante que o meu trabalho”, diz o Osmar de Volta por Cima, que nunca escolheu papel. “O que chegou era necessário e de algum ponto de vista era bom. Não vim de família rica nem nada, eu tenho que produzir. É trabalho, isso eu nunca perdi na minha vida. Sempre fiz o que eu faço para botar comida na minha casa”, afirma o ator de 51 anos.
Mix de vilão e malandro com uma pegada de humor, Osmar roubou um bilhete de loteria premiado da família para se livrar de dívidas, e já tem um lugar especial no coração do ator, que, muito simpático, conversou com Quem por vídeo, em um bate-pop franco e generoso. “Na televisão, ele é o melhor personagem que fiz e está me ensinando nesta idade a começar a rir um pouco mais do que faço. Eu estou aprendendo a contar histórias mais densas com um olhar um pouco mais de leveza”, explica Milhem.
Leveza é um palavra que marca a atual fase do ator, que fez filmes como Carandiru (2003), estourou para o grande público como o capitão Fábio de Tropa de Elite (2007), e é sempre lembrado pelo delegado Joubert da novela O Sétimo Guardião (2018) e o Wando da série Os Outros (2023). O caminho na arte, no entanto, vem de muito antes.
Paulista, Milhem foi ainda adolescente morar com uma tia na Itália, após problemas no Brasil. “Acho que a droga foi um lugar em que eu tentei organizar essa criatividade toda que eu tinha e não funcionou”, avalia. Entrar em um curso de teatro foi uma forma não só de fazer amigos em um novo país e aprender a língua, mas de ter ‘liberdade e disciplina”.
Até chegar ao sucesso no audiovisual, Milhem passou antes pelo reconhecimento no teatro e muitos “nãos”. “Eu sou um cara que já foi considerado underground, feio, fora do padrão, os dentes são enormes, não sei o quê”, lembra. “Eu nunca me via dessa forma, mas me convenciam, porque muitas vezes eu bati na porta da televisão e realmente falavam para mim ‘você não dá'", conta.
Ele diz que a pressão estética foi substituída pela demanda por seguidores, e que tenta, na medida do possível, se adaptar. “Não vou lutar contra”, diz Milhem que se aprofunda nas redes para divulgar sua padaria artesanal e para entender o mundo da única filha, Helena, de 16 anos, com a atriz e produtora Ziza Brisola ("a gente se gosta para dedéu e se completa"), com quem tem um casamento de mais de duas décadas. “Se eu não correr atrás de melhorar como pessoa, como é que eu vou acompanhar o raciocínio da minha filha e desse mundo que está vindo aí? Antes do mundo ser bom, eu tenho que ser bom para mim”, pontua.
A mudança não vem de hoje. Milhem vem se descontruindo do machismo geracional no qual criado e de outros preconceitos com os quais cresceu. “Para que todo mundo entenda: piada de preto, piada de português (...). Eu cresci contando essas piadas, eu cresci achando tudo isso engraçado. Eu não tive tempo nem de ter discernimento sobre isso, fazia parte da educação E aí vai de como você começa a olhar o mundo e quer entender ele. Não é fácil a mudança, por isso que a maioria não faz. Tem que querer muito”, assume.
O Osmar é um sucesso. Como você chegou até ele?
Sempre quis fazer uma novela da 7, mas via muito pouca oportunidade se eu não fosse atrás, e desencanei. Há um tempo, vi uma matéria da Cláudia [Souto, autora], que ela estava escrevendo uma novela da 7, que era sobre empresa de ônibus. Pensei 'eu tenho perfil; agora, como é que eu chego até ali?'. Aí fiz uma das coisas que não aconselho ninguém a fazer: mandei uma mensagem para Claudia, falando que estava disponível e adoraria fazer a novela. Ela disse que escreveu o Osmar pensando em mim, em como eu diria esse texto. Na televisão, ele é o melhor personagem que fiz até hoje.
Por quê?
Ele é um cara muito boa praça, de bom coração. A índole dele é inabalável. No fundo tem uma coisa conservadora ali, a educação machista, mas vejo esperança no olhar dele. Parece um cara encostado, desorganizado, mas é um cara que olha para frente, que quer vencer na vida, como a maioria dos brasileiros. Claro, quer se dar bem sem trabalhar. Mas ele não consegue dar certo, o típico cara que é um frustrado na vida. Ao mesmo tempo, e conheço muitas pessoas assim, é otimista, acorda com um brilho nos olhos, e apesar de tudo dar errado, aceita e vive de uma forma muito divertida, alegre e positiva.
"Eu faria qualquer coisa na minha vida pela minha filha. Se ela tivesse um problema e eu precisasse arrumar milhões, eu iria atrás disso de qualquer forma"
O personagem rouba o bilhete premiado da loteria da família, como vê o que ele fez?
Eu tentei me colocar nesse lugar para entender. Por exemplo, eu faria qualquer coisa na minha vida pela minha filha. Se ela tivesse um problema e eu precisasse arrumar milhões, eu iria atrás disso de qualquer forma. Se um parente meu tivesse [um bilhete premiado], tivesse morrido, e eu conseguisse sacar esse dinheiro, eu com certeza salvaria minha filha. Diria 'olha, rolou isso, tá aqui o que sobrou, mas era uma coisa de vida ou morte, podem me sacrificar, era o que tinha que fazer’. As falhas do Osmar são muito humanas, e dentro dessa grande falha dele, que é a grana que ele pegou da família, caramba, bicho, eu não faria diferente. Agora, ele é um personagem mágico para mim, como ator, de grande responsabilidade dentro de uma dramaturgia. Nunca me diverti tanto fazendo um personagem.
Por quê?
Ele está me ensinando aos 51 anos a me levar menos a sério, a começar a rir um pouco mais do que faço. Isso está trazendo uma leveza maior para a forma eu encaro o meu trabalho, como eu estudo as coisas e para minha vida também.
Antes você encarava a vida de uma forma mais pesada?
Eu me levava muito a sério. Eu achava mais importante do que a minha vida o meu trabalho, e hoje, a minha vida é muito mais importante que o meu trabalho. O Osmar veio para acentuar isso e me mostrar que eu não preciso me levar tão a sério no meu trabalho. Eu já tenho maturidade, estofo como ator, mecanismos, técnica, para parar de me preocupar demais com a construção de tudo, com estar na energia [do personagem] o tempo inteiro, mergulhar naquele universo. Eu consigo hoje ativar isso muito rápido.
Você diz entrar e sair do personagem?
Isso, entrar e sair muito rápido. Só que eu precisava experimentar um outro caminho. Hoje eu tenho 51 anos. Durante muito tempo da minha vida, eu não era casado, não tinha filha, não tinha absolutamente nada. Eu tinha um tempo para me doar como artista e me envolver nos meus personagens quase full time.
E agora?
Hoje em dia, apesar de eu estar aqui trabalhando, me empenhando e me dedicando 100%, eu não estou sozinho. Minha filha e minha companheira estão em São Paulo fazendo todo o reloginho funcionar para que eu possa estar aqui. Não estou sozinho, é a gente: sou eu, Ziza, Helena. Preciso de mais tempo para o lado de lá e para isso tenho que me dedicar menos aqui. Não significa não levar a sério o meu trabalho, é descobrir caminhos onde eu, com menos tempo, possa atingir a mesma qualidade.
Você era um workaholic que vivia para a profissão, e agora você é uma pessoa que vê a sua profissão como um trabalho?
É bem por aí. E também tem umas coisas que a gente vai aprendendo, tem caminhos que vão caducando. Eu acho que essa história de mergulhar muito a fundo no personagem foi um caminho que funcionou para mim durante muito tempo. Daqui por diante, tem que funcionar de outro jeito. Não cabe mais, dentro do caminho que eu estou construindo, aquela forma que eu pensava de como criar as coisas. Eu tenho que renovar isso também.
Essa ideia de que o trabalho é a vida é algo incutido na sua geração de atores?
Sim, lembrando que teatro, cinema e TV são duas coisas diferentes. O teatro tem uma liberdade, você passa dois, três meses ensaiando uma partitura para repetir de uma maneira fresca durante seis meses de temporada. No cinema, de um de um tempo para cá, tem os preparadores de elenco, e começou a ficar uma linha muito tênue - o que é o personagem, o que é você.
O que acontece neste caso?
Eles usam muito o seu sentimento, muito os seus problemas, e quando você vê virou o personagem. E eu fui levando isso tudo também para a televisão, que são 10 meses. Fiquei 12 anos fora do teatro, fazendo cinema, séries, TV. Só há dois anos volte ao teatro e isso ressignificou tudo.
"Eu me culpo muito de ter ficado estagnado. A pior burrada de um artista é ficar sem fazer teatro"
De que forma?
Eu falei ‘não, não preciso mais ir tão a fundo, não preciso carregar isso tudo a minha vida toda’. Eu tinha me perdido nesse caminho sem fazer teatro. Hoje as coisas são muito mais divertidas. Eu me culpo muito de ter ficado estagnado. A pior burrada de um artista é ficar sem fazer teatro. Tanto na TV quanto no streaming, você já chega tendo que acertar. O ator não tem que só ser bom, ele tem que chegar para ajudar a resolver os problemas. Qual é o primeiro problema? São as inseguranças dos diretores. No teatro você não tem que acertar nada, tem que experimentar, você tem três meses de fazer o como você quiser.
E no cinema?
No cinema, quando chamam seis atores para fazer o teste para um personagem, a insegurança não é nossa, mas de quem está dirigindo, porque se ele [o direitor] estivesse seguro, escolhia a pessoa. O diretor conhece o trabalho de todos, que são maravilhosos. Você vai a um teste para dizer para o cara 'fica tranquilo, amigo, pode ter certeza, eu estou aqui para te ajudar'. De nós seis, o que mais der confiança para ele é o que vai ficar no fim.
A audiência tradicional das novelas se dispersou, dividida entre a TV aberta, a cabo, streaming, redes sociais. Você sente a pressão para fazer a novela dar certo?
Não, nenhuma. Por isso que hoje em dia eu me divirto. Não me preocupo com isso. Não tenho Twitter, não vejo os comentários. Eu vou lá, faço meu trabalho. Quando é sucesso, é maravilhoso, porque todo mundo vai ficar feliz, alegre desde lá de cima até lá embaixo. Como eu sempre me levei muito a sério, eu realmente só estou preocupado com uma coisa de verdade, me divertir. Porque se eu me divertir, pelo jeito todo mundo vai se divertir, saca?
Hoje você se diverte, já aceitou papel porque precisava de dinheiro ou estar em evidência, ser lembrado?
Eu nunca tive o azar de receber convite para papéis tão ruins, e a maioria não é tão boa assim também. Mas eu nunca neguei nenhum tipo de papel por ter que colocar comida na minha mesa. Com certeza, se eu não trabalhar, não entra dinheiro na minha casa. Então eu, graças a Deus, nunca escolhi até hoje e também nunca precisei escolher porque o que chegou era necessário e de algum ponto de vista era bom. E eu tinha que fazer e eu fiz. Eu nunca selecionei nada não, eu fiz tudo porque eu sempre achava um lugar para me apaixonar, mas também porque eu tinha que fazer. Não vim de família rica nem nada, eu tenho que produzir. É trabalho também, meu irmão. Isso eu nunca perdi na minha vida. Desde que eu fui romântico até hoje, eu sempre fiz o que eu faço para botar comida na minha casa
"Eu nunca neguei nenhum tipo de papel por ter que colocar comida na minha mesa. Com certeza, se eu não trabalhar, não entra dinheiro na minha casa"
Essa mudança em relação à forma como você lida com sua profissão casou com a maturidade?
A maturidade traz uma elegância, nossa, que coisa deliciosa. Tudo muda. Eu me sinto no início da maturidade ainda, então não posso falar muito, eu sou uma criança na maturidade. É muito gostoso. Você tem mais paciência pelo seu olhar, mais paciência pelos seus gestos.
Você é mais generoso com você mesmo?
É isso, você resumiu. Qual é a mudança? Eu escolhi ser mais generoso comigo. Não dá para perder tempo com algumas bobagens. O mais louco é que, assim, eu continuo o mesmo de um ano atrás. A maturidade vem ainda dentro de uma juventude, sem você perceber. Se você não estiver muito atento, perde esse momento de sacar quando a maturidade chega e [reconhecer] a elegância acontece com você.
"Não tenho Twitter, não vejo os comentários. Eu vou lá, faço meu trabalho"
Você começou a estudar teatro adolescente, na Itália. O que te levou para os palcos?
Duas coisas: liberdade e disciplina. Eu fui fazer teatro na Itália para fazer amigos, que eu não tinha, e para não fazer mais aula de italiano sozinho. Passei na porta de um curso de teatro e falei 'vou fazer um monte de amigos e exercitar a fala'. Nada mais do que me libertar, poder ter amigos em uma terra onde eu não nasci, me libertar no diálogo, na comunicação. E o teatro entrou na minha vida para organizar toda aquela minha loucura de jovem.
Sei que você foi para Itália morar com uma tia porque enfrentava problemas com drogas aqui no Brasil. É a essa loucura que você se refere?
Acho que a droga foi um lugar em que eu tentei organizar essa criatividade toda que eu tinha e não funcionou. Tudo que eu experimentei um pouco na minha juventude vem de uma alta criatividade que eu tinha e não sabia onde pôr. Não culpo a educação dos meus pais, não culpo absolutamente nada. Não estou só falando de droga, estou falando de como aproveitei meus estudos ou não, de como eu aproveitei o esporte ou não, de todos os exemplos, de tudo que eu tinha. Se alguém é culpado, sou eu porque as escolhas foram minhas. A arte chegou na minha vida para organizar tudo isso, 'cara pega toda essa criatividade, joga aqui dentro e enxerga; agora você que organizou a criatividade, devolve tudo para você. Agora você pode enlouquecer’.
Onde você acha que estaria sem a arte hoje?
Será que eu estaria? Não sei. Não me vejo. Não consigo. Eu venho de uma família de comerciantes; o comércio me salvaria? Não, eu acho que eu não seria ninguém sem a arte. Eu não teria esse olhar para o mundo, não teria essa generosidade comigo. Eu não teria a família que eu constituí. A arte me salvou em um todo.
E como ela fez isso?
Porque consegue trazer poesia para o meu olhar, me faz uma pessoa muito evoluída, me ensinou, exigiu ler. Virou um exercício de me olhar, de querer mudar, de não querer concordar com o machismo, de dançar, de me soltar, de ser criativo, de chorar, de abraçar um homem, de dizer 'eu te amo'. Todos esses exercícios que trazem repertório e constroem a gente como ser humano, que tem ideias e que sabe viver em sociedade.
Como isso acontece?
Um artista que aproveita o caminho que escolheu sai uma pessoa melhor e vai viver muito mais feliz nesse mundo. Talvez coisas mais sutis, que não peguem as pessoas que não exercitam esse olhar, me incomodem mais aos outros. Mas as coisas que incomodam todo mundo, eu estou com um olhar já lá na frente. Juntando tudo isso com a maturidade, potencializa a forma como a gente enxerga o mundo depois dos 50, inclusive nos medos. A minha padaria vem aí com o medo.
Medo de um dia não ter o seu trabalho como ator?
De envelhecer mal. Não quero nem dizer de emprego, mas de não ter um objetivo, uma meta, não ter companheiros, gente que divida sonhos com você. De não ter fé no acordar diariamente com as dificuldades da velhice, de motivação, de estar em movimento. Sempre me preocupei muito com isso. Não só a minha profissão como todas as profissões são muito ingratas depois dos 50 anos. Falo de onde me cabe, mais sei que para um branco, homem [é mais fácil]. Sou um privilegiado, mas sinto as dificuldades assim mesmo, dentro do mundo em que eu existo. As coisas não foram fáceis até aqui. Eu venho de uma família classe média, meus pais correram grandes riscos na vida e não se arrependem de nenhum momento disso.
Por exemplo?
Minha mãe e meu pai foram muito bem-sucedidos e para serem bem-sucedidos, eles se arriscaram. Hoje têm uma vida muito mais simples. Eles em nenhum momento pensaram 'vou deixar alguma coisa para o meu filho, fazer herança'. Não, eles estavam construindo a vida deles e sendo felizes. Isso é um bom exemplo para mim. Não sei se eu quero deixar algo para a minha filha. Eu tenho que mostrar para Helena que a gente conquista as coisas. E se eu conseguir deixar, eu deixo. Costumo dizer que, apesar de eu vir de uma educação superconservadora de uma determinada época, meus pais eram pessoas muito relax.
Como você descontruiu essa educação conservadora e superou esse machismo geracional?
Tem que querer muito, né?
E você queria muito ou foi na marra?
Quem quer a burrice de não querer? Como é que eu posso viver num mundo e ser livre se não quiser? Por exemplo, para eu entrar aqui nesse aplicativo [no qual a entrevista foi feita], se eu não for um cara moderno e correr atrás, o aplicativo não vai ser uma solução, vai ser uma prisão. Se eu não correr atrás de melhorar como pessoa, como é que eu vou acompanhar o raciocínio da minha filha e desse mundo que está vindo aí? Antes do mundo ser bom, eu tenho que ser bom para mim.
Como foi sua criação?
Eu venho de uma educação que eu colecionava papel de carta, minha mãe e meu pai adoravam. Eu cresci no meio das meninas. Eu joguei basquete, eu joguei futebol. Eu cresci lendo. Tem coisas que abriram o meu olhar, tipo 'isso eu não curto, desse comentário eu não gosto’. O mundo vai te educando, dando exemplos e, se você tem um olhar apurado, vai sacando. Hoje em dia só não aprende quem é ignorante. O mundo é outro e tem coisas que não cabem mais, graças a Deus porque eu nem sei como existiam. Eu nem sei como fazia parte da nossa educação, como eu cresci escutando certas coisas, pensando certas coisas e aceitando algumas coisas, sabe?
Que coisas, por exemplo?
Para que todo mundo entenda: piada de preto, piada de português...
Você já fez esse tipo de piada?
Todo mundo já fez. Quem nunca? Eu cresci em um meio onde todos os comediantes eram reis dessas piadas. Todos, desde Juca Chaves até sei lá quem. Eu cresci contando essas piadas, eu cresci achando tudo isso engraçado. Eu não tive tempo nem de ter discernimento sobre isso, fazia parte da educação. E aí vai de como você começa a olhar o mundo e quer entender ele. Não é fácil a mudança, por isso que a maioria não faz.
É difícil olhar para você mesmo e falar 'eu estava errado, eu errei'?
Isso jovem, imagina velho. Fico vendo pessoas próximas a mim que têm mais idade e que não conseguem entender certas coisas. É muito difícil. Tem que querer, mas é querer muito, muito (ênfase). Mas está sendo um dos grandes prazeres da minha vida o aprender. Eu sempre gostei de aprender, sempre. Mesmo errando, eu gostava de aprender. Então eu não tenho problema nenhum em falar que eu não sei.
Ser pai de uma adolescente ajudou a acelerar esse processo, a vontade de deixar um mundo melhor para Helena?
Ainda bem que eu já vinha nesse processo [de mudança] a todo vapor, porque me ajudou a fortalecer algumas coisas sobre as quais eu tinha dúvidas no meu olhar e que eu não preciso nem fala [quais são]. Aprendi e continuo aprendendo, inclusive a educar uma pessoa de uma geração que já vem sabendo, né? É muito difícil.
Por quê?
Porque é muito sutil, e a gente tem a educação cristã ir na culpa, de 'ah a culpa é minha de isso não acontecer'. Não, não. Todo indivíduo tem a sua vida, constrói as suas coisas. E a gente está ali para somar, ajudar, compartilhar, não invadir. Ao mesmo tempo é minha filha, eu sei mais que ela. Tem tudo isso. É complicado. Mas é uma delícia de viver. Essa loucura toda de ser pai e educar... Eu não consigo enxergar mais como seria a minha vida sem tudo isso. É uma loucura, a gente não nasce com um filho, tem filho depois, e aí faz todo sentido na nossa vida. A Helena veio para fazer um sentido profundo na minha vida.
Sua filha deu um eixo para você?
Não é que me deu um eixo, Helena me deu um ponto de 'tem certas coisas que não dão mais'. Ela vem para comprovar todas essas mudanças que eu estou fazendo. A filha traz inseguranças, traz um mergulho muito profundo dentro de você, dentro do outro indivíduo que divide com você essa educação, que é a minha companheira. Mas a gente tem um mergulho, um no outro, muito grande.
"Para eu estar aqui tranquilo aqui trabalhando, elas estão lá em São Paulo segurando todas as cagadas, e quando eu ligo não contam para eu poder estar bem no Rio"
Como é sua vida com Ziza?
Estamos juntos há 24 anos. Junto, junto, junto mesmo (ênfase). A gente se gosta para dedéu e se completa nesse olhar. Para eu estar aqui tranquilo aqui trabalhando, elas estão lá em São Paulo segurando todas as cagadas, e quando eu ligo não contam para eu poder estar bem no Rio. Aquele dinheirinho que pinga é nosso. Tudo é nosso na nossa casa. Eu estou brilhando na novela, porque lá em casa está tudo muito legal. Quando o relógio funciona, o amor acontece, você tem acolhimento, estrutura e base, você vai, né? Eu acho que um casamento, um amor na sua vida está para te jogar para cima, para te dar base. Quando eu vejo isso acontecer, eu vejo que eu sou uma pessoa vitoriosa.
Como é manter um relacionamento de 24 anos, com todos os altos e baixos, ainda mais sendo os dois atores, em uma profissão tão instável?
Tem que querer. Eu sempre quis ter uma família. Eu sempre quis ter filha, viver junto. E eu tive uma sorte imensa de me apaixonar e amar uma pessoa que é a mesma coisa que eu. Porque altos e baixos, términos, tivemos milhares.
Vocês já se separaram e voltaram?
Não, separar não, mas eu queria que ela fosse para o inferno, ela queria que eu fosse para o Alasca. E a gente manteve [o casamento] ali porque quis muito e não foi um sofrimento. Não sei explicar a fórmula, mas sei dizer duas coisas. Uma é querer muito. Relação é divertido, amor é dolorido, porque relação, você vai lá e na hora que não está bom, tchau, termina e começa uma nova. Amor tem que querer, porque você vai passar na fase de não está amando para caramba, todas essas fases [de um casamento] você vai passar.
"Relação é divertido, amor é dolorido, porque relação, você vai lá e na hora que não está bom, tchau, termina e começa uma nova. Amor tem que querer"
E a outra coisa?
O tesão. Não tem como [não ter tesão] senão a gente seria amigo. Eu tenho um amor imenso por ela e tenho um amor imenso pelos meus amigos, mas eu não quero morar com os meus amigos e também não quero me relacionar com eles. Então [estar junto] é uma escolha. É um destino de construção. Eu acho essa uma das maiores responsabilidades que eu tenho na minha vida.
O seu casamento.
Sim. E é um exemplo de que é divertido. Por que eu preciso me levar tão a sério no trabalho? Porque eu levo [o casamento] a sério e divertido e tão descompromissado ao mesmo tempo? Talvez porque sejamos uma dupla, um olho para o outro, e na carreira é você só. Eu penso bastante nesses fluxos aí.
Muita gente associa um ator bem-sucedido a um ator que está na televisão, que é visto. Você fez por muito tempo só teatro...
A minha geração de teatro de São Paulo nunca dependeu de TV, porque não tinha televisão em São Paulo, o SBT veio depois. Mas o teatro, de alguma forma, supria, sustentava e fazia ir para frente. Ao mesmo tempo, sempre tinha essa aura de 'ser bem-sucedido é fazer televisão’. Sempre pairou essa história na nossa cabeça.
Isso te incomodava?
Já foi um incômodo quando eu era mais jovem. Hoje sei da capacidade de todos os meus amigos atores que não são famosos ou não tiveram uma oportunidade ainda. Quando eu faço uma novela penso que quero fazer o melhor trabalho do mundo para dar orgulho a todos que não estão fazendo esse papel no meu lugar, todos que fizeram o mesmo teste. Quero que falem ‘o Milhem está aí honrando o trabalho da gente, não está fazendo de qualquer jeito, sem dar valor para aquilo’. Como eu espero que um teste que um amigo meu pegue ele dê o seu melhor, brilhe e arrebente por todos nós. Porque se eu sou um cara que já foi considerado underground, feio, fora do padrão, os dentes são enormes, não sei o quê, se eu bati, bati, bati e cheguei, eu acho que todo mundo pode chegar.
Mas você se via dessa forma, ‘feio, fora dos padrões’ ou eram os outros que te colocavam neste lugar?
Eu nunca me via dessa forma, mas me convenciam, porque muitas vezes eu bati na porta da televisão e realmente falavam para mim 'pô, você é muito feio, muito feio, você não dá’. Muitas vezes, não foram poucas, não.
Você não ficava revoltado com o fato do seu talento vir depois do que achavam da sua aparência física?
Eu era tão bem-sucedido no teatro que quando me pegava na vaidade o fato de não ser aceito na televisão, automaticamente eu chegava no teatro e era tão bem aceito que isso se apagava. Eu tomava essas carcadas, era jovem e falava ‘vou continuar fazendo o meu’. Não tinha muito o que escolher. Sempre foi cruel, não era só a minha geração. A vida toda foi essa coisa da estética, da beleza. Hoje isso também mudou. A geração que está vindo já não tem mais essa importância da beleza. Aí agora, em vez da beleza, eles querem seguidores. A gente vai se adaptando.
Muitos atores reclamam sobre essa ‘exigência’ de ter muitos seguidores, de não bastar apenas ser talentoso e ter o perfil certo para um personagem. Como você vê essa necessidade de ter uma presença forte nas redes?
É uma novidade para mim, mas, se é assim, eu não vou lutar contra, eu vou tentar ter seguidor também, dentro do tamanho que eu consigo ter. Não é que eu aceite, mas vou tentar entender a modernidade da vida. Vou fazer o quê? O que eu posso dizer é: seguidor abre portas hoje? Abre. Mas se você não tiver um caminho sólido, estruturado, você vai ser reciclado. Agora se a pessoa tem muitos seguidores, se dedica, se esforça, e vai atrás então tem espaço para ela. Do contrário vai vir um ator, com seguidor ou não, mas que vai fazer o trabalho. O que eu estou fazendo é entender um pouco mais sobre redes sociais. Não só para mim, mas para minha padaria. Ela é uma grande desculpa para eu aprender coisas.
Como nasceu o Milhem Cortez padeiro?
A minha parte durante a pandemia era cozinhar, fazer café, almoço e o jantar de todos os dias, os lanches. Eu dominei isso, comecei a fazer bolos, fui para o pão. Quando fiz o meu primeiro pão, a Ziza disse ‘seu sonho não era ter uma birosca no interior de São Paulo?'. Ela falou 'cara, teu pão é muito bom, por que você não se dedica no pão, vamos abrir uma padoca’. E aí eu fui atrás.
"Eu nunca soube botar preço no meu trabalho, hoje tenho uma empresária porque não sei negociar meus cachês"
Como você saiu de fazer pão na pandemia para uma padaria profissional?
Peguei esse espaço inerte, que era a garagem da minha casa, e fui lapidando. Depois de um tempo encontrei meu mestre [de fazer pão], que me chamou para uma aula e me deu dicas. Quando percebi estava em um caminho e que tinha a tudo a ver com a minha profissão de ator, com alimentar, com dar [algo] para pessoas. É um negócio da mão, da paciência, do observar a temperatura, o ambiente. Eu converso com o universo enquanto estou fazendo pão. O mais legal é que comecei a doar os pães.
O que mudou?
Passei os primeiros dois anos fazendo pão todos os dias e doando todos os pães. Comecei a doar muito e uma hora falei, 'peraí, eu preciso entender o valor disso', o que foi uma guinada também na minha vida no geral. Eu nunca soube botar preço no meu trabalho, hoje tenho uma empresária porque não sei negociar meus cachês. Então pensei ‘nem que eu bote preço para entender o que eu estou doando’. Comecei a vender tímido para os amigos, ‘vou botar no Instagram, é para quem quiser pedir’. Comecei com o sarrafo lá em cima [do preço], vai custar caro no sentido que o meu trabalho custa tanto. E vendeu.
A padaria Já se paga? Dá lucro?
A padaria se paga, mas não me dá lucro nenhum. Mas paga todos os insumos, paga a luz, paga bem os funcionários e a tendência é que, se Deus quiser, pode ser uma utopia, mas que todo mundo seja sócio junto, quem estiver trabalhando na padaria. Pode ser uma loucura minha....
Mas se você não tentar a utopia no seu negócio, vai tentar no negócio de quem, né?
Aonde, né? Somos sócios hoje eu, Ziza e o Joseph, que é um menino de 27 anos que veio de João Pessoa para trabalhar comigo. A padaria ainda é pequena, mas não somos amadores, somos caseiros. Fornecemos para restaurantes, é uma comunhão de muitas pessoas, naquela garagem. O dia que eu me der bem, eu vou falar de todas essas pessoas e muito.
Você ainda distribui pão gratuitamente?
Sim, quem aparecer na padaria e não tiver dinheiro, vai levar o pão. Ninguém sai sem pão. Pode pedir. Tenho a ideia de montar um projeto social, ter uma ONG [para organizar a doação e outros projetos sociais]. A minha vontade é me unir lá no Retiro dos Artistas [no Rio] e abrir a primeira padaria comunitária lá, trabalhar com o a comunidade da região.
Quem é o Milhem Cortez cidadão?
O que tenta fazer as coisas o mais certo possível, mas que ainda erra muito no trânsito. Eu preciso melhorar muito meu humor, a forma como eu dirijo, como eu me coloco, eu ainda falho bastante. É o lugar onde eu mais trabalho hoje meu lado cidadão. Agora, na minha questão, eu sou o cara que mais quer conviver em coletivo. Eu, como cidadão, acredito em coletivo.