Um filme passou pela cabeça de Letticia Munniz, de 35 anos, quando ela recebeu a notícia de que tinha passado no teste para assistente de palco do programa Domingão com Huck. "Só ali comecei a ser respeitada pela profissão que lutei tanto para ter", conta.
Em entrevista exclusiva, a artista relembra os sacrifícios que a avó Venina fez para que ela estudasse nas melhores escolas, sua mudança do Espírito Santo para São Paulo e os perrengues que passou para se formar na faculdade de Rádio e TV. "Passei muita necessidade para pagar minha faculdade e cursos. Passei até fome porque saí do Espírito Santo para São Paulo para correr atrás do meu sonho. Por isso, doía muito em mim as pessoas não me reconhecerem por essa forma. Então, o Domingão foi uma grande oportunidade para que as pessoas vissem o trabalho que eu estava há dez anos lutando para mostrar", conta ela, que apesar dos trabalhos anteriores na TNT e MTV, ainda era mais conhecida por seu trabalho como modelo plus size e de influenciadora.
Desde criança ela sonhava com essa oportunidade como apresentadora, mas por muitos anos foi desestimulada por ter um corpo pouco visto nas telinhas. "Eu ouvia o tempo todo como o meu corpo estava feio e que desse jeito não dava para eu ser a artista que eu dizia que queria ser. Comecei a desenvolver bulimia, vício em laxante, compulsão alimentar… Foram 18 anos de muito sofrimento, dos 10 até os 28 anos", revela.
A maior visibilidade por estar em um programa aos domingos da TV Globo também lhe dá a oportunidade de alcançar pessoas que sofrem com a gordofobia ou mesmo as que têm ideias equivocadas sobre pessoas gordas. Ela espera ser para as mulheres que a acompanham na TV, nas capas de revistas e nos ensaios de moda, a mesma referência que a modelo estadunidense Ashley Graham foi para ela.
"A Ashley Graham apareceu como uma pessoa que me libertou. Foi a primeira vez que achei uma mulher, com o corpo igual ao meu, bonita. Até então, achava o meu corpo nojento e repulsivo. Descobri que podia também ser bonita, ter sucesso, ser o que quisesse ser e ser amada. Sempre falo que o que a Ashley fez por mim sem nem me conhecer foi tão poderoso. Ela mudou a minha vida simplesmente existindo, que naquele momento pensei que se eu pudesse fazer a mesma coisa por alguém, eu seria a pessoa mais feliz do mundo. Só a gente sabe o poder e o tamanho disso", explica.
"A Ashley Graham me libertou. Foi a primeira vez que achei uma mulher, com o corpo igual ao meu, bonita"
Seguida no Instagram por mais de um milhão de pessoas, Letticia luta por uma mudança na moda, na sociedade e também na mentalidade de mulheres, que assim como ela, já sentiram nojo e raiva por terem um corpo grande.
"Amo meu trabalho como influenciadora porque por meio dele posso ajudar muitas mulheres a mudarem a visão que elas têm delas mesmas, além de ajudar a mudar a sociedade e a moda. Luto muito por isso porque não é algo fácil", reforça ela, que também sonha em um dia poder exercer sua formação como atriz e ter a possibilidade de comandar novos programas de TV.
Você foi criada por sua avó em Vitória (ES). Como foi essa criação?
Minha avó foi muito maravilhosa. Ao mesmo tempo que ela tinha aquela coisa de mimar o neto, ela era muito mãe. Fui criada por ela para estudar e ir atrás dos meus sonhos de uma maneira pé no chão. Ela se desdobrava para poder pagar escolas boas para mim e para os meus irmãos Dani e João. Eu era bolsista e comecei a trabalhar muito nova. Fui menor aprendiz com 15 anos. Assim que fiz 18, mesmo estando já na faculdade, fui atrás de trabalho. Digo que a minha avó me ensinou que a única maneira de mudar de vida era por meio do estudo, já que assim tinha sido para ela. Minha avó veio de uma família muito humilde e grandiosa. Ela só conseguiu melhorar de vida com o estudo e o trabalho de professora. Minha avó trabalhou até morrer para pagar estudos para mim e para o meu irmão. Ela deu um rumo a nossa vida com seu exemplo de vida.
E você também tinha tempo de brincar?
Naquela época, graças a Deus, não tinha os eletrônicos de hoje. Então, a gente brincava muito. Já desde cedo, eu gostava de brincar de ser apresentadora. Toda a oportunidade que eu tinha, estava lá imaginando alguma entrevista. Nunca tive dúvidas do que eu queria ser. Além disso, tinha essa paixão pelo artístico. Pedia muito para fazer aulas de teatro, mas não tinha como lá no Espírito Santo.
De que forma a arte era inserida na sua infância?
Não era muito inserida porque não tinha muito acesso a isso no Espírito Santo. Descobri só após a morte da minha avó, o quanto ela era artística também. As melhores notas do boletim dela eram em arte e música. Tenho certeza que ela sonhava com esse caminho que escolhi, mas para ela não foi uma opção. Era outra vida e outra época. O pai dela era muito rígido e ela teve que trabalhar para botar as coisas dentro de casa. Tenho um tio que fugiu para o Rio de Janeiro com o sonho de ser artista. Meu avô foi atrás dele e o levou de volta para casa pelos cabelos. Ele ficou muito frustrado e morreu jovem. Eu me sinto vivendo o legado deles, fazendo o que eles não puderam fazer. Tenho certeza que estão muito orgulhosos.
Como era a sua relação com o corpo e a comida na infância?
Fui uma criança bem magra, tinha até o apelido de Olívia Palito. Brincava muito. Entrei para a ginástica olímpica aos sete anos e pratiquei esse esporte por muitos anos. Mas quando entrei na puberdade, meu corpo começou a tomar a forma que ele tem hoje, que é o de uma mulher grande. Então, a coxa, o peito, a bunda e os braços foram crescendo. Comecei a ter problemas aí. Meu corpo mudou e eu ouvia de todo mundo que eu estava gorda e tinha que emagrecer. Meus problemas vieram de fora para dentro.
"Desde muito nova tive que fazer dietas. Comecei a desenvolver bulimia, vício em laxante, compulsão alimentar…
O que te levou a ter os distúrbios alimentares?
Eu fazia exercícios e comia normal, mas me disseram que eu estava gorda e que não podia ser assim. Meus irmãos comiam da mesma forma que eu, mas eram magros. Busquei na internet como emagrecer. Desde muito nova tive que fazer dietas. Então, isso entrou na minha cabeça de um jeito muito ruim. Eu ouvia o tempo todo como o meu corpo estava feio e que desse jeito não dava para eu ser a artista que eu dizia que queria ser. Comecei a desenvolver bulimia, vício em laxante, compulsão alimentar… Foram 18 anos de muito sofrimento, dos 10 até os 28 anos. Ao mesmo tempo que eu vomitava as coisas que comia ou deixava e comer, vinha a compulsão. Quando eu comia, comia muito mais. Isso me fazia muito mal. Foi um ciclo de longos 18 anos até que eu não aguentei mais passar por isso. Hoje sei que gorda é apenas o contrário de magra e que assim como magra não é elogio, gorda não é um xingamento. Mas na época não entendia isso.
Como se deu conta de que estava doente?
Eu já sabia que o que eu fazia não era certo, tanto é que ninguém sabia. Eu vomitava depois de comer. Tomava várias coisas que via na internet para vomitar. Mas o que mais me doía eram aqueles momentos de compulsão. Eu comia uma quantidade absurda de comida e sem nem estar com fome. Só que para mim não tinha alternativa. Na época a gente nem frequentava psicólogos, nem tinha condições. Então, foi algo muito solitário. Quando fiquei mais velha, estava com 60 kg e ainda queria perder peso. Nem combinava com a minha estrutura aquele peso, ficava feio, mas eu me achava enorme. Foi bem complicado sair disso até porque quando consegui sair, ganhei peso. Foi um processo até entender como era o meu corpo e o que era saudável para mim.
"Até os 28 anos nunca tinha feito uma refeição sem sentir culpa. Só sentia medo, raiva e nojo"
Você contou com ajuda?
Não tive. Era algo doloroso e vergonhoso para mim. Consegui parar de forma natural porque meu corpo não aguentava mais. No dia em que decidi que não queria mais viver assim foi muito libertador. Mas até os 28 anos nunca tinha feito uma refeição sem sentir culpa, sem me odiar ou ficar pensando em tudo o que eu deveria fazer para perder aquilo. Até os 28 anos, não tive prazer em comer. Só sentia culpa, medo, raiva e nojo.
Essa forma distorcida da sua imagem afetou sua vida amorosa na adolescência e juventude?
Acredito que sim porque só tive a minha primeira namorada com 30 anos! Mas isso não era um foco também. Todas essas coisas que eu fazia para emagrecer me tomavam bastante tempo. Talvez nem fosse confortável conviver com outra pessoa. Obviamente que quanto mais magra eu estava, mais eu ficava com as pessoas.
Ser uma pessoa gorda não é fácil em uma sociedade que ainda não é tão plural quanto deveria. Quais dificuldades enfrentou ao engordar mesmo já se amando como era?
Senti muita dificuldade nas relações. Eu me acho linda, gostosa e maravilhosa, mas as pessoas não me veem bem. Quando posto foto de biquíni, meus seguidores me enaltecem, mas é um nicho. São pessoas que aprenderam a achar esse corpo bonito. A sociedade em geral não acha. Alguns até se espantam: “Como assim você não pega ninguém?”. Convivendo neste meio de mídia, fama e artistas, vejo que as pessoas são superpreconceituosas. Hoje, que tenho o meu corpo, não sou cantada como pensam, não recebo directs, não tem ninguém atrás de mim… Mas quando eu era magra e não me achava bonita, eu ficava muito mais com outras pessoas. Isso é uma super questão.
"É sempre muito complicado viver nesta sociedade cheia de preconceitos tanto por ser uma mulher gorda, quanto por ser bissexual"
E quando se entendeu bissexual?
Acho que sempre soube e foi muito natural. É algo que ficava dentro de nós como uma inquietação porque a gente entendia como errado e vergonhoso. Tinha mais vergonha pelos outros. Minha avó, que apesar de muito maravilhosa, era muito preconceituosa. Por uma coincidência só namorei uma mulher após a minha avó falecer. Só tive um relacionamento com outra mulher quando não teria essa pressão de apresentar a pessoa para ela. Não tenho nenhuma especificidade ao me relacionar. Eu me relaciono com a pessoa pelo jeito que ela é. Mas me assumir foi um pouco mais complexo… Eu já era uma pessoa pública. O primeiro Dia dos Namorados que eu postei uma foto com a Dani (Daniela Cyrino, ex-namorada), recebi muitos hates. Estou na TV e busco esse espaço. Talvez se futuramente eu tiver um relacionamento com outra mulher e isso for a público, eu vá receber hate de novo. É sempre muito complicado viver nesta sociedade cheia de preconceitos tanto por ser uma mulher gorda, quanto por ser bissexual.
Existe também um julgamento...
Sim, as pessoas te colocam no lugar de incapaz. Frequento muitos médicos, já que faço muitos esportes. Gosto de estar com a saúde em dia e ter uma melhor performance. Mas quando vou pela primeira vez ao médico, ele já pressupõe que seja sedentária. Quando conto tudo o que faço, ele fica numa de “Essa conta não fecha. Como você faz tudo isso e ainda tem esse corpo?”. E isso porque tenho nível de massa muscular bem alto. Isso se reflete em outros âmbitos. Como atriz, para pensarem em um papel, por exemplo. Uma mulher com o meu corpo faz o papel de protagonista sem que ela tenha uma história relacionada ao corpo dela? Uma mulher como eu tem uma relação amorosa sem que isso esteja ligada ao corpo dela? Uma mulher com o meu corpo é uma médica em uma novela? Tem essas barreiras todas.
Como lida com os ataques na web ou comentários indevidos?
Recebo muito depois que furei essa bolha e comecei a estar na TV e a sair em portais. Quando postam meus looks, muita gente critica. Se a marca posta no perfil dela, sempre vem hate, mas não pego para mim.
Você está hoje no Domingão. Como foi a sua entrada para o programa?
Fiz um teste com várias pessoas e fui escolhida por minhas qualidades. Sempre fui elogiada pela minha dicção, a maneira clara e didática de passar as informações. Não entrei ali pelo meu corpo. É muito difícil acessar esses espaços que por anos foram negados aos nossos corpos. Não foi sorte. Era algo que eu buscava há muito tempo e que me deram a oportunidade.
"O Luciano é um lider, ele não é chefe. O Domingão é um programa que tem muito a ver comigo porque tem o objetivo de mudar a vida das pessoas. O Luciano quer mudar o mundo e inspira toda a equipe"
Como é ter o Luciano Huck como chefe?
O Luciano é um líder, ele não é chefe. Sou muito feliz nessa minha primeira grande oportunidade, após ter feito trabalhos maravilhosos na TNT e MTV. O Domingão é um programa que tem muito a ver comigo porque tem o objetivo de mudar a vida das pessoas. O Luciano quer mudar o mundo e inspira toda a equipe.
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Você hoje é uma referência para muitas mulheres. O que te inspirou a virar uma influenciadora?
Sempre falo que o que a Ashley Graham fez por mim sem nem me conhecer foi tão poderoso. Ela mudou a minha vida simplesmente existindo, que naquele momento pensei que se eu pudesse fazer a mesma coisa por alguém, eu seria a pessoa mais feliz do mundo. Só a gente sabe o poder e o tamanho disso. Comecei a compartilhar um pouco da minha vida como um diário, nem era uma tentativa de ser uma influenciadora, até mesmo porque na época, há sete anos, nem existia essa profissão mesmo.
Foi difícil conquistar o seu espaço?
Tenho ainda um milhão de seguidores. É um caminho longo. Não vou atrás de polêmica e não me beneficio disso. Já recebi convites para reality show e recusei porque sempre quis ser vista como uma artista. Tenho o cuidado com o que é compartilhado. Apesar de não ser gigantesca, sou muito respeitada e bem-vista. Já fiz seis capas de revista e sou considerada muito relevante.
Inclusive na moda também. Quando você iniciou no mundo da moda?
Eu já era uma influenciadora conhecida quando fui convidada a entrar para a agência de moda Mega, que estava abrindo a divisão das curvs aqui no Brasil. Sou dessa primeira divisão de modelos plus sizes do Brasil. Foi muito bom porque tive a oportunidade de abrir portas que eu queria. Tinha a oportunidade de conversar com as marcas, mudar algumas coisas… Não foi algo para o meu ego, mas para mudar de alguma forma esse mercado tão gordofóbico.
"A moda nunca gostou de mim e não gosta até hoje. É muito preconceituosa ainda, só finge que não"
Como foi poder se expressar pela moda quando a moda era ainda feita apenas para corpos magros?
Sempre gostei muito de moda. Brinco que era um amor platônico (risos). A moda nunca gostou de mim e não gosta até hoje. O que a moda faz para incluir não é por desejo de inclusão, mas para não levar hate e dizer que é uma marca diversa. Apesar que a maioria das marcas é gordofóbica assumida. Se as marcas se interessassem mesmo em ter diversidade, fariam a mesma peça ou modelo em tamanhos maiores. Aumentariam a sua escala ao invés de criar uma sessão diferente que não representa mulheres jovens. A moda é muito preconceituosa ainda, só finge que não.
Na sua transição de corpo isso deve ter sido bem complicado…
Sim, porque quando o meu corpo foi mudando, mexeu muito comigo entrar em uma loja e não achar que o erro é da loja, mas que era meu. Quando o maior tamanho não te cabe, você se odeia, tem ódio e nojo de você. Isso é uma constante na vida de muitas mulheres e é uma responsabilidade das marcas. As modelagens estão cada dia menores. Se as pessoas coubessem, elas sairiam ali com outra sensação. Mas as marcas gostam de ser gordofóbicas.
Você criou o Big Girls Club, projeto que define como "um treinão especial só para grandes gostosas". Como surgiu essa ideia?
O objetivo é incentivar mulheres grandes a praticar atividades físicas não para emagrecer, mas pela saúde e pelos bens que a gente tem quando se exercita. Ao mesmo tempo, é uma maneira de ser uma comunidade para essas mulheres. São lives de três treinos por semana que ficam salvas para quem quiser fazer a qualquer horário, qualquer lugar e sem a necessidade de aparelhos.
Como você cuida da sua saúde?
Pratico muitas atividades físicas. Faço remo, ando de bicicleta em quilometragem mais longa, faço musculação, sapateado... Sempre amei esportes e pedi para fazer ainda criança ginástica e balé. Hoje, também faço pelo prazer. Além disso, faço exames com grande frequência e gosto de me alimentar bem.
Se você pudesse falar algo para aquela Letticia de 18 anos o que seria?
Para ela não se maltratar, que tudo o que ela conquistar vai ser justamente por ser quem ela é e que ela vai quebrar muitos padrões, barreiras e abrir espaço para muitas pessoas.