Capas

Lellê, de 27 anos, buscou na ancestralidade do povo negro, de reis e rainhas, a base para construir a jovem herdeira rica e educada na Europa, Silvinha, da novela das sete da TV Globo, Volta Por Cima. Criada pela mãe e pelas avós após perder o pai em um tiroteio em uma comunidade carente do Rio de Janeiro, aos sete anos, a artista teve uma realidade bem diferente da qual interpreta, mas nunca deixou que as dificuldades, o racismo, o machismo e os "nãos" a impedissem de sonhar.

"Sempre soube que eu seria artista e sonhei com isso. Minha avó sempre fala que o meu pai, antes de falecer, falava que eu, que não tinha nem um ano, ia ser uma grande estrela. Ele faleceu quando eu tinha sete anos e isso se concretizou anos depois. A vida tenta me parar o tempo inteiro, mas tenho esse lugar de insistir, de lutar e de não desistir. Sou muito rebelde e sempre fui. Minhas avós e mãe falam que eu era insuportável quando mais nova porque o que eu queria fazer, fazia", relembra.

"Elas (avós) me ensinaram a ser quem sou em qualquer situação e a não ter medo de nada. Não peço desculpa por ser quem eu sou. Claro que no mundo precisamos do outro e conviver com outras pessoas, mas se a gente não tomar cuidado, as pessoas querem dizer o que você deve ser, principalmente quando você é uma pessoa pública", diz.

Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone

Foi com essa determinação e confiança que ela conseguiu fazer da profecia do pai uma realidade. Sua vida artística começou após ser descoberta na Batalha do Passinho, evento de dança que acontece nas comunidades do Rio de Janeiro.

Em 2013, a então Lellezinha conquistou o posto de vocalista do grupo Dream Team do Passinho e, no ano seguinte, a oportunidade de estrear como atriz em Malhação Sonhos como Guta. Logo depois vieram os personagens em Totalmente Demais, Segredos de Justiça e Mister Brau, além da decisão de seguir a carreira solo na música, transitando pelo rap com Nega Braba (2018), pelo trap com Mexe a Raba (2019) e retomando ao funk com Quer de Volta (2019).

Após lançar seu mais recente EP, Tri Ângulos (2023), no qual cantou sobre as várias versões de si mesma, Lellê sentiu que era a hora de voltar para as telinhas com um personagem que pode ser uma referência para muitas meninas pretas se verem em outras realidades além das periféricas.

"Sempre tem quem queira rotular, mas acho que o mercado me respeita muito. Foi um lugar que conquistei. Sei quando é para aceitar, quando não é para ir... Tive algumas oportunidades de voltar a fazer novela, mas estava na fase da música e achei que não era o momento de ir", diz ela.

Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone

"Neste momento, a gente tem na grade da TV Globo três protagonistas pretas, cada uma em uma novela. Vivi para ver isso acontecer. É um sonho poder fazer parte disso, de certa forma. O meu público é de pessoas da comunidade, simples... Fico muito feliz porque vim de lá e é para lá que eu volto. É maravilhoso voltar e ver as pessoas com os olhinhos brilhando quando falam que me viram na TV e que eu estava muito bem. Quanto mais a gente conquista, mais existe essa responsabilidade com o outro e do papel da mulher preta, que é o de não desistir."

"Fui criada pelas minhas duas avós e minha mãe. Minha força é 100% feminina"

Como a arte foi introduzida na sua infância?
Foi antes mesmo de eu nascer. Temos músicos na família, meu avô é compositor, minha avó é do Salgueiro, meu tio dançava muito Michael Jackson e minha mãe é uma funkeira sinistra... Então, venho de uma família que curte música, dança e se divertir. Mas acho que desenvolvi a arte em mim bem nova com a dança, que já vem com a música. Eu era muito tímida, não falava muito e a dança era por onde eu conseguia me expressar.

Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone

Você foi criada por três mulheres. Como foram essas criações?
Fui criada pelas minhas duas avós e minha mãe. Inclusive o EP Tri Ângulos foi sobre cada uma dessas personagens que me inspirou. Cada uma das faixas homenageia uma dessas mulheres. Acabei desenvolvendo três personalidades porque eu tinha três casas e cada uma tinha um jeito de me criar. Eu me considero uma menina-mulher muito forte por conta delas. Toda a influência que tive de valores e de personalidade vem delas... Minha força é 100% feminina.

Como foi a oportunidade de fazer parte do Dream Team do Passinho?
O Dream Team foi uma escola para mim e me ajudou a ser a artista que sou hoje. Foi ali que aprendi tudo, como falar, como me portar, como pensar... Aprendi que não se trata só de feeling artístico, mas de estratégia. Foi também muito importante na minha transição para a carreira solo, quando tive que me portar de forma diferente e como mulher.

E veio Malhação ainda na adolescência, seu primeiro papel... Como foi entrar para aquele universo que por tantos anos foi representado por uma maioria de atores brancos apenas?
A gente tinha no elenco Jeniffer Nascimento, Mussunzinho... Era em menor parte, mas ali já ocorria algo interessante, eu fiz uma personagem que tinha dinheiro e uma situação financeira confortável. É muito interessante. Agora em Volta Por Cima, a Silvia é herdeira, mas ela sabe que precisa usar isso a favor de outras pessoas... Ela sabe que é uma mulher preta. Às vezes o dinheiro apaga um pouco esse lugar. É muito legal fazer uma mulher herdeira, mas que tem consciência de que existem outros núcleos.

Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone

Você estava ali naquela fase de quase saída da adolescência fazendo uma das novelas mais queridas do público jovem, emendando com Totalmente Demais e ainda era embaixadora de uma grande marca de produtos de cabelos... Como esse cenário de conquistas te impactou?
Sempre digo que quanto mais cedo, melhor. Tinha 16 anos quando as coisas começaram a acontecer. Eu ainda estudava e parecia que estava sempre à frente do meu tempo. Hoje os 27 anos bateu e estou meio que me encaixando no meu tempo de pensar. Antes a minha cabeça estava muito à frente e o meu ser estava muito atrás. Agora está meio que se unificando...

E veio a decisão de deixar o Lellezinha para trás...
Foi a transição daquela menina, que ainda existe em mim. Eu adquiri muitas coisas, amadureci muito em vários aspectos da minha vida, principalmente por ser o cérebro da minha carreira. É Lellê para esse lugar de empoderamento e aceitação minha e do público. As pessoas não querem largar a Lellezinha que dança, mas todo mundo cresce, inclusive eu.

Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone

Foi um período que você também teve redescobertas musicais. O rap e o trap por muitos anos tinham como protagonistas homens. Como foi conquistar o seu espaço como mulher e trazer letras que falavam do empoderamento feminino como Nega Braba?
As minhas músicas falam de quem sou. É o lugar onde eu me expresso verdadeiramente. Quando vou falar do que penso e acredito, sempre vai ser por meio da música. Nega Braba é quem sou, é a minha essência. Ali você sente a essência das três mulheres que e criaram. Sou uma mulher preta e tudo o que eu fizer vai ser preto, não tem muito mistério. As minhas músicas refletem isso.

Enfrentou o machismo ao entrar neste universo?
Se sofri, nem percebi.

É como você canta "infinitos os problemas que vêm e vão. Não vou ser parada por ninguém, não, pra preta de favela insistência é dom"...
A vida tenta me parar o tempo inteiro. Tenho esse lugar de insistir, de lutar e de não desistir diante da adversidade, do machismo, do sexismo e das questões sociais... E entendo que a arte vem justamente para ser um lugar onde essas coisas não entram. É um lugar onde a gente se cura e se alegra.

"Sou uma mulher preta e tudo o que eu fizer vai ser preto"

Em 2022, meio que no fim do ciclo pandêmico, você raspou a cabeça. O que passou ali dentro de você naquele momento e que mulher ressurgiu dali?
A mulher que está aqui hoje.

E quem é essa mulher?
Essa mulher que agora está muito feliz com as suas escolhas. Quando a gente é muito novo, não tem muito o que escolher, tem que agarrar ao máximo o que puder e ir... Foi o que fiz, abracei todas as oportunidades que apareceram. De certa forma, sofri um pouco, não vivi a minha adolescência, perdi aniversário de família e momentos importantes. Mas hoje vejo que todo esse sacrifício me trouxe um retorno muito grande, que é essa mulher feliz, decidida e que faz literalmente o que quer. Foi um lugar que conquistei.

Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone

Você disse que de certa forma não viveu a adolescência como outra pessoa qualquer. Teve depois aquele momento de tentar viver um pouco na fase adulta o que não pode naquela época?
Não existe isso. Cada momento é um momento. Se você não realiza na hora, não realiza mais... Hoje boto da agenda "vou para a praia", "vou almoçar com a minha mãe", e ninguém vai me impedir disso. A vida me ensinou a priorizar momentos que hoje não perco mais. Aprendi a equilibrar um pouco mais as coisas. No fim das contas é o que fica.

Abrir mão de momentos pessoais teve impacto no seu emocional?
Teve um momento em que me sentia muito sozinha e parecia que estava faltando alguma coisa... Comecei a entender que precisava passar mais tempo com as pessoas que amo e que me amam. Não existe Lellê sem Alessandra e Alessandra sem Lellê.

Falando de Volta por Cima, você retornou para as telinhas em um papel que por anos era quase impossível de ser visto sendo interpretado por uma atriz negra, uma jovem rica, que foi criada na Europa... Como foi construir essa personagem?
Quando essa proposta apareceu falei, "nossa, vai ser um grande desafio". Peguei as minhas referências de ancestralidade, já que séculos atrás nós éramos reis e rainhas. Acessei esse lugar da gente se concentrar no que está na gente. Então, tudo que trago para Silvinha é o que está dentro de mim.

"Não peço desculpa por ser quem eu sou. Não me trocaria por outra pessoa e adoro ser assim"

Mas ela teve uma realidade diferente da sua...
Totalmente diferente! Ela foi criada na Europa, é herdeira, fala francês. Eu não falo nem inglês. Preciso aprender. Eu me identifico com o senso coletivo da Silvinha e com o fato dela ser uma mulher visionária. O que eu mais me distancio dela é na questão da herança (risos), mas estamos caminhando para chegar lá!

Pode não ter tido herança financeira, mas suas avós te deixaram uma herança na sua formação...
Sim! Elas me ensinaram a ser quem eu sou em qualquer situação e a não ter medo de nada. Não peço desculpa por ser quem eu sou. Claro que no mundo precisamos do outro e conviver com outras pessoas, mas se a gente não tomar cuidado, as pessoas querem dizer o que você deve ser, principalmente quando você é uma pessoa pública. Essa autenticidade me protege muito disso. Não peço desculpa, sou o que sou, não me trocaria por outra pessoa e adoro ser assim. Mas isso foi conquistado. Quando criança eu me comparava muito, não tinha referências próximas. Quando você começa a ter referências próximas, você se aproxima mais de quem você é.

Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone

O fim do ano está chegando. Você é de colocar metas que quer conquistar, por exemplo, até os 30?
Eu era de colocar metas, mas parei porque deixa a gente um pouco louca. É bom ter metas como "quero casar e ter filhos", mas o que a vida traz também é muito bacana, aquilo que surge quando você está distraída. Isso é estar em harmonia e presente. Nas situações em que eu me permiti estar presente fui muito surpreendida pela vida e por Deus. Aprendi a descansar no tempo. Às vezes, a gente é muito ansioso. A pandemia trouxe mais ansiedade de querer viver tudo logo, só que a gente que teve oportunidade de estar viva hoje, tem que ver que vale a pena confiar.

E quando teremos mais canções?
Tenho bastante coisa pronta e já gravada, músicas pelas quais sou completamente apaixonada. Mas, neste momento, estou totalmente dedicada a Silvinha justamente por ser uma personagem grande e de grande importância.

Créditos:
Texto: Marina Bonini (@marina_bonini)
Fotógrafo: Henrique Tarricone (@tarricone)
Produtor Executivo: Leo Martins (@leooprodutor)
Assistente de fotografia: Davi Tarricone (@hk.1000grau)
Design de capa: Eduardo Garcia (@eduardogarda)
Styling: Léo Augusto (@leoaugusttoo) e assistência de Ingrid Vieira (@_ingridvieiraaa)
Produção de moda: Laura Di Pace (@laurahdipace)
Beleza: Higgor Ribeiro (@igor.beauty)
Cabelo: Shady Jordan (@shady_Jordan) e assistência de Kelendria William (@kelly_thestylist)
Retoque: Telha Criativa (@telharetouch)
Agradecimentos: Beat.Ag (@beat.ag) | MOS Agência (@mosagencia)

Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone
Lellê — Foto: Henrique Tarricone
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