Levar o vinho para todos os públicos, especialmente para as periferias de São Paulo, é a missão da Ellas Vinhos, um e-commerce criado em 2019 por Rayssa e Cristina Cachoeira, duas mulheres negras e periféricas. Mãe e filha comandam o negócio com o objetivo de desmistificar o consumo da bebida e mostrar que ela pode ser democrática e acessível.
O interesse pelo mundo dos vinhos surgiu de forma inusitada. Na casa das empreendedoras, a cerveja sempre foi a bebida predominante, enquanto o vinho só aparecia em ocasiões específicas, na versão suave. No entanto, em 2017, Rayssa decidiu fazer um curso de sommelier no Senac de São José dos Campos, cidade em que morava à época, como forma de explorar algo novo.
“Tudo que eu aprendia, passava para a minha mãe e, juntas, começamos a nos interessar mais pelo universo dos vinhos, trocando a cerveja pela nova paixão”, relembra. Dois anos depois, com mãe e filha residindo na capital, decidiram transformar esse interesse em empreendimento, lançando o Ellas Vinhos, num primeiro momento atuando apenas como e-commerce da bebida.
Vinhos acessíveis e linguagem simples
Durante uma viagem à Europa, as empreendedoras perceberam como o vinho é tratado de forma acessível por lá, sendo facilmente encontrado em padarias, bares e restaurantes – cenário bem distante do que acontecia aqui, no Brasil. “O acesso é fácil, pois eles entendem que o vinho é alimento”, comenta Rayssa.
Essa experiência serviu de inspiração para criarem o e-commerce que atendesse principalmente a periferia, oferecendo vinhos a preços acessíveis e uma comunicação simplificada. “O vinho no Brasil ainda é muito elitizado. Queremos mostrar que ele pode ser apreciado por todos, sem barreiras”, explica a filha empreendedora.
O tíquete médio varia de R$ 50 e R$ 80. O produto mais em conta e o mais vendido é o Cooler de Pêssego, uma bebida à base de vinho branco e suco de pêssego que custa em torno de R$ 20. Neste mês, o mais caro disponível é um vinho tinto que custa R$ 90.
Além das vendas, a empresa também trabalha com kits personalizados para eventos, consultorias para casamentos e participações em feiras e eventos corporativos. “Tudo começou com as vendas diretas, mas fomos expandindo para outras frentes, como workshops e serviços de sommelière, sempre focados na proximidade com os clientes”, comenta a filha.
“Hoje, 80% do nosso público são pessoas que moram nas periferias de São Paulo e regiões, que buscam conhecer ou têm curiosidade em começar a tomar vinho”, calcula.
Desafios e preconceitos
Apesar do crescimento que vem sendo registrado, o início do negócio foi marcado por desafios. Com um investimento inicial inferior a R$ 1.000, Rayssa e Cristina tiveram alguns “padrinhos” que já estavam no mercado de vinhos e as ajudaram no início.
Entretanto, a filha revela que há barreiras maiores, principalmente sociais. “Apesar de ser apaixonada pelo mundo do vinho, trata-se de um local elitizado e, consequentemente, ali são obedecidas regras ‘padrões’ da sociedade. Temos muitas dificuldades em acessar grandes marcas ou estarmos presente em eventos. Às vezes, tenho quase que implorar por dois ingressos”, comenta ela.
“O fato de sermos duas mulheres pretas e periféricas nos fez ficar alguns passos atrás, mas sempre buscamos estarmos visíveis e presentes para tentar chamar atenção ao nosso negócio”, continua Rayssa.
Para ela, porém, é necessário ter persistência e dedicação. “Não faço dessas barreiras um vitimismo; faço delas minha força para quebrar muros e alcançar lugares onde poucas pessoas alcançaram. E poder ser referência às pessoas que estão começando”, declara.
Já no lado dos consumidores, elas ainda encontram certa resistência do público diante do produto que decidiram investir. “As pessoas periféricas, muitas vezes, acham que o vinho não é para elas, que é algo muito chique e caro”, conta.
O trabalho de desmistificação é recorrente, com a realização de workshops, a valores baixos, em que ensinam o básico sobre a bebida. Ainda adotam uma linguagem mais acessível para explicar sobre os produtos e oferecem uma seleção enxuta para facilitar a escolha dos clientes — geralmente 3 a 5 vinhos mais doces e populares e a mesma quantidade de secos, entre brancos, rosés e tintos.
“Nosso maior diferencial é sermos democráticas com nossos clientes, sem forçá-los a nada, para que se sintam à vontade para começar por onde quiserem, mesmo que seja pelo vinho docinho mais barato”, pontua.
Crescimento e metas futuras
Instagram, Facebook e Tik Tok são as redes sociais que as empreendedoras investem para divulgar o negócio. As vendas acontecem integralmente pelo WhatsApp, mas elas já se preparam para adotar uma plataforma de marketplace.
Rayssa, 33 anos, é formada em Direito e hoje concilia a advocacia com o lado empreendedora. Sua mãe Cristina, 63 anos, formada em Administração Hospitalar, foi servidora pública e encerrou a carreira como diretora, dentro da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, em meados de 2017.
A Ella Vinhos atende toda São Paulo e algumas cidades do interior. Na pandemia, quando o negócio ganhou real impulso, chegaram a enviar garrafas para Pernambuco, Brasília, Rio de Janeiro e Bahia.
A empresa fechou 2023 com faturamento aproximado a R$ 24 mil. A expectativa é registrar o valor de R$ 40 mil neste ano. Para o próximo, a intenção é estar mais presente em eventos, prestar mais consultorias e atender o litoral, alcançando um crescimento de 40%.
“Como um plano a longo prazo, temos interesse em projetos sociais, para profissionalizar outras mulheres pretas periféricas, permitindo que elas também possam ter o próprio negócio de vinho. Temos interesse em, um dia, ter um local físico para isso”, relata Rayssa.
Sustentabilidade no dia a dia
O Ellas Vinhos já aposta em ação em prol do meio ambiente, com o programa de sustentabilidade, em que os clientes que devolverem as garrafas vazias têm R$ 1 de desconto (por unidade) na próxima compra.
As empreendedoras levam os recipientes que retornam para uma uma cooperativa de reciclagem de uma comunidade próxima, na zona oeste da capital. “Essa foi a forma que encontramos de unir lucro, responsabilidade social e fidelização dos nossos clientes”, destaca Cristina.