É curioso (e, ao mesmo tempo, inquietante e triste) perceber como, em um país majoritariamente negro como o Brasil, ainda encontramos tão poucas representações negras nos campos do design e da arquitetura.
Talvez, por ter crescido vivenciando as narrativas da negritude, essa ausência sempre tenha se mostrado para mim. É algo que simplesmente não passa despercebido. Mas, nos últimos tempos, algo tem mudado.
Surgem novos nomes, talentos que carregam a capacidade não só de desafiar o elitismo e o racismo que permeiam o setor, mas também de trazer estéticas inovadoras, profundamente conectadas à cultura negra. São propostas que ressignificam e oxigenam um cenário que há tempos se mostra cansado, preso aos mesmos rostos, nomes e traços.
Não podemos limitar a reflexão sobre raça e representatividade a um único mês ou ocasião. É preciso explorar essas referências e celebrá-las continuamente.
É nesse espírito que inauguro minha participação nesta coluna em Casa e Jardim, trazendo cinco nomes do design brasileiro que têm transformado a maneira como pensamos raça, arquitetura e estética no país. Vamos conhecer suas histórias e perspectivas!
Gabriella Marinho
Nascida em 1993 em São Gonçalo, Rio de Janeiro, Gabriella Marinho encontra na terra a sua maior inspiração. Artista plástica e jornalista especializada em Literaturas Africanas, foi criada no Jardim Catarina, por mulheres negras que transmitiram vivências e saberes artesanais.
Gabriella encontrou no barro não apenas um material, mas uma filosofia – um ponto de partida para explorar subjetividades, corporeidades e a complexidade do espaço. A argila, em suas mãos, transforma-se em memória, corpo e território, manifestando-se entre o figurativo e o abstrato, entre o material e o simbólico.
“Percebo que parte do meu processo de autoconhecimento e autorreconhecimento tem como fundamento o jeito que me coloco no mundo, como piso no chão e traço os caminhos” diz Gabriella sobre seu trabalho e obra.
Para ela, o design assume um papel fundamental ao reconhecer e resgatar a potência das tecnologias ancestrais, valorizando a cultura negra como uma forma de propor novos modos de viver e habitar o mundo.
A artista reconhece que, ao comparar com as últimas três décadas, os profissionais negros têm conquistado mais espaço na arquitetura e no design. No entanto, ela destaca que essa presença ainda está longe de refletir a verdadeira capacidade de ocupação e permanência que esses profissionais merecem. "Há avanços, mas ainda estamos longe do que deveríamos alcançar", reflete.
Philipe Fonseca
Philipe Fonseca carrega em suas criações a força de um legado. Inspirado pela filosofia africana do “eu sou porque nós somos”, ele dá continuidade à história, transformando ancestralidade e herança em peças de design que falam mais do que apenas estética. Em suas mãos, o afrocentrismo se torna palpável, materializando histórias e referências da cultura negra que há muito mereciam maior reconhecimento.
Seus mobiliários, como a poltrona e pufe Gorila, banco Fío, pufe Besouro e cadeira Black, ultrapassam o funcional e convidam o público a enxergar além do objeto, mergulhando em contextos e narrativas que celebram movimentos da história negra.
Philipe descreve seu trabalho como uma fusão singular entre o design contemporâneo e as ricas referências da cultura afro, brasileira e global. Ele acredita que a presença de profissionais negros na arquitetura e no design é fruto de uma luta geracional, e ele próprio é resultado desse esforço coletivo.
"Houve avanços, mas ainda há um longo caminho a percorrer para trazer mais diversidade e representatividade", reflete. Ele enxerga essa trajetória como um compromisso contínuo, especialmente no contexto de mercados que, historicamente, exigem altos investimentos e barreiras de entrada significativas.
Michele Wharton
Michele Wharton é uma designer que carrega em cada criação suas raízes negras, latinas e brasileiras, expressando um profundo respeito por sua herança cultural. À frente da marca Michele Wharton Design, ela apresenta uma coleção única de roupas, acessórios e peças para casa, todas feitas de forma artesanal, limitada e impregnadas de significado. Seu trabalho destaca a ascendência panamenha que tanto a inspira, especialmente as tradicionais Molas de tecido, uma arte ancestral criada pelas mulheres indígenas da região Guna Dule.
Para Michele, as vivências e a ancestralidade são o fio condutor de suas criações. Elas refletem as referências familiares que sempre estiveram presentes – os ornamentos, as stampas e os bordados que ela cresceu admirando nos lares de sua família e em suas viagens ao Panamá. Cada peça que cria é um diálogo com sua história, um encontro entre tradição e contemporaneidade, onde a riqueza cultural de sua ascendência ganha novas formas e significados.
Michele acredita que os profissionais negros têm conquistado mais espaço na arquitetura e no design, e enxerga isso como um reflexo de esforços coletivos ao longo das gerações. "A representatividade de profissionais que vieram antes, como a minha geração, ajudou a abrir portas e colocar talentos em evidência. Além disso, a crescente autovalorização de profissionais negros, que agora acreditam mais em seus potenciais e desbravam o mercado, tem sido essencial para criar novas oportunidades", afirma.
Lucas Lima
Lucas Lima, nascido em São Paulo em 1996, é um designer de produtos que trilha uma trajetória marcada por inovação e sensibilidade artística. Desde os primeiros passos como bolsista no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, onde ingressou em 2016, Lucas já mostrava um olhar apurado e um talento promissor.
Sua ascensão continuou com participações marcantes na Design Week de Milão. Em 2018, retornou ao Salone Satellite, e, em 2019, fez história ao exibir suas criações por três anos consecutivos, representando o Brasil na exposição B de Brasil, em Brera.
Para Lucas, o design é um campo de experimentação infinita, onde a função se encontra com a estética e a técnica se transforma em arte. Cada criação é uma extensão de sua visão, conectando histórias, pessoas e espaços de maneira única.
Ele descreve seu trabalho como um diálogo íntimo com os materiais, uma busca por explorar suas essências, limites e possibilidades. Em suas mãos, cada peça transcende a funcionalidade para se tornar uma experiência sensorial, evocando emoções e contando histórias. Lucas acredita que, nos últimos anos, os profissionais negros têm conquistado mais espaço na arquitetura e no design, refletindo avanços importantes na discussão sobre representatividade e inclusão.
Contudo, ressalta que o caminho ainda é longo e o setor, de maneira geral, permanece pouco inclusivo. Para ele, a luta por um mercado mais justo começa muito antes da chegada à universidade, enfrentando barreiras como a falta de acesso à educação, a escassez de representatividade e as dificuldades de inserção.
Rogério Guilherme
Rogério Guilherme é ceramista há 9 anos, um criador que transforma o cotidiano brasileiro em arte, resgatando memórias e tradições através do barro, essa matéria ancestral, que carrega histórias em suas texturas e formas. Seu trabalho é uma ponte entre o passado e o presente, ressignificando objetos que fazem parte da vida cotidiana, trazendo-lhes uma leitura contemporânea sem perder a essência de suas raízes.
Na série Porongo (Cabaças), Rogério explora silhuetas que evocam o passado, transportando-as para o universo atual com simplicidade e leveza. Cada peça une a familiaridade das formas tradicionais à durabilidade e sofisticação que a cerâmica oferece, criando objetos que dialogam com o tempo, o espaço e as vivências de quem os usa. Para Rogério, o barro não é apenas um material, mas uma linguagem para contar histórias e reimaginar o cotidiano brasileiro.
Rogério reconhece que o espaço para profissionais negros no mercado ainda é muito restrito. "O segmento continua dominado por pessoas brancas, e para uma pessoa negra se inserir, ou mesmo tentar caminhar com suas 'próprias pernas', é muito mais difícil do que se imagina", reflete. Apesar das barreiras, ele mantém a esperança de que mais profissionais negros possam se destacar por suas capacidades e talentos, rompendo bolhas e ocupando os espaços que desejarem.
Para Rogério, o caminho é árduo, mas ele acredita no poder da representatividade e na força das novas gerações em transformar esse cenário.
A ausência de profissionais negros em posições de destaque no design e na arquitetura reflete problemas que vão muito além das escolhas individuais, são questões estruturais, históricas e sociais que precisam ser enfrentadas com ações concretas e duradouras.
Como equilibrar o peso da ancestralidade e da inovação? Como garantir que talentos periféricos tenham acesso às oportunidades em um setor que ainda exige tanto investimento e recursos? E, principalmente, como transformar representatividade em permanência e poder de decisão?
São perguntas que não têm respostas simples, mas que precisam ser feitas. De minha parte, sigo acreditando e, por aqui, usando de meus espaços para ressignificar o meio e usando o poder transformador do design e da arquitetura para romper bolhas, ressignificar narrativas e abrir portas.