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O urso, a essa altura, já se foi a muitas horas, e eu espero, espero a bruma se dissipar. A estepe está vermelha,  as mãos estão vermelhas, o rosto intumescido e dilacerado já não é o mesmo. Como nos tempos do mito, é a indistinção que reina, sou essa forma incerta de traços desaparecidos sob as brechas abertas no rosto, coberta de humores e de sangue: é um nascimento pois claramente não é uma morte” – Nastassja Martin, Escute as Feras

Assim começa o livro Escute as Feras, de Nastassja Martin, com um acontecimento. Por isso começaremos com a pergunta: O que é um acontecimento? Parece uma coisa simples de dizer: “Ora, é como um fato, algo parecido com uma ocorrência”. Pois bem, se dissermos então: o Urso se encontrou com Nastassja às 15h, mordeu seu rosto e arrancou a parte esquerda de sua mandíbula, além de outros ferimentos profundos, ela perdeu ao todo 1 litro de sangue. Isto é um acontecimento? Não, porque dizer isso e nada é a mesma coisa.

Um fato é sempre algo razoavelmente simples: um urso, uma mulher, dois mamíferos, o deserto de gelo. Mas o que estamos falando aqui não é de dois corpos em movimento retilíneo uniforme que se encontram, o que falamos aqui é da fronteira de dois mundos que ao se encontrarem se transformam como que num processo de desneutralização química, como se água e sal se transformassem em uma base e um ácido. É como se no encontro houvesse uma força invisível que impulsionasse o mundo e a vida rumo ao inesperado, ao desconhecido.

Por isso a questão pode ser melhor colocada da seguinte maneira: quais as implicações deste acontecimento? E aqui não bastam fatos, tabelas, descrições neutras, diagnósticos médicos. Se o acontecimento é um encontro entre dois mundos, o ponto preciso onde eles se encontram, então ao se encontrarem há como que uma reação em cadeia nos dois mundos ao mesmo tempo.

Todo Acontecimento gera devires, caso contrário é apenas como uma página de jornal, a gente lê, deixa lado e no dia seguinte usa para o cachorro fazer suas necessidades. Um fato: arqueóloga é atacada por um urso na Rússia. Acontecimento: o urso se torna alguma outra coisa depois do encontro, em maior ou menor grau, e o humano também se torna outra coisa depois do encontro. Cada um à sua maneira, há uma ligação, uma mistura, uma transformação, uma metamorfose.

O encontro puxa coisas de nós que nós ainda não sabíamos que existiam, e também puxa coisas que realmente não existiam antes do encontro. O devir é o traslado, a passagem para um lugar novo. E desse encontro cria-se a possibilidade de uma outra vida, é dos encontros que nascem mundos. É das relações que nascem devires.

Agora, Nastassja Martin já não é ela mesma, de nada adianta pegar sua identidade nas mãos, de nada serve sua certidão de nascimento, seu número de RG. Não, agora ela se tornou, na cultura dos povos da região, uma Miêdka: “Aquela que vive Entre Dois Mundos”. O Urso está dentro dela, e ela está no urso (ao menos sua mandíbula). Há uma troca, todo Eu é um nó, um entrelaçamento. E através dos acontecimentos novos Eus começam a nascer. 

Todo devir é um ponto de ligação entre dois mundos, que coloca seres em co-presença. Não para que um imite o outro, não para que um se torne o outro, mas para ir em direções novas, híbridas, nunca antes trilhadas. O Devir não é a transformação da potência em Ato, como uma semente que vira macieira (isto seria aristotélico demais). Um Devir é a atualização da potência criativa do ser. Não há direção pré-definida, não há roteiro, não há linha de chegada. É como uma sacudidela para o fato que viver é criar.

Só sinto medo de tudo aquilo que não voltou a se fechar em mim, de tudo aquilo que potencialmente se insinuou em mim. Há outros seres à espreita na minha memória, então talvez também haja alguns debaixo da minha pele, nos meus ossos. Essa ideia me aterroriza, porque não quero ser um território invadido. Quero fechar minhas fronteiras, expulsar os intrusos, resistir à invasão, mas talvez eu já esteja sitiada. É sempre a mesma coisa. Diante de pensamentos assim, eu afundo: eu sei que, para fechar minhas fronteiras, seria preciso antes poder reconstruí-las” – Nastassja Martin, Escute as Feras

Nastassja chora porque sabe que as coisas nunca mais serão as mesmas. Não há volta, o encontro destruiu a casa subjetiva antiga antes que a casa nova estivesse pronta. O Devir é um clinâmen, é o átomo que não seguiu seu curso mecânico habitual, que saiu pra dar uma volta, que depois do encontro nunca mais foi o mesmo. É o filho pródigo que não retorna.

capa da edição francesa

O Devir é um novo ondular do real, uma nova harmonia, é o encontro de duas correntes. Nastassja não sabe para onde está indo. O corpo dela assumiu uma forma aberta, invadido pelas multiplicidades de dentes, sangue, e pelos; depois de pinos, parafusos e chapas; e enfim de antibióticos, condolências e terapia. De tudo! É como quem desmonta um relógio e por ser difícil demais montá-lo da mesma maneira, faz outra coisa com as peças. Mas há um limite, se todo acontecimento é uma força que distende os corpos, então há uma elasticidade envolvida e necessária, ou tudo se rompe. Um pouco de contorno, ou eu me afogo. Um crânio se quebra uma pele se estica, uma subjetividade se transforma. Há um ponto máximo na coabitação de elementos diversos e divergentes. Até onde podemos ir? Difícil dizer. 

O Urso podia tê-la matado, mas não matou, há sempre um limite, uma fronteira, algo que não deve ser cruzado, e que permite o devir acontecer. As feridas cicatrizaram, o sangue voltou a correr nas veias e artérias, o maxilar foi reconstituído com uma chapa metálica, mas até onde aquela vida foi carregada? Pois é, neste novo mundo é como se o anterior naufragasse, tudo que fazemos neste agora é inadequado para o mundo anterior e o contrário também é verdadeiro. Por isso o fracasso de usar a linguagem antiga para tentar explicar aquilo que é novo. Podemos tentar, mas dificilmente conseguiremos, estamos em um novo país em nós, e precisamos aprender portanto uma nova língua.

Quero poder desfrutar da insularidade, reconstruí-la em meu corpo ao mesmo tempo que admito a incomensurabilidade dos seres que povoam a ilha interior. Penso que não se trata de despovoar nossa alma para desfrutar do pouco de insularidade que ela ainda encerra; e sim de fazer do nosso ser esse lugar, esse ecossistema onde aqueles que escolhemos – ou que nos acolheram – se tornem comensuráveis, para além dos abismos que os separam” –  Nastassja Martin, Escute as Feras

No encontro, Nastassja se torna outra coisa que não ela mesma, é difícil de assimilar de imediato. Não tem como elaborar tudo de uma vez. Como pode ela não ser mais a mesma, e não saber ainda quem é? É difícil explicar os devires, é difícil falar deles e ao mesmo tempo deixar que o sentido continue aberto.

Em suma, é muito difícil dizer “não sei tudo sobre esse encontro”, “eu não sei o que está acontecendo”, “eu não sei o que fazer, nem o que vai acontecer”. Ficamos com medo, perdemos a paciência e por isso rotulamos o mais rápido possível, procurando definir e delimitar tudo outra vez. Mas desta forma o acontecimento corre o sério risco de perder a sua abertura, perder as pontas soltas que permitiriam novos encontros, ele adquire uma forma determinada e perde sua potência. O novo malogra quando queremos simplesmente voltar para o mesmo lugar de onde partimos.

Nastassja sabe que precisa de um novo nome, um novo lugar, uma nova vida. Sua única conformação possível é ser a deformação de sua vida anterior, esta nova dobra em sua subjetividade. Ela se tornou um monstro para sua vida passada, ela é uma Miêdka, metade mulher, metade urso, está no limite do que é ser humano!

O urso e eu falamos de liminaridade. E mesmo que seja assustador ninguém mudará nada disso” – Nastassja Martin, Escute as Feras

Eis o devir: chegar no limite de algo, a ponto de, ao ultrapassar o limite, ainda poder continuar sem ser mais o mesmo e sem poder voltar para o lugar anterior. Mas cuidado: o devir não é a lagarta que vira borboleta, porque em seu íntimo ela já se sentia um pouco isso, e só se deixou levar. O Devir é o lagarto das ilhas Galápagos, que ao cruzar o limite que o separa de uma outra ilha, já não pode mais voltar e não sabe o que se tornará.

A lição é simples, encontrar exatamente este ponto onde não se é mais o mesmo, e não se é o outro. Encontrar esta liminaridade onde os dois deixam de existir sem morrer nem matar. Tornar-se um acontecimento, ou melhor, deixar-se tomar pela intensidade e profundidade de todos os acontecimentos, é isso que temos tanta dificuldade de fazer e é isso que Nastassja Martin soube fazer tão bem, esta Miêdka, nem mulher e nem urso.

Texto da série:

Ética dos Devires

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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ADA
ADA
6 meses atrás

Excelente artigo sobre o Devir Urso
Grande sincronicidade que procurando livros de Deleuze sobre Leibniz achei esta web e o post sobre o livro que estou lindo está semana Escute as feras … impresionante tudo!!