Os vira-latas
Por Daniel Carvalho de Souza , presidente do Conselho da Ação da Cidadania e filho de Betinho
A primeira lembrança que tenho da minha infância é provavelmente a mesma de todas as crianças que viveram na clandestinidade: casas provisórias que não deixavam memórias porque não eram lares. Também não era seguro ter amigos, cujos pais poderiam denunciar os meus. Criamos um sistema de proteção para situações de perigo, no qual nossos nomes e filiações mudariam para desvincular a paternidade. Segundo eles, em momentos quando não foi possível combinar antes, foram obrigados a me negar como filho.
Ironicamente, para mim a clandestinidade significava liberdade. Sem poder ir à escola, passava o dia soltando pipa, jogando bola e descendo ladeiras com carrinho de rolimã, uma infância de luxo comparada às das crianças hoje. E se eu não podia levar amigos para casa, levava os cachorros que achava na rua. Não existe melhor companhia para uma criança clandestina do que um vira lata, e ainda tenho as fotos para comprovar.
A primeira vítima da ditadura na minha família foi o casamento dos meus pais. Paixões não respeitam a realidade dos fatos, por mais difíceis que sejam. Na partilha, eu fiquei com a minha mãe e meu pai com a Maria, companheira até a morte dele, em 1997. Não lembro quando identifiquei essa separação entre tantas outras.
O aumento das perseguições, torturas e mortes nos forçava a sair do Brasil. O nome da minha mãe – Irles - é difícil de lembrar, mas pior ainda para esquecer, e já estava na lista de pessoas procuradas pela ditadura. Não podíamos contar com o apoio da Ação Popular ou da família, e o único país ainda democrático na América Latina era o Chile, de Salvador Allende. Com os aeroportos monitorados fomos obrigados a fazer uma viagem de ônibus clandestina, que durou 29 dias, de São Paulo a Santiago, passando pelo Uruguai e a Argentina.
Do Chile as memórias são mais concretas porque as casas eram, de fato, lares. Como se fosse hoje, o zoológico de Santiago me marcou profundamente quando vi de perto elefantes e leões, que só existiam para mim nos filmes de Tarzan. Alfabetizei-me em espanhol no Colégio Latino Americano de Integracion, fazendo amigos pela primeira vez, e numa ladeira perto de casa aprendi a andar de bicicleta da forma mais estúpida possível. A vida começava a normalizar, embora meus 7 anos não me cegassem para a turbulência política que o Chile vivia. O meu colégio ficava numa avenida por onde passavam, diariamente, passeatas, a favor e contra o Allende. O meu boletim do Integracion foi assinado pelo diretor no dia 17 de julho de 1973. Menos de dois meses depois veio o golpe.
Todos sabiam que era uma questão de tempo até a única democracia socialista da América Latina cair, mas quando aviões de caça bombardearam o palácio presidencial do país, ficou clara a violência que vinha com o Pinochet. Prisões, torturas, mortes no Estádio Nacional e fuzilamentos às margens do rio Mapocho para a correnteza levar os corpos. Soubemos depois que até aquele zoológico foi usado para alimentar os felinos com militantes mortos. Animais dando de comer aos animais.
A única opção para sair do Chile era através das embaixadas, e corremos para a da Suécia, uma casa de dois andares onde centenas de pessoas se revezavam dormindo no chão, mesas e sofás dos cômodos. Não entendia nada, mas achava aquilo uma grande farra. No dia 23 de outubro de 1973 completei 8 anos com direito a bolo e parabéns em português e espanhol. Ganhei um desenho, que guardo até hoje, mas o presente era estarmos vivos.
Ficamos 4 meses dentro daquela embaixada, que recebia pessoas feridas pela tortura, ou por bala, como um jovem que não esperou a contagem regressiva dos carabineiros na margem do Mapocho e pulou no rio escapando da morte, mas levando dois tiros.
No final do ano, enfim chegou o salvo-conduto para a Suécia e um ônibus para o aeroporto, mas teríamos que passar pelos carabineiros que cercavam a casa. Qualquer embaixada é a representação oficial de um governo dentro do território de outra nação, e invadi-la seria um incidente político e diplomático grave, mas a calçada é pública e poucos metros nos separavam do exílio e da segurança.
Foi neste momento que o embaixador Sueco, Harald Edelstam, saiu com todos os seus funcionários e formou um corredor entre a embaixada e a porta do ônibus. Por mais que os carabineiros tentassem, (e como tentaram) haviam duas paredes diplomáticas impedindo a nossa prisão. Conseguimos entrar no ônibus e no avião com o Edelstam, e a minha próxima lembrança é a neve em Ystad, no sul da Suécia.
Eu tinha oito anos, morava no terceiro país e aprendia um novo idioma que, ao contrário do espanhol, em nada parecia com o português. Não preciso falar do inverno ou o choque cultural que sentimos, mas tive muita sorte de passar pela clandestinidade e o exílio numa idade em que a nossa capacidade de adaptação está no máximo. Falar sueco, começar mais uma escola e me integrar àquela nova vida foi uma grande aventura.
Já os adultos que (realmente) tentaram aprender aquele idioma, levaram meses para falar o básico, e lutaram para fazer parte de uma sociedade na qual o bem estar social do estado é tão profundo que não se trata nem de um direito do cidadão, mas uma obrigação inexorável do governo.
A educação, (do primário à faculdade) a saúde, (do berço ao túmulo) e a previdência social gratuitas e de qualidade nos permitiram uma vida normal, mesmo minha mãe trabalhando num matadouro. Tínhamos carro, férias, eu e meu vira lata chamado Pancho.
A Suécia foi fundamental para todos os exilados, e muitos decidiram continuar lá em vez de voltar aos seus países, mas quem foi embora saiu com um passaporte sueco. Eu, minha mãe e meu irmão renovamos os nossos desde 1975, e minhas filhas Luisa e Laila, hoje com 18 e 9 anos, também ganharam esse direito.
Na década de 70 a solidariedade política daquele país não recebeu apenas exilados e refugiados dos países latinos, mas também americanos que estavam fugindo dos EUA para não servir na guerra do Vietnam. Entre eles estava o Peter Wertheim, um pacifista brasileiro que conheceu a minha mãe e virou meu primeiro padrasto. Foi dele a ideia de sairmos daquele clima frio e miserável da Suécia para morar... no clima frio e miserável da Inglaterra!
Por estranho que pareça, um grande trauma do exílio foi me despedir do Pancho, e não de tantos amigos exilados ou do colégio. Me agarrei no pescoço daquele vira lata e chorei como nunca tinha chorado em todas as separações anteriores. Ali, para mim, foi a gota d’água.
Chegamos na Inglaterra em 1976. Terra dos Beatles, do Queen, dos hooligans e skinheads, cuja diversão era atacar imigrantes nas ruas. O partido de extrema direita National Front estava crescendo e a Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, era a líder da oposição do partido conservador para depois se tornar a primeira ministra mais longeva da Inglaterra.
Em resumo, aquela Inglaterra não era o lugar mais acolhedor para um garoto de pele mais escura que os ingleses, brasileiro, refugiado, e ainda por cima filho de comunistas... No meu novo colégio, o St. Benedict’s, pude testemunhar como a violência tão bem representada no The Wall, do Pink Floyd, era real. E se gentileza gera gentileza, professores batendo em crianças com varas (prática aprovada por 70% dos pais naquela época) geram alunos que nos finais de semana iam destruir a escola, e durante a semana acionavam os alarmes de incêndio. Quando sobrava tempo, xingavam e tentavam bater naquele garoto estrangeiro que não deveria estar ali...
É minha opinião que nas escolas inglesas nasceu o que muitas décadas depois seria denominado bullying.
Mas lá aprendi o quarto idioma e a História de todos os reis e rainhas da Inglaterra, que não são poucos. Tive o desprazer de jogar rugby e cricket, respectivamente os esportes mais violentos e chatos do mundo, mas também experimentei um programa educacional que te prepara para a independência. O horário integral tinha carpintaria, culinária, corte/costura, metalurgia e uma educação física com estrutura olímpica. E sim, os uniformes eram idênticos aos do Harry Potter, com paletó, camisa e calça social. E ai de você se o nó da gravata estivesse frouxo ou sapato mal engraxado.
Nesses 3 anos na Inglaterra fiz apenas um amigo, o Peter Doney, cujo contato eu perdi quando fui embora. Há poucos anos o reencontrei graças às redes sociais, e ele hoje é um terraplanista convicto, o que dificulta as conversas, mas não quero perder o único amigo que fiz no exílio. Em compensação tivemos muitos cachorros, do enorme São Bernardo ao Briard, um pastor francês usado na segunda guerra mundial para farejar os soldados ainda com vida nos campos de batalha. Trouxemos um casal para o Brasil que durante anos nos deram filhotes.
Uma das vantagens de ter pais separados no exílio é poder conhecer um país novo. Meu pai e a Maria saíram do Chile para o Panamá antes de conseguirem entrar de forma quase clandestina no Canadá. Em 1976 passei as férias lá, onde conheci dois filhos de exilados que até hoje são grandes amigos, a Nádia Bambirra e o Kiko Afonso. Mas o que nunca vou esquecer foi ter assistido lá a estreia mundial do filme Guerra nas Estrelas.
Aquele inverno longo e inclemente do Canadá era uma tortura para o corpo magro e frágil do meu pai, consequência da tuberculose na infância e a vida toda como hemofílico. Mal sabia ele que ainda viria a AIDS, mas isso é uma outra história. Ele se mudou para o México, onde passou mais 6 meses antes de voltar ao Brasil.
O ano era 1979. Cheguei no meu país como em todos os outros, sentindo-me um estrangeiro. Aprendi meu próprio idioma do zero e o meu portunhol era tão carregado que meu apelido, no primeiro colégio brasileiro, era Mexicano. Se isso não é ironia, não sei o que seria.
Eu estava com 14 anos dos quais 7 de clandestinidade e 7 de exílio. Ao todo foram 4 idiomas, 5 países e 8 escolas, e me dei o trabalho de contar quantos cachorros: 32, incluindo a Mel, que não é vira lata, mas que hoje alegra a casa.
Foi uma infância clandestina, exilada e incomum, mas faria tudo de novo.