Estamos vivendo cada vez mais, e essa longevidade impacta diretamente a incidência de casos de câncer na população. A maior ocorrência da doença leva à urgência de se desmistificá-la e torná-la um assunto do dia a dia de todos nós, defende a oncologista Anelisa Kruschewsky Coutinho, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), em entrevista ao GLOBO. Especialista em tumores gastrointestinais, a médica sublinha que é preciso também estimular a participação ativa dos pacientes no tratamento, de modo a engajá-los nas decisões e aumentar, assim, suas chances de um desfecho positivo.
A importância da participação ativa do paciente com câncer vem ganhando espaço no debate público sobre a atenção oncológica no Brasil. Do diagnóstico ao fim do tratamento, por que esse envolvimento é tão relevante?
O engajamento do paciente durante toda a sua jornada é muito importante mesmo, e considerado, hoje, um elemento essencial do cuidado oncológico. Pode parecer óbvio e esperado que a pessoa tenha papel ativo no cenário da sua própria saúde e nas decisões que impactam a vida dela, mas nem sempre foi assim. Os tabus sobre o câncer em tempos mais remotos afastavam o paciente do centro. Ele ficava à parte, e outras pessoas decidiam sobre o andamento do tratamento. Era uma forma de “protegê-lo”. Agora, a informação está amplamente disponível, a ciência evoluiu, as chances de cura aumentaram e o câncer é uma das doenças mais comuns na humanidade.
O paciente bem informado tem mais chance de cura?
Quando o paciente tem um papel ativo na sua jornada, é suprido de informação sobre seu diagnóstico e tem a compreensão das etapas do tratamento proposto e eventuais efeitos colaterais, é maior a possibilidade de expressão das suas necessidades e dificuldades. Ele tem clareza para tirar as suas dúvidas, ajustar as suas expectativas e participar do processo decisório e da implementação apropriada do tratamento. Cria-se um ambiente de confiança e respeito ao indivíduo, que aumenta a possibilidade de aderência a todas as etapas diagnósticas e terapêuticas e redução do estresse.
Este vínculo médico-paciente é fundamental para aumentar a adesão ao tratamento?
Sim. A partir dessa relação de confiança, que se estende a todos os profissionais de saúde envolvidos, o engajamento surge naturalmente. O alicerce disso é passar as informações dos passos a serem enfrentados de forma clara. A escuta atenta e a identificação do perfil de cada um, com as suas necessidades particulares, são o caminho da humanização do cuidado. Isso vai aproximando ainda mais equipe e paciente. É preciso manter o canal de comunicação sempre aberto, atualizá-lo do andamento do tratamento, envolver familiares e amigos de sua escolha… E sempre agir com consentimento.
A franqueza do médico é fundamental, mesmo quando o prognóstico não é bom?
Depende. Cada indivíduo tem um jeito de encarar as notícias sobre a sua doença, e tem os seus limites pessoais. O médico precisa ter a sensibilidade para perceber até onde deve ir com as informações, e respeitar os desejos de escuta do paciente. Dar más notícias não é fácil nem simples. Todos nós, oncologistas e profissionais envolvidos no cuidado do paciente com câncer, torcemos muito por cada resultado de sucesso, mas precisamos estar prontos para dar o suporte necessário quando isso não acontece.
No caso dos tumores gastrointestinais, casos de pessoas famosas, como o da cantora Preta Gil, fizeram com que a procura pela colonoscopia aumentasse no Brasil. A recomendação ainda está confusa: todos os brasileiros precisam fazer o exame aos 45 anos, ou só aos 50?
A colonoscopia é considerada o padrão ouro para diagnóstico precoce de câncer do intestino e de lesões pré-malignas. Até alguns anos atrás, a recomendação para triagem de indivíduos assintomáticos era aos 50 anos. Nas últimas décadas, tem se notado aumento da ocorrência em pessoas jovens, abaixo dos 50. A causa precisa para justificar esse fenômeno ainda não está totalmente esclarecida, mas certamente há influência de fatores ambientais, dietéticos e, provavelmente, a influência de maior disseminação da informação e utilização dos métodos de triagem mais largamente. Então, sim, hoje se recomenda que, em pacientes assintomáticos, seja já a partir dos 45 anos.
Um em cada quatro brasileiros adultos é obeso, e 40% da população é sedentária. É preciso informar às pessoas que esses são fatores de risco para alguns tipos de câncer?
Obesidade e sobrepeso ocupam o quarto lugar em fatores de risco para morte, após hipertensão arterial, riscos relacionados à dieta e tabagismo. Além de serem importantes fatores de risco para doenças cardiovasculares e diabetes, também são para neoplasia. Até 8% dos cânceres são atribuídos à obesidade. Câncer da mama, fígado, pâncreas, colorretal, endométrio e ovário são alguns dos tumores com apontada associação com obesidade e sobrepeso. No Brasil, em torno de 26% de todos os casos de câncer e cerca de 33% das mortes pela doença poderiam ser evitadas se eliminados os fatores de risco modificáveis, ou seja, aqueles relacionados ao estilo de vida. O reforço na informação é bem-vindo.
Em mais 20 anos na área oncológica, percebe que as pessoas hoje são mais bem informadas sobre as medidas de prevenção?
Certamente. A informação hoje é muito mais disseminada. As recomendações mais importantes são os hábitos alimentares saudáveis, evitar alimentos ultraprocessados, reduzir ingesta de carne vermelha e bebidas alcoólicas, não fumar, praticar o controle de peso e atividade física regular e reduzir exposição solar. São as medidas mais populares atualmente. E tem a vacinação contra o HPV, capaz de evitar a ocorrência de diversos tipos de câncer como colo uterino, pênis, boca e outros, que está disponível na rede pública e ainda é subutilizada.
A SBOC defende a desmistificação da doença, dado o aumento da longevidade da população e a maior frequência do câncer. Mas o estigma parece persistir…
São estimados mais de 35 milhões de novos casos de câncer no mundo até 2050, o que representa um aumento de 77%, comparado com o número de 2022. De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), são previstos mais de 700 mil novos casos de câncer por ano no país, para o triênio 2023-2025. As chances de cura são crescentes, e já é uma realidade em mais de 50% dos acometidos pela doença. Desmistificar a doença ajuda a combatê-la, populariza as medidas de prevenção e de detecção precoce. Omitir um diagnóstico, na maioria das vezes, é psicologicamente custoso para quem o faz. Falar do assunto é importante não só para quem está passando por ela, mas para muitas outras pessoas que podem estar precisando daquele apoio, naquele momento. Então desmistificar só ajuda. O câncer, hoje, é uma doença muito comum.