Viver o câncer
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Por — Rio de Janeiro

Em julho do ano passado, a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS), tomou uma decisão sobre um ingrediente comum em produtos zero açúcar e em casas de todo o planeta: incluiu o adoçante artificial aspartame na lista de itens “possivelmente cancerígenos”.

A categoria, chamada oficialmente de 2B, diz respeito a itens cujas evidências apontam uma relação com tumores, porém de forma limitada tanto em estudos com animais, como em humanos. A medida pode surpreender, mas a classificação da Iarc engloba também uma série de outros alimentos comuns da rotina, como até mesmo as carnes vermelhas e as processadas.

Aspartame é cancerígeno?

Mas afinal, o aspartame é cancerígeno? Quais outros itens podem aumentar o risco de uma doença oncológica? E quais os limites considerados seguros de ingestão? Em relação ao aspartame, a autoridade da OMS aponta que os poucos estudos encontraram uma possível relação com carcinoma hepatocelular, um tipo de tumor no fígado.

Porém, na avaliação de risco, que estabelece o real perigo para o consumidor, o Comitê Conjunto de Especialistas em Aditivos Alimentares da OMS e da Organização para Agricultura e Alimentação (FAO) decidiu eles não são suficientes para alterar o limite de consumo diário considerado seguro, de 40 mg por kg de peso corporal.

No entanto, especialistas apontam que há motivos para reduzir sim a substância, já que ela se mostrou não ser tão inofensiva quanto se pensava ao ser descoberta, nos anos 60. O Instituto Nacional do Câncer (Inca), por exemplo, em nota técnica publicada após a decisão da OMS, defendeu “evitar o consumo de qualquer tipo de adoçante artificial”: “é imperioso avaliar com cautela a utilização dessa substância”.

— A maioria dos estudos são em modelo animal, porque não podemos testar diretamente o efeito do consumo em humanos. Os trabalhos que temos (com humanos) são observacionais, mas apontaram de fato uma associação. Sabemos que os estudos em modelos animais usaram doses muito altas, mas como não podemos replicar em humanos é difícil estabelecer a quantidade exata que seria de fato segura. Então o ideal é evitar, especialmente se você tem outros fatores de risco — recomenda Andrea Pereira, médica nutróloga e membro do Comitê Multiprofissional da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).

Carnes vermelhas e embutidas

Embora a discussão acerca do aspartame ainda esteja em curso, outros itens são relacionados ao câncer de forma mais consistente. O Inca, em suas orientações de prevenção, destaca cinco deles: as carnes vermelhas, as carnes embutidas, os ultraprocessados de modo geral, o álcool e o consumo de bebidas muito quentes.

A carne vermelha, como de boi, porco, cordeiro e bode, presente de forma tão significativa no prato da população brasileira, pode surpreender. A Iarc, da OMS, classifica o alimento na categoria 2A, como “provavelmente cancerígeno”. Isso quer dizer que há evidências mais robustas, especialmente entre animais, neste caso relacionando o alimento a tumores colorretais, de pâncreas e de próstata.

Segundo o Inca, o alimento é rico em nutrientes importantes, como vitaminas e minerais, porém ele conta com uma forma do ferro chamada de heme, derivada das hemácias e das células musculares, que, em excesso, aumenta o risco de câncer. Por isso, tanto o instituto brasileiro, como o Fundo Mundial de Pesquisa do Câncer Internacional, sugerem limitar o consumo a 500g por semana, o que é equivalente a cerca de três porções.

Porém, de forma mais preocupante, enquadrados no grupo 1 da tabela da Iarc, de itens comprovadamente cancerígenos, estão as carnes embutidas ou processadas, ligadas a cânceres colorretais e de estômago. Alguns exemplos são presunto, salsicha, linguiça, bacon, salame, mortadela e peito de peru.

— São alguns dos alimentos que mais se relacionam com câncer. Eles no geral têm substâncias chamadas de aminas heterocíclicas e nitrosaminas, que são comprovadamente cancerígenas. Elas se formam por causa das altas temperaturas e pelo processo de industrialização desses itens. A crosta que se forma na carne vermelha grelhada também tem esses compostos. Então precisamos pensar em diminuir a ingestão desses produtos — diz o médico nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) e fellow da Obesity Society FTOS – USA.

Nesse caso, não há recomendação de limite considerado seguro – o consumo deve ser evitado ao máximo. O mesmo é orientado em relação a alimentos ultraprocessados de forma geral, aqueles produtos prontos para consumir ou aquecer, geralmente embalados, como lasanhas, salgadinhos, biscoitos, alimentos do tipo fast food, bebidas açucaradas, entre outros.

Embora esses itens não estejam especificados na tabela da Iarc, já que abarcam uma ampla variedade, sabe-se hoje que o modo de preparo deles, que leva uma quantidade alta de aditivos, conservantes, sal e açúcar para fazer com que eles tenham uma durabilidade maior e sejam mais palatáveis, é nocivo. Um dos caminhos pelos quais podem elevar o risco de câncer é por serem muito propensos a provocar um quadro de obesidade, explicam os especialistas.

Bebidas alcoólicas e muito quentes

Já sobre bebidas, há alertas em dois cenários: as alcoólicas e as muito quentes. Em relação ao álcool, é enquadrado também na classificação 1 da Iarc, a mais alta. A substância é associada de forma comprovada a diversos tipos de tumores, como de boca, faringe e laringe, esôfago, fígado, colorretal, mama e estômago.

— O álcool tem duas vias que podem causar câncer. Temos a mutagênica, pelo potencial de causar mutações nas células que podem levar ao câncer. Mas, nas mulheres, sabemos que tem uma via hormonal também envolvida que pode aumentar esse risco — afirma Andrea Pereira, da SBOC.

Não há um limite considerado seguro pelas principais autoridades de saúde. No entanto, os especialistas afirmam que há diretrizes que sugerem uma quantidade que seria menos danosa: até duas doses por dia, no caso dos homens, e uma por dia, no das mulheres. Uma dose corresponde a aproximadamente 14 g de álcool, o equivalente a uma lata de cerveja, uma taça de vinho ou uma dose de destilado.

Já no caso das bebidas muito quentes, a agência da OMS classifica aquelas com temperaturas acima de 65ºC na categoria 2A, de “provavelmente cancerígenas”, assim como a carne vermelha. Isso devido a uma ligação encontrada com um risco aumentado para câncer de esôfago.

O Inca destaca que o problema é a temperatura, e recomenda que ela esteja abaixo de 60ºC na hora do consumo. Para isso, “desligue o fogo quando iniciar a formação de bolhas gasosas no fundo da panela ou chaleira e espere cinco minutos antes de colocá-la na garrafa térmica ou consumir a bebida”, diz.

Padrão alimentar é o que importa

No geral, a nutricionista Annete Marum, doutora em Genômica Nutricional pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), destaca que não é um alimento sozinho que será capaz de provocar um quadro de câncer, mas sim um hábito alimentar que envolva excessos desses ingredientes considerados nocivos, como também a ausência de outros protetores.

— Falamos muito num padrão alimentar, num hábito de exposição excessiva a químicos, um baixo consumo de vitaminas e nutricionais, um estado nutricional de obesidade. Então a saúde depende da alimentação. Frutas, verduras e legumes, por exemplo, têm vitaminas, minerais, compostos bioativos, polifenois, que protegem do estresse oxidativo, protegem o organismo do estresse inflamatório. Então o baixo consumo desses alimentos também favorece o surgimento da doença — explica.

Ribas Filho pontua que a falta de uma educação sobre as propriedades de cada alimento é um problema no país: — Uma boa parte da população não tem conhecimento específico sobre o que seja um alimento funcional, como frutas e verduras, e um cancerígeno, por exemplo. Esse ensinamento tem que começar nas escolas, com crianças e adolescentes.

Para Pamela Almeida, oncologista e também membro do Comitê Multiprofissional da SBOC, uma medida que poderia ajudar é a comunicação mais clara nos rótulos sobre os riscos:

— Os alimentos deveriam conter as informações claras de seus componentes e inclusive com suas classificações pela OMS em termos de malefício para saúde. Dessa forma, a população poderia selecionar melhor os alimentos e passar a fazer seu papel na prevenção do câncer e outras doenças relacionadas a uma dieta não saudável.

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