Gripe aviária: 1º caso grave nos EUA acende alerta; qual o risco da doença chegar ao Brasil? Especialistas explicam
Vírus H5N1 tem se disseminado entre vacas leiteiras e trabalhadores rurais, ampliando risco de uma mutação que o torne adaptado a seres humanos
RESUMO
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GERADO EM: 19/12/2024 - 15:54
Surto de Gripe Aviária H5N1 nos EUA preocupa especialistas.
EUA enfrentam surto grave de gripe aviária H5N1, com risco de mutação para humanos. Especialistas alertam para possível disseminação global. Brasil monitora situação e se prepara com vacinas. OMS pede vigilância e preparo para evitar nova pandemia.
Nesta semana, os Estados Unidos registraram o primeiro caso grave de gripe aviária H5N1 em humanos, o que acendeu o alerta sobre um vírus que tem se expandido e provocado um surto sem precedentes entre vacas leiteiras e trabalhadores rurais no país. A origem provável da contaminação do paciente, que está hospitalizado, foi o contato com aves doentes. Com ele, já são 61 pessoas infectadas desde abril pela exposição a animais.
Considerado o atual epicentro do H5N1, os EUA registraram 10,8 mil aves selvagens infectadas e 123 milhões de aves para criação, em granjas de 50 estados. Entre as vacas leiteiras, após o registro inédito da doença na espécie, em março, já são 865 rebanhos afetados em 16 estados americanos.
O cenário levou Gavin Newsom, governador da Califórnia, que concentra mais da metade dos casos em humanos, a decretar estado de emergência na quarta-feira. Ele afirmou que objetivo é “garantir que as agências governamentais tenham os recursos e a flexibilidade necessários para responder rapidamente a esse surto”, embora tenha ponderado que o risco para a população geral “permanece baixo”.
— Essa dispersão no gado leiteiro e a magnitude com que o vírus tem se disseminado em mamíferos são indicativos de que poderemos ter problemas. Só a dimensão do surto em aves no início já apontava para uma situação de um grau elevado de cuidado. Esse decreto de emergência na Califórnia tem respaldo na preocupação que muitos temos em como essa situação vai se desenvolver — avalia Fernando Spilki, virologista da Universidade Feevale e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vigilância Genômica de Vírus.
Helena Lage, professora da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, diz que além do risco direto para os trabalhadores rurais há o fato de o vírus ter sido encontrado no leite produzido pelas vacas. A pasteurização inativa os vírus, porém alguns locais comercializam leite cru, que já chegou a ser recolhido devido à identificação do H5N1.
— Isso é uma exposição a mais que favorece a possibilidade de adaptação do vírus a humanos. E já temos casos nos EUA de pessoas infectadas cuja fonte da infecção é desconhecida. Elas foram identificadas pelo sistema de vigilância nacional, que observou que elas apresentavam sintomas clínicos. Isso nos causa uma preocupação porque não sabemos como elas se infectaram e nos dá a percepção de que já há um espalhamento muito grande do vírus ocorrendo no país — diz a especialista.
A gripe aviária diz respeito a um conjunto de cepas do Influenza que circula principalmente entre aves. A cepa H5N1 surgiu ainda em 1996, com os primeiros surtos em animais e humanos no ano seguinte. Desde 2021, no entanto, novas mutações têm levado o H5N1 a se expandir entre aves e de forma inédita entre espécies de mamíferos, como leões-marinhos e vacas, além de para novas regiões do planeta. No Brasil, por exemplo, foi identificado pela primeira vez em aves silvestres no ano passado.
Embora os casos humanos esporádicos aconteçam há um tempo, não há registro de disseminação entre pessoas – o que é o grande temor dos especialistas porque elevaria consideravelmente o risco de uma nova pandemia, explica Rosana Richtmann, médica do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo:
— Nós não temos muitos receptores para o H5N1, diferente do que acontece para os outros vírus Influenza que conhecemos. Porém, quanto mais esse vírus circula em mamíferos, mais ele pode passar por novas mutações e se adaptar para poder causar infecções em humanos e começar a causar surtos com transmissão entre humanos.
Um estudo liderado por cientistas da Scripps Research e publicado na revista científica Science no início do mês identificou que uma única mutação na versão do vírus que circula atualmente entre as vacas leiteiras já seria suficiente para aumentar a capacidade do H5N1 de se ligar a células humanas.
— Olhando para os últimos anos, vemos um caminho claro na direção do vírus se adaptar para humanos. Quanto tempo isso vai levar não sabemos, mas analisando o seu comportamento vemos que as chances são altas. Acredito ser uma questão de tempo. E o vírus já conseguiu evoluir para infectar toda essa gama de espécies que não infectava antes. E quanto mais hospedeiros em contato com os seres humanos, são mais oportunidades de contaminação — diz Salmo Raskin, doutor em Genética pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) diretor do laboratório Genetika, em Curitiba.
Ele conta que um caso recente de gripe aviária grave num adolescente no Canadá foi causado por uma versão do H5N1 em que se observou uma mutação que, embora não seja exatamente a citada no artigo da Science, ocorreu na mesma região do código genético.
O infectologista Esper Kallás, diretor do Instituto Butantan, em São Paulo, também vê a gripe aviária como um "risco real". O instituto desenvolveu uma vacina ainda em 2023 e aguarda a liberação para os estudos clínicos com humanos. A ideia é que o Brasil esteja preparado no caso de uma nova crise sanitária, conta:
— Já fizemos os estudos de avaliação pré-clínica e submetemos à Anvisa o pedido para os testes clínicos em agosto desse ano. A Anvisa analisou o processo e agora no final de novembro pediu algumas adequações. Estamos trabalhando nelas e pretendemos enviar em breve. Com isso, buscamos estar alinhados com outros países que vem desenvolvendo vacinas para se preparar para uma possível disseminação.
Letalidade superior a 50%
Uma das grandes dúvidas é como a doença vai se comportar caso ela se propague entre humanos e provoque uma nova pandemia. Isso porque, segundo os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2003 a 2023 foram registrados 878 casos humanos de H5N1, dos quais 458 morreram: uma taxa de letalidade de 52%.
Porém, os 60 casos iniciais identificados nos EUA neste ano foram brandos, semelhantes a uma gripe tradicional. A linhagem do vírus identificada nessas infecções é diferente daquela observada no caso grave em Louisiana. Para Raskin, é possível que, para infectar humanos com mais facilidade, o vírus passe a causar doença menos grave – já que ele depende do hospedeiro para a sua sobrevivência:
— Talvez ele precise perder um pouco sua agressividade, passe a infectar mais as vias aéreas superiores do que as inferiores, como vimos com a Ômicron na Covid-19. Então ele pode acabar se manifestando de uma forma mais semelhante à gripe que conhecemos do que por uma pneumonia mais grave. Mas não sabemos ainda.
Spilki acredita que, conforme os casos em humanos aumentem, essa pergunta começará a ser respondida. Mas lembra que, mesmo se o vírus se tornar mais brando, o impacto da sua disseminação em termos de saúde pública pode ser significativo:
— Esses casos mais leves foram observados dentro de um amplo monitoramento de casos suspeitos e com um número de infectados ainda muito baixo. Se o vírus de fato se estabelecer em seres humanos, aí vamos entender o real perfil dessas infecções. Esses novos casos graves começam a nos dar uma notícia de que talvez o vírus não vai ser tão brando como se imaginaria pelos primeiros casos.
Risco para o Brasil e preparo para a crise
Sobre o risco da disseminação do vírus no Brasil, Helena explica que não houve mais surtos entre aves silvestres aqui no segundo semestre deste ano. Além disso, o vírus não foi identificado em nenhuma granja de criação de aves comerciais para o consumo humano.
— Então vemos o risco da introdução do vírus no momento como muito baixo. Mas sabemos que, vivendo num mundo globalizado, a situação pode mudar rapidamente com a movimentação das pessoas, por isso o caso nos EUA nos causa uma preocupação — afirma a presidente da Sociedade Brasileira de Virologia.
Spilki também pensa que o maior ponto de atenção hoje, especialmente para humanos, é a repercussão do cenário americano: — Hoje os EUA são o olho do furacão. Porque uma eventual globalização da gripe aviária pode vir justamente pelo início de uma transmissão entre humanos ali.
No final de novembro, a diretora de preparação e prevenção de epidemias e pandemias da OMS, Maria Van Kerkhove, afirmou, numa entrevista coletiva, que o mundo precisa de uma vigilância “muito mais forte” da doença entre animais e de mais esforços para reduzir o risco de contaminação para novas espécies e seres humanos.
— Os países devem estar atentos e se preparar com plataformas de diagnóstico adequadas para fazer mapeamento de casos e, mais que tudo, assim como já fizeram alguns governos europeus e o dos EUA, começar a montar seus estoques de vacinas. Os países precisam estar preparados para uma eventual disseminação desse vírus de maneira mais ampla, e a melhor maneira de conter esse surto é diagnóstico e vacina — diz Spilki.
Sobre a produção de vacinas, os especialistas explicam que a plataforma utilizada para as doses contra a gripe humana podem ser adaptadas para o H5N1, por isso é um cenário mais fácil que o antes da Covid-19, por exemplo. Diversas vacinas já foram aprovadas nos EUA e na Europa ao longo dos anos, e muitos países já adquiriram doses.
No Brasil, em abril, a Anvisa criou regras para o registro e atualização de vacinas pré-pandêmicas contra a gripe aviária. Segundo a norma, as empresas podem protocolar o registro de doses que apenas precisem ser atualizadas na hora de uma eventual emergência sanitária.
O Instituto Butantan, em São Paulo, que produz o imunizante da gripe usado no Programa Nacional de Imunizações (PNI) e desenvolveu uma candidata, espera que o início aos testes clínicos em humanos aconteça no ano que vem, conta o diretor Esper Kallás:
— Os centros de pesquisa já foram selecionados para recrutar os participantes. Já tivemos algumas conversas preliminares com o Ministério da Saúde, que se sensibilizou para avançarmos nessa discussão. Tendo a plataforma aprovada, podemos adaptar para a versão do vírus que esteja circulando naquele momento. A ideia é ter pelo menos uma quantidade mínima disponível para caso o vírus comece a se disseminar entre humanos.
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