Câncer: tratamento inédito para mieloma múltiplo chega ao Brasil
A terapia genética CAR-T cell que envolve o uso de células de defesa geneticamente modificadas aumenta a sobrevida dos pacientes
RESUMO
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GERADO EM: 26/08/2024 - 04:31
Terapia CAR-T revoluciona tratamento de câncer no Brasil
Tratamento inovador para mieloma múltiplo chega ao Brasil, aumentando sobrevida de pacientes. Terapia CAR-T cell personalizada, denominada Carvykti, é uma revolução contra o câncer, porém alto custo dificulta acesso. Efeitos colaterais controláveis, mas exigem cuidados. Outras terapias CAR-T disponíveis no país para diferentes tipos de câncer. Desenvolvimento de terapia celular nacional para linfoma e leucemia em andamento.
Pacientes com mieloma múltiplo, um tipo raro de câncer no sangue, passam a contar com um tratamento inédito no país. Trata-se do cilta-cel, uma terapia celular à base de CAR-T Cell sob o nome comercial Carvykti, da Janssen-Cilag, farmacêutica da Johnson & Johnson.
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O mieloma múltiplo é um câncer das células da medula óssea chamadas de plasmócitos, responsáveis pela produção de anticorpos que combatem vírus e bactérias, e pode causar danos progressivos nos ossos, rins e sistema imunológico. Por isso, os principais sintomas da doença são dor nos ossos, fraturas frequentes, risco de anemia e infecções. A condição é mais comum a partir dos 65 anos de idade.
Segundo dados do Observatório do Câncer, entre 2000 e 2019, a sobrevida global estimada em 5 anos para pacientes com mieloma múltiplo subiu de 23,8% para 62,9%. Estes resultados podem ser atribuídos aos avanços terapêuticos e a adoção do transplante de medula óssea como parte do tratamento.
Apesar dos avanços, a doença é considerada sem cura, pois os pacientes enfrentam recidiva (quando a doença retorna) e refratariedade (quando não responde aos tratamentos). Por isso, múltiplas opções de terapia são importantes na jornada de quem vive com a doença.
O Carvykti foi a segunda terapia CAR-T cell aprovada no Brasil, tendo seu uso liberado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em março de 2022. No entanto, só chegou de fato aos pacientes esse ano.
Inicialmente, a terapia celular foi recomendada para pessoas com câncer recorrente e resistente à classe tripla. Dados do estudo clínico mostraram que os pacientes que receberam o CAR-T apresentaram 98% de resposta à terapia, sendo a maioria uma resposta completa rigorosa.
Após três anos de acompanhamento, a sobrevida livre de progressão da doença foi de 35 meses, em comparação com apenas 4,6 meses nos dados mundo real.
Em março deste ano, a Anvisa aprovou uma nova indicação para o Carvykti. Agora, ele também é uma opção a partir da segunda linha de tratamento, contanto que atendam outros critérios definidos pela agência. Nesses pacientes, o risco de progressão ou morte pela doença foi reduzido em até 74% versus a terapia padrão.
— A gente tem três grandes classes de medicamentos para o tratamento do mieloma. Se o paciente já foi exposto a todas e recidiva, é possível usar outra droga da mesma classe. É o que a gente tem feito, mas a duração de resposta nessas tentativas subsequentes vai diminuindo. Você nunca esperaria uma sobrevida de 74% com o tratamento padrão. Esse grau de resposta é inusitado — diz Phillip Scheinberg, líder da Hematologia da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
— Pacientes que já tinham sido extensamente poli tratados alcançaram respostas profundas e duradouras com o CAR-T para mieloma. A gente ainda não pode usar o termo cura, mas frente às novas terapias, talvez um dia a gente possa rediscutir esse conceito — completa o médico Jayr Filho, líder do Centro de Referência em Neoplasias Hematológicas do A.C. Camargo Cancer Center.
O Brasil foi o primeiro país do mundo a aprovar a nova indicação, até mesmo dos EUA e Europa. O país também é o quarto do mundo a ter disponível o cilta-cel para o tratamento de mieloma múltiplo.
O cilta-cel é uma terapia CAR-T, acrônimo para receptores de antígeno quimérico de células T, tratamento considerado uma revolução contra o câncer. O medicamento é personalizado, fabricado a partir de células de defesa do paciente, chamadas linfócitos T. Elas são responsáveis por atacar os cânceres, mas com o tempo perdem a capacidade de defesa.
Essas células são coletadas do paciente por aférese — que filtra o sangue do paciente para retirar os linfócitos T, em processo semelhante à diálise —, em um hospital certificado pelo laboratório. Essas células são enviadaspara o laboratório da Janssen em Raritan, nos EUA, onde os linfócitos são modificados geneticamente com um vetor viral, criando um receptor que reconhece e se conecta às células tumorais.
Assim que fica pronto, o medicamento volta para o Brasil, para o hospital certificado, e é infundido no paciente. Todo esse processo demora de 40 a 62 dias.
O A. C. Camargo Cancer Center e a BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo são os únicos hospitais credenciados Brasil atualmente para realizar essa terapia. Além de terem a estrutura necessária para realizar a coleta dos leucócitos, seus profissionais são capacidades para manejar os principais efeitos adversos do processo.
— Quanto mais qualificação esse centro tem, mais chance eu tenho de ter um melhor produto porque eu preciso que ele esteja no mesmo padrão de qualificação que a fábrica para poder dar uma célula de boa qualidade para esse paciente. Todos os centros são treinados não só na coleta da célula, mas na continuação do tratamento, na infusão e nas complicações que podem vir desse tratamento — explica a hematologista Simone Forny, responsável médica pela área de Hematologia da Johnson & Johnson.
O principal efeito colateral do tratamento é a síndrome de liberação de citocinas. Essa espécie de inflamação sistêmica pode causar febre, alterações pulmonares e queda na pressão arterial. No início dos estudos e da oferta desse tipo de tratamento comercialmente, esse era o efeito mais temido da terapia e muitos pacientes não resistiam. Mas, de acordo com os especialistas, isso não acontece mais.
— Quase todos os pacientes vão demonstrar essa reação inflamatória, de certa forma é esperado e temos que estar preparados para lidar com coisas que acontecem quando há um processo inflamatório muito importante, como febre, taquicardia, a oxigenação pode cair. Por isso, esses pacientes tem que ser monitorados de perto para acionarmos protocolos e antídotos para cortar isso com alto grau de segurança — avalia Scheinberg.
Também podem ocorrer alterações neurológicas, causando confusão mental, desorientação, alterações de escrita e fala. Essas alterações têm uma incidência menor que a síndrome inflamatória, mas também precisa ser acompanhada de perto para que o manejo seja adequado.
Por isso, é muito importante que o paciente tenha o suporte de um hospital capacitado para lidar com esse efeito. Os pacientes já têm buscado os hospitais para saber a disponibilidade da terapia.
Uma das opções de tratamento para o mieloma múltiplo, com ótimos resultados, é o transplante autólogo de medula óssea. Entretanto, muitos pacientes não são elegíveis a essa opção.
— O transplante autólogo de medula é uma alternativa viável depois de um tratamento inicial para pacientes numa idade um pouco mais jovem e que tem condições clínicas de tolerar o transplante. A gente tem feito o transplante autólogo em pacientes com no máximo 70 anos. Já no CAR-T, a variação de idade nos estudos inclui até alguns pacientes octogenários — explica Filho.
Isso acontece porque o transplante de medula demanda uma quimioterapia de forte intensidade antes de sua realização, o que pode ser tóxico para muitos pacientes. O CAR-T também é feito após uma quimioterapia, mas de menor intensidade e mais tolerável.
— Isso traz uma esperança muito grande para os pacientes que não têm o transplante como opção — avalia Forny.
Acesso
A chegada do cilta-cel é considerada um avanço no tratamento de cânceres hematológicos. Entretanto, o alto custo dificulta o acesso. Atualmente, o valor do tratamento é de R$ 3.324.870,26. Ele não está disponível no SUS e a cobertura pelos planos de saúde é alvo de polêmica, com frequentes negativas e judicialização.
O alto custo se deve ao fato de que a etapa da edição genética das células é completamente individualizada e feita no exterior, já que não há fábricas habilitadas para isso no Brasil. A expectativa é que com o passar do tempo e com a chegada de novos fabricantes, esses medicamentos fiquem mais acessíveis.
Uma terapia celular CAR-T cell para ser usada no SUS está em desenvolvimento pelo Instituto Butantan, Universidade de São Paulo (USP) e Hemocentro de Ribeirão Preto, no entanto, a princípio apenas para linfoma e leucemia.
— Para mieloma, vai demorar mais tempo para ter um produto nacional porque é outro alvo terapêutico — explica Scheinberg.
Embora esse seja o primeiro CAR-T para mieloma disponível no Brasil, outros tratamentos com a mesma tecnologia já estão disponíveis no país, para outros tipos de câncer. Atualmente, as indicações já aprovadas e com uso vigente no Brasil são para pacientes com linfoma difuso de grandes células B, leucemia linfoblástica aguda e linfoma folicular.