RIO — Penhasco abaixo, um pequeno grupo de peregrinos destoava da massa de católicos que coloria a orla marítima do Rio na sexta-feira. No lugar de bandeiras de estados e países, erguia faixas em defesa da vida. Nas camisas, a estamapa do rosto de Che Guevara. Para os jovens presentes, a marcha iniciada no Arpoador era mais do que um grito contra as mortes violentas nas periferias brasileiras. Significou também o despertar de uma corrente que parecia hibernar sob um manto de silêncio e perseguições: a Teologia da Libertação, que encontrou no Papa Francisco uma luz de esperança após três décadas de esvaziamento na América Latina.
Na contramão do fenômeno carismático, que rejuvenesce a Igreja com as celebrações musicais, adorações e comunhão permanente com o Espírito Santo, a teologia quer a juventude com um pé no divino e o outro no chão, palco dos conflitos terrenos. Fiéis ao compromisso, os peregrinos de punho erguido marcharam pela orla, liderados pela Pastoral da Juventude, reclamando o fim da matança desenfreada de jovens brasileiros e repudiando tentativas de redução da maioridade penal.
Chico Mendes e Irmã Dorothy
Da corrente que animava as lutas com a ideia de um Jesus libertador das injustiças, dos “padres de passeata”, como ironizava Nélson Rodrigues, pouco restou. Referências como os bispos Adriano Hipólito e Hélder Câmara já se foram. Outros, como Pedro Casaldáliga e Paulo Evaristo Arns, pela idade avançada, estão praticamente fora de cena. Mas foi a repressão do Vaticano de João Paulo II nos anos 1980, simbolizada pelo silêncio obsequioso imposto ao teólogo Leonardo Boff, que varreu a Teologia da Libertação das paróquias. Porém, desde que o bispo argentino Jorge Bergoglio virou Francisco e anunciou a opção pelos pobres, o rebanho progressista espera recuperar o protagonismo no movimento social.
— Chega de perseguições. Há algo novo na fala de Francisco. E isso nos anima. Ele quer uma igreja voltada para fora, militante. Jesus também agiu assim. Não ficou apenas rezando — festeja o analista de Sistemas Thiesco Crisóstomo, secretário nacional da Pastoral da Juventude.
Enquanto milhares de peregrinos circulavam pelos palcos da JMJ e pontos turísticos do Rio, os jovens de Teologia se aquartelaram na Paróquia de Santa Bernadete, em Higienópolis, para cumprir uma programação fortemente política. Para começar, as louvações ocorriam no “altar dos mártires”, onde imagens dos santos foram substituídas pelas de Chico Mendes e da Irmã Dorothy. Na parede, um cartaz pede “menos flexão de joelhos, mais flexão de gênero”. Tráfico humano, desafios socioambientais, solidariedade e Justiça foram os temas debatidos durante os cinco dias de atividades da “Tenda das Juventudes”, encerrados na sexta-feira com a marcha em defesa da vida.
Comunidades de base
O ato, minúsculo perto da grandeza da Jornada, foi apenas um ensaio. O despertar para valer deverá acontecer em janeiro, quando os organizadores aguardam cerca de 3.500 delegados em Crato, Ceará, para o 13º Encontro das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o Intereclesial. No passado, as CEBs espalhadas pelos rincões do país funcionavam como ponta de lança da evangelização proposta pelos teólogos da libertação. Reuniam, em sua maioria, católicos pobres e inconformados, que encontravam na mensagem de Deus um alento para as suas lutas contra o que os oprimia.
— Procuramos unir fé e vida. Não dá para ter fé sem que ela seja inserida na vivência das pessoas. Não basta libertação espiritual. É preciso libertação social, econômica e política — explica Antônio Gelmar, um dos coordenadores do encontro.
Sem a vigilância austera do Vaticano, comandada no passado pelo cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Bento XVI, a corrente libertadora quer provar que “não é um bicho de sete cabeças”, diz Gelmar. Não existe um levantamento sobre o número de CEBs no Brasil, mas o coordenador do encontro garante que, só na região de Crato, berço delas, existem cerca de 700. Cada qual tem uma agenda semanal, decidida em colegiado, que inclui pelo menos uma celebração em suas capelas. Quando o pároco local não tem condições de comparecer, o ato é dirigido por um leigo, ministro da Eucaristia.
O ponto alto da agenda, contudo, se dá fora dos espaços celebrativos. Não é difícil encontrar uma CEB na frente de ocupações de terrenos ou de protestos contra a violência policial. Neste particular, o frei mineiro Gilvander Moreira é um herdeiro das lutas passadas. Na semana passada, por exemplo, ajudou o seu rebanho pobre a remover as cercas de arame farpado para dar início à ocupação do conjunto Ubirajara na periferia de Belo Horizonte.
— O sagrado está na terra, que é mãe e não pode ser privatizada.
Para o teólogo Paulo Fernando Carneiro de Andrade, da PUC-Rio, o incômodo causado pela Teologia da Libertação não está na politização de seus integrantes, “mas para onde essa politização pende”. Ele explica que a ala mais conservadora da Igreja também opera no campo político.
— No fundo, a Teologia da Libertação nunca saiu de cena. Por mais que se fale em declínio, ela se realizou na Igreja Católica latino-americana de forma permanente — sustenta.
Concorrência carismática
Falta agora, como sonha Thiesco Crisóstomo, que ela se realize na juventude católica. Ele reconhece que, somada às perseguições que a pregação progressista tem sofrido, há também a concorrência carismática, com as suas cantorias e a proposta de uma vida comunitária voltada para a experiência contemplativa, intimista, na qual o jovem é conclamado a abandonar a vida lá fora e a não pensar tanto das contradições sociais.
— Sofremos perseguições porque aprendemos a questionar. E quem está no poder, seja padre ou leigo, não gosta de ser questionado. O Papa está dizendo que a Igreja precisa falar menos e aprender a ouvir os jovens. Ainda pode demorar um pouco, mas se esse movimento for feito, acho que a juventude também se encantará pela nossa mensagem.