Há uma semana, no debate, Kamala Harris tratou Donald Trump como um adolescente inseguro. Em certo momento, indagada sobre os ensaios do rival de discutir sua autodescrição racial, escapou à armadilha, passando-lhe uma reprimenda:
— É uma tragédia termos alguém que quer ser presidente e que constantemente, ao longo de sua carreira, tentou usar a raça para dividir o povo americano.
- Faça o teste: você é de centro, direita ou esquerda?
A resposta revela o declínio das políticas identitárias nos Estados Unidos.
Há 16 anos, na sua campanha presidencial, Barack Obama descreveu-se como mestiço, enfatizando as distintas origens de seu pai queniano e de sua mãe, uma americana branca do Kansas. Obama falou com ardor sobre as lutas pelos direitos civis e celebrou a figura de Martin Luther King, apresentando-se como candidato pós-racial. Mesmo assim, não conseguiu fugir ao rótulo de “presidente negro” aplicado pelo consenso identitário em voga.
Depois da eleição de 2008, o paradigma identitário tornou-se artigo de fé do Partido Democrata. A rendição às teses da esquerda pós-moderna de extração universitária interrompeu o diálogo com a maioria dos eleitores da heterogênea classe média branca e, ainda, com vasta parcela de latinos de origem imigrante.
O fundamento da política democrática são valores compartilhados que sustentam pontes entre diferentes formas de enxergar e interpretar o mundo. Mas a radicalização identitária, expressa na Teoria Crítica da Raça (CRT), renega tal fundamento. No lugar de uma nação, ela esculpe um monumento à divisão entre “brancos opressores” e “negros oprimidos”.
A evolução inevitável do paradigma original transformou a divisão binária num caleidoscópio de estilhaços. Raça, gênero e orientação sexual foram elevados à condição de identidades essenciais. Todas as “minorias” ganharam o estatuto de coletividades oprimidas pelo “homem branco”. Os indivíduos submergiram no teatro dos simbolismos e representações históricas.
A deriva identitária da esquerda deflagrou uma mutação sísmica na direita, da qual emanou o movimento extremista Make America Great Again (Maga). Apagaram-se, no Partido Republicano, os conservadores moderados de outrora, como John McCain ou Mitt Romney, rivais derrotados por Obama. Trump, o chefe do Maga, ofereceu à direita uma alternativa também identitária, mas dirigida à maioria: o ultranacionalismo cristão, xenófobo e nativista. A “nação de colonos” — eis a resposta reacionária à “nação de fragmentos” proposta pela esquerda.
O jogo destrutivo da direita extremista espelha as operações da esquerda identitária, mas em esteroides. Trump e o Maga converteram as políticas pós-modernas num arsenal bélico muito mais poderoso que o da esquerda identitária. O veneno voltou-se contra seus criadores — e não só nos Estados Unidos.
No Brasil, uma esquerda pronta a copiar as cartilhas universitárias americanas e parcialmente financiada pela Fundação Ford traduziu a CRT como “racismo estrutural”. A noção não deixa nenhuma saída antirracista, pois supõe que a opressão racial é o pilar sobre o qual se erguem as sociedades ocidentais.
A moda importada espalhou-se no PT e, mais ainda, no PSOL, fazendo seu caminho até os veículos de comunicação e as grandes empresas. Aqui, como nos Estados Unidos, o identitarismo desenrolou-se da raça para o gênero e a orientação sexual. No lugar da reivindicação de igualdade (direitos iguais), a política pós-moderna passou a reivindicar a diferença: todas as “minorias” almejam cotas, prioridades e financiamentos. No fim, como lá, mas sob circunstâncias diferentes, emergiu no Brasil uma extrema direita que, também atraída pelo plagiarismo, faz de Trump seu ídolo.
De olho nos eleitores, Kamala Harris recusou-se a desempenhar o papel de símbolo identitário. Sua réplica à arapuca montada por Trump veicula a seguinte mensagem: somos todos cidadãos americanos e, portanto, temos a obrigação de identificar nossos valores compartilhados e de reagir às tentativas de bombardear as pontes que formam o tecido da sociedade.
A raça entra em declínio por lá. Seremos capazes de imitá-los na hora em que, finalmente, eles acertam?