Menos de 24 horas depois de concluída a fraude eleitoral venezuelana, uma nota da direção do PT reconhecia como legítima a reeleição do ditador Maduro. Uma vez mais, como de costume, o PT revelava sua duplicidade fundamental, conciliando a defesa da democracia no Brasil com o apoio sistemático às “ditaduras companheiras” no exterior.
A democracia sempre foi, para a esquerda, uma indecifrável esfinge. Se, de acordo com as tábuas do dogma, o futuro da humanidade é o socialismo, e se a ferramenta que lhe abre as portas é a revolução, o que fazer com a democracia representativa?
Os partidos comunistas do passado ajuntavam sempre o adjetivo “burguesa” ao substantivo “democracia”, para esclarecer que sua defesa circunstancial da ordem democrática tinha caráter exclusivamente tático. As liberdades públicas serviriam apenas para facilitar a organização do partido que impulsionaria o movimento revolucionário. A “democracia burguesa” funcionaria como etapa transitória rumo à ditadura do proletariado. É fácil — mas equivocado! — enxergar nisso as raízes da duplicidade petista.
Os comunistas de outrora, em qualquer país, tinham suas raízes fincadas na União Soviética, a “pátria do socialismo”. O PT não faz parte daquela tradição. Nasceu na esteira da crise terminal da ditadura militar e chegou à maturidade depois do colapso da União Soviética. Não é, portanto, um partido comunista com outro nome.
Desde a origem, a alma petista é dupla. Na hora da queda do Muro de Berlim, lideranças petistas participavam de uma escola de quadros promovida na antiga capital da Alemanha Oriental pelo partido único. Por outro lado, quase simultaneamente, um editorial da revista teórica do PT qualificava Cuba como uma ditadura indefensável. A nota de legitimação da fraude de Maduro encontrou resistências internas, o que transparece na sua linguagem torturada.
A experiência do totalitarismo soviético norteou a reforma da corrente principal da esquerda europeia: ao longo da Guerra Fria, os sociais-democratas fizeram as pazes com a democracia. Na América Latina, porém, o mito da Revolução Cubana aprisionou a esquerda numa caverna sombria, conduzindo-a de joelhos ao altar de Che e Fidel. Nessa parte do mundo, “imperialismo” tornou-se sinônimo de Estados Unidos, e o enclave caribenho adquiriu os contornos de uma fortaleza sagrada. O PT acabou dobrando-se à mitologia castrista — e lançou ao mar as linhas sacrílegas do antigo editorial. Daí brotou, como corolário geopolítico, sua fidelidade ao chavismo.
O corolário cimentou-se desde a eleição de Lula para um terceiro mandato. À sombra da crise da ordem mundial, o PT traduziu o mantra do anti-imperialismo como alinhamento às potências que confrontam os Estados Unidos. O “Sul Global” — ou seja, basicamente, a China e a Rússia — converteram-se no norte ideológico do petismo. O partido estabeleceu relações orgânicas com o PC chinês e o Rússia Unida de Putin, participando regularmente das atividades políticas internacionais patrocinadas pelos “partidos irmãos”. A proteção de Maduro figura como obrigação ditada por tais parcerias.
Viver na democracia, celebrar ditaduras — há, nisso, uma perene agonia. A aliança com a “união cívico-militar-policial” venezuelana sempre provocou desgastes à imagem do PT diante da opinião pública brasileira. O constrangimento atinge um ápice no contexto da polarização com o bolsonarismo e menos de dois anos depois de um triunfo eleitoral lulista obtido por meio de uma ampla frente democrática.
A Venezuela é um pôster de propaganda da direita. Referindo-se à nota de reconhecimento de Maduro, Sergio Moro afirmou que o apoio “confirma os receios de que o partido de Lula oferece riscos à democracia”, enquanto Damares Alves sugeriu “lembrar muito bem dessa postura da esquerda brasileira e do seu maior líder já nas eleições municipais”.
Moro está errado: ao contrário de Bolsonaro, o PT não representa ameaça à nossa democracia. Contudo, o abraço à clamorosa fraude eleitoral de Maduro recobre com as tintas da hipocrisia a denúncia petista do golpismo bolsonarista. Graças à ambivalência petista sobre a democracia, Bolsonaro triunfou em Caracas.