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GERADO EM: 23/12/2024 - 17:17

Estudantes do Enem: Redações memorizadas prejudicam pensamento crítico

Estudantes do Enem estão escrevendo redações sem pensar, memorizando textos prontos. Esse método garante notas altas, mas prejudica o desenvolvimento do pensamento crítico e da escrita. A prática é comum, apesar de trágica pedagogicamente. Modelos enganosos são propagados online, e a correção do Enem não consegue identificar essa estratégia. É necessário repensar a redação do Enem para valorizar argumentação e pensamento crítico, prioritizando a qualidade da educação no país.

Para que existe a redação do Enem? Para avaliar a qualidade de um tipo de escrita, claro, mas também a capacidade de raciocínio, de argumentação e de articulação de ideias. Mais que isso, serve para medir a potencial atuação do estudante como cidadão habilitado a compreender um problema nacional e propor uma solução. Essa é a teoria.

Na prática, cada vez mais colégios e cursinhos ensinam modelos semiprontos de texto que se encaixam em qualquer tema, proporcionando aos alunos um Frankenstein capaz de gerar notas altas com segurança e sem perda de tempo. O adolescente se sente diante de um “macete” para passar de fase num jogo de videogame.

Mas será mesmo que funciona? A resposta é “sim”. Se bem ensaiada, a estratégia funciona. Muito bem, até. Basta, para isso, perceber que boa parte das escolas com as maiores médias de redação no ranking nacional recorre a esse artifício. Há instituições em que os alunos da 3ª série do ensino médio são proibidos de escrever redações fora do modelo ensinado. Pois é.

Esse método praticamente elimina os erros de português (afinal, o texto é decorado) e garante o cumprimento de todas as exigências específicas da grade de correção. Além de gerar notas altas (inclusive 1.000, não se enganem), essa estratégia quase impede que haja notas baixas, o que é decisivo para a média do colégio.

Sob o ponto de vista pedagógico, tudo isso é trágico. A redação era, até então, a única disciplina que não exigia “decorebas” para o alto rendimento. Com essa tática, os estudantes memorizam textos quase inteiros e apenas fazem adaptações de acordo com o tema cobrado. Não se aprende mais a escrever. Muito menos a pensar, analisar, criticar.

Nem sempre, no entanto, o “ensino” de redação baseado em modelos é bem-feito. No YouTube e no TikTok, há uma proliferação de professores e até ex-alunos anunciando fórmulas infalíveis que geram textos desencaixados, com repertórios socioculturais desconexos que o estudante nem sequer conhece, mas copia na redação.

Esses casos costumam ser severamente punidos? Não. Na verdade, para um estudante com maiores dificuldades de escrita (caso da maioria), modelos semiprontos, mesmo simplistas e forçados, estruturam o texto melhor do que ele conseguiria fazer sozinho. Esse aluno vai tirar 1.000? Não, nem perto. Mas sem isso também não tiraria. E essas fórmulas podem perfeitamente levar o aluno de 500 para 700 ou, com sorte, 800. Não por acaso, nas salas de aula, docentes que não aderem a essa estratégia são frequentemente ignorados ou mesmo cobrados pelos alunos.

Um trabalho sofisticado que ensine a escrever, pensar, criticar, analisar e argumentar é louvável e possível. Mas depende de tempo, de ótimos professores e de alunos dedicados. Quantos estão dispostos e em condições disso? Estamos falando de um país onde as deficiências da educação são gritantes. E também de um país onde muitas escolas inscrevem seus melhores alunos num CNPJ separado no Enem para, assim, figurar entre as melhores do ranking, como já foi amplamente divulgado na imprensa. Na educação de hoje, os resultados (aparentes) importam mais que os meios. Imaginar algo fora disso é ingenuidade.

A anunciada promessa de uma correção capaz de identificar esse tipo de estratégia tem pouco efeito prático e ainda pode gerar injustiças, punindo redações que apresentam sintomas parecidos, mas não foram feitas com um modelo. É preciso mudar o conceito da redação do Enem para tornar inviável esse tipo de subterfúgio, valorizando pensamento crítico e profundidade argumentativa, como fazem os vestibulares da Uerj e Fuvest. Ou então o país seguirá aprovando para suas universidades federais futuros profissionais treinados no ensino médio para decorar um texto, mas inaptos para refletir criticamente acerca dos problemas nacionais. O Brasil merece mais.

*Rafael Pinna é professor de redação

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