Vivi para contar: ‘Feliz de representar o meu país’, diz única brasileira que ajudou a restaurar o órgão de Notre-Dame
Em depoimento ao GLOBO, Luciana Rodrigues Lemes, de 29 anos, narra o início da paixão pelo instrumento icônico e o caminho que percorreu até o trabalho na restauração da catedral
RESUMO
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GERADO EM: 06/12/2024 - 20:10
"Organeira brasileira restaura órgão de Notre-Dame após jornada de desafios e preconceitos"
Luciana Rodrigues Lemes, organeira brasileira, conta sua jornada desde Lorena até a restauração do órgão de Notre-Dame. Enfrentando desafios e preconceitos, ela se destaca como única mulher na profissão e almeja retornar ao Brasil para preservar o patrimônio musical.
“Minha história com o órgão começou lá em 2008-2009, quando eu participava do coro da igreja da minha cidade, Lorena, no interior de São Paulo. O coral era novo, e o organista falava que tínhamos ali um instrumento francês do século XIX, algo muito raro no Brasil. Ele dizia que precisávamos fazer algo para restaurá-lo, e aquilo começou a mexer muito comigo. Na época, eu estava com os meus 13 ou 14 anos, e comecei a ter aula de órgão com ele.
Alguns anos mais tarde, porém, ele veio a falecer. E, quando isso aconteceu, as pessoas da igreja começaram a se movimentar para que o projeto de restauração do órgão não fosse interrompido. Eles sabiam que eu já tocava o instrumento — e, como não tinha outra pessoa para fazer isso, pediram para eu segurar as pontas. Foi assim que, dos meus 15 aos 18 anos, eu comecei a liderar o coral, tentando incentivar a comunidade local e divulgando o instrumento.
O problema é que era tudo muito caro, e não tinha ninguém no Brasil para fazer o restauro. Era preciso uma empresa especializada em órgãos franceses. No Brasil, apenas dois ateliês fazem restauração desses instrumentos, mas não de órgãos históricos. Não bastasse isso, a cada ano que passa há menos pessoas que sabem fazer essas funções de restauro e harmonia. No mundo todo, acho que devemos ser somente 200 pessoas. É um trabalho muito antigo.
Ida para os EUA
Naquele momento, eu havia decidido fazer faculdade de música em Pindamonhangaba, e quis escrever o meu trabalho de conclusão de curso (TCC) sobre os órgãos do [construtor Aristide] Cavaillé-Coll (1811-1899), que construiu o órgão de Lorena e que, por acaso, também construiu o de Notre-Dame. Eu comecei a produzir, mas precisava de material. Então, procurei no Facebook, onde tinha um grupo de organeiros (quem constrói e restaura) e organistas (quem toca) internacionais.
Fiz uma publicação nesse grupo, e uma professora de uma universidade dos Estados Unidos me respondeu. Ela disse que esteve no Brasil, viu a situação dos órgãos do país e gostaria de me ajudar. Perguntou do que eu precisava, e eu mencionei livros e documentos. Ela me mandou esses materiais e também perguntou se eu não gostaria de ir para lá. Eu nem a conhecia direito naquela época, mas decidi que iria mesmo assim.
Eu venho de família simples, estudei a vida inteira em escola pública, fui nascida e criada na periferia. Naquela altura, em 2017, eu tinha conseguido um trabalho como organista no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo, e era um emprego maravilhoso. Eu cantava em missas, aparecia na televisão, estava feliz. Então, quando falei para os meus pais sobre ir para os Estados Unidos, eles também ficaram apreensivos. Mas decidi tentar a sorte, largar tudo e me arriscar.
Fui para os EUA e, inicialmente, fiquei lá por seis meses. Depois, voltei para os Estados Unidos em 2019 e fiquei por mais dois anos, porque é uma especialização que dura a vida inteira. É um baita trabalho, vai desde a parte artesanal até a parte musical. Fiz um estágio lá e, quando terminei, o meu mestre de organaria me perguntou o que eu gostaria de fazer. Ele disse que eu tinha duas opções: ou voltava para o Brasil para restaurar o órgão de Lorena, onde tudo começou, ou eu poderia tentar continuar estudando e trabalhando em outros países.
Sonho na França
Naquela época, o que eu queria era ir para a França. Pensava que precisava aprender no berço da organaria, com os melhores do mundo. Do contrário, não seria especialista nisso. Comecei, então, a enviar currículos, até que uma empresa francesa me respondeu. Eles disseram que precisavam de um harmonista, que é a pessoa que cuida da parte de afinação do instrumento, além de restauração dos tubos e fabricação também. Vim para a França e, quando cheguei, em 2021, não sabia que eles também estavam cuidando do órgão de Notre-Dame.
Era preciso fazer uma desintoxicação, e eu via pedaços do órgão chegando no ateliê para descontaminação. Observava as pessoas, com roupas meio espaciais, trabalhando nisso. Pensava que era uma pena não poder participar dessa parte também, ao mesmo tempo em que ficava muito feliz por ver a minha equipe atuando nisso.
Dois anos depois, em 2023, eu ainda estava na empresa, inclusive casada com um organeiro que conheci ali. Naquele ano, recebemos a notícia de que precisaríamos trabalhar no processo de montagem do instrumento. A princípio, o trabalho era para restaurar a fachada, que é a parte em que a gente vê todos aqueles grandes tubos. Quando falaram, eu nem acreditei. Foi muito emocionante porque foi a primeira vez que essa fachada foi restaurada desde que ela foi instalada.
No momento em que o trabalho terminou, eu já estava muito feliz. Mas, em 2024, ainda veio outro convite: dessa vez, para contribuir com a afinação do instrumento. Foram cerca de cinco pessoas, e eu estava lá. Passei por volta de um mês com o meu marido e as demais pessoas da equipe realizando esse trabalho, que foi intenso e demandou bastante concentração. Ao mesmo tempo em que fazíamos a afinação, os outros operários trabalhavam ao fundo. Para quem é músico, é difícil trabalhar nessas condições. Foi uma loucura conseguir terminar tudo a tempo.
‘Feliz de representar o meu país’
Depois, o mais emocionante: escutar os organistas, que são os melhores do mundo, tocando o instrumento — e depois elogiando o trabalho. Acho que é uma das sensações mais mágicas do mundo. Primeiramente porque eu nunca imaginei. E, depois, porque estou muito feliz de ser brasileira e de representar o meu país, vindo de um lugar tão pequeno e simples. Queria partilhar isso de alguma forma porque hoje vejo pessoas se conformando com a realidade, sem se permitir sonhar. Mas é possível.
Quando olho para trás e penso em tudo isso, sinto uma sensação de fidelidade a mim mesma, por não ter desistido mesmo com muitas pessoas falando que esta profissão não é coisa de mulher. Escutamos desde pequeno que devemos ser médicos, arquitetos, engenheiros. Então, é um sentimento de orgulho, de fidelidade aos meus sonhos e orgulho de ser brasileira. Por isso, queria muito poder motivar as pessoas. Não é porque alguém diz que você não vai conseguir que isso é real.
Enquanto eu enviava currículos, cheguei a ser rejeitada várias vezes por ser mulher. Recebia respostas dizendo que não contratam mulheres. Além disso, há casos de preconceito no trabalho. Você precisa estar com os equipamentos de proteção, que são roupas que não são tão femininas. Então, as pessoas acabam estranhando bastante, mesmo aqui na França. Há um julgamento. No Brasil, acho que sou a única. Não conheço outra organeira. E, na minha empresa, também sou a única mulher.
Meu objetivo agora é retornar ao Brasil e ajudar de alguma forma a restaurar esses instrumentos. Cavaillé-Coll, que é o construtor do órgão de Notre-Dame, fez cerca de 500 órgãos pelo mundo, dos quais 13 foram para o Brasil, onde é difícil cuidar do patrimônio, especialmente sem mão de obra qualificada. Então, eu gostaria de poder retornar ao meu país e restaurá-los, realizando o sonho de menina que me trouxe até aqui.”
*Luciana Rodrigues Lemes, em depoimento a Letícia Messias
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