Após dois meses de guerra aberta com o Hezbollah, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, apresentou nesta terça-feira um acordo de cessar-fogo no Líbano ao governo israelense. A trégua foi aprovada horas mais tarde pelo seu Gabinete, por 10 votos a favor e um contra. Em declaração conjunta, o presidente americano, Joe Biden, e o mandatário francês, Emmanuel Macron, responsáveis por mediar a trégua, anunciaram que ambos os países garantirão o seu "cumprimento total". Segundo Biden, a medida entrará em vigor já na madrugada de quarta-feira, às 4h do horário local.
— O Hezbollah não é mais o mesmo, Israel o empurrou décadas para trás. Destruímos a maior parte dos foguetes e mísseis. Matamos milhares de terroristas e destruímos a infraestrutura subterrânea e terrorista perto de nossas fronteiras. Tudo isso parecia ficção científica meses atrás, mas nós conseguimos — disse Netanyahu, acrescentando que está “determinado” a manter os soldados israelenses vivos. — Por isso, esta noite, apresentarei ao gabinete um plano para um cessar-fogo no Líbano.
O anúncio de Netanyahu foi feito horas após as forças do Estado judeu realizarem ataques em larga escala contra alvos da organização libanesa em Beirute, que viu um número de alertas sem precedentes para a região. Na segunda-feira, pelo menos 31 pessoas morreram em todo o Líbano, segundo autoridades locais, e no domingo o Hezbollah lançou cerca de 250 mísseis contra o território israelense — uma escalada que, para analistas, é comum ocorrer antes da suspensão das hostilidades e visa garantir que o maior número possível de objetivos militares seja alcançado antes da interrupção das atividades.
Mesmo após a aprovação da medida, houve trocas de ataques entre Israel e o grupo xiita. Forças israelenses emitiram ordens de retirada para moradores e atacaram o subúrbio da capital libanesa e, segundo veículos sírios, bombardearam as passagens al-Arida e Dabussiyeh, na fronteira com o Líbano. O Hezbollah, por sua vez, disse ter atacado "uma reunião de forças inimigas israelenses" em Shtula e em Kiryat Shmona, no norte de Israel, com “uma salva de foguetes”, e anunciou ter lançado drones contra “alvos militares sensíveis” em Tel Aviv e arredores. Segundo o grupo, o ataque à capital israelense é uma resposta à ação de mais cedo em Beirute.
Duração do acordo
Ainda que a proposta de cessar-fogo estabeleça um prazo de 60 dias de trégua, Netanyahu declarou em seu discurso televisionado que a duração do acordo “dependerá do que acontecer no Líbano”. Ele afirmou que Israel tem um “entendimento” com os Estados Unidos e que manterá sua “plena liberdade para realizar operações militares se o Hezbollah tentar atacar” o Estado judeu, indicando que, nesse cenário, o Exército israelense reagiria “com muita força”.
Washington e Paris, no entanto, afirmaram em um comunicado conjunto, divulgado após a aprovação da proposta, que estão "determinados a garantir que esse conflito não provoque um novo ciclo de violência".
— Isso foi projetado para ser uma cessação permanente das hostilidades. O que restou do Hezbollah e de outras organizações terroristas não poderá ameaçar novamente a segurança de Israel. Os civis de ambos os lados logo poderão retornar com segurança às suas comunidades — disse Biden, advertindo, no entanto, que o cenário poderia mudar em caso de violação à trégua. — Se o Hezbollah ou qualquer outra pessoa violar o acordo e representar uma ameaça direta a Israel, Israel mantém o direito de autodefesa, de acordo com o direito internacional.
Questões em aberto
Durante o pronunciamento, Netanyahu destacou três razões principais para considerar que este é o momento certo para o acordo: em primeiro lugar, seu país poderá se concentrar na “ameaça iraniana”, e, em segundo, reformular e rearmar suas tropas. Sobre este último tópico, Netanyahu declarou que “não é segredo” que houve “grandes atrasos” no fornecimento de armas. A terceira razão, disse ele, é desvincular as frentes norte e sul do conflito e isolar o grupo terrorista Hamas em Gaza.
— Com o Hezbollah fora do quadro, o Hamas fica sozinho na campanha. Nossa pressão aumentará — disse.
A proposta determina que as forças israelenses deverão voltar para o sul da fronteira entre Israel e Líbano, enquanto o Hezbollah recuaria ao norte do rio Litani, permitindo que o Exército Libanês — que não é parte no conflito entre Israel e Hezbollah — preenchesse o vazio. Segundo o site Axios, o governo americano também deve oferecer apoio às ações militares de Israel na região em caso de violação do acordo, além de apoiar iniciativas contra o contrabando de armas.
No entanto, muitas questões sobre a proposta permanecem sem resposta, incluindo como o Exército Libanês imporia autoridade sobre a organização político-militar libanesa. Além disso, o cessar-fogo é oficial apenas entre Israel, Líbano e os países mediadores. Um importante parlamentar libanês tem atuado como intermediário com o Hezbollah — que não é controlado pelo governo e tecnicamente não seria parte do acordo —, embora o líder do grupo, Naim Qassem, tenha sugerido na semana passada que a organização aceitaria uma trégua se Israel parasse de atacar o Líbano e o país mantivesse sua soberania.
O primeiro-ministro do Líbano, Najib Mikati também saudou a decisão e afirmou que o acordo representa um "passo fundamental" para a estabilidade regional. Mikati agradeceu aos Estados Unidos e à França pela mediação e indicou que o governo libanês se compromete a "fortalecer a presença do exército no sul do país", um reduto do Hezbollah. Mais cedo, porém, ele havia instado a comunidade internacional a agir "rapidamente" para interromper a "agressão israelense", afirmando que a intensa onda de ataques aéreos israelenses a Beirute nesta terça-feira “reafirma que o inimigo israelense não tem respeito por nenhuma lei ou consideração”.
Impacto em Gaza
Netanyahu também agradeceu Biden pelo envolvimento na mediação para alcançar o cessar-fogo. Em pronunciamento, o presidente americano aproveitou a ocasião para anunciar que os EUA liderariam um novo esforço para garantir um cessar-fogo em Gaza.
— Agora o Hamas tem uma escolha a fazer. Sua única saída é libertar os reféns, incluindo cidadãos americanos, que eles mantêm em seu poder e, no processo, pôr fim aos combates, o que possibilitaria uma onda de ajuda humanitária — disse Biden. — Nos próximos dias, os Estados Unidos farão mais um esforço com a Turquia, o Egito, o Catar, Israel e outros para conseguir um cessar-fogo em Gaza.
Mais cedo, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, afirmou que o acordo de cessar-fogo foi “um esforço diplomático intenso”, destacando que, ao reduzir as tensões na região, o acordo também pode ajudar a encerrar o conflito em Gaza.
— O Hamas saberá que não pode contar com a abertura de outros fronts na guerra.
Macron também defendeu que o acordo deve “abrir o caminho” para o fim da guerra em Gaza em um vídeo publicado no X. "Esse acordo deve abrir o caminho para um cessar-fogo há muito esperado em relação ao sofrimento incomparável da população em Gaza”, disse, acrescentando que a trégua “mostra que somente a coragem política pode proporcionar paz e estabilidade de longo prazo a todos no Oriente Médio”.
Reações
O cessar-fogo foi celebrado por autoridades mundo afora. O primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, disse em uma publicação no X que a medida proporcionará algum alívio aos civis, mas aproveitou para pedir avanços nas negociações sobre Gaza. “Precisamos ver um progresso imediato em direção a um acordo de cessar-fogo em Gaza, a libertação de todos os reféns e a remoção das restrições à ajuda humanitária desesperadamente necessária”, declarou.
A chefe da União Europeia, Ursula von der Leyen, classificou a trégua como uma “notícia muito animadora”, sobretudo "para o povo libanês e israelense afetado pelos combates". "O Líbano terá a oportunidade de aumentar a segurança interna e a estabilidade graças à redução da influência do Hezbollah", escreveu no X.
A ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, chamou o acordo de "um raio de esperança para toda a região". "As pessoas de ambos os lados da fronteira querem viver em segurança genuína e duradoura", disse Baerbock em um comunicado, chamando o acordo de "um sucesso para a diplomacia".
Mas nem todos receberam a notícia com o mesmo entusiasmo. Para o ministro da Segurança Nacional israelense, Itamar Ben-Gvir, único membro do Gabinete de Netanyahu a votar contra a medida, a decisão representa "um erro grave". "Um cessar-fogo nesse estágio não fará com que os moradores do norte voltem para suas casas, não deterá o Hezbollah e, de fato, perderá uma oportunidade histórica de desferir um duro golpe e colocá-los de joelhos", escreveu em uma publicação no X.
Resolução 1701
A mediação do conflito entre Israel e Líbano é baseada na resolução 1701 do Conselho de Segurança das Nações Unidas que acabou com uma guerra de 34 dias entre o Estado judeu e o Hezbollah, em 2006, e que manteve relativa calma na área por quase duas décadas. De acordo com o texto, ambos os lados deveriam se comprometer a cessar as hostilidades transfronteiriças, e apenas o Exército libanês e as forças de paz da ONU poderiam atuar no sul do Líbano. A medida foi interrompida no dia seguinte ao ataque sem precedentes do grupo terrorista Hamas a Israel, em 7 de outubro do ano passado, quando o Hezbollah passou a atacar quase diariamente o território israelense em solidariedade ao aliado palestino.
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De um lado, Israel argumenta que o Hezbollah violou a resolução diversas vezes ao operar próximo à fronteira. Do outro, o Líbano afirma que o Estado judeu violou regularmente o acordo ao longo das últimas duas décadas ao enviar aviões de combate ao seu espaço aéreo. Os EUA, responsáveis por realizar a mediação entre as partes no conflito atual, acreditam que o retorno aos princípios da resolução seja do interesse de ambos. Antes mesmo do anúncio, no entanto, Israel Katz, o recém-nomeado ministro da Defesa de Israel, informou à enviada especial da ONU para o Líbano, Jeanine Hennis-Plasschaert, que mesmo com o acordo seu país continuará a agir contra ameaças.
— Está claro que não se pode confiar no Hezbollah, sempre mostraram isso. Mas, pior ainda, o governo israelense também não é confiável — disse Nahum Donita, morador de Tel Aviv, à AFP.
Entenda a escalada
Mesmo após o início da guerra em Gaza, com os disparos constantes do Hezbollah contra Israel, por muitos meses a troca de hostilidades entre os dois permaneceu relativamente controlada. Em setembro, porém, as explosões quase simultâneas de milhares de pagers do grupo xiita no Líbano, seguida pela detonação de dezenas de walkie-talkies da mesma organização, elevaram rapidamente o número de mortos e deram início a uma nova fase do conflito na região.
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A escalada do Estado judeu foi feita sob pretexto de que era necessário neutralizar o grupo libanês para permitir o retorno de 60 mil moradores do norte de Israel que foram deslocados pelo conflito. Segundo o Ministério da Saúde libanês, mais de 3,8 mil pessoas morreram e 15,8 mil ficaram feridas no país desde outubro de 2023, a maioria desde setembro. Do lado israelense, 82 militares e 47 civis morreram em 13 meses. Apenas em setembro, mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas no Líbano devido à guerra.
Desde o início do conflito entre Israel e Hezbollah, as operações israelenses também já mataram 40 soldados libaneses, embora o Exército do Líbano tenha, em grande parte, permanecido à margem dos combates. No domingo, uma ofensiva de Israel contra o sudoeste do Líbano deixou um soldado libanês morto e 18 pessoas feridas. Mais tarde, as Forças Armadas do Estado judeu expressaram pesar pelo ataque, afirmando que ele ocorreu numa área de operações contra o Hezbollah, mas que seria investigado pelas autoridades competentes.
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Também no domingo, após reunião com Josep Borrell Fontelles, o principal diplomata da União Europeia (UE), o primeiro-ministro do Líbano, Najib Mikati, disse que o ataque de Israel foi “uma mensagem sanguinária direta de rejeição aos esforços para alcançar um cessar-fogo”. Borrell, por sua vez, declarou que “um cessar-fogo imediato e uma plena implementação da Resolução 1701 do Conselho de Segurança das Nações Unidas” são as únicas formas de avanço no conflito.
Histórico conturbado
Em 1982, Israel lançou uma invasão ao Líbano ao enviar tanques até a capital do país, Beirute, após sofrer ataques de militantes palestinos no país. Na época, o sul libanês foi ocupado por quase duas décadas antes de ser interrompido em 2000, quando o Estado judeu foi expulso pelo Hezbollah, criado com apoio do Irã para resistir à ocupação israelense. Naquele mesmo ano, a ONU estabeleceu a chamada Linha Azul, uma “linha de retirada” para as forças israelenses do Líbano. Hoje, essa fronteira serve como limite entre os dois países.
O Líbano, no entanto, alega que Israel não concluiu sua retirada do país e continuou a ocupar as Fazendas de Shebaa, uma área de 39 km² que Israel controla desde 1967, publicou a rede americana CNN. Autoridades israelenses afirmam que as Fazendas de Shebaa fazem parte das Colinas de Golã, capturadas da Síria e posteriormente anexadas. A comunidade internacional, com exceção dos Estados Unidos, considera as Colinas de Golã um território ocupado pertencente à Síria.
Em 2006, Israel invadiu novamente o Líbano após o Hezbollah matar três soldados e sequestrar outros dois, numa tentativa de forçar a libertação de prisioneiros libaneses. A guerra durou pouco mais de um mês e resultou na morte de mais de mil libaneses, principalmente civis, e 170 israelenses, a maior parte soldados. No mesmo ano, o Conselho de Segurança da ONU adotou por unanimidade a Resolução 1701 e exigiu um cessar-fogo completo entre a organização político-militar libanesa e Israel, reforçando que nenhum grupo armado seria permitido na área, instando o governo libanês a exercer sua “plena soberania”.
Na prática, contudo, o Hezbollah manteve sua presença na região, e especialistas acreditam que o grupo tenha criado uma rede robusta de túneis subterrâneos, alguns capazes de alcançar o território israelense.
(Com AFP)
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