Nas últimas 72 horas, Donald Trump mudou sua posição sobre o direito ao aborto nos Estados Unidos pelo menos quatro vezes. Na quinta-feira, sugeriu que votaria a favor da expansão da garantia legal na Flórida para até 24 semanas de gravidez. A proposta estará na cédula no estado sulista em novembro, onde o ex-presidente tem domicílio eleitoral. Um dia depois, com a chiadeira da base conservadora, voltou atrás, afirmando que faria justamente o oposto nas urnas. No dia seguinte, disse que o decreto aprovado ano passado pelo governador Ron DeSantis, a quem bateu nas primárias republicanas, delimitando em quatro semanas a permissão legal no estado, “era tempo curto demais”. Também afirmou que, se eleito, não assinará decreto federal proibindo a interrupção da gravidez, por três vezes proposto por deputados de seu partido no Congresso nos últimos anos, e que “oferecerá tratamentos de fertilidade gratuitos”, sem detalhar como arcaria com os custos em país sem sistema público de saúde.
Ao atirar para todos os lados, sublinham especialistas, Trump revela, ao mesmo tempo, pouca profundidade sobre o tema e medo de que a revolta das americanas com o fim do direito federal ao aborto, aprovado pela Suprema Corte de maioria conservadora por conta de suas indicações, em 2022, o impeça de voltar à Casa Branca.
Medo do votos delas
De acordo com o New York Times, o republicano afirmou reservadamente a cabeças coroadas de sua campanha, após discursos de líderes governistas e de depoimentos comoventes e indignados de cidadãs na Convenção Nacional Democrata, há duas semanas, que temia a força do “voto de protesto delas”. Em público, no entanto, diz desacreditar que o tema será central em novembro.
— Mas esse é apenas um desejo de quem não consegue elaborar posição coerente sobre o assunto. E que, quando abre a boca, se complica mais. O aborto será sim, ao lado de inflação e imigração, pilar dessas eleições. E, exatamente como em 2022, vai levar mais eleitoras interessadas em recuperar direitos a elas garantidos desde os anos 1970 — diz o cientista político Larry Sabato, idealizador da Bola de Cristal da Universidade de Virgínia.
Há dois anos, nas eleições de meio de mandato, as declarações orgulhosas do ex-presidente sobre ter nomeado os juízes que formaram maioria para a derrubada do direito federal ao aborto foi celebrada pelo trumpismo. Mas ajudaram a impedir, mostraram as boca de urna, a concretização da onda vermelha [a cor do Partido Republicano] então prevista nas urnas.
O vaivém de Trump sobre o tema está “confundindo os eleitores”, afirmou ao New York Times o ex-presidente do Partido Republicano da Carolina do Sul Chad Connelly, líder do movimento antiaborto e próximo de pastores evangélicos. Mas não é exatamente novo. Em 1999, Trump afirmou à NBC ser favorável às mulheres decidirem o que fazer com seus corpos. Em 2011, em reunião gravada em vídeo com grupos religiosos, afirmou o oposto. Na campanha presidencial de 2016, ofereceu como motivo central para se votar nele e não em Hillary Clinton sua obsessão em construir maioria conservadora na Suprema Corte “afim de acabar com o aborto nos EUA”. Mas abriu a deste ano afirmando que o debate estava resolvido, com a decisão nas mãos dos estados. As eleitoras, dizem as pesquisas, discordam.
Kamala Harris, a primeira mulher, e negra, eleita vice-presidente dos EUA
As idas e voltas de Trump sobre o direito ao aborto revelam, disse ontem à CNN a consultora política Karen Finney, que teve posto de destaque na campanha de Hillary, a enorme preocupação dos republicanos com o tema neste momento: “Mas para além das opiniões contraditórias dos últimos dias, é sim importante revisitar o histórico de Trump sobre a questão e a consequência de suas ações quando no Poder. Queremos arriscar um veto federal quando ele mudar novamente de ideia?”
A preocupação tem razão de ser. Embora a economia continue a ser a razão número um no voto dos americanos este ano, pesquisas qualitativas da Universidade Siena feitas para o New York Times detectam número crescente de eleitores em estados decisivos que catapultaram o aborto para o segundo lugar em suas preocupações, ligeiramente à frente de imigração no cômputo geral. Entre as mulheres, agora há empate entre economia e aborto. E, por ampla margem, adultos e adultas dizem confiar na vice-presidente Kamala Harris em vez do ex-presidente Donald J. Trump no tema.
Estados decisivos
Este ano, eleitores de pelo menos dez estados vão decidir no voto, em propostas de alcance diverso, políticas públicas em torno da interrupção da gravidez. Entre eles, os decisivos Nevada e Arizona.
No primeiro, a média de pesquisas mostra Trump hoje empatado com Kamala, os dois com 47,6%. No segundo, a vantagem do ex-presidente caiu, desde a entrada da democrata na corrida presidencial, de 8% para 0,5%.
Republicanos reconhecem que o tema ficou mais espinhoso para Trump com a mudança de adversário — ao contrário do presidente Joe Biden, católico de 81 anos e que jamais fez do direito ao aborto bandeira em sua longa trajetória política, a vice-presidente foi a primeira líder nacional do Partido Democrata a criticar a decisão da Suprema Corte.
E o fez de forma contundente, ao afirmar que nunca antes na História americana o Judiciário havia retirado direitos civis das cidadãs. Ela se beneficia também do contraste visual em torno da discussão que os democratas desejam explorar no debate entre no próximo dia 10: a candidata democrata é uma mulher de 59 anos, o republicano um senhor de 78. Em seu discurso na convenção, Kamala afirmou que os republicanos não confiam “em nós, mulheres”, para tomar decisão central em suas vidas. E que ela não só o faz como também combate a “invasão do Estado em tema de liberdade individual”.
Na base democrata, incrementou-se o investimento em eleitoras dos subúrbios capazes de decidir o pleito em estados decisivos como a Pensilvânia e a Geórgia. O estrategista Simon Rosenberg, o primeiro a bater na tecla de que os republicanos não iriam recuperar o controle do Senado há dois anos justamente por conta do voto de protesto das mulheres, fez no sábado nova previsão que preocupa os adversários.
A mobilização da base democrata nos últimos três anos em torno do tema, argumenta, derrubou certezas na disputa pela Casa Branca. As pesquisas, diz, falham em contabilizar não apenas os votos de “trumpistas envergonhados”, mas também de defensores do direito ao aborto, como se viu 2022. Um contingente que, mostram seus números de doações e de voluntárias nos estados decisivos, deve ser ainda maior em novembro. Assim, o tamanho do voto comprometido com o direito ao aborto em âmbito estadual teria apagado a necessidade, presente em 2016 e 2020, de a chapa democrata obter uma vantagem de ao menos 3% no voto popular para vencer no Colégio Eleitoral.