Retratar um ídolo é sempre um desafio e tanto. Se a representação carrega nos elogios, a biografia parece falsa (afinal, para que tanto esforço?). Por outro lado, um perfil carne-e-osso se arrisca a reduzir a estatura do personagem. “Senna”, série que chega hoje à Netflix, tenta apoiar um pé em cada canoa, um equilíbrio, convenhamos, impossível. Há que se fazer uma escolha.
Os títulos de alguns dos seis episódios (“Vocação”, “Determinação”, “Paixão” e por aí vai) entregam tudo: essa narrativa tende para a idealização. A tentativa de abraçar dois caminhos incompatíveis, no entanto, não ofusca a produção caprichada (da Gullane Filmes), a maneira clara como a trajetória do piloto é exposta e, sobretudo, a presença de Gabriel Leone, o ator principal, que enche a tela. A série tem direção-geral do talentoso Vicente Amorim (também showrunner, diretor e criador) e direção de Júlia Rezende. E a realização, mais do que o roteiro, é a principal responsável pelo brilho do resultado final.
Somos apresentados ao piloto na juventude. Há algumas cenas rápidas nos anos 1960, só para mostrar que ainda criança ele já demonstrava uma paixão pelo volante dos carros do pai. Mas logo a trama volta para o fim da década de 1970. Nessa época, a velocidade era só diletantismo para Ayrton da Silva, que corria de kart (Senna é o nome do meio que ele passou a usar quando começou a fazer sucesso na Europa). Logo ele cavou uma oportunidade na Fórmula Ford na Inglaterra, e se casou com Lílian (Alice Wegmann), com quem se mudou para Norfolk para viver um ano. Depois, até tentou voltar para o Brasil e salvar o casamento, mas acabou sendo chamado de volta e todo mundo conhece as conquistas que vieram depois.
O roteiro apresenta essa trajetória de forma direta e carrega até os espectadores que não sabem muito sobre Fórmula 1. Porém, peca ao subestimar a inteligência do seu público. Isso fica evidente com a presença de uma personagem fictícia, uma jornalista inglesa, Laura (Kaya Scodelaro). A função dela é explicar e reiterar o enredo. É como uma professora para alunos em recuperação. O recurso, uma bengala do texto, era totalmente dispensável. Em compensação, a direção é cheia de acertos. A escalação e condução do elenco têm rigor. Além de Leone, maravilhoso, destaco Susana Ribeiro (Neyde), Marco Ricca (Milton), Pâmela Tomé (Xuxa), Camila Márdila (Viviane), Matt Mella (Alain Prost) e Johannes Heinrichs (Nikki Lauda).
A figura que emerge no fim de tudo é a do mito. Senna é até visto sendo derrotado no início da carreira, verdade, mas quando isso ocorre é por razões de marmelada ou de incapacidade das máquinas que pilotou. A superação dos obstáculos vai fluindo e puxa a ação. Há uma boa dose de ufanismo também. No geral, contudo, a série tem peso e busca genuinamente contar sua história. Merece toda a sua atenção.