Em ofensiva do Comando Vermelho, favelas do Rio convivem com rotina de invasões: explosões, barricadas em chamas e traçantes no céu

Levantamento da inteligência da PM aponta que o CV domina 1.085 localidades em todo o estado do Rio, número maior do que a soma dos territórios dominados pela milícia e outras facções do tráfico


Tentativas de invasões do Comando Vermelho espalham tiroteios pelo Rio Arte O Globo

Madrugada do último dia 27 de maio. Confrontos violentos acordam os moradores do Complexo do Chapadão e da Pedreira, na Zona Norte do Rio. Não muito distante dali, tiroteios também afligem quem vive em outras duas comunidades, os morros dos Macacos e São João. Um dia depois, é Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade, o alvo dos conflitos, durante uma investida do tráfico de drogas na favela que é berço da milícia fluminense. Uma rotina de disputas por território que, nos últimos meses, fez vítimas ainda na Gardênia Azul, que há 30 anos permanecia sob o domínio dos paramilitares. São todas tensões — que espalham mortes, assustam com explosões e barricadas em chamas e impactam a vida de milhares de pessoas — com um aspecto em comum: o plano expansionista do Comando Vermelho (CV), a maior facção do estado.

Ao longo do último mês, o GLOBO analisou relatórios de inteligência, depoimentos de traficantes e inquéritos de homicídios e entrevistou policiais, promotores, especialistas, parentes de vítimas e moradores de áreas conflagradas para contar o que está por trás dessa expansão do CV. A facção, que assistiu ao crescimento da milícia na última década, decidiu recuperar o espaço perdido, promovendo uma guerra sangrenta nos redutos dos paramilitares. O contragolpe do CV é tema de uma série especial em três capítulos que começa a ser publicada hoje no projeto Tem Que Ler, iniciativa exclusiva para assinantes.

Dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF e da Polícia Civil do Rio revelam que, nos últimos dois anos, a facção financiou bandos armados e articulou dezenas de ataques coordenados que culminaram na tomada de 19 comunidades em 14 bairros diferentes da Baixada de Jacarepaguá que antes eram dominadas por paramilitares. O interesse do CV na região não se restringe à implantação de bocas de fumo: os traficantes já passaram a replicar ali o modelo da milícia, com exploração da venda de gás e pacotes de internet e até do mercado imobiliário.

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Na Gardênia Azul, são meses de angústia para os moradores. Em janeiro deste ano, sete homens que tinham saído da Vila Cruzeiro, na Zona Norte do Rio, chegaram a ser interceptados e presos por equipes do Batalhão de Policiamento em Vias Expressas (BPVE), quando estavam a caminho de uma invasão à comunidade. O grupo foi detido na Linha Amarela, com pistolas 9mm e seis granadas. Ação, porém, que não deteve a tomada da comunidade, que convive, além do medo e do luto por mortes de inocentes, com novas regras impostas pelo tráfico.

Mesmo comunidades que não costumavam ter confrontos frequentes registraram cenas de terror. Também em janeiro, moradores próximos à comunidade Cesar Maia, em Vargem Pequena, e da Avenida Salvador Allende, importante via da Zona Oeste carioca, relataram tiroteios com balas traçantes atravessando o céu à noite, em uma das disputas territoriais entre traficantes e milicianos.

Em maio, traçantes também cruzaram a paisagem de Rio das Pedras. Na comunidade, como O GLOBO mostrou no mês passado, multiplicam-se relatos de uma rotina marcada por tiroteios, extorsões e medo. No último dia 26 de junho, um incêndio atingiu a mata perto da favela e levou mais de três horas para ser contido pelos bombeiros. Segundo moradores, as labaredas teriam sido provocadas pela milícia, numa tentativa de evitar o acesso de traficantes do CV à região.

Atualmente, ainda há quatro favelas na Grande Jacarepaguá, entre elas Rio das Pedras, que são alvos constantes de ataques da facção. Há ainda outros focos de disputas na Zona Norte, na Baixada Fluminense e em São Gonçalo, na Região Metropolitana. Um levantamento da inteligência da PM aponta que o CV domina 1.085 localidades em todo o estado — o número é maior do que a soma dos territórios dominados pela milícia e outras facções do tráfico.

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Para policiais que investigam a facção, um marco importante do início do projeto de expansão é a saída de Wilton Carlos Rabello Quintanilha, o Abelha, pela porta da frente do Complexo de Gericinó, em junho de 2021. Sua soltura foi um erro: na ocasião, ele tinha um mandado de prisão pendente em seu nome. Logo, Abelha foi alçado pelo “conselho” — grupo de presos que cumprem pena no Rio com postos mais altos na hierarquia da organização — ao cargo mais alto entre os integrantes do CV em liberdade, o de “presidente” da facção. Mesmo sem ser chefe de nenhuma favela de proeminência, Abelha virou o responsável por definir os rumos da facção e controlar seu caixa.

— Ele passou mais de duas décadas preso e conviveu com outras lideranças em presídios federais. Por isso, foi alçado à cúpula e virou a referência da facção. Todo o planejamento da expansão que aconteceria meses depois partiu dele — conta o secretário de Polícia Civil, Marcus Amim.

No ano seguinte à soltura de Abelha, as guerras para anexação de territórios começaram, a partir da formação de bondes armados focados em atacar, cada um, uma região na mira da facção. O bando chefiado pelo traficante Bruno Silva Souza, o Tiriça, responsável por tomar a Praça Seca, foi o primeiro a completar a missão: todas as favelas da região foram tomadas pelo CV no início de 2023, após um ano de confrontos com os paramilitares.

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Em seguida, o foco passou para as favelas do Itanhangá e a Gardênia Azul, alvo das investidas da Equipe Sombra — a quadrilha de pistoleiros chefiada por Juan Breno Malta Ramos Rodrigues, o BMW, que foi responsável, entre outras dezenas de crimes, pelo homicídio de Andinho. Até o início de 2024, todas as localidades foram invadidas em sequência, e os esforços se voltaram para os bairros do Recreio dos Bandeirantes, das Vargens Grande e Pequena e de Guaratiba — apesar de o CV já ter tomado a maioria das favelas, ainda há confrontos na região até hoje. Já Abelha está foragido, mas foi destituído do cargo de “presidente” ano passado por ter decidido executar comparsas sem autorização da cúpula.

A região da Grande Jacarepaguá era objeto antigo de desejo do CV: há mais de uma década, a facção planeja criar um “cinturão” no entorno da Floresta da Tijuca — o que favoreceria eventuais fugas em caso de operações e tentativas de invasão por rivais. Hoje, a única favela que falta para que o plano se concretize é Rio das Pedras, o alvo da vez da facção.

E se a guerra na Zona Oeste tem a milícia como antagonista, outras regiões que fazem parte do plano expansionista do CV são dominadas pelo Terceiro Comando Puro (TCP): o Complexo de Israel (integrado por Parada de Lucas, Vigário Geral, Cidade Alta, Pica-Pau e Cinco Bocas); o Morro dos Macacos, em Vila Isabel; e o Complexo da Pedreira, em Costa Barros. Com o domínio da Grande Jacarepaguá, essas comunidades já registram uma escalada nos confrontos.

Enquanto as forças de segurança tentam fazer frente ao plano expansionista do CV, confrontos também são registrados em favelas que são redutos da facção. As comunidades Nova Holanda e Parque União, no Complexo da Maré, por exemplo, têm sido alvos constantes de incursões da polícia. No último dia 3 de julho, uma operação da Polícia Civil para reprimir um esquema de lavagem de dinheiro da facção escancarou como os traficantes da quadrilha têm adotado práticas da milícia: no Parque União, os agentes chegaram a um condomínio de 41 prédios, com cerca de 300 apartamentos e 40 lojas, construído e comercializado pelos bandidos.

No mesmo dia, seis pessoas morreram na Cidade de Deus, numa ação da PM que tinha objetivo de conter o avanço territorial da facção. As mortes aconteceram um dia depois da visita ao Rio feito por Edson Fachin, ministro do Superior Tribunal Federal, relator da chamada "ADPF das Favelas", cujo principal objetivo é a diminuição da letalidade policial.

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