Vinhos de Portugal
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Por — Porto, Portugal

A penumbra das caves do vinho do Porto em Vila Nova de Gaia, a umidade que se cola às paredes ou aos tetos enegrecidos com musgos e liquens, o chão de terra dura e o aroma fino e doce dos vinhos adormecidos compõem o habitat natural de um ser raro, quase sempre distante dos holofotes e por isso muito especial: o provador.

Vinhos de Portugal em SP: a prova "Porto, as seduções de um vinho clássico", com o crítico Manuel Carvalho, será realizada neste sábado (15), às 19h, no Pavilhão da Bienal, no Ibirapuera. Os ingressos estão à venda no site: ingresse.com

Carlos Alves, o chefe provador das marcas de vinho do Porto do grupo Sogevinus (Cálem, Barros, Kopke ou Burmester), desloca-se entre os cascos empilhados e os balseiros com a segurança e o saber de um bibliotecário. Aquele é o seu mundo natural, feito de aromas, de balanços entre o vinho que entra e sai e de memórias que remontam ao século XIX.

Para a sua função, Carlos é muito novo (tem 42 anos), mas sabe onde estão os vinhos brancos e os tintos de cada marca, os tawnies e os ruby, os cascos para lotes de 10 ou 20 anos, os vinhos da vindima anterior que estão destinados a chegar aos consumidores daqui a 30 ou 50 anos com a designação “Colheita”. Ser provador é uma arte que exige experiência, nariz apurado e memória prodigiosa. E também intuição para saber que este ou aquele vinho vão ser capazes de viajar e crescer no tempo.

Quando Carlos diz no meio de um dos armazéns do grupo que conhece “esses vinhos todos”, reclama para si um quase milagre. Só nas caves de Vila Nova de Gaia da Sogevinus estão guardados 11.800 cascos (sinônimo de pipa) e 290 balseiros, cubas gigantes de madeira com capacidade que pode chegar aos 150 mil litros cada uma. “Ao todo, temos armazenados aqui, nestes armazéns, cerca de 20 milhões de litros de vinho do Porto”, diz o provador. Depois, há ainda uma parte dos vinhos que fica guardada em caves na região produtora, o Douro.

Apesar de toda a variedade de estilos de vinho e essa enorme quantidade, Carlos Alves conhece os vinhos “todos”. Hoje, como sempre na história do vinho do Porto, um provador tem de escolher vinhos, dar-lhes destino, educá-los por vezes ao longo de décadas. Só se pode desempenhar bem essas missões quando se conhecem os vinhos.

Os provadores do vinho do Porto nunca chegaram a ter o estatuto de estrelas que hoje se concede aos enólogos. O seu trabalho é minucioso, repetitivo, sem lugar a exaltações como a que acontece no lançamento de um vinho fora de série de uma determinada vindima. Na penumbra das caves, ou nos laboratórios de análise, eles trabalham com vinhos que ora chegaram a Gaia no princípio do ano ou estão por lá guardados desde 1890. Tanto como criador, Carlos Alves é um zelador. Um Porto Colheita de 1974 ou de 1935 é sempre uma obra com muitos artífices.

Por regra, os provadores começavam a trabalhar nas caves com 10 ou 12 anos de idade e iam aprendendo a distinguir vinhos. Com o tempo e a experiência, podiam chegar ao topo da carreira. Havia provadores, como o da casa Offley que o jornalista João Paulo Martins conheceu, que nunca foram ao Douro. Na Niepoort, a família Nogueira ocupa essa função há cinco gerações. Carlos foi lançado no labirinto das caves da Sogevinus quando tinha 31 anos. Tinha, por isso, pouco saber prático. Seguindo os novos ares do tempo do vinho do Porto, entrou lá com uma licenciatura em Enologia pela Universidade de Trás-os-Montes. Reconhece, porém, que quando foi convidado para o desafio passou umas noites “sem dormir”.

Estilo de cada casa

Ao contrário do que acontecia no passado, não há hoje uma fronteira inviolável entre as vinhas do Douro e as caves de Gaia. O tempo em que o Douro fazia o vinho e as companhias exportadoras o envelheciam e comercializavam acabou. As empresas do grupo Sogevinus cultivam 300 hectares de videiras no vale e compram uvas de 337 produtores. Isso permite aos provadores da geração de Carlos Alves começar a pensar o vinho quando está ainda sob a forma de cachos de uvas. O destino dos mostos fica em parte decidido no momento da vindima. Carlos e a sua equipe sabem que esta ou aquela parcela são ideais para fazer este ou aquele vinho cuja feição conservam na memória e na ambição.

Carlos Alves, chefe provador das marcas de vinho do Porto do grupo Sogevinus: arte que exige experiência, nariz apurado, memória prodigiosa e intuição — Foto: Nelson Garrido/Público
Carlos Alves, chefe provador das marcas de vinho do Porto do grupo Sogevinus: arte que exige experiência, nariz apurado, memória prodigiosa e intuição — Foto: Nelson Garrido/Público

Mas é em janeiro que todos esses lotes da vindima conhecem o seu destino. Um a um, são avaliados em provas nos laboratórios de Gaia pelo provador e a sua equipe. Com a estabilização do inverno, os vinhos são classificados e encaminhados para cascos, balseiros ou, no caso de serem de gama inferior, para gigantescas cubas de inox.

“Em janeiro tomamos uma decisão para a vida toda”, diz Carlos Alves. Na operação, determina-se o futuro dos vinhos da casa, sejam tawnies ou ruby, Colheita ou vinhos de 50 anos. Na escolha, entra também a obediência ao estilo de cada casa. Se for mais doce, ajusta-se ao perfil da Barros; se for mais taninoso, ao da Cálem; se for um Colheita Branco, é um Kopke.

Para saber exatamente o lugar que vai caber a cada vinho e onde está no labirinto de cada cave, a equipe da Sogevinus recorre à informática. Mas não dispensa as velhas marcas de giz branco escritas nos tampos dos cascos. Elas nos permitem saber o que aguarda esse vinho. Por exemplo, se no tampo estiver um “P 20 anos”, acima de um código “KO”, isso quer dizer que esse vinho entrará nos lotes de vinho do Porto 20 anos da Kopke. “Antes do lote final, os vinhos são todos P, ou seja, ‘para’”, explica Carlos.

A vida do provador seria mais fácil se, depois de tomada a decisão crítica sobre o destino e a categoria dos vinhos, tivesse apenas de esperar. Não. Os vinhos são seres vivos que reagem de forma diferente ao meio envolvente. “Cada casco é um casco”, diz Carlos, o que quer dizer que um mesmo vinho, do mesmo lote, da mesma vindima pode estar perfeito num casco e com defeitos no casco ao lado.

As boas regras mandam que todos os vinhos sejam arejados anualmente. Vale a pena imaginar a tarefa gigantesca de movimentar parte dos 20 milhões de litros de vinho dos cascos originais para balseiros, para depois os reinstalar nos cascos — por vezes, os cascos precisam de ser reparados pelos tanoeiros da casa. Pelo meio, a equipe tem de provar e avaliar o estado de evolução dos vinhos.

No caso dos Colheita, há que esperar que cumpram pelo menos sete anos de vida em casco até que sejam vendidos no mercado. Aqui, o trabalho do provador é apenas fazer os “atestos” todos os anos ou, na gíria do vinho do Porto, pagar a “quota dos anjos”. Como os cascos de madeira são porosos, “todos os anos perdemos cerca de 2,2% do vinho”, diz Carlos Alves. Ao contrário de outras empresas que aproveitam os atestos para rejuvenescer os Colheita com vinhos mais jovens, na Sogevinus o mesmo vinho é usado para manter o nível dos cascos até o limite.

Nessa categoria, apenas uma parte do vinho que cumpre os sete anos obrigatórios de estágio é lançada no mercado. A outra parte ficará anos e anos a fio nos cascos e será engarrafada em pequenas parcelas. Nos armazéns à guarda de Carlos há por isso Colheitas do século XIX e, depois de 1930, a Kopke tem pelo menos três colheitas por década ainda em evolução. Na linha de engarrafamento, há até uma pequena área para o enchimento de colheitas raras e antigas, a pedido de clientes especiais ou distribuidores, onde é possível produzir cinco, dez ou 20 garrafas de um ano remoto.

Já nas outras categorias com indicação de idade (20, 30, 40, 50 anos), o processo é mais complexo. É aí que a alquimia dos provadores se destaca. Pelo método de Carlos Alves, os vinhos que vão entrar num lote para, por exemplo, 10 anos, são previamente identificados. Mas, quando chega o momento de lançar no mercado a nova edição da categoria, é preciso revisitar todos os cascos e fazer o blend.

Porque, se no caso do Colheita, o que está em causa é um ano de vindima (por exemplo, 2015), um 10 anos pode ter vinhos nascidos em 2014 loteados com outros de 2012 e de 2016. A média de idade do lote é dez anos, mas há no trabalho do provador escolhas que em primeiro lugar pretendem preservar o estilo de cada marca. Se o vinho precisar mais de cor, há o vinho de um determinado ano ou casco, se precisar de acidez, há outro, e por aí afora.

Em muitas casas de vinho do Porto, a latitude dos vinhos escolhidos para o lote final é muito alargada. Para fazer um 20 anos, há quem recorra a vinhos muito velhos para lhes dar complexidade e a outros muito jovens para lhes dar fruta e nervo. Carlos Alves não segue esse caminho. “Para fazer um 50 anos, por exemplo, uso por regra vinhos de sete vindimas diferentes. Quatro vinhos, com 52, 54, 48 e 49 anos, por exemplo, muito perto da idade da categoria pretendida, e depois outros três que escolhemos para afinar o lote final.”

Artesãos do tempo

Percebe-se assim que o trabalho do provador é um imenso catálogo de opções a partir de um espólio gigantesco. Entre os sete e oito milhões de litros de vinho do Porto que entram nas adegas todos os anos, os sete ou oito milhões que saem engarrafados e o gigantesco patrimônio que está ali para as próximas décadas, há uma operação insana que envolve logística e principalmente sensibilidade e saber. Carlos se sente o fiel depositário “de uma herança que foi criada pelos nossos antepassados”, mas ao mesmo tempo o criador dos grandes Porto da Kopke ou da Burmester que vão impressionar apreciadores de todo o mundo dentro de meio século ou mais.

É nesse cruzamento entre o passado e o presente que se constrói parte importante da cultura secular do vinho do Porto. Longe do star system dos enólogos famosos dos vinhos tranquilos, provadores como Carlos têm incrustado nas suas preocupações um desígnio cada vez mais raro, no mundo do vinho e não só: o de saber que estão criando fontes de prazer que exigem décadas de adormecimento nas caves úmidas, frescas e sombrias de Vila Nova de Gaia. Mais do que enólogos, Carlos Alves e os grandes provadores de vinho do Porto desta e de outras gerações são afinal artesãos do tempo.

O Vinhos de Portugal tem preços a partir de R$ 157,30, e assinantes do GLOBO e do Valor Econômico têm 20% de desconto no valor dos ingressos. Para mais informações, acesse: vinhosdeportugal.oglobo.com.br

O Vinhos de Portugal 2024 é uma realização dos jornais O Globo, Valor Econômico e Público, em parceria com a ViniPortugal, com a participação do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto; apoio das Comissões de Vinho de Alentejo, Beira Interior, Dão, Lisboa, Península de Setúbal, Tejo, Vinhos Verdes e da Agência Regional de Promoção Turística Centro de Portugal, Turismo de Portugal, Tap Air Portugal, AB Gotland Volvo e Shopping Leblon; água oficial Águas Prata, hotel oficial Fairmont Rio (RJ), local oficial Jockey Club Brasileiro (RJ), loja oficial Porto Divino, rádio oficial CBN e curadoria Out of Paper. A edição de São Paulo conta ainda com a Cidade de São Paulo como cidade anfitriã e SP Negócios como apoio institucional.

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