Com os rios da Bacia Amazônica em níveis baixo de um ano atrás e os prognósticos climáticos apontando para chuvas escassas nos próximos meses, indústrias na Zona Franca de Manaus, operadores logísticos e governos correm para tentar mitigar os efeitos de mais uma grande seca na chegada de insumos e suprimentos e no escoamento da produção.
Ainda sem solução definitiva para manter a navegação dos rios durante a estiagem, a indústria antecipou pedidos de insumos e envios da produção para o resto do país. Já operadores de terminais de contêineres estão investindo em mais capacidade e cais flutuantes próprios.
A preocupação não é à toa. No ano passado, quando os rios atingiram os menores níveis da história durante a seca (de agosto a dezembro), navios de carga ficaram em torno de 45 dias sem chegar a Manaus. O Ciem, entidade que representa a indústria do Amazonas, estimou prejuízo de R$ 1,4 bilhão em 2023, por gastos adicionais com transporte por causa da seca.
Comunidades ribeirinhas ficaram isoladas, o frete encareceu mais do que o normal na estiagem, a entrega de eletrodomésticos para o resto do país ficou ameaçada e a escassez de suprimentos, alimentos inclusive, turbinou a inflação na capital amazonense e levou a fome aos mais isolados.
É justamente para evitar a repetição desse quadro que a indústria e operadores logísticos adotaram ações preventivas. A expectativa é que a interrupção total do transporte não se repita. Ainda assim, é esperado aumento no custo do frete, um dos itens que impactam o preço dos produtos.
A primeira alternativa foi antecipar a produção e o transporte. Segundo Luís Fernando Resano, diretor-executivo da Associação Brasileira de Armadores de Cabotagem (Abac), que representa operadores de transporte, isso ajudou a elevar os embarques de cabotagem (navegação pela costa de um mesmo país) em Manaus em 10% no primeiro semestre na comparação com igual período de 2023.
Natal e Black Friday
Segundo Jorge Nascimento, presidente executivo da Eletros, associação dos fabricantes de eletrodomésticos, a preparação deverá evitar a falta de produtos nas lojas nos próximos meses, mas a estratégia de antecipar produção tem limite, e o impacto vai depender da incidência de chuvas.
— Já fizemos a produção devida, escoamos boa parte dela, só que a nossa preocupação é com o Natal e com a Black Friday, se até o fim de outubro ou início de novembro não tivermos a subida das águas e se os serviços de transbordo criados não tiverem efetividade.
Com 2 milhões de habitantes, a capital amazonense tem conexões precárias por via rodoviária com o resto do país. Por isso, os rios são essenciais no transporte. Por causa da Zona Franca de Manaus, as vias naturais têm papel estratégico para a indústria.
Empresas que optam por se instalar no polo industrial — que concentra produção de TVs, micro-ondas, ar-condicionado e lava-louças — têm reduções de impostos, mas enfrentam o desafio logístico.
Segundo o Ciem, os principais meios de transporte são a cabotagem e o “rô-rô-caboclo”, como é chamado na Amazônia o transporte de caminhões em balsas — o nome vem do inglês roll-on/roll-off. Os caminhões viajam pelas estradas, sobem em balsas nos trechos onde não há rodovias e voltam para o transporte terrestre.
A cabotagem fica com 60% da logística no entorno de Manaus. Os navios de carga levam contêineres desde os principais portos. Todos os anos, quando os rios baixam na seca, a carga é reduzida para que as embarcações naveguem com profundidade menor — o frete encarece na estiagem.
À espera de dragagem
O problema é que secas severas, como as de 2023 e 2024, inviabilizam a passagem até com carga reduzida. Todos aguardam ainda o início de obras de dragagem a cargo do Dnit. O órgão do Ministério dos Transportes informou ao GLOBO ter destinado R$ 768 milhões do Orçamento deste ano para esse fim.
Para Resano, da Abac, a dragagem para aumentar a profundidade de pontos críticos dos rios deveria começar urgentemente. E se não começar logo, é melhor não fazer, na avaliação do executivo.
Segundo o Dnit, as obras na Bacia Amazônica já começaram — ao longo do Rio Madeira, afluente do Amazonas que deságua ao leste de Manaus — ou estão em diferentes fases de processos licitatórios.
O coordenador da Comissão de Logística do Cieam, Augusto César Rocha, pondera que os rios amazônicos têm “quantidade gigante” de sedimentos e cobra mais estudos técnicos:
— A dragagem talvez não funcione, porque não há clareza sobre onde dragar. Faltam elementos de estudo, do ponto de vista prático, do Dnit e dos demais órgãos.
Transporte por balsas
Enquanto isso, os serviços de transbordo são apontados como outra opção. A estratégia é transferir contêineres dos navios de cabotagem que entram pela Foz do Amazonas para balsas, capazes de passar por trechos mais rasos de rios.
O Tecon Vila do Conde, terminal privado operado pela Santos Brasil em Barcarena (PA), no entorno de Belém, viu as operações do “rô-rô caboclo” triplicarem na seca do ano passado. Isso impulsionou a alta de 34% na movimentação de carga no quarto trimestre, ante 2022.
Segundo Bruno Stupello, diretor de Operações de Terminais Portuários da Santos Brasil, a perspectiva de que eventos climáticos se tornem mais frequentes contribuiu para a decisão da Santos Brasil de ampliar o Tecon Vila do Conde. A empresa vai investir R$ 100 milhões ao longo do ano na compra de equipamentos e ampliação da área de armazenagem, com aumento de 30% na capacidade.
A navegação por balsas do terminal de Vila do Conde até Manaus leva de sete a oito dias, segundo Resano, da Abac. Uma opção mais próxima será a Operação Itacoatiara, como têm sido chamados dois projetos de instalação de píeres flutuantes temporários na cidade amazonense, a 270km por terra a leste de Manaus, comandado por operadores portuários privados, com apoio do Cieam e de órgãos dos governos estadual e federal.
Os projetos estão a cargo do Grupo Chibatão e do Super Terminais, operadores de terminais de contêineres. A expectativa é que as estruturas comecem a funcionar em setembro. Os cais ficarão no meio do Rio Amazonas, onde a profundidade, mesmo na seca, permite a navegação dos cargueiros. Nas estruturas temporárias, os navios atracarão para transferir os contêineres para as balsas — viagem de 12 a 18 horas até Manaus.
Para Resano, da Abac, todas as medidas são paliativas. O ideal seria ter um serviço de dragagem de longo prazo, executado todos os anos, antes dos momentos críticos de baixa dos ri
Acesso por terra
Rocha, da Comissão de Logística do Cieam, defende estudos aprofundados sobre soluções definitivas de engenharia, com a eventual construção de canais e operação permanente para tornar os rios verdadeiras hidrovias.
Os representantes das empresas defendem também a melhoria dos acessos por terra a Manaus. O principal projeto é a reforma da BR-319, da capital amazonense a Porto Velho (RO), que corta a floresta, em meio a áreas de conservação e terras indígenas.
O "trecho do meio" da rodovia não é asfaltado e, portanto, intransitável no período de chuvas, de dezembro a maio. A reforma é polêmica. Ambientalistas e pesquisadores apontam as estradas como estímulo ao desmatamento na Amazônia.
Hidrovias escoam grãos no 'arco norte'
A construção de hidrovias para manter os rios navegáveis todo o ano é importante também para a logística das exportações do agronegócio, segundo Elisangela Pereira Lopes, assessora técnica da Comissão Nacional de infraestrutura e Logística da Confederação Nacional da Agricultura CNA.
Ao longo de mais de dez anos, os portos das regiões Norte e Nordeste, que formam o “arco norte”, ganharam participação no escoamento das exportações de grãos, à medida que a fronteira agrícola da soja e do milho foi avançando nas porções setentrionais do Cerrado, especialmente em Mato Grosso.
Em 2022, o arco norte respondeu por 37,1% dos embarques de soja e milho, em detrimento das tradicionais portas de saída do Porto de Santos e do Porto de Paranaguá, segundo dados compilados pela CNA. Ano passado, a participação caiu para 34%, a primeira queda em mais de uma década.
Segundo Elisangela, a culpa foi da seca recorde, embora o transporte de grãos seja menos afetado pelo baixo nível dos rios do que o vaivém de contêineres.
Arco Norte escoa grãos do Centro-Oeste
Na rota hidroviária do Arco Norte, a produção sai das fazendas de Mato Grosso, hoje o maior produtor de grãos, e segue em caminhões até as margens dos rios Madeira, Amazonas e Tapajós.
Em estações de transbordo, passa para barcaças e, nos terminais portuários, embarcam em navios graneleiros. A oeste, o transbordo é feito em Porto Velho (RO), seguindo pelo Rio Madeira. A leste, se chega aos portos do Pará e do Maranhão por estradas e trilhos — a Ferrovia Norte-Sul (FNS) foi concluída.
Essa logística não é tão afetada pela seca porque a maior parte dos embarques se concentra até julho, quando o nível dos rios é sazonalmente mais elevado; as barcaças conseguem navegar em águas rasas; e, na porção oriental da Amazônia, onde está a maior parte da logística, os rios baixam menos. O trajeto pelo Rio Madeira é o mais afetado.
Para Elisangela, da CNA, é difícil estimar se mais uma seca recorde levará à segunda queda seguida na participação dos portos do arco norte no escoamento dos grãos. A safra 2023/2024 será menor, por causa do clima, e, ano passado, talvez os produtores tenham sobrestimado os efeitos da seca, usando o arco sul para além do necessário.
— A safra ser ou não superior à anterior é indiferente. Essa produção já é superior à logística ofertada. Há muito, temos um déficit na logística — afirmou Elisangela, ressaltando que faltam também armazéns, o que é fundamental para a logística. — Em 2023, os embarcadores ficaram preocupados (com a seca) e desviaram cargas para Santos. Talvez não tivessem que desviar tanto, mas houve uma preocupação. Talvez este ano eles não se antecipam tanto para desviar essa a carga, mas, caso não haja a intervenção necessária para garantir a navegação, podemos enfrentar problemas.