Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília
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Ruth de Aquino
Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.
Nosso direito a uma morte com lucidez
Deveríamos ter, no Brasil, acesso ao suicídio assistido que Antonio Cicero realizou na Suíça
Por Ruth de Aquino
RESUMO
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GERADO EM: 24/10/2024 - 16:24
"Debates sobre morte digna: o caso de Antonio Cicero e tabus em 'Tout s’est bien passé' e 'O quarto ao lado'"
O poeta Antonio Cicero realizou um suicídio assistido na Suíça, despertando debates sobre o direito a uma morte digna. Tabus morais e religiosos ainda impedem essa escolha em vários países, como o Brasil. Filmes como "Tout s’est bien passé" e "O quarto ao lado" abordam a temática da morte assistida, destacando a importância do amor e companheirismo para lidar com dilemas até o fim da vida.
O suicídio assistido do poeta Antonio Cicero na Suíça foi um plano secreto. Ele não queria que ninguém soubesse, para não tentar demovê-lo. Natural. Nos recusamos a perder de vista a quem amamos. Somos egoístas. Há dois anos, o cineasta Jean-Luc Godard morreu do mesmo jeito – mas ele não era nosso como Cicero, não embelezava nosso idioma, não era encontrado nas nossas esquinas. Não era nosso filósofo popular na Academia ou na música.
Vou evitar aqui os eufemismos da morte. Partiu. Despediu-se. Em vez disso, vou repetir a palavra fim, porque Cicero era ateu. Como ele, não acredito em nada após a morte. Tento aproveitar ao máximo e com honestidade essa jornada na Terra, curtir muito a vida, especialmente quando há milagres reais, como o 5 a zero do Botafogo no Peñarol.
Não era amiga pessoal do poeta, não tive esse privilégio. Por isso, não achei triste o fim. Ao contrário. Minha admiração cresceu. Sua escolha lúcida, seus 40 anos de amor com o companheiro, e sua bela carta aos amigos, sem um pingo de sentimentalismo, me injetaram coragem e esperança. Na morte digna, escolhida, sem dramas ou torturas. No fim com autonomia e serenidade, sem virar fardo para ninguém.
Pena que precise ser na Suíça. E que custe cerca de 15 mil francos suíços (R$ 100 mil), fora o transporte. Os tabus morais – e a religião – impedem, no Brasil e em vários países, a opção do suicídio assistido. E da eutanásia também.
Há uma diferença entre os dois procedimentos. Na eutanásia, é o médico que administra a substância letal. No suicídio assistido, esse sim permitido na Suíça desde 1942, o paciente precisa estar consciente de ser o autor. Toma a droga, sob supervisão médica, sem que ninguém possa tocar o copo a não ser ele. O remédio, Tiopental, em alta concentração, faz seu coração parar de bater muito rapidamente.
Eu estava em Paris quando relutei em assistir ao filme “Tout s’est bien passé”, de François Ozon, com a Sophie Marceau, que adoro. No Brasil, o título é “Está tudo bem”. A sinopse me assustou por ser sobre morte assistida. Acabei indo ao cinema, achei o filme belo e bem humorado. Sorri muitas vezes com a atuação magnífica de André Dussollier.
Inteligente, ativo, temperamental, esse colecionador de arte sofre um derrame aos 85 anos que paralisa parte do rosto e do corpo e pede a sua filha favorita (Sophie Marceau): “Me ajude a acabar com isso”. Ela desaba no início, mas acaba convencida pelo pai. Como na França é ilegal, ele vai para a Suíça num carro e ali toma o remédio para dormir para sempre. “Preferiria champagne” são suas últimas palavras.
Quando, agora, o diretor espanhol Almodóvar nos presenteia com “O quarto ao lado”, começamos a pensar que a morte está na moda. Uma escritora (Juliane Moore) lança em Nova York seu novo livro, e descobre que uma amiga (Tilda Swinton) está com um câncer avançado. É convencida por ela a ficar numa casa de campo, no quarto vizinho, porque falta coragem para morrer sozinha, com uma pílula, sem ninguém que ela goste por perto. Uma porta fechada é o sinal de que o fim chegou.
A morte não está na moda. Mas o mundo envelhece muito mais do que antes. Não é romântico envelhecer ou morrer. É apenas inevitável. Há pessoas que acreditam que seu corpo pertence a Deus ou à família. Não é o meu caso, nem dos personagens aqui. Esse processo do suicídio assistido não é linear. É cheio de altos e baixos. De dúvidas e medos.
Uma coisa é certa. Tanto com Cicero quanto com os protagonistas nos filmes, percebemos a importância do amor, da amizade e do companheirismo para enfrentar os nossos dilemas e torcer junto, sempre, de mãos dadas. Na vida, no futebol e na morte.