Ruth de Aquino
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Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília

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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.

Por Ruth de Aquino


A cirurgiã vascular Emilia Alves Bento com o filho Pedro, quando ele tinha cinco meses e ainda não sabia que seria tratado com preconceito pela cor da pele — Foto: Album de família
A cirurgiã vascular Emilia Alves Bento com o filho Pedro, quando ele tinha cinco meses e ainda não sabia que seria tratado com preconceito pela cor da pele — Foto: Album de família

Somos vizinhas de bairro. Emilia Alves Bento é cirurgiã vascular, tem 44 anos. Ela é preta e eu sou branca. Nossas experiências de morar no Leblon são muito diferentes. Pela cor da pele. Seu filho, Pedro, 10 anos, foi confundido com um trombadinha por um segurança da tradicional padaria Rio-Lisboa. “Sai daí, moleque”. Emilia estava no balcão de frios. Quando olhou para trás, viu a mão do segurança tocando o filho. O segurança se justificou dizendo que, “com aquele cabelinho todo enrolado e o pé sujo de areia”, Pedro só podia ser menino de rua, daqueles que furtam e incomodam a clientela.

Nós, mães brancas, não passamos por isso. Depois do futevôlei na praia, Emilia voltava para casa com o filho, quando decidiu comprar gostosuras para o café da manhã. A família se mudara para o Leblon havia um ano. Por vários motivos. No Leblon ela montou sua clínica. E também por ser um bairro com mais segurança. Em São Cristóvão, o filho só saía do carro para a escola, Emilia sentia medo por ele. Que ironia. No Leblon, pensou, o Pedro vai poder caminhar, ir à praia, sem ser molestado.

Ela nasceu na Favela do Arará, em Benfica. Pai negro e analfabeto, mãe branca com primeiro grau incompleto. Notas boas no ensino público e a certeza de querer ser médica a levaram a se formar na Universidade Federal Fluminense, Niterói. Não entrou por cotas, ainda não existiam. Pegava quatro ônibus para dar plantão no hospital. Quando conseguia carona de colegas para atravessar a Ponte, guardava o dinheiro. Depois de seis anos de graduação e cinco de residência, tornou-se cirurgiã vascular.

Casou com um policial militar, branco, e os dois decidiram se mudar para o Leblon. O Pedro estuda no São Bento. Só na Zona Sul, Emília sentiu que sua cor destoava dos outros moradores. Antes, associava o preconceito a ser pobre. O que aconteceu na Rio-Lisboa levou a família a pensar em se mudar de volta para São Cristóvão. Mas desistiram. O filho quer continuar no Leblon.

“Quando vi aquela cena do segurança colocando a mão no Pedro, e dizendo ‘sai daí seu moleque, você não pode ficar aqui não’, gritei: ‘É meu filho!’. O cara nem pediu desculpas. Eu não sabia se desmaiava, se xingava. Fiquei desnorteada. Ninguém falava nada. Nada. A gente se sente muito sozinha nessas horas. Paguei e, antes de sair, disse a um senhor, dono da confeitaria, ‘nossa, eu sou moradora e cliente’. Ele respondeu que o segurança era do bairro, não da Rio-Lisboa”. O marido de Emilia, Alex, foi até lá, houve confusão e todos acabaram na 14ª.

Emilia não sabia que existia a Decradi, a Delegacia de Crimes Raciais. Na delegacia do Leblon, a inspetora disse que não era racismo porque não houve injúria racial. O segurança disse: “Confundi mesmo, tem um monte de criança igual a ele na rua”. Ele não pode agir assim. O protocolo cidadão é outro. Precisa perguntar a qualquer criança: onde estão seus pais? Emilia disse que se seu filho fosse branco, jamais seria expulso da padaria, porque pé sujo de areia toda criança tem ao sair da praia. E é verdade. Podemos nos solidarizar com a mãe do Pedro. Só não podemos sentir a dor de Emilia. Porque somos brancas.

O trauma foi tamanho que, poucos dias depois, saindo da praia, o marido corria atrás de Pedro na rua e ela advertiu: “Alex, não corre atrás do Pedro assim. Você é branco. Se um policial vê, vai achar que ele furtou. Até você explicar que estava brincando com seu filho...” Juro, embatuquei. Essa cena cotidiana me impactou. “Eu saio sempre muito arrumada. E sempre arrumo muito o Pedro. Num bairro onde muita gente anda de chinelo, desleixada. E faço isso porque somos pretos”. É de lascar.

As cotas acabam de completar 10 anos no Brasil. Emilia era contra cotas porque a irmã é branquinha e sofreu as mesmas dificuldades financeiras para cursar Engenharia Civil. “Hoje entendo que as cotas também privilegiam alunos carentes. Vi no ‘Profissão Repórter’ que, de 100 alunos na Uerj, vão se formar 25 médicos negros este ano. Então é importante. Nunca quis que minha história fosse contada como mimimi porque não é mimimi. Passei porque era muito boa. Mas hoje sei que, mesmo tendo dormido em beliche na sala com minha irmã, se nós sairmos juntas com um carrinho de bebê vão me tratar como babá dela”.

A história do Pedro deve soar quase pueril para você, de cor branca. Se comparada à escandalosa absolvição, pela Justiça Militar, de um PM que pisou no pescoço de uma mulher negra em São Paulo. Ou se comparada à segunda prisão injusta de um músico negro, que toca violoncelo desde os seis anos em Niterói. Mas machuca muito. O que une essas histórias é a cor escura da pele. É humilhação, vergonha, constrangimento. É crime de racismo. Perdão, Emilia.

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