Informações da coluna
Julio Maria
A crítica está em crise
Já me flagrei querendo falar mal de um artista apenas para que a reação de seus seguidores me desse a glória da visibilidade
RESUMO
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GERADO EM: 26/09/2024 - 04:30
"Crítica musical em crise: redes sociais x pensamento crítico"
A crítica musical enfrenta crise devido ao impacto das redes sociais e da influência dos fãs. O surgimento de comentários negativos fez artistas atacarem críticos, levando muitos a desistirem. A busca por audiência levou a críticas raivosas, mas é necessário repensar o papel do pensamento crítico.
Eu não sei exatamente quando foi que as coisas começaram a dar errado, mas desconfio. Foi por volta dos primeiros anos da década de 2000 que a crítica musical começou a definhar. E aqui falo de crítica mesmo, que para mim só tinha alguma função quando resistia às quatro tentações que poderiam levar um crítico ao inferno: 1. Não ter a preocupação em agradar ao artista criticado. 2. Não ter a preocupação em agradar aos fãs do artista criticado. 3. Não ter a preocupação em agradar ao assessor de imprensa do artista criticado. 4. Não ter a preocupação em desagradar a todo mundo para provar que quem critica é um justiceiro independente. Quando chegamos a 2020, joguei a toalha. Depois de criar projetos para o exercício da crítica musical sistemática que nem o jornal em que eu trabalhava apoiou, reconheci a guerra perdida. Eu não brigava contra um sistema, mas contra um pensamento baixado no cérebro de novos artistas, fãs, assessores de imprensa e críticos que chegavam sem disposição alguma para negociar suas crenças.
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O fortalecimento das redes sociais no início dos 2000 deixou o crítico em crise. Ao se sentir alvo de uma crítica negativa, o artista criticado passou a jogar suas tropas contra o jornalista e o efeito psicológico desse movimento foi devastador. “Não quero comprar mais essas brigas”, me disse um deles no café do jornal, antes de desistir. Outro me ligou em desespero no primeiro dia em que seu nome foi lançado aos leões por um grupo de rap: “Cara, o que eu faço? Respondo ou não respondo?” Disse que não. Quando estive em minha primeira fogueira, com mais de mil comentários de fãs de um rapper contradizendo meu relato de que o som de seu show, por não terminar na hora estipulada, havia vazado para o palco em que se apresentava Stevie Wonder em um festival de música em São Paulo, respondi e me dei mal. Os fãs entenderam terem atingido o alvo e redobraram a artilharia. E eu aprendi que o debate é um presente que concedemos a quem merece. (Nada a ver, mas lembro aqui do jornalista Carlos Tramontina elevando a figura do mediador em um debate político ao expulsar do estúdio um candidato infrator de regras. É isso. Debate é presente a quem merece.)
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A vida do crítico piorou com a entrada da geração de fãs que cresceu na década de 2010 sem ler críticas que não fossem bajulatórias. Toda e qualquer ideia que não elevasse seus ídolos era agressivamente repudiada. Passei dois Rock in Rio tendo de fechar minhas contas nas redes sociais antes de publicar textos que não atendiam a seus anseios. Quando escrevi que o Spotify criava ídolos, mas não artistas, e que Luísa Sonza era um bom exemplo da bagunça que passamos a fazer entre uma coisa e outra, os ataques cibernéticos foram violentos. Sofri também ao escrever que o Green Day, por não manipular as emoções de sua plateia o tempo todo, havia feito um show mais honesto do que o Coldplay. E ainda mais quando observei o que é observado desde o Rock in Rio de 2001: algum artista sempre canta em playback. No caso, nenhuma surpresa, era Justin Bieber.
Mas aí veio o outro lado da pretensa crítica livre: falar mal de algo passou a dar audiência por volta de 2020. Com a mudança do algoritmo, os comentários raivosos pulverizavam as críticas para muito além das bolhas dos assinantes de jornal, e gostamos disso (assustador pensar aqui que esse negócio sai do mesmo material genético que deu vida a Pablo Marçal, o candidato expulso). Agora, ouvíamos xingamentos aos nossos textos com um sorriso de satisfação. Um belo dia, flagrei-me querendo falar mal de um artista apenas para que a reação de seus seguidores me concedesse a glória da visibilidade. Talvez por entender que a única forma de continuar publicando críticas passava pelo crivo da audiência, percebi que havia perdido o rumo. Por que não dediquei esta coluna a Osmar Milito, o pianista gigante enterrado ontem, no Rio, aos 83 anos? Audiência? Estamos perdidos. É preciso fazer uma autocrítica do pensamento crítico.