Julio Maria
PUBLICIDADE
Julio Maria
Informações da coluna

Julio Maria

Por — São Paulo


RESUMO

Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você

GERADO EM: 29/08/2024 - 04:31

Censura Musical na Ditadura: Bobagens Reveladas no Sian

Arquivo Nacional revela bobagens da ditadura em site Sian, expondo censura em letras musicais. Censores vetaram canções até em 1988, incluindo sucessos de Wando e letras polêmicas de artistas como Titãs. A censura revela perplexidade e inconsistências nas decisões, mostrando a burstiness do controle sobre a produção cultural no período.

Com o perdão dos biógrafos de gabinete, achei bacana confidenciar um segredo de classe por um bem maior. Já existe há um tempo um site chamado Sian, Serviço de Informações do Arquivo Nacional, que é uma coisa linda. Por abrigar letras de canções vetadas por censores em algum momento da grande vigília, o Sian tornou-se a maior prova da idiotia da ditadura produzida pela própria ditadura. Os censores deram esse mole sem saber que, um dia, tudo o que escreveram seria colocado na vitrine da História. Seus nomes e sobrenomes estão nos carimbos de “aprovado” ou “reprovado” que eles desceram com gosto sobre as canções enviadas pelas gravadoras para análise. Vamos a eles.

Apesar de estudarmos que a ditadura acabou em 1985, o aparelho permaneceu ativo até o fim da década de 1980. Encontrei canções censuradas em 1988. E, para além da associação imediata que aprendemos a fazer entre censura e música de protesto, esqueçam Chico Buarque, Gil, Caetano, Rita Lee ou Aldir Blanc. Quando essas pessoas pararam de dar título de funcionário do mês aos agentes que interceptavam orgulhosos seus dribles verbais, o eixo das perseguições foi alterado.

No dia 24 de setembro de 1986, Coriolano Fagundes, chefe do departamento de censura da Polícia Federal, recebeu um telegrama: “EM NOME DE MINHA FAMÍLIA E DOS BONS COSTUMES, APELO VOSSA SENHORIA PROIBIÇÃO ÚLTIMA CANÇÃO DO COMPOSITOR WANDO E O DISCO ‘FRICOTE’, DE LUIZ CALDAS, AMBOS PROFUNDAMENTE ATENTATÓRIOS E OFENSIVOS”. ASSINADO: DR. MILTON KRAUSE.

Krause se atrapalhou. O que ele chamou de “disco Fricote” era a música “Fricote”, que Luiz Caldas já havia estourado pelo país e que, apesar de hoje ter uma letra amaldiçoada pelo revisionismo temporal (“nega do cabelo duro/ que não gosta de pentear...”), a censura, que nunca deu a mínima para o racismo, não viu nos versos problema algum.

“Fricote” seguiu liberada, mas Coriolano Fagundes ficou injuriado com o outro pedido de Krause. Depois de mandar seus agentes gastarem as pontas dos dedos revirando os arquivos letra a letra para acharem a heresia de Wando, deu-se por vencido e escreveu: “Quanto a intitulada ‘Última canção’, do compositor Wando, nada encontramos em nossos arquivos.” Claro, Krause se referia à última canção de sucesso de Wando, que tocava nas rádios com o nome de “Sem pudor”, do disco “Ui-Wando Paixão”. Os pedidos de Krause foram arquivados.

O entendimento do que deveria ou não ser liberado existia das mais diversas formas na cabeça de cada agente. Já era janeiro de 1986 quando o censor Luiz Mauro Giestas recebeu da gravadora RCA a letra da canção “A patinha da vovó”, de Carlos Cola. Ela seria gravada pelo grupo Trem da Alegria, um trio formado por crianças de 8 e 9 anos, e teria um trecho cantado por Xuxa. O refrão “pata, peta, pita, pota, puuxa...” ouriçou Giestas. Temendo cair em uma armadilha, só liberou a canção depois de ouvi-la em uma fita cassete e ter certeza de que não havia risco de a palavra “puxa” virar outra coisa.

Dois meses depois, o censor Paulo César de Oliveira Santos recebeu um lote de músicas da gravadora Warner. Só tinha casca grossa. “Igreja”, de Nando Reis, que seria lançada pelos Titãs, dizia: “Eu não gosto de padre/ eu não gosto de madre/ eu não gosto de frei/ Eu não gosto de bispo/ eu não gosto de Cristo/ eu não digo amém.” Lembro de cantar isso com medo de ir para o inferno. “Polícia”, de Tony Belloto, também dos Titãs, dizia: “Polícia para quem precisa/ Polícia para quem precisa de polícia.” O hino que cantávamos para provocar os camburões que passavam pela Casa Verde. E “Terceiro Mundo”, do punk Clemente, tinha mais provocação: “É o grito que se confunde/ com o uivo dos chacais/ Que estão lá fora prontos pra matar/ os que sabem demais, os que falaram demais.” Oliveira Santos leu essa e outras seis letras da mesma pasta e, antes de apanhar o casaco, apagar as luzes do escritório e partir, escreveu: “Opinamos pela liberação das letras musicais abaixo relacionadas, sem restrições.”

Mais recente Próxima Ser fã para ser melhor